Capa da publicação Tráfico sexual de pessoas: uma questão de gênero
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Tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual.

O gênero como fator determinante

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NÚCLEOS DE ENFRENTAMENTO

A implantação dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi prevista como um das metas do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

O Núcleo de Enfrentamento busca promover o direcionamento de casos de tráfico de pessoas para atendimento das demandas de assistência integral às vítimas junto aos órgãos competentes nas esferas de governo municipal, estadual e federal. Deve executar, enquanto unidade administrativa, ações previstas na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, nos seguintes eixos de atuação: prevenção ao tráfico de pessoas (art. 5º); responsabilização de seus autores (art. 6º); e atenção às vítimas (art. 7º) (BRASIL, 2009).

Os Núcleos têm o importante encargo de articular, estruturar e consolidar, a partir dos serviços e redes existentes, uma rede estadual de referência em atendimento às vítimas do tráfico de pessoas. Essa e outras atribuições foram definidas a partir da Portaria nº 31 (alterada, posteriormente, pela portaria n° 41 em novembro de 2009), de 20 de agosto de 2009, que estabeleceu, ainda, princípios e diretrizes para o seu funcionamento, como descrito abaixo em seu artigo 2°:

[...] I - Articular e planejar o desenvolvimento das ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, visando à atuação integrada dos órgãos públicos e da sociedade civil;

[...] V - Integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento;

VI - Fomentar e apoiar a criação de Comitês Municipais e Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;

VII - Sistematizar, elaborar e divulgar estudos, pesquisas e informações sobre o tráfico de pessoas;

VIII - Capacitar e formar atores envolvidos direta ou indiretamente com o enfrentamento ao tráfico de pessoas na perspectiva da promoção dos direitos humanos;

[...] XIV - Prestar auxílio às vítimas do tráfico de pessoas, no retorno a localidade de origem, caso seja solicitado;

XV - Instar o Governo Federal a promover parcerias com governos e organizações estrangeiras para o enfrentamento ao tráfico de pessoas; e

XVI - Articular a implementação de Postos Avançados a serem instalados nos pontos de entrada e saída de pessoas, a critério de cada Estado ou Município (BRASIL, 2009).

Em síntese, os núcleos de enfrentamento oferecem atendimento psicossocial para as vítimas de tráfico de pessoas e seus familiares, além de desenvolver atividades de prevenção, tais como distribuição de material educativo e realização de palestras e capacitações. São responsáveis ainda pelo recebimento, encaminhamento e acompanhamento de denúncias referentes ao tráfico humano.

Segundo dados do Ministério da Justiça, atualmente estão em funcionamento quinze núcleos. Não existem requisitos necessários para acesso ao serviço que, inclusive, recebe denúncias anônimas. O acolhimento inicial à vítima e seus familiares acontece a partir de uma escuta diferenciada realizada por meio da equipe multidisciplinar, composta por advogado, assistente social e psicólogo (BRASIL, 2009).


PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS

Como já observado, o crime de tráfico humano é responsável por uma série de violações de direitos fundamentais, causando às vítimas um conjunto de consequências de ordem psicológica, social, física, jurídica e econômica.

A proteção e a assistência às vítimas de tráfico de pessoas ocorrem por meio de um conjunto de ações de natureza técnica, ética, política e legal que visam restituir e garantir os direitos humanos que foram violados em razão do crime cometido (ICMPD, 2020).

A prevenção disposta no Art. 4º da lei brasileira de enfrentamento ao tráfico de pessoas é uma medida que deve ser incorporada na proteção às vítimas de tráfico de pessoas, por meio de ações que diminuam a revitimização e que integrem as políticas públicas nas áreas da assistência social, saúde, educação, trabalho e geração de renda, segurança púbica, esporte, lazer, cultura e direitos humanos, com o objetivo de promover conscientização, apoio e proteção às vítimas e as suas famílias (ICMPD, 2020).

Com base na necessidade de atendimento de todo o núcleo familiar que se encontra em situação de vulnerabilidade, a Lei n° 13344/16, no seu artigo 6º, dispõe que a proteção e o atendimento à vítima, direta ou indireta, do tráfico de pessoas devem compreender:

I - assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde;

II - acolhimento e abrigo provisório;

III - atenção às suas necessidades específcas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profssional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou outro status;

IV - preservação da intimidade e da identidade;

V - prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais;

VI - atendimento humanizado;

VII - informação sobre procedimentos administrativos e judiciais. (BRASIL, 2016)

A assistência e o acolhimento à mulher vítima de tráfico de pessoas devem ser pautados pelo respeito, pela humanização e pelo sigilo das informações que são compartilhadas com a equipe. Nenhuma mulher deve ser discriminada em razão da sua condição socioeconômica, da sua raça e/ou etnia, da sua orientação sexual, da identidade de gênero, da sua idade, da sua atividade laboral, do seu estado civil, ou de qualquer outra particularidade e singularidade que apresente (ICMPD, 2020).


A importância da participação da sociedade no combate ao tráfico de pessoas

A partir da Constituição de 1988, a defesa dos direitos humanos passou a ser fundamental no debate e formação das políticas públicas. Nos últimos anos, ações que direta ou indiretamente enfrentam o fenômeno do tráfico de pessoas vêm sendo desempenhadas por diversos órgãos federais. Um exemplo dessas ações são os Núcleos de Enfrentamento, que foram abordados no tópico anterior.

Há necessidade de estudos e diagnósticos sobre o tema. Ainda existe um vácuo na compreensão desse crime na realidade brasileira. Durante um longo período o tráfico de pessoas foi ignorado pelas autoridades em razão de seu desconhecimento. Somente após a realização da PESTRAF (Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil), e de outras pesquisas de menor abrangência, foi possível impactar dirigentes de órgãos competentes para investigação e promoção das ações penais e realizar as primeiras capacitações. Os resultados não demoraram a aparecer com um aumento significativo no número de inquéritos policiais e processos (CAMPOS; OLIVEIRA; GAMA, 2011).

As campanhas possibilitaram o aumento das denúncias pela população. Contudo, ainda há muito que fazer. As capacitações precisam ser constantes. Os Planos Nacionais sempre descrevem várias iniciativas de pesquisa e capacitação, procurando a mobilização cada vez maior dos órgãos competentes. O combate ao tráfico requer ações de comunidade internacional como um todo. Por se tratar de um problema transnacional, com consequências inclusive na área das políticas de migração, é necessário que os países trabalhem em concordância e de forma integrada.

Existem inúmeras iniciativas envolvendo países vizinhos ao Brasil, a exemplo do Plano de Ação para a Luta Contra o Tráfico de Pessoas entre os Estados-Parte do MERCOSUL e os Estados Associados. Em nível hemisférico, a Organização dos Estados Americanos promove várias ações relacionadas ao enfrentamento ao tráfico de pessoas. Além dessas, parcerias são desenvolvidas com Portugal, Espanha e México (CAMPOS; OLIVEIRA; GAMA, 2011).

Fazer com que essas iniciativas cheguem aos extremos mais distantes do país é um desafio. Existem áreas mais propensas à ocorrência do tráfico de pessoas, que possivelmente serão objeto de uma atenção maior nas execuções dos Planos Nacionais. Em algumas localidades o Estado se faz pouco presente, em vários aspectos: nos garimpos, onde existem meninas traficadas para a exploração sexual; em pequenas comunidades, onde os pais vendem as próprias filhas para garantir sua subsistência; em pequenas cidades nas fronteiras, onde há pouco ou nenhum controle do fluxo de crianças e adolescentes; em cidades do interior no Nordeste, onde meninas e meninos são aliciados para exploração sexual na capital (CAMPOS; OLIVEIRA; GAMA, 2011).

Ainda existem lugares onde a exploração sexual é considerada normal e o trabalho forçado é algo digno, sendo vista como um trabalho. Partindo desse pensamento, o tráfico seria apenas o transporte para o exercício dessas ocupações. Sem indignação da população, as autoridades locais (quando existem) não consideram que há violação de direito. Esse é considerado um dos maiores desafios para o enfrentamento do tráfico humano: vencer os preconceitos e conceitos errados fincados numa cultura local e ainda na mentalidade de algumas pessoas.

Diversas são as questões estruturais que criam um ambiente favorável ao comércio ilegal de seres humanos, como por exemplo: a insuficiência de políticas de emprego, baixa renda, problemas de educação, entre outros, que aliados à facilidade para entrar em outros países, ou à dificuldade de acesso e fiscalização de algumas fazendas (no caso do trabalho análogo ao de escravo), e ainda à dificuldade de investigação quando se ultrapassam as fronteiras, criam um ambiente fácil e de baixo risco para os traficantes de pessoas (CAMPOS; OLIVEIRA; GAMA, 2011).

É importante entender que o enfrentamento ao tráfico não se resolve somente com ações governamentais. Para as políticas públicas surtirem efeito, necessário é uma união abrangente com os diferentes movimentos sociais que atuam de forma direta ou indireta na questão. Estado e sociedade devem atuar de mãos dadas.

Atualmente, as ações de interesse público que logram êxito não são resultado somente da atuação estatal. A sociedade civil vem apresentando papel de destaque ao lado do Estado na elaboração de políticas públicas, principalmente na área social, além de possuir uma atuação essencial no controle e fiscalização das atividades governamentais.

O crescimento do fenômeno do tráfico humano estimula uma necessidade de que entidades da sociedade civil e o Poder Público atuem juntos no combate a esse crime. A prevenção deve iniciar-se pela conscientização dos cidadãos para que não sejam indiferentes a tudo que os rodeiam. A atuação da sociedade tem um papel preponderante.

Em âmbito internacional, medidas preventivas já são pensadas em programas socioeducativos. Informações sobre o fenômeno do tráfico de pessoas nos currículos escolares têm como objetivo reforçar um conjunto de posturas, valores, e informações que possam favorecer a autopreservação, estimulando a promoção da consciência crítica nos comportamentos e atitudes de cada um e a responsabilidade no relacionamento com o outro e com o mundo (MELO, 2016).

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O trabalho feito pelas ONGs é um exemplo de combate ao tráfico. O objetivo central das organizações não governamentais é se tornarem centros de inovação e criatividade no desenvolvimento de soluções para problemas complexos. Ao contrário dos governos, as ONGs são menos burocráticas e mais flexíveis E o tráfico humano, sendo um atentado contra a humanidade precisa de algo a mais, como o trabalho das ONGs, para sua erradicação (AGUIAR, 2017).

A função dos Estados, entidades governamentais e organizações sociais é primordial para a ressocialização e redirecionamento da vida das vítimas, visto que se encontram em estado de fragilidade imensurável. Além da necessidade de se evitar que essas pessoas voltem para o mercado da exploração sexual diante da precária assistência e inércia do Poder Público (SILVA; SILVA; BIZZOTTO, 2016).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um incentivo para o presente trabalho foi a atual conjuntura do tráfico de pessoas, em suas diversas finalidades, a expressiva preocupação e tratamento na agenda política de governos e organizações nacionais e internacionais.

O tráfico de pessoas, fenômeno que perpassa diversos períodos da história, destaca-se na atualidade pela sua dimensão globalizada e por estar num meio de intenso fluxo migratório e gera grande preocupação às nações defensoras dos Direito Humanos, bem como a diversas áreas das sociedades.

De tráfico de povos vencidos e escravizados na antiguidade, passando pelo comércio de africanos no período do tráfico negreiro, pelo tráfico de escravas brancas, que chocou o final do século XIX, essa prática chega aos dias de hoje vitimando homens e mulheres de diferentes faixas etárias, etnias e nacionalidades.

Não existem estatísticas ou pesquisas abrangentes e confiáveis suficientes para informar dados ou características com extrema precisão sobre o tráfico humano. O que se pode garantir é que a atividade se faz presente em todos os continentes e compreende graves violações de direitos humanos.

O delito não se esgota em documentos legais. Trata-se de um fenômeno complexo e multidisciplinar, que requer a cooperação de diversas esferas estatais e da sociedade civil para sua prevenção e punição adequadas. Sem o trabalho internacional e a implementação efetiva de uma política interna de enfrentamento, que adote uma atividade em rede, incluindo Estado e população, não haverá uma prevenção ao crime, punição dos traficantes e exploradores e uma proteção e assistência às vítimas como desejadas.

É consenso entre os estudos do tema que situações de pobreza, marginalização, exclusão social e econômica, violência de gênero, desigualdade social, baixa escolaridade, corrupção e existência de conflitos armados sejam alguns dos principais fatores que possibilitam a disseminação do fenômeno, atuando como elementos facilitadores de situações de vulnerabilidade que desencadeiam, consequentemente, processos de exploração. O tráfico surge, assim, como uma atividade altamente complexa, dificultando o conhecimento da sua verdadeira dimensão e configuração.

É importante que exista um compromisso com a implantação de políticas públicas que melhorarem o cenário socioeconômico dos países, gerando oportunidades de emprego, promovendo educação de qualidade, evoluindo os sistemas de saúde fornecidos pelos governos, dentre outros.

Os danos causados as vítimas são incalculáveis, não sendo somente danos físicos e psicológicos. As vítimas vivenciam diversos traumas. Juntamente a violência física, sexual e psicológica, elas são, consequentemente, afetadas no emocional, social, cognitivo e comportamental, o que torna o processo de recuperação ainda mais difícil, bem como a sua reintegração socioprofissional.

Para uma maior e melhor proteção e atenção às vítimas, são necessários treinamentos específicos aos policiais, agentes de fronteira, profissionais da área da saúde, entre outros, com a finalidade de que a vítima não caia novamente na rede do tráfico.

É fundamental que haja um apoio financeiro às Organizações Não Governamentais (ONGs) que trabalham com o tema em questão, pois possuem papel de suma importância no combate ao tráfico. Diversas ONGs desenvolvem projetos destinados não somente à prevenção e repressão, mas também de apoio e atendimento às vítimas.

O Estado, numa união de esforços com outras entidades, deve ser proativo na atuação sobre as causas estruturais que permitem que situações de exploração ocorram, como pobreza, desigualdade, dentre outras, proporcionando condições que promovam a igualdade de oportunidades, independentemente de gênero, idade e situação econômica.

As pesquisas têm demonstrado, também, que o endurecimento de políticas de migração, ao contrário de conter os fluxos migratórios, encorajam o aparecimento de formas ilícitas de transpor os obstáculos criados pelas leis, mostrando-se, portanto, como uma estratégia insuficiente na luta contra o tráfico. A regulação e o controle devem existir, porém, reconhecendo sempre os direitos humanos como elemento orientador.

Um trabalho efetivo de prevenção é a arma mais eficaz para o combate. O presente estudo pretende debater questões e formular reflexões, com o objetivo de configurar caminhos para o efetivo enfrentamento do tráfico de pessoas.

Partindo do pensamento de que a simples busca pelo combate e criminalização do ato e dos atores já está comprovada como insuficiente. A atenção especial para prevenção e assistência à essas mulheres torna-se um fator essencial, visto que muitas sequer entendem que são vítimas (LIMA; JUCÁ, 2013). A grande preocupação real que move a luta do enfrentamento ao tráfico de pessoas, traz em si a urgência de resgatar mulheres que são tratadas como mercadorias.

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Sobre os autores
Lissa Furtado Viana

Professora do curso de direito da Faculdade Anhanguera - Campus Juazeiro do Norte-CE. Advogada OAB/CE n46.143. Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política pela UNIFOR (Conceito: CAPES 6). Especialista em Direito Constitucional (URCA) e especialista em Ciências Criminais (CERS). Bacharela em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Pesquisa nos temas: direitos humanos, feminismo, tráfico de pessoas e migração, trabalho análogo à escravo e tecnologia aplicada ao direito; com artigos e capítulos de livros publicados.

Luan Victor de Souza Luna

Bacharel em Direito (UNIFap). Mestre em Direito Privado (PUC-MG). Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI) e da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Professor e advogado militante.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Lissa Furtado ; LUNA, Luan Victor Souza. Tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual.: O gênero como fator determinante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7555, 8 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108599. Acesso em: 9 mai. 2024.

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