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O que é o direito ?

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15/04/2023 às 14:45
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Oferecemos ao leitor um roteiro de leitura sobre o cenário tradicional e contemporâneo das teorias que conceituam o direito.

Sumário: 1 Considerações Iniciais. 2 Palavra e Uso. 3 Agenda Pragmática. 3.1 Compreensão e Jogos de Linguagem. 3.2 Definição como Atividade de Significação e Pragmática. 4 Definição Contextual da Palavra “Direito”. 4.1 Direito em Sentido Adequativo. 4.2 Direito em Sentido Objetivo. 4.3 Direito em sentido Subjetivo. 4.4 Direito em Sentidos Hermenêutico. 4.5 Direito em Sentido Argumentativo. 4.6 Direito em Sentido Epistemológico.


1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em nosso cotidiano desempenhamos diferentes papeis. Na condição de investidores, por exemplo, fazemos transações financeiras em bancos; como cidadãos, votamos em representantes para que possam tomar decisões administrativas que vão impactar a nossa vida na cidade; já como “sujeitos de direitos”, reivindicamos direitos; e assim por diante. Cada papel é exercido por um modo de ser humano: o ser investidor; o ser político; o ser cidadão etc. Essa multiplicidade do jeito de ser do homem (moderno), associada a uma extensa lista de suas atividades diárias, evidencia o fato de que vivemos hoje uma vida complexa.

Todas as atividades sociais são permeadas por alguma espécie de instituição. De fato, sem muita dificuldade conseguimos identificar acima, no mínimo, três tipos de instituições sociais: financeira (como bancos), executiva (como prefeituras) e judiciária (como o Superior Tribunal de Justiça). As instituições, em geral, parecem utilizar uma “lógica própria” para lhe dar com as complexidades da vida social (como investir os nossos recursos financeiros? Como governar? Como dar a cada um o que é seu?). Isso tende a facilitar de alguma forma a vida em sociedade, proporcionando uma melhor convivência social. Em razão disso, é possível considerá-las verdadeiras “estratégias de convivência”.

Uma estratégia de convivência pode ser utilizada para solucionar (ou, ao menos, minimizar) uma espécie de conflito social (moral, político, econômico, jurídico etc.). Por exemplo, para tratar das questões políticas, temos a estratégia de convivência chamada “política” ou, simplesmente, a política. Já para resolvermos as contendas jurídicas podemos contar com o direito: estratégia que determina por meio de uma linguagem e metodologia própria o que é de direito.

Na medida em que fomos mudando ao longo do tempo a maneira como nós percebemos os outros; o entendimento de como devemos nos relacionar e a compreensão do mundo a nossa volta, modificamos também as nossas instituições e suas práticas. O direito, em particular, não foge a essa regra.

A história do direito ocidental é marcada por inúmeras práticas jurídicas. Um conjunto específico dessas práticas, num dado tempo, espaço e cultura, diz o que o direito é (ou que o direito deve ser); como interpretar/aplicar o direito; ou, ainda, por exemplo, atesta como o direito deve ser validado. É curioso notar que na maioria das línguas (entre as quais o português) as mais distintas práticas do direito são reunidas (enquanto espécies de um gênero: o direito) ou nomeadas sob a exegese de um único signo: o termo “direito”. Como a palavra “direito” faz referência a uma prática jurídica (espécie ou parte de um todo: o fenômeno jurídico como conjunto dessas práticas), e cada prática desse tipo comporta um significado, essa palavra acaba por adquirir uma polissemia, cujo grau de significação vai variar conforme as práticas jurídicas admitidas pela comunidade (jurídica) de uma época.

Se voltarmos os nossos olhos para os gregos antigos do século V a.C., por exemplo, é fácil notar como os seus modos de ser, pensar e agir modelaram a compreensão grega acerca do direito e, por conseguinte, influenciaram a criação e o exercício de suas práticas jurídicas.

A visão metafísica de mundo dos gregos antigos foi determinante para a criação da concepção dualista do direito grego, segundo a qual o direito deve comportar duas espécies de direitos: os direitos positivos e direitos naturais. Já na tragédia Antígona de Sófocles, por exemplo, uma das mais expressivas formas de manifestação da antiga cultura grega, encontramos uma reflexão belíssima sobre as distintas naturezas desses direitos. No contexto desta peça a dicotomia entre o direito positivo (decreto do rei Creonte) e o direito natural (enunciado pelos deuses) é ilustrada na forma de dilema. Deve Antígona na condição de sacerdotisa de Hera atender ao chamado do direito natural eterno e justo dos Deuses que garante a todo grego uma cerimônia fúnebre ou deve obedecer ao decreto real de Creonte (Rei de Tebas e seu tio) que proíbe o enterro do “traidor” Polinice (irmão de Antígona), cuja transgressão acarreta a pena capital?

Seja como for, a personagem Antígona (passagem 450-465) ao sustentar a existência dos direitos positivos e dos direitos naturais – os primeiros como “direitos artificiais” (νόμω δίκαιον), frutos das convenções, vontades e costumes de homens nem sempre justos; e os direitos naturais (ϕύσει δίκαιον) como direitos que existem independentes das deliberações humanas; expressões da vontade dos deuses, portanto, sempre justos e superiores aos direitos positivos; regem a ordem cósmica e o destino – mostra que já nesse momento da história do pensamento jurídico ocidental a palavra “direito” (δίκαιος) ao fazer referência a diversidade das práticas jurídicas gregas acaba assumindo, obrigatoriamente, certa riqueza semântica: direito em sentido positivo e direito em sentido natural.

Se dermos um salto para a modernidade, notamos que o rol de significados da palavra “direito” aumenta de forma considerável. As grandes guerras mundiais, o discurso dos direitos humanos, ideologias dos Estados Democráticos Sociais de Direito, entre tantas outras tendências e revoluções sociais, criaram um novo cenário de mundo não antes contemplado, no qual os modelos jurídicos de solução de conflitos e de cooperação dos gregos e romanos antigos, bem como aqueles desenvolvidos no medievo e mesmo aqueles idealizados no alvorecer da modernidade são ineficazes para diluírem a complexidade da vida contemporânea. O exercício de novas ou reformuladas práticas jurídicas na atualidade deram origem a uma considerável abundância de significados do termo direito: direitos positivos constitucionais; direitos subjetivos; direitos humanos; direitos da personalidade; direitos do devido processo legal; direitos como normas jurídicas de decisão; direitos como norma-princípios; e outros.

Ao longo do nosso ensaio, vamos sugerir um “roteiro de leitura” que permite ao leitor conhecer alguns significados importantes que podem ser conferidos à palavra direito conforme o atual quadro teórico da teoria do direito. A seguir, especulamos que essa variedade de significados advém da forma como o contemporâneo “jogo de linguagem do direito” elucida em meio aos seus contextos de fala e de uso a trama das práticas jurídicas de ontem e de hoje.

Para elucidar isso, num primeiro momento (seções 2 e 3) tratamos dos temas da pragmática e dos jogos de linguagem como articulados pela linguística de Saussure (1969), Morris (1970) e Jakobson (1990); e pela filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein (2002). Num segundo momento (seção 4), por intermédio de uma “definição contextual”, arbitramos que o atual jogo da linguagem do direito confere à palavra “direito” “seis grandes sentidos”: (1) sentido objetivo; (2) sentido subjetivo; (3) sentido adequativo; (4) sentido hermenêutico; (5) sentido argumentativo; (6) sentido epistemológico (não sendo esse rol exaustivo). Cada um desses significados é brevemente explicado nas subseções 4.1 – 4.5, sendo apresentado na ocasião de cada exposição seus autores mais influentes e algumas de suas teorias (acompanhadas de exemplos).

2 PALAVRA E USO

Usamos palavras para expressarmos nossos sentimentos, interesses, angústias, esperanças, fantasias, ideias e tudo mais. Criamos e usamos palavras com o propósito especial de dizer algo com sentido sobre nós e acerca do mundo. Uma palavra, em vista disso, pode ser entendida, conforme Peirce (2015, p. 46), como um “signo” que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. A palavra direito foi criada, e é usada por nós juristas, com essa intenção. A intenção de falar com sentido sobre algo: as nossas práticas jurídicas.

Embora seja recorrente o emprego da palavra “direito” em diálogos do nosso cotidiano, o que por um lado releva que temos uma familiaridade com aquilo que ela descreve; por outro lado, é curioso notar que quando questionados sobre o seu significado somos tomados por um embaraço, pois não sabemos dizer ao certo o que o direito é.

O filósofo Santo Agostinho (1980, p. 20), em sua obra Confissões, Livro XVI, 17, fala-nos sobre esse embaraço ao citar o uso que fazemos da palavra tempo:

(...) Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.

Algo do tipo também ocorre quando lidamos com a palavra “direito”. Convivemos com o direito, enunciamos com frequência essa palavra em nossas conversas diárias... Entretanto, quando nos perguntam: “– O que é, pois, o Direito?”, já não sabemos mais responder com certeza o que ele é.

Mas, por que palavras como tempo, amor, felicidade, justiça e direito, para citarmos apenas essas, são difíceis de serem definidas com objetividade ou em poucas linhas? Entre outras razões, isto acontece porque essas palavras polissêmicas2 possuem uma pragmática bastante diversificada: são usadas em diferentes contextos dos mais distintos jogos de linguagem.

3 AGENDA PRAGMÁTICA

3.1 COMPREENSÃO E JOGOS DE LINGUAGEM

A assimilação das palavras polissêmicas é uma tarefa difícil. O filósofo da linguagem Ludwig Wittgenstein (2002) sugere que isso ocorre em virtude da dificuldade que temos de entender como os falantes atribuem significados diversos a uma mesma palavra nos mais variados jogos da linguagem. Para estarem a par dos significados das palavras, os falantes devem participar de atividades que os capacitem para “o falar de uma linguagem”.

Nem sempre é fácil entender determinado contexto de discurso (ou de uso) contido num jogo de linguagem, pois é possível que não haja familiaridade com a trama da vida que o modela. Por exemplo, para entender bem o “jogo de linguagem do direito” é aconselhável que o falante passe a integrar a atividade jurisdicional (atividade de dizer/interpretar/aplicar o direito) como jurista (isto é, advogado, promotor, juiz, pesquisador de uma área do direito, discente do curso de direito etc.). Algo semelhante sucede, por exemplo, com o “jogo da linguagem da construção civil” dominado pelo engenheiro civil, pedreiro, servente, mestre de obra e outros que integram essa atividade. A expressão “pé direito”, certamente, nesse jogo de linguagem, não faz referência ao pé direito que protegemos ao calçarmos o sapato direito! O “pé direito” na linguagem da construção civil possui um significado peculiar entregue pela prática da construção civil: a altura entre o chão e o teto.

4 DEFINIÇÃO CONTEXTUAL DA PALAVRA “DIREITO”

Palavras polissêmicas podem ser mais bem elucidadas a partir de uma definição contextual, um recurso bastante utilizado pelos dicionários. Ela consiste em reconhecer que são tantos os significados de uma palavra quantos são os contextos por meio dos quais lhe são concedidos os sentidos3. Para entender melhor essa situação, pode-se pensar na palavra manga. No contexto de fala camisa, o signo manga significa parte desse vestuário que cobre o braço (contexto que pertence ao jogo de linguagem da moda). Por outro lado, do ponto de vista da árvore mangueira, a palavra manga indica o seu fruto (contexto do jogo de linguagem da agricultura, por exemplo), e assim por diante. Diz-se, com vista nisso, que a palavra manga possui uma vasta pragmática, ou seja, os falantes a utilizam em diversos contextos de fala (inspirados em diversas práticas) que podem pertencer a diferentes jogos de linguagem.

Da polissemia (riqueza semântica proveniente do uso) resulta parte da confusão sentida pelos interlocutores quando lhes são cobradas definições claras das palavras polissêmicas. Talvez seja possível superar em parte essa dificuldade ao se identificar com certa precisão o contexto no qual se está usando a palavra e, em seguida, apontando-se qual o significado que o emissor verifica a palavra em uso4.

Mesmo juristas hábeis têm se convencido de que, embora acreditando conhecer bem o direito, não conseguem dizer com exatidão o que o direito é, ao menos com a pontualidade e brevidade que muitos de nós desejam. Sabemos, não de hoje, que é improvável dizer o direito de forma unívoca! O jurisconsulto Paulus, por exemplo, já no século V a. C., enunciava que o “direito se diz de várias maneiras: por um lado, o que é sempre equitativo e bom, é chamado direito enquanto direito natural; por outro lado, o que é em outra cidade, é útil para todos ou para maioria, é dito direito civil (...)” (Paulus, Digesto I, 1,11). Em seu brocardo jurídico fica claro que Paulus identifica na palavra “direito” certa polissemia ao afirmar que o direito se diz como ius civilis e ius naturale. Ao longo da história ocidental os nossos juristas acrescentaram a esse rol uma série de outros sentidos: direito em sentido positivo, direito em sentido natural, direito em sentido subjetivo, direito em sentido adequativo, direito em sentido epistemológico, direito em sentido hermenêutico, direito em sentido argumentativo, entre outros.

Este é um bom momento para questionarmos o seguinte: quais entre os possíveis sentidos admitidos à palavra “direito” são significativos ao fenômeno jurídico como os juristas o percebem hoje?

Não há um consenso entre os juristas e acadêmicos quanto ao número preciso dos possíveis sentidos dados na atualidade ao termo “direito”. Por exemplo, no cenário nacional, Franco Montoro (2014) entende que a palavra “direito” comporta quatro grandes sentidos: (1) Direito como justo; (2) Direito como norma; (3) Direito como faculdade e (4) Direito como fato social. Já João Maurício Adeodato (2007, p. 108) esclarece que é possível indicar ao vocábulo “direito” outros significados além dos sentidos objetivo e subjetivo, como o sentido epistemológico (direito como ciência). Para Ferraz Jr. (1980) o direito pode ser entendido como uma ciência que se revela a partir de três modelos: ciência do direito como teoria da norma, ciência do direito como teoria da interpretação e ciência do direito como teoria da decisão. Miguel Reale (2002, p. 514), por sua vez, pautado na sua teoria tridimensional do direito, no que concerne ao aspecto particular da tridimensionalidade genérica, indica três grandes contextos de significação: (1) sociologismo jurídico (direito como fato); moralismo jurídico (direito como valor); (3) normativismo abstrato (direito como norma)5.

Alguns juristas como Hans Kelsen (2003, 2005) e Norberto Bobbio (2006, 2007) conferem, em geral, ao direito significado mais restrito: direito como norma jurídica e direito como sistema de normas jurídicas. Entretanto, isso não quer dizer que temas como a hermenêutica das normas jurídicas, a decisão jurídica, o caráter epistemológico do direito6, entre outros, tenham ficado de fora de suas investigações.

Já autores contemporâneos como Ronald Dworkin (2002) e Robert Alexy (2011, 2009) sugerem à palavra direito outros sentidos além do normativo. O primeiro, ao considerar a importância da prática forense e da interação do direito com outros sistemas normativos (moral, economia e política), dá grande ênfase ao modo como as decisões jurídicas (precedentes judiciais e outras práticas) são elaboradas com o objetivo de dizer e aplicar o direito. Com isso, realiza uma reflexão fértil acerca do “processo de aplicação/interpretação do direito”7, o que o leva a sustentar o direito num sentido hermenêutico8. Já o segundo, ao entender que o sistema normativo deve formular uma pretensão à correção (ajuste à moralidade democrática presente nas normas jurídicas constitucionais socialmente eficazes e não extremamente injustas), ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos, propõe o direito sob uma perspectiva normativa ligada à teoria da argumentação. Segundo esse pensamento, a norma passa a ser concebida como significado (interpretação/argumentação) de um significante jurídico (por exemplo, um texto de lei), sendo ela elaborada por meio de certos procedimentos (retóricos, legislativos, judiciais e outros).

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Percebam que até aqui, já somos capazes de apontar seis importantes sentidos atribuídos pela tradição jurídica moderna à palavra “direito”:

(1) Direito em sentido adequativo (Direito como teoria da justiça);

(2) Direito em sentido objetivo (Direito como norma jurídica e/ou Direito como sistema de normas jurídicas);

(3) Direito em sentido subjetivo (Direito como direitos da personalidade jurídica/ direitos individuais/ direitos subjetivos e/ou Direito como faculdade/poder/ liberdade/prerrogativa/vontade/interesse de ter um direito);

(4) Direito em sentido hermenêutico (Direito como recursos jurídicos de interpretação do direito);

(5) Direito em sentido argumentativo (Direito como argumentação jurídica);

(6) Direito em sentido epistemológico (Direito como uma espécie de ciência ou arte).

Esse rol é exemplificativo, portanto, não exaustivo! Apesar da viabilidade do anúncio de outros significados ao termo direito, a nossa exposição está restrita ao estudo dos sentidos (1) – (6). A seguir, tratamos como maior atenção desses significados.

4.1 DIREITO EM SENTIDO ADEQUATIVO

Em setembro 2014, todos os juízes do Brasil passaram a receber o auxílio-moradia no valor de R$ 4.377,73, mesmo aqueles que possuem imóvel próprio na cidade onde trabalham. Desde então, algumas ações impetradas no Supremo Tribunal Federal questionam a legalidade e a legitimidade desse benefício. Quando houve a iminência de a Ação Originária nº 1.773 ser julgada, a qual tinha por missão pôr fim ao auxílio-moradia, a primeira reação da AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) foi a de articular, em 15 de março de 2018, uma paralisação geral das atividades do judiciário em defesa do interesse da categoria que almejava continuar recebendo o benefício9.

Desde a sua concessão, a população brasileira não vê com bons olhos o benefício. Em razão disso, é possível encontrar nos espaços de convivência pública pessoas indignadas sobre esse assunto, tecendo comentários do tipo: (1) “– Acredito que um juiz federal que ganha um ótimo salário bruto no valor de R$ 27.000,00, possuindo imóvel na mesma cidade em que trabalha, não deveria receber o auxílio-moradia que equivale a quase quatro vezes ao salário-mínimo recebido pela maioria dos trabalhadores brasileiros... Afinal, isto não é direito!

No enunciado (1), a palavra “direito” expressa um “sentimento de justiça” que repudia tudo aquilo que é avaliado como inadequado. Deparamo-nos, aqui, com o “significado primeiro” da palavra direito: o direito como justiça. Vamos denotar o sentido da palavra direito em (1) como “adequativo”: práticas jurídicas que se ajustam ou se adequam a certa compreensão de justiça.

Como sugere Ferraz Jr. (2008, p. 10), entre outras etimologias possíveis, a palavra direito se origina da palavra latina directium que significa “reto de cima a baixo” (de + rectum). Há aqui um simbolismo importante a ser elucidado. Os romanos retratam a justiça (ou direito, já que não há uma distinção clara nesse momento entre direito e justiça) por meio da figura da deusa Iustitia, a qual de olhos vendados, de pé, segura com as duas mãos uma balança com dois pratos e um fiel localizado bem no meio. Quando ocorria a distribuição da justiça ou declarava-se o direito (directium) a balança se encontrava em perfeito equilíbrio com o fiel completamente vertical: “reto de cima para baixo”. É justamente esse exame de retidão que traduz para os antigos romanos o direito como um ato de justiça.

Essa leitura já sugere de modo geral que a prática da justiça ocorre segundo algumas condições, a saber: a alteridade, o débito e a igualdade. Certa injustiça resulta do débito. O débito, por sua vez, ocorre quando algo é devido a alguém. A justiça é evocada na tentativa de extinguir o débito existente entre, no mínimo, duas pessoas. Isso mostra que a justiça é interpessoal, ou seja, a justiça ocorre sempre para com o outro (alteridade). Já o reconhecimento de que algo é devido a alguém implica na aceitação de que entre as partes que compõem o conflito há uma desigualdade que deve ser sanada. Ou seja, a justiça como igualdade deve estabelecer (o que exige a distribuição) ou restabelecer (o que exige a restituição) a simetria perdida10.

Essas condições gerais articulam-se com a fórmula do jusdicere romano: “justiça é a constante e perpetua vontade de dar a cada um o que é seu” (Iustitia est constans et perpetua voluntas suum cuique tribuens11). Porém, nada disso nos diz como devemos proceder para promover a justiça. Temos em mãos em aberto o problema do método: se a justiça, como indica o brocardo acima, é a constante e perpetua vontade de dar a cada um o que é seu, como devemos dar a cada um o que é seu? Ou ainda, como devemos distribuir de modo equitativo os bens jurídicos?

A democracia, afirma Kaufmann (2004, p. 226), está fortemente ligada à forma fundamental de justiça formulada pelo positivismo jurídico: o princípio da igualdade. A igualdade é o ethos da democracia! Mas, mesmo assim, a difícil missão de dar a cada um o que é seu não se torna mais fácil ao assumir como ponto de partida o princípio da igualdade (a ideia de que o igual deve ser tratado de forma igual e o diferente de modo preposicionalmente diferente) visto que é um princípio meramente formal (não diz o que é igual ou diferente e nem como se deve tratar o que é igual ou diferente), sendo necessário aplicá-lo tendo em mente uma condição material que diga, em especial, como devemos distribuir a justiça.

As atuais teorias jurídicas discutidas por Kaufnann (2004), Höffe (2006) e Sandel (2011), por exemplo, buscam superar a dificuldade do método (ou seja, a solução da questão: com devemos dar a cada um o que é seu?) ao proporem, em geral, que em algum momento da decisão jurídica podemos pensar o direito como um tipo de estratégia que faz uso de parâmetros (mérito, liberdade, utilidade, necessidade, solidariedade, bem-estar etc.) e modelos de justiça com a finalidade de distribuir (ou restituir) de forma equitativa bens jurídicos fundamentais (direitos, deveres, cargos públicos, honras, riquezas etc.), atendendo ao final certa noção de bem-estar social. Esses modelos são pensados como teorias das justiças, as quais podem ser reunidas num grupo modesto: teorias da justiça utilitarista; teorias da justiça libertária; teorias da justiça deontológica e teorias da justiça da virtude. A esse rol Kaufnann (2004, p. 228) acrescenta as “teorias procedimentais da justiça”.

Outro assunto importante a ser investigado no contexto do sentido adequativo da palavra direito é o da relação entre direito e moral. Essa relação é tão complexa que o grande jurista Rudolf von Jhering a considerava o “verdadeiro cabo das tormentas da filosofia do direito”. A clássica investigação entre direito e moral recentemente vem sendo traduzida em termos de legalidade e legitimidade. Isso proporcionou que o estudo dessa relação também fosse realizado sob a perspectiva distinta da teoria da decisão jurídica (teoria que investiga o processo de aplicação do direito). Nesse campo de investigação, destacam-se as questões: em que sentido argumentos jurídicos se distinguem de argumentos morais? Qual é o fundamento de validade do direito? A regra jurídica é válida – e, portanto, aplicável – tão somente se estiver em conformidade com os costumes, com certa tradição ética ou a política? Ou a regra jurídica é válida em si mesmo? Isto é, a regra jurídica válida é aquela que cumpri requisitos técnico0normativos presentes em outras regras jurídicas? Ou ainda, em quais situações da prática do direito podem os juristas fazer uso de argumentos morais como meio de solução ao caso jurídico? Devem os juristas, mediante casos jurídicos controvertidos ou lacunosos apelarem às normas consuetudinárias ou da política?

4.2 DIREITO EM SENTIDO OBJETIVO

No conhecido julgamento do Habeas Corpus nº 82.424, realizado em 2003, a plenária do Supremo Tribunal Federal manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger  imposta a ele pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por crime de racismo contra judeus. Ellwanger era responsável pela edição, distribuição e venda de livros antissemitas de sua própria autoria (“Holocausto: judeu ou alemão?: nos bastidores da mentira do século”; “Acabou o gás... O fim de um mito”) e de outros autores nacionais e estrangeiros. Dentre outros dispositivos, Ellwanger foi condenado, em particular, com base no artigo 20 da lei nº 7.716/89 que afirma que “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão de dois a cinco anos”12.

Observado o referido caso jurídico, podemos dizer que: (2) A lei dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (Lei n ° 7.716/89) faz parte do ordenamento de leis do direito brasileiro. Na assertiva (2), deparamo-nos com o sentido objetivo da palavra “direito”. Esse sentido nos remete à compreensão do fenômeno jurídico como fenômeno normativo. A norma jurídica, como sugere esse tipo de interpretação, destaca-se como “unidade básica do direito”.

No século XIX a vida em sociedade é restruturada com a invenção do Estado Moderno. Por meio das suas instituições e técnicas burocráticas (entre as quais se destaca a lei), passou a regulamentar vários aspectos importantes da vida social. O positivismo exegético do início do século XIX, o qual vivenciou a produção do direito se tornar uma atividade exclusiva do Estado Moderno (processo de monopolização estatal do direito), assumi como pressuposto científico de compreensão do fenômeno jurídico a ideia do direito como um ordenamento de leis estatutárias promulgadas pela autoridade competente do legislador.

Os juristas franceses da Escola da Exegese Jurídica desse período adotaram a postura legalista radical ao reduzirem todo o direito à “lei estatutária”. Logo, no positivismo exegético a norma jurídica é tomada como sinônimo de lei estatutária, concepção que ainda hoje habita o imaginário dos cidadãos e parcela dos juristas. Foi justamente essa compreensão que difundiu o sentido objetivo do direito. No mais, é importante que se diga que segundo essa tese da escola formalista, as leis estatutárias apresentavam duas características peculiares: são tomadas como autoexplicativas e autoaplicáveis. Quais são as consequências dessa leitura?

Se a lei é tecnicamente e doutrinariamente precisa (ou seja, é clara) ao mesmo tempo que oferece resposta a todo caso possível (portanto, é completa), a atividade de interpretar/aplicar a lei (o direito) é “mecânica”, na medida em que bastava ao juiz adotar uma espécie de “cálculo de decisão”: o silogismo jurídico. Reconhecida a hipótese da lei (premissa maior) e observado os fatos (premissa menor), o juiz procedia decidindo por subsunção ao subjugar a segunda premissa à primeira premissa, justificando assim a conclusão (sentença dada conforme o conteúdo legal). A segunda consequência importante decorre, em especial, da característica “autoexplicável”: se a lei é produto de um discurso técnico-científico de um “legislador racional”, então não há espaço (1) para a retórica (a argumentação jurídica se reduz ao silogismo jurídico) e a hermenêutica (o “significado está colado no texto claro”) e (2) nem tão pouco para se pensar o direito como um saber científico (ou doutrinário) acerca das leis.

De lá para cá, movimentos do positivismo jurídico (positivismo empírico; positivismo lógico-analítico; pós-positivismo etc.) mudaram gradualmente essa percepção de norma jurídica, não mais reduzindo-a à lei, sem contanto abandonar o entendimento de que a experiência jurídica em sua essência é uma experiência normativa.

O positivismo jurídico lógico-analítico do século XX13, inspirado, por exemplo, no positivismo lógico do Círculo de Viena formado em tono de Carnap, Neurath e Hahn (1986), segundo os quais apenas tem sentido o que pode ser verificado logicamente por meio das estruturas linguísticas e relações lógicas. Essa corrente do positivismo reelabora a noção de norma jurídica sob uma perspectiva diversa daquela estabelecida pelos exegetas do início do século XIX.

Nesse sentido, para Noberto Bobbio (2006, 2007) e Hans Kelsen (2003, 2005), por exemplo, representantes legítimos do positivismo jurídico lógico-analítico, o direito deve ser aplicado/interpretado a partir e por meio das leis, o que não significa dizer que a norma jurídica e a lei sejam a mesma coisa. Mesmo que a interpretação jurídica se inicie com a leitura da lei, ela não se restringe de maneira taxativa ao texto dado. Por exemplo, sabemos que o jurista utiliza o seu repertório cognitivo (compartilhado com a comunidade jurídica) para explicar fatos e faz uso combinado de vários tipos legais por ele analisado (direitos fundamentais, leis ordinárias, decretos, portarias etc.), os quais podem conter termos polissêmicos, para estabelecer ao final uma interpretação que “solucione o caso jurídico” (ou seja, essa resposta final nada mais é do que a norma jurídica). Esse exemplo, ainda que grosseiro, deixa claro que não existe um isomorfismo entre a lei promulgada pela autoridade competente (um tipo de significante jurídico) e o seu significado jurídico (a norma jurídica)14.

Por outro lado, o “pós-positivismo”15 sustenta que as normas jurídicas podem ser construídas (ou inferidas) a partir de outros significantes jurídicos além da lei (costumes, leis de mercado, decoro, máximas da política, boa-fé etc.). Por exemplo, Ronald Dworkin (2002) defende que é possível usar prescrições pertencentes a outros sistemas normativos, tais como o sistema normativo da moral e o sistema normativo da política, para solucionar um caso jurídico controvertido (hard case), desde que essas prescrições sejam compatíveis com a “tradição jurídica” (expressa no texto constitucional, nas leis ou nas jurisprudências). Dworkin sugere ainda que essas sejam convertidas em normas jurídicas na forma de precedentes judiciais.

Robert Alexy (2008, 2011), por sua vez, ensina que as normas jurídicas podem existir como procedimentos e princípios elaborados pelos juristas no âmbito da argumentação jurídica (veja como exemplo disso os debates atuais no Brasil sobre o princípio da insignificância, o princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade), devendo esses, todavia, serem submetidos à correção constitucional.

Seja como for, as várias vertentes contemporâneas do positivismo jurídico (grosso modo, vertentes que buscam identificar o que há de científico ou de metodológico no direito) ao estipularem a norma jurídica como objeto de estudo da teoria do direito.

Os positivismos jurídicos lógico-analítico de Hans Kelsen (2003, 2005), Norberto Bobbio (2006, 2007) e Herbert Hart (2005), por exemplo, mostram que, além do estudo das normas jurídicas, é imprescindível determinar as relações existentes entre as várias espécies de normas jurídicas presentes em um ordenamento jurídico.

As normas jurídicas costumam fazer menção umas às outras. Ou seja, por outras palavras elas tendem a se relacionarem umas com as outras. As “relações normativas” (relação de hierarquia, relação de validade temporal, relação de validade espacial, relação tipológica etc.) nos permitem reuni-las na forma de um “todo ordenado” (um todo sistemático que comportam lógicas internas), o qual os juristas costumam chamar de “ordenamento jurídico” (ou nomear como “sistema jurídico”).

Portanto, conforme esse sentido objetivo, é possível estudar o direito como (1) uma teoria da norma jurídica ou como (2) uma teoria do ordenamento jurídico. Enquanto a primeira teoria busca esclarecer quais são as características particulares que modelam a identidade da norma jurídica (suas estruturas linguísticas ou lógicas, por exemplo) com o propósito de diferenciá-la das demais normas: normas morais, normas consuetudinárias, normas técnicas, normas de etiqueta, entre outras; a segunda teoria explora a ideia do “direito como um sistema de normas jurídicas que interagem segundo relações normativas”, resultando na concepção do direito como “ordenamento de normas jurídicas” (ou “sistema de normas jurídicas”).

4.3 DIREITO EM SENTIDO SUBJETIVO

Em 2015, os empregados domésticos (jardineiros, copeiras, cuidadores de idosos, caseiros, babás etc.) obtiveram uma grande vitória no cenário jurídico brasileiro. Por intermédio da Lei Complementar nº 150/2015 que regulamentou a Emenda Constitucional nº 72, foi conferido a esses profissionais uma série de direitos trabalhistas fundamentais, tais como o direito ao fundo de garantia, seguro-desemprego, salário família, adicional noturno e hora extra, até o momento inéditos, já que a Constituição promulgada originalmente em 1988 não havia lhes garantido tais direitos16. Em virtude dessa importante atribuição de direitos, hoje, podemos afirmar: (3) A categoria dos trabalhadores domésticos têm os direitos de fundo de garantia, seguro-desemprego, salário família, adicional noturno e hora extra.

Enquanto, por um lado, sabemos que há um conjunto de regras jurídicas expressas no ordenamento jurídico brasileiro (produzidas a partir de procedimentos jurídicos e publicadas em meios oficiais: diários oficiais, leis, códigos etc.). Alguns as nomeiam como direitos objetivos. Observado o caso acima, o direito de seguro-desemprego, salário família, adicional noturno e hora extra escritos em nossa Constituição são direitos objetivos. Por outro lado, (3) parece sugerir que podemos falar da existência de deveres correspondentes a esses direitos objetivos, os quais podem ser compreendidos como privilégios, liberdades ou mesmo poderes, como sugere Hohfeld (2000). Esses deveres correspondentes (ou contraprestações) são os direitos subjetivos.

Hoje identificamos no ordenamento jurídico brasileiro uma enxurrada de direitos individuais que têm por finalidade resguardar alguma subjetividade do cidadão brasileiro. Essa subjetividade pode ser caracterizada, por exemplo, segundo sua hipossuficiência, vulnerabilidade, necessidades, e assim por diante. Por exemplo, para lhe dar com a vulnerabilidade do idoso, foi promulgado em 2003 o Estatuto do Idoso. Já a hipossuficiência do consumidor em face do fornecedor ou produtor é combatida pelo nosso código de defesa do consumidor. Como esses direitos se moldam a certa subjetividade, alguns acabam denotando os direitos individuais como direitos subjetivos,

Até bem pouco tempo atrás, nem todos os seres humanos eram reconhecidos como titulares de direitos básicos (direitos fundamentais), sendo muitos reduzidas a condição de meros objetos de direito, como nos revela, por exemplo, as histórias trágicas da escravidão e da exploração das mulheres e crianças nos ambientes fabris do início do século XIX. O fato de qualquer pessoa hoje poder fazer uso de recursos institucionais (como tribunais, ministério público, arbitragem etc.) para exigir a efetivação dos seus direitos é, sem dúvida, uma grande vitória da cidadania. Isso se deu a partir da compreensão nos âmbitos político e jurídico contemporâneos de que todas as pessoas podem ser consideradas detentoras de um mesmo conjunto de direitos básicos (ainda que in abstrato).

A crença de que todas as pessoas têm o direito a um conjunto de direitos básicos (ou direitos fundamentais) é fruto de discursos que humanizaram o direito e a política proporcionados, por exemplo, pelas teorias jurídicas de Grócio, Wolf e Kant. Esse último, em especial, contribuiu para a construção da noção jurídico-moral de pessoa17. A noção de pessoa, em termos morais, remete-nos a tese de que ela possui um valor moral absoluto ou um valor sagrado (um valor intrínseco incalculável) denotado “dignidade”. A dignidade, por sua vez, grosso modo, pode ser traduzida com o dever incondicional de respeitar alguém, ou seja, consiste na obrigação de proteção da integridade moral, física ou psicológica de qualquer um. Com esse intento, o direito, a sua maneira dogmática, lança-se na tentativa de garantir às pessoas a oportunidade de usufruírem de uma vida digna ao figurarem nas mais diversas relações jurídicas como titulares de privilégios, liberdades, poderes etc.

O sentido subjetivo da palavra direito mostra que há uma conexão importante entre a possibilidade de se exigir direitos e a noção de personalidade jurídica. A personalidade jurídica pode ser entendida como a capacidade in abstracto de qualquer ser humano ser considerado detentor de direitos fundamentais (o direito à vida, direito à saúde, direito à educação, direito à segurança e assim por diante) ou de obrigações (ou seja, exercer determinada atividade ou cumprir certos deveres decorrentes da vida em sociedade). “Detém um direito” aquele cujas demandas legais (ou demandas por justiça) são atendidas pelo Estado ou mesmo pelos cidadãos. Esta contraprestação nada mais é do que a “efetivação de um dever” desde já intencionado pela lei (ou pela jurisdição). Por exemplo, se de um lado há o direito à segurança, presente em nossa Constituição (direito objetivo), por outro lado, por exemplo, há o dever do cidadão de não agredir outrem ou o dever por parte do Estado de formar policiais aptos. Tais deveres são direitos subjetivos a serem moldados às necessidades, aos interesses ou às vontades dos seus detentores (em vista disso, como sugerimos acima, alguns juristas também os chamam de direitos individuais).

No sentido subjetivo o estudo da palavra “direito” exige uma guinada importante não observada no sentido objetivo: enquanto no sentido objetivo os “objetos de estudo” da teoria do direito são as normas jurídicas e o ordenamento de normas jurídicas; no sentido subjetivo o “objeto de estudo” da teoria do direito passa a ser o “sujeito de direitos”. Desse modo, é essencial às teorias dos direitos subjetivos (teoria da vontade, teoria dos interesses, teoria do valor intrínseco, entre outras) solucionarem as seguintes questões: como se situam os sujeitos em relação ao sistema jurídico? O que cabe aos membros de uma comunidade perante tais normas e em razão delas? O que é a personalidade jurídica? Como os direitos subjetivos conferem aos “sujeitos de direitos” o poder, a faculdade, a pretensão, a prerrogativa, a imunidade ou mesmo o privilégio de serem considerados depositários de direitos? O “direito subjetivo” pode ser reduzido à concepção de “direito objetivo”?

4.4 DIREITO NO SENTIDO HERMENÊUTICO

Em 10 de junho de 2015, por unanimidade, a plenária do Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4815 e declarou inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias. Seguindo o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, a decisão dá interpretação conforme a Constituição da República aos artigos 20 e 21 do nosso Código Civil, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa biografada, relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas).

Na ADI nº 4815, a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) sustentava que os artigos 20 e 21 do Código Civil conteriam regras incompatíveis com a liberdade de expressão e de informação. O tema foi objeto de audiência pública convocada pela relatora em novembro de 2013, com a participação de 17 expositores18.

À luz do caso podemos enunciar a sentença: (4) O direito interpretado pela ministra Cármen Lúcia estabelecido por meio da leitura sistemática dos artigos 20 e 21 da Lei n° 10.406/2002 e artigo 5°, IV e IX da nossa Constituição Federal põe fim à ADI n° 4815, o qual prescreve que é permitida a produção de obras biográficas literárias mesmo sem o consentimento de pessoa biografada, sendo igualmente desnecessária a autorização de pessoas referidas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). O vocábulo “direito” em (4) tem sentido hermenêutico. A “hermenêutica jurídica” pode ser compreendida de duas formas: como uma (1) “arte de interpretação dos textos jurídicos” ou como uma (2) “filosofia universal da interpretação do direito”19.

No primeiro sentido, a hermenêutica jurídica clássica como uma arte oferece aos juristas uma série de “métodos de significação” (ou “cânones de interpretação”), tais como o método lógico, método gramatical, método histórico, método sistemático, método teleológico etc., que podem ser utilizados por eles para sanarem as suas dúvidas quanto aos significados do texto legal, proporcionando-lhe, ao final, a interpretação correta que irá solucionar a lide jurídica.

No caso em questão, a leitura combinada dos artigos citados da nossa Constituição com os referidos artigos do Código Civil, observada a relação hierárquica entre esses dispositivos, permitiu ao jurista construir a “interpretação justa”: aquela que em termos legais melhor se “ajusta” aos fatos. Este foi, grosso modo, o resultado que a aplicação do método sistemático proporcionou, diriam alguns juristas do século XIX ou XX.

A hermenêutica jurídica em sentido (1) foi desenvolvida em grande parte pelas escolas clássicas de interpretação/aplicação do direito do século XIX e início do século XX: escola da exegese, escola histórica, escola da livre investigação científica, escola da jurisprudência dos conceitos, escola da jurisprudência dos interesses, e outras. De certo modo, havia uma tendência geral dessas escolas (com exceção da escola do direito livre) de tentarem tornar objetiva a interpretação das leis (conferindo a hermenêutica jurídica quase que um caráter científico), ao ponto de admitirem os seus métodos de interpretação como “caminhos seguros” capazes de conduzirem todo e qualquer espírito a um mesmo lugar: a interpretação correta da lei (ou de modo mais amplo: a interpretação correta do direito). Entretanto, atualmente, muitos juristas veem com certa desconfiança essa tese, tais como, em especial, os adeptos da moderna teoria da argumentação jurídica. Em suma, se destaca o entendimento entre esses juristas que os métodos clássicos na verdade são argumentos jurídicos de persuasão.

Já no segundo sentido, a hermenêutica jurídica contemporânea entendida como uma filosofia universal da interpretação investiga em termos universais a atividade de significação do direito (não se restringindo, portanto, a lei), ou seja, estuda todas as núncias do complexo processo de interpretação do direito: (1) a mensagem (por exemplo, um contrato ou uma lei); (2) a subjetividade (a personalidade, o aparato cognitivo, crenças e outros estados mentais do interprete) do emissor e do receptor da mensagem jurídica (legislador, juízes, partes contratantes, cidadãos etc.); (3) os atos/fatos jurídicos (atos/fatos relevantes à construção de uma solução do caso jurídico ou aqueles que geram consequências jurídicas); (4) as normas jurídicas (significados jurídicos dos contratos, significados das normas constitucionais, significados das sentenças, entre outros significados jurídicos provenientes da interpretação dos significantes jurídicos), entre outros.

Outra característica marcante da hermenêutica contemporânea é a sua filiação com o giro linguístico (de tipos hermenêutico e pragmático) que sugere que a linguagem não pode ser concebida como um mero meio de comunicação, mas antes como uma condição ou faculdade de significação de mundo. Dois paradigmas da teoria do direito parecem traduzir bem essa tendência: as atuais noções de norma jurídica e de interpretação intersubjetiva. A primeira toma a norma jurídica como o significado de um significante jurídico, já a segunda admite que a interpretação do direito não é possível segundo um método objetivo (tal como mens legis) ou conforme um método subjetivo (como o caso da mens legislatoris), mas sim a partir de uma prática intersubjetiva que combina informações compartilhadas pela comunidade jurídica (pré-conceitos).

4.5 DIREITO NO SENTIDO ARGUMENTATIVO

No ano de 2010, em longo e minucioso voto o ministro Eros Grau fez uma reconstituição histórica e política das circunstâncias que levaram à edição da Lei da Anistia (Lei nº 6683/79), na qual, na condição de relator, julgou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 153) ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para contestar o alcance da anistia. Para ele, em suma, não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos no Brasil entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 197920 .

Hermeneutas do direito, certamente, especulariam que o voto do ministro Eros Grau está pautado, em especial, no método histórico. Com isso, parecem sugerir a assertiva: (5) O ministro Eros Grau, após uma digressão que lhe permitiu entender melhor quais foram as razões que levaram o legislador a promulgar a Lei nº 6683 no momento histórico do ano de 1979, enunciou em seu voto o direito que soluciona a lide.

Para os simpatizantes da teoria da argumentação jurídica o método histórico não passa de um argumento, e como tal não produz uma “interpretação objetiva”, podendo ser usado pelos juristas até mesmo para justificar interpretações contraditórias. Com efeito, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil se valeu do mesmo “método” (ou argumento) para sustentar a plausibilidade da sua tese jurídica: a lei nº 6683/79 deve ser considerada inconstitucional em razão dos relatos históricos das vítimas que sofreram com a prática de crimes comuns, e não com a prática de crimes políticos, ao longo da ditadura militar brasileira. Nesse sentido, para a argumentação jurídica o “método histórico” e os dos demais “métodos clássicos de interpretação do direito” admitem um sentido retórico: são argumentos utilizados pelos juristas para gerar persuasão no auditório.

Além do aspecto retórico contido na argumentação jurídica, já bastante desenvolvido pela arte retórica21, hoje, é possível também verificar que a teoria da argumentação jurídica se volta à criação (ou ao aprimoramento) de uma teoria procedimental da decisão jurídica, sem que para tanto deixemos de lado a legalidade ou certo sentimento de justiça (legitimidade), como podemos checar nos trabalhos de Perelman, Toulmin e Alexy22.

Um bom exemplo disso é a noção de ponderação (uma investigação dos meios e fins da adequação, necessidade e custo-benefício da aplicação do direito) idealizada por Robert Alexy (2011). A ponderação, como idealizada por Alexy (2011), vem à tona como procedimento decisório que visa amenizar (ou mesmo evitar) a arbitrariedade e a subjetividade de algumas decisões jurídicas que enfrentam complexos conflitos de normas jurídicas (antinomias), principalmente as antinomias de normas constitucionais, e/ou que visam subsumir o direito aos fatos controvertidos23.

4.6 DIREITO EM SENTIDO EPISTEMOLÓGICO

Por fim, pode-se ainda enunciar (6) Diego participou da aula de direito e Ana desenvolveu uma pesquisa sobre “Direito e Literatura”. Em (6) o significado do vocábulo “direito” faz referência a ideia do direito como uma espécie de saber: um “saber bem fundamentado”. Deste modo, esse tipo de saber pode se apresentar como (1) uma arte ou como (2) uma ciência.

Como arte deve oferecer métodos (ou técnicas) que permitem ao seu usuário produzir juízos universais relativos a produtos semelhantes24. No caso do direito, este produto é um cânone (uma “fórmula” de caráter técnico ou dogmático) que pretende quase que mecanicamente solucionar o caso jurídico. Os cânones, geralmente expressos na forma de lei (por exemplo, prescrições contidas no nosso código de processo civil), veem sendo produzidos a anos pela tecnologia (ou dogmática) dos ramos do direito (direito civil, direito processual civil, direito tributário, direito do consumidor e outros) com a finalidade de otimizar e uniformizar as decisões jurídicas. Já enquanto ciência, grosso modo, o direito deve apresentar modelos (ou esquemas racionais de compreensão) capazes de oferecer explicações acerca do fenômeno jurídico. Além disso, o jurista como cientista deve fazer uso de uma arquitetura de conceitos (vocabulário científico próprio do discurso científico do direito) para expressar leis, hipóteses e suas teorias; deve se valer de paradigmas, métodos, princípios, e outras condições da atividade científica25. É no sentido do direito como ciência que em (6) o termo “direito” adquire um sentido epistemológico.

O cerne especial desse tipo de abordagem é a solução da curiosa questão: o direito é uma ciência ou é uma arte? Para elucidar esse problema, juristas contemporâneos estão desenvolvendo estudos de caráter interdisciplinar entre a metodologia, a filosofia da ciência (epistemologia), a teoria do conhecimento, a dogmática jurídica (o direito como conhecimento técnico-normativa) e a teoria geral do direito (investigação das estruturas jurídicas compartilhadas pelos mais diversos sistemas jurídicos, independentemente de qualquer cultura ou outro aspecto particular qualquer).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria do direito, grosso modo, consiste num conjunto de “esquemas racionais de compreensão” (ou seja, teorias) elaborados por aqueles que pesquisam o direito com o propósito de elucidar três questões fundamentais: (1) O que é o direito?; (2) Como devemos interpretar/aplicar o direito?; (3) Qual é o fundamento de validade do direito? Essas três questões estão interligadas de tal maneira que ao solucionarmos uma, abrimos vertentes para a solução das demais. Ou seja, por outras palavras, a resposta de uma delas exige o entendimento das demais. Para elucidar melhor isso, lembremo-nos dos juristas da escola da exegese jurídica do século XIX que vislumbravam o direito como um conjunto de leis estatutárias autoexplicativas e, portanto, autoaplicáveis. Ao responderem (1) dessa forma, partem para a solução de (2) afirmando que o direito deve ser, em geral, interpretado de modo taxativo (já que as leis do legislador são claras) e aplicado “mecanicamente” por subsunção (momento no qual o juiz faz uso do “silogismo jurídico”). Por fim, esclarecem (3) afirmando o direito como um sistema normativo autônomo, isto é, independente de outros sistemas normativos como o da moral e da política. Como o direito é autônomo, especulam que esse não deve admitir como fundamento de validade, por exemplo, valores morais ou imperativos políticos, devendo adotar tão somente como pressuposto de validade as suas assertivas normativas burocrático-tecnológicas (em suma: normas jurídicas têm apenas como fundamento de validade outras normas jurídicas).

Oferecemos ao leitor ao longo de algumas seções um roteiro de leitura sobre certo cenário contemporâneo da teoria do direito que vem buscando esclarecer as questões (1), (2) e (3). É bem verdade que ao logo da nossa exposição nos dedicamos a apresentar algumas possíveis soluções à questão (1), mas isso não significa dizer que não tratamos de pontos importantes às investigações de (2) e (3). Como já indicamos, essas questões estão interrelacionadas.

Em poucas linhas podemos dizer que no presente artigo nos revelamos favoráveis à tese de que o direito na condição de patrimônio da cultura ocidental é um fenômeno complexo, já que é constantemente modelado por uma multiplicidade de práticas jurídicas, o que leva os juristas a enunciá-lo de várias maneiras. Em vista disso, é possível afirmar, ao final, que também são diversificadas as formas de se interpreta/aplicar o direito e de conceber a sua validade. Todavia, um estudo detalhado de (2) e (3) deve ser realizado em outro momento.

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Sobre o autor
Rodrigo Costa Ferreira

Professor Adjunto de Filosofia e Teoria do Direito na UFRN (CERES) e na UEPB (CCJ). Professor convidado na ESMA-TJPB. Mestre em lógica pela UFPB. Doutor em Filosofia Analítica pela UFPB-UFPE-UFRN. Líder do grupo de pesquisa JUDITE- JUstiça, DIreito e TEcnologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rodrigo Costa. O que é o direito ?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7227, 15 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103554. Acesso em: 28 abr. 2024.

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