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O direito ao esquecimento no ordenamento jurídico pátrio

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Os direitos fundamentais à informação, à liberdade de expressão, à intimidade, à liberdade de imprensa e à vida privada devem ser harmonizados.

Resumo: O presente trabalho tem o escopo de discorrer acerca da (in)aplicabilidade do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro. Nessa esteira, será analisada, através da pesquisa bibliográfica, a compatibilidade do instituto com a Constituição Federal, a fim de perceber se há o seu reconhecimento em fatos pretéritos, que, embora verídicos e licitamente obtidos, lesionem os direitos da personalidade do indivíduo ao serem veiculados nos meios de comunicação. Para tanto, será realizada uma ponderação entre os direitos individuais e coletivos fundamentais consagrados na Carta Magna, quais sejam, o direito à informação, à liberdade de expressão, à intimidade, à liberdade de imprensa e à vida privada, com o propósito de discutir o antagonismo existentes entre os princípios conflitantes entre si, para atestar qual se sobressairá no caso concreto. Em remate, será abordado o teor do Recurso Extraordinário nº 1010606, com repercussão geral reconhecida, proposta pelos familiares de Aída Curi, vítima de homicídio em 1958 na cidade do Rio de Janeiro, contra a emissora Globo Comunicação e Participações S/A, com a finalidade de compreender o entendimento do Supremo Tribunal Federal – STF a respeito do instituto e, em vista disso, aferir se é cabível o direito ao esquecimento no Brasil.

Palavras-chave: Direito ao Esquecimento. Meios de Comunicação. Direitos fundamentais. Liberdade de expressão. Liberdade de Imprensa. Direito à Vida Privada.


1. INTRODUÇÃO

No presente estudo será feita uma análise acerca do instituto do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, com o escopo de verificar a sua (in)constitucionalidade, bem como compreender como é realizada a ponderação entre direitos individuais fundamentais conflitantes entre si.

De início, faz-se necessário ressaltar que a sociedade percorreu, desde a década de 60, a chamada Era da Informação, advinda precipuamente da revolução técnico-científica, também chamada de Era Digital ou Terceira Revolução Industrial. A Era Digital foi caracterizada, sobretudo, pelo avanço tecnológico, fazendo com que a circulação de informação se tornasse cada vez mais veloz.

Assim, com a ascensão dos meios de comunicação, principalmente das redes sociais, sites de notícias e canais televisivos, os fatos da vida privada das pessoas tornaram-se pauta todos os dias. A rapidez no acesso e divulgação dessas informações, na maioria das vezes, transpõe à esfera pública de dados direitos personalíssimos inerentes à pessoa humana, como a imagem, honra, intimidade e privacidade.

Nesse sentido, insere-se o direito ao esquecimento, consubstanciado, de forma breve, no direito de não ser lembrado de fatos pretéritos que, embora verídicos, lesam os direitos da personalidade de alguém ao serem divulgados.

Partindo do pressuposto de que a rede mundial de computadores ‘‘eterniza’’ as situações nela publicadas, este estudo almeja responder aos seguintes questionamentos: Havendo a divulgação de fatos da vida privada de determinada pessoa poderá ser cabível o direito ao esquecimento em razão dos danos à sua personalidade?

O primeiro capítulo deste trabalho terá como escopo analisar o instituto do direito ao esquecimento no seu íntimo, conceituando-o, visando compreender a sua finalidade e aplicação no ordenamento jurídico pátrio. Ademais, irá ser exposto um dos casos de maior repercussão que envolveu o tema em questão, qual seja, o caso Aída Curi.

No segundo capítulo, por sua vez, abordar-se-á aspectos gerais que englobam os direitos individuais fundamentais, bem como o antagonismo existente entre alguns deles, como o direito fundamental à liberdade de imprensa versus o direito à informação, à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem, com o propósito de esclarecer quais dos direitos supramencionados prevalecerão ao serem colocados em uma balança.

Em remate, cumpre mencionar que o terceiro capítulo tem como principal objetivo realizar a análise jurisprudencial do Recurso Extraordinário número 1010606, trazendo os argumentos expostos pelo requerente e requeridos, assim como os votos dos ministros, com o intuito de averiguar a aplicação do direito ao esquecimento no caso concreto.

É preciso acentuar que não há o desígnio de esgotar todo o conteúdo que envolve o tema objeto deste estudo, possuindo apenas a intenção de promover o razoamento acerca da (in)constitucionalidade do direito ao esquecimento.

Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica com a finalidade de perceber a aplicabilidade do direito ao esquecimento hodiernamente, com o fito de promover uma reflexão acerca do instituto, verificando que, havendo o conflito entre os direitos individuais fundamentais, através da hermenêutica, será realizada uma ponderação entre eles, a fim de apontar qual prevalecerá no caso concreto.


2. O DIREITO AO ESQUECIMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

Antes de pormenorizar acerca da (in)constitucionalidade do direito ao esquecimento no Brasil, faz-se necessário suscitar, neste capítulo, como a conceituação deste direito foi solidificada, a ponto de ter se tornado um tema tão debatido hodiernamente pela doutrina e jurisprudência.

Neste capítulo, serão observados casos em que o entendimento da jurisprudência foi pela aplicabilidade do direito ao esquecimento no caso concreto, mas também casos em que o direito citado não foi reconhecido.

2.1 Aspectos Gerais do Direito ao Esquecimento

Em linhas gerais, pode-se ressaltar que, de acordo com o dicionário online [1], o termo esquecer significa, em sentido amplo, deixar de lembrar ou apagar um acontecimento da memória.

Convém ponderar que muitas vezes as pessoas se arrependem de terem praticado determinados atos ao longo de sua vida e, quando expostos, possuem o desejo de apagá-los dos meios de comunicação, assim como de sua mente. Tão massacrante quanto tentar esquecer e não conseguir, é ser obrigado a relembrar suas condutas e comportamentos passados, com celeridade e nitidez, muitas vezes lesando seus direitos da personalidade, trazendo como consequência o esgotamento psíquico do indivíduo.

Ante o exposto, é de suma importância buscar sanar o seguinte questionamento: As pessoas podem obstar a publicação de informações relativas a sua vida privada tão somente pelo fato de não desejarem que esses dados venham a público?

Com o propósito de elucidar o tema de maneira simples, tornando-o de fácil compreensão, faz-se necessário assimilar que o ‘‘direito ao esquecimento teve sua origem histórica no campo das condenações criminais’’, principalmente no direito do ex-detento de ser ressocializado, em razão do cumprimento da pena ou do direito do indivíduo que foi absolvido pela prática de determinado delito, conforme leciona o doutrinador Schreiber [2]. À guisa de exemplo é possível citar o caso da Chacina da Candelária, que será explicitado a seguir.

O caso ora mencionado diz respeito a um crime ocorrido no dia 23 de Julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro. No dia em questão, crianças e adolescentes dormiam em frente a igreja da Candelária, momento em que homens passaram em dois carros e atiraram contra as pessoas em situações de rua, fazendo com que oito delas viessem a óbito [3].

Ocorre que um dos homens que fora, na época, identificado como um dos autores do crime e posteriormente absolvido por negativa de autoria, proclamou o direito ao esquecimento em razão da veiculação de uma reportagem no programa Linha Direta – Justiça, da TV Globo, que reacendeu o assunto muitos anos após o fato, fazendo com que o indivíduo sentisse toda dor já vivenciada.

Nesse caso, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito ao esquecimento e negou provimento ao Recurso Especial nº 1.334.097 – RJ [4], promovido pela Globo Comunicações e Participações S/A, sendo esta condenada a pagar indenização no montante de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) em razão da exposição do caso em mídia televisiva, em virtude de os fatos terem acontecido há muito tempo e causado danos aos direitos da personalidade do recorrido, haja vista que este não queria ser lembrado por acontecimentos passados em que fora considerado inocente.

É sobremodo importante assinalar, consoante sabedoria dos doutrinadores  Chaves e Rosenvald (2017):

A Corte Superior entendeu que, nesse caso, a fatídica história poderia ter sido veiculada de forma fidedigna, sem qualquer menção ao nome e à imagem daquela pessoa – que já tinha sido, repita-se, absolvido criminalmente. Até porque veicular o seu nome e imagem em rede nacional não reforçou uma visão de inocentado, mas sim de indiciado.

(…) Realmente, mesmo quem cometeu um crime, depois de determinado tempo, tem o direito de ver apagadas todas as consequências penais do seu ato, considerados o direito à reabilitação, afastando-se a possibilidade de considerar o fato para fins de reincidência, apagando-o de todos os registros criminais e processuais públicos. Se assim é até mesmo em relação à esfera penal, não parece razoável que os atos da vida privada, uma vez divulgados, possam permanecer indefinidamente nos meios de informação, em casos tais.

Acresça-se a tudo isso que no universo da Internet o direito ao esquecimento ganha contornos ainda mais difíceis, na medida em que a superexposição pode obstar, de algum modo, o direito ao esquecimento.

(FARIAS, 2017)

Além do caso supracitado, existem muitos outros em que o direito ao esquecimento foi requerido, mas nem sempre concedido, justamente em razão de as pessoas colocarem em mente a falsa ideia de que apenas o fato de ter havido a publicação de acontecimentos de sua vida nos meios de comunicação geraria o direito de serem esquecidos, mediante ação autônoma, que visasse proteger o direito a intimidade e a vida privada.

Passando a observar tudo que é publicado na rede diariamente, principalmente sobre a vida de famosos ou pessoas anônimas que realizaram algum ato notório, que fez com que os olhos da mídia se voltassem para elas, nota-se que não está existindo uma separação entre o que é público e privado, pois até fatos simplórios, como uma caminhada na praia [5], viram notícia.

Acerca do infindável mundo da internet, bem como dos outros meios de comunicação, doutrinador Schreiber suscita (2013):

A internet não esquece. Ao contrário dos jornais e revistas de outrora, cujas edições antigas se perdiam no tempo, sujeitas ao desgaste do seu suporte físico, as informações que circulem na rede permanecem indefinidamente. Pior: dados pretéritos vêm à tona com a mesma clareza dos dados mais recentes, criando um delicado conflito no campo do direito. De um lado, é certo que o público tem direito a relembrar fatos antigos. De outro, embora ninguém tenha direito de apagar os fatos, deve-se evitar que uma pessoa seja perseguida, ao longo de toda a vida, por um acontecimento pretérito.

Tome-se a hipótese nada incomum da atriz que, em início de carreira, autoriza a veiculação de sua imagem, nua, em dada revista masculina ou atua como personagem de um filme picante. Suponha-se que a mesma atriz, ao longo dos anos seguintes, venha a construir carreira como apresentadora de programas infantis.

Não há dúvida de que a veiculação daquelas imagens do passado, destacadas do seu contexto original, pode causar grave dano à pessoa retratada. Mesmo que a autorização para a veiculação da imagem tenha sido dada na ocasião pretérita, sem qualquer limite temporal (descartando-se, portanto, a violação ao direito de imagem), resta evidente que a vida da pessoa encaminhou-se em sentido oposto ao daquele ato pretérito. O direito à exibição da imagem entra em choque com faceta importante do direito à privacidade.

(SCHREIBER, 2013)  

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Analisando o instituto de maneira superficial é viável pensar que as todas as pessoas têm o direito de controlar os fatos ocorridos em sua existência, bem como o recolhimento e uso de dados referentes a sua vida.

No entanto, apesar de aparentar ser uma ideia óbvia e de fácil compreensão, é dificultoso absorver que não é sempre que as pessoas terão o direito de impedir que os fatos supramencionados sejam veiculados, visto que a Constituição Federal assegura o direito de informar e ser informado, como também o direito à liberdade de expressão e de imprensa, em seu art. 5º, inciso XIV, IV e art. 220, respectivamente.

Ante o demonstrado, percebe-se que as pessoas têm uma falsa impressão de controle de informações relativas a sua vida privada e utilizam o direito à privacidade, à honra e à intimidade para justificar o esquecimento das informações difundidas na mídia.

Ocorre que não é sempre que os direitos e garantias individuais poderão ser manuseados para fundamentar a aplicação do direito ao esquecimento, uma vez que para que haja sua efetivação é necessário o cumprimento de requisitos específicos.

Impende perceber que não há direito absoluto no ordenamento jurídico pátrio, ou seja, havendo o conflito entre direitos individuais fundamentais – o que eventualmente ocorre – estes serão limitados, sendo necessária a ponderação entre os princípios divergentes, no caso concreto, com o escopo de verificar qual deles sobressairá naquela situação.

Em virtude dessas considerações, pode-se mencionar que o direito ao esquecimento pode ser compreendido no direito de não ser lembrado de fatos pretéritos que, embora verdadeiros, violam os direitos da personalidade de alguém ao serem veiculados.

De acordo com os doutrinadores Chaves e Rosenvald (2017), trata-se do ‘‘direito de impedir que dados e fatos pessoais de outrora sejam revividos, repristinados, no presente ou no futuro de maneira descontextualizada.’’ Dessa forma, o principal objetivo do instituto é preservar a pessoalidade, vida íntima, integridade e a dignidade da pessoa humana.

O direito ao esquecimento sempre esteve associado a ideia de passagem do tempo, mas não somente em razão dela, ou seja, o lapso temporal não é o único requisito necessário para obstar a liberdade de informação. Somente o fato de ter passado o tempo não dá o direito de que o evento seja esquecido, como será possível verificar no caso Aída Curi, que será estudado posteriormente.

Assim sendo, constata-se que o mero lapso temporal não seria suficiente para inibir a liberdade de informação, isto é, a imprensa não poderá ser impedida de publicizar um determinado fato obtido de maneira lícita tão somente por não ser atual, se fosse assim não seria possível reprisar acontecimentos antigos, com relevância histórica e de interesse do grande público.

Mister se faz ressaltar acerca de um dos principais requisitos para tornar cabível o direito ao esquecimento, qual seja: A notícia deverá infringir os direitos da personalidade do indivíduo.

Para que seja possível a divulgação de um acontecimento pelos meios de comunicação não basta somente que seja verídico, mas também que as informações sejam transmitidas com boa-fé e ética, não atingindo os direitos individuais fundamentais. Em síntese, para que o fato seja informado é de crucial importância que seja verdadeiro, mas o oposto não deverá ocorrer, visto que não é por ser verdadeiro que o caso deverá ser exposto, pois poderá atingir os direitos da personalidade, conforme já suscitado.

Recapitulando, vale lembrar que o direito ao esquecimento ocorrerá para impossibilitar a divulgação de situações que não são contemporâneas, mas são verídicas e causam transtornos à personalidade do sujeito que teve um fato de sua vida privada veiculado.

Ao ser reconhecido o direito ao esquecimento, existem algumas maneiras de as informações serem impedidas de veicular, quais sejam: Sendo apagadas de vez dos meios de comunicação ou realizando a desindexação de dados no âmbito da internet, ou seja, dificultando que os dados sejam encontrados.

Todavia, apesar de ainda ser cabível em casos específicos, o Supremo Tribunal Federal – STF, no julgamento do Recurso Extraordinário – RE 1010606 [6], que será examinado no terceiro capítulo deste estudo, suscitou que não há direito ao esquecimento no Brasil, uma vez que este é incompatível com a Constituição Federal [7]:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.

(STF. RE: 1010606, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data do Julgamento: 11/02/2021, Data da Publicação: 20/05/2021)

O principal escopo do STF foi garantir a liberdade de expressão, haja vista o receio de que o direito ao esquecimento acabasse redundando numa limitação à liberdade de informar.

Apesar da decisão supracitada, o entendimento do STF não deve ser generalizado, ou seja, não se pode, sob o rótulo de que o STF enfatizou que não existe mais direito ao esquecimento no ordenamento jurídico pátrio, simplesmente desconsiderar a necessidade de proteção desses valores constitucionais.

Em remate, conforme evidencia o doutrinador Araújo (2022), se houver desrespeito à honra do noticiado não pense que nada será feito, pois existem ‘‘inúmeros remédios repressivos disponíveis: direito de resposta, exigência de correção da notícia, indenização e responsabilização penal’’ [8].

2.2 Caso Aída Curi

O Supremo Tribunal Federal negou provimento ao RE nº 1010606, julgado no dia 11 de Fevereiro de 2021, durante apreciação do tema 786 de repercussão geral, qual seja, ‘‘aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares’’.

Conforme parte da ementa do RE supradito:

1. Recurso extraordinário interposto em face de acórdão por meio do qual a Décima Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento a apelação em ação indenizatória que objetivava a compensação pecuniária e a reparação material em razão do uso não autorizado da imagem da falecida irmã dos autores, Aída Curi, no programa Linha Direta: Justiça.

(…)

3. Em que pese a existência de vertentes diversas que atribuem significados distintos à expressão direito ao esquecimento, é possível identificar elementos essenciais nas diversas invocações, a partir dos quais se torna possível nominar o direito ao esquecimento como a pretensão apta a impedir a divulgação, seja em plataformas tradicionais ou virtuais, de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo, teriam se tornado descontextualizados ou destituídos de interesse público relevante. [9]

(STF. RE: 1010606, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data do Julgamento: 11/02/2021, Data da Publicação: 20/05/2021)

Para compreender o julgamento em questão, apesar deste só ser explorado de maneira mais extensa no terceiro capítulo desta monografia, conforme já suscitado, faz-se necessário conhecer mais afundo o caso Aída Curi.

Aída Jacob Curi era uma jovem de apenas 18 (dezoito) anos de idade que foi vítima de homicídio no dia 14 de Julho de 1958, em Copacabana, no Rio de Janeiro [10].

A jovem foi jogada do edifício Rio Nobre na Avenida Atlântica, após ser, anteriormente, violentada por um grupo de jovens. Aída resistiu à violência, porém perdeu os sentidos, razão pela qual os jovens, com o pensamento de que ela teria vindo a óbito, decidiram jogá-la do 12º (décimo segundo) andar. Em razão da queda, Aída Curi faleceu.[11]

Na época o caso foi amplamente divulgado pela mídia local, ficando nacionalmente conhecido, em razão da brutalidade com que o crime ocorreu.

O caso foi veiculado pelo programa intitulado Linha Direta-Justiça [12] da TV Globo, sendo considerado um dos crimes que marcaram o país. O programa realizou a simulação do crime e, a emissora voltou a veicular a simulação muitos anos após o ocorrido, sem autorização da família da vítima.

Em razão disso, os familiares da vítima decidiram buscar a reparação dos danos por conta da reconstituição do crime feita no programa Linha Direta-Justiça, em razão do uso não autorizado da imagem da falecida. Solicitaram, também, o direito ao esquecimento, com o escopo de fazer com que o caso Aída Curi fosse apagado de todos os meios de comunicação.

À vista disso, ao colocar de um lado da balança o direito à privacidade e do outro o direito à informação, o STF compreendeu que não é aplicável o direito ao esquecimento, sob o fundamento de que o programa televisivo não violou à vida privada, à imagem, e o nome da vítima ou de seus familiares.

Acerca disso, os doutrinadores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald lecionaram:

De fato, em situações como essa, na medida em que o tempo passa, as dores vão diminuindo (até porque, como diz o ditado, o tempo é o senhor da razão), de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes.

(FARIAS, 2017.)

Destarte, apesar de ser uma tragédia familiar, o programa cumpriu o seu principal papel: relatar os fatos. Além disso, por ser um crime de repercussão nacional, a sua veiculação foi necessária para garantir o acesso à informação por parte da imprensa.

Em conclusão, segundo o STF, eventuais excessos no exercício do direito à liberdade de expressão ou à liberdade de informação devem ser observados em cada caso concreto, a fim de que proteger a dignidade da pessoa humana.

2.3 O Direito ao Esquecimento e a Liberdade de Expressão

A Constituição Federal prevê, em seu art. 5º, incisos IV, IX e XIV, o direito à liberdade de expressão, materializado no direito que as pessoas têm de apresentar ideias, notícias e entendimentos acerca de determinado fato, de maneira livre e autônoma, sem o temor de retaliações. Os artigos referenciados foram:

Art. 5º (…)

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

(BRASIL, 1988)

Oportuno se torna dizer que a liberdade de pensamento é um atributo inerente à pessoa humana, isto significa que o simples fato de ocorrer o nascimento com vida de uma pessoa com um ínfimo grau de discernimento, fará com que o indivíduo possua a referida liberdade.

Em face do exposto, observa-se o posicionamento da autora Masson (2016):

(...) Como o teor desses pensamentos não são acessíveis a terceiros, pouco importa se são imorais, ilegais ou pecaminosos; são possíveis e livres, independentemente de qualquer proteção jurídica.

Não raro, todavia, o indivíduo deseja expressar suas convicções íntimas, comunicar suas ideias e opiniões formatadas internamente. Nesse contexto surge a importância do Direito, que vai ampará-lo no exercício da liberdade de manifestar seu pensamento;

Em nosso texto constitucional o are. 5º, IV explicita essa faculdade, assegurando-a canto no aspecto positivo - proteção da exteriorização da opinião -, quanto no aspecto negativo - de vedação à censura prévia.

Insta destacar que ao titular dessa liberdade permite-se expressar sentimentos, ideias e impressões de variadas formas, seja por mensagens faladas ou escritas, como também por gestos, expressões corporais, imagens, etc. Até mesmo manter o silêncio é prerrogativa aqui assegurada, já que ninguém pode ser forçado por particulares ou pelo Estado a se manifestar sem vontade. Em suma, todas as maneiras que o indivíduo possui para se exprimir encontram guarida constitucional.

O que a Constituição não resguarda é o anonimato da manifestação. Isso porque, eventualmente, no exercício dessa faculdade, o sujeito pode agir abusivamente e ferir direitos de outrem (honra ou imagem, por exemplo), ou até mesmo cometer um ilícito penal, casos em que sua identidade será imprescindível para viabilizar a responsabilização aplicável à hipótese.

Em outros termos: a Constituição prevê que manifestações que causem dano material, moral ou à imagem de outrem, geram, em contrapartida, o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização (are. 5°, V). Daí a necessidade de vedar o anonimato, para permitir a identificação do autor e tomar possível a resposta proporcional ao agravo (desagravo76), bem como o pleito judicial por indenização decorrente dos danos materiais e/ou morais, ou, também, ações penais em casos de crimes contra a honra.

(MASSON, 2016.)

Com o propósito de compreender a relação entre o direito ao esquecimento e o direito à liberdade de expressão, percebe-se que enquanto a liberdade de expressão defende justamente o direito à divulgação de informações nos meios de comunicação, o direito ao esquecimento objetiva, por sua vez, impedir a veiculação de fatos legítimos que, em razão do decurso do tempo, causam danos à personalidade do indivíduo, conforme já exposto no tópico antecedente.

Convém notar, outrossim, que o direito ao esquecimento sempre esteve relacionado a danos aos direitos da personalidade, uma vez que quando se pensa em direito ao esquecimento se está diante de um conflito entre princípios constitucionais. Nesse caso, usa-se a hermenêutica jurídica a fim de realizar a ponderação entre esses princípios, de modo a verificar qual prevalecerá no caso concreto.

É importante ressaltar que todos têm acesso à informação, bem como direito de se expressar, só que apesar de a Carta Magna assegurar a existência desses direitos individuais e coletivos fundamentais, é necessário não violar à intimidade e a vida privada das pessoas, ainda que haja o embate entre eles, já que salvaguardar a dignidade da pessoa humana é basilar para o exercício do Estado Democrático de Direito.

Cumpre mencionar, ainda, que apesar de o ordenamento jurídico positivar normas que servem como limites à liberdade de informar e de se expressar, visando a proteção aos direitos da personalidade, como o direito fundamental à privacidade, não significa que um direito será sempre maior do que o outro. Por exemplo, conforme art. 5º da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...) V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

(...) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

(...) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

(...) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

(BRASIL, 1988)

Acontece que o exercício dos direitos fundamentais podem ser restringidos, conforme será analisado em tópico posterior. De acordo com o entendimento do doutrinador Merlin, (2014) [13] essas limitações ‘‘não devem ser entendidas como formas de redução dos direitos fundamentais, mas sim como mecanismos destinados a garantir e fomentar o seu exercício, bem como proteger os bens constitucionais da sociedade.’

Ocorre que, muitas vezes, o legislador brasileiro realiza a ponderação entre os direitos fundamentais com o escopo de proteger os direitos da personalidade, no Código Penal, por exemplo, há a tipificação de crimes contra a honra, como no caso dos arts. 138 a 145 do CP, ao passo que o Código Civil estabelece quantum indenização para aquele que atingir a ‘‘honra, a boa fama ou a respeitabilidade’’, consoante art. 20 do CC.

Com relação às limitações existentes no exercício da liberdade de expressão, o autor Tavares suscita (2012) que podem ser explicadas sob duas vertentes: ‘‘(i) pela necessidade de harmonia entre os direitos individuais como (ii) por questão de coerência, visto que seria, no mínimo, contraditório se a liberdade de expressão estivesse em contradição com essa mesma finalidade, atentando contra os direitos essenciais à própria personalidade.’’ [14]

Dessa forma, pode-se perceber que as restrições supracitadas são de crucial importância para manter a solidez do Estado Democrático de Direito, uma vez que, como diz o ditado popular: ‘‘o seu direito acaba onde começa o do outro’’, ou seja, mesmo a liberdade de expressão sendo um direito individual fundamental, não se deve expor opiniões com o objetivo de ferir outras pessoas, até porque todos têm direito ao respeito, à integridade, honra e dignidade.

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Sobre a autora
Anne Carolinne de Macêdo Cardoso

Advogada; Bacharel em Direito pela Faculdade de Petrolina - FACAPE; Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil Prático Contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC; e Pós-graduanda em Direito do Consumidor pela Legale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Anne Carolinne Macêdo. O direito ao esquecimento no ordenamento jurídico pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7142, 20 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100702. Acesso em: 27 abr. 2024.

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