Capa da publicação Quilombo: sentidos de colonialidade na ADI 3239
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Disputa de sentidos do conceito de quilombo.

Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239

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A elaboração do conceito de quilombo pela própria comunidade quilombola representa um giro decolonial, superando a experiência que se esgotou com o fim da escravidão.

Resumo: Na Constituição de 1988, a palavra quilombo obtém uma nova dimensão, alijando seu aspecto de crime para um fato garantidor de direitos. Há um cenário que indica abandono do olhar do colonizador, assumindo-se a perspectiva dos colonizados, principalmente de homens negros e de mulheres negras para quem quilombo é resistência ao sistema com estruturas herdadas da escravidão. A elaboração do conceito de quilombo por parte da própria comunidade quilombola representa um giro decolonial (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007), iniciado com a própria inserção do termo quilombo no texto constitucional. As experiências de homens e mulheres negras, seus processos de resistência ao projeto que buscou o aniquilamento físico e cultural e a luta contra a desumanização de afrodescendentes representam enfrentamento à colonialidade do poder. No entanto, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), em junho de 2004, protocolou, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação judicial, a ADI 3239, em que questiona a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 que regulamenta as terras de quilombo conquistadas na CF/88. Na ação, entre outras coisas, o DEM, ainda que de forma indireta, objetiva que o STF fixe o conceito de quilombo como “comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país”. O DEM pretende, portanto, aprisionar o conceito de quilombo a uma experiência que se esgotou com o fim da escravidão. Refuta, ainda, a possibilidade, expressa no referido Decreto, de a própria comunidade se autodefinir como quilombola. O questionamento apresentado busca afirmar que quilombo é coisa do passado, cabendo a laudos técnicos definirem quem faz parte destas comunidades. A pretensão apresentada na ação corrobora a narrativa colonial de impedir que afrodescendentes se tornem proprietários de terras como forma de manter a lógica de produção de riquezas, o que resultou em forte oposição ao enegrecimento das terras urbanas e rurais brasileiras. Ademais, emerge das manifestações de alguns ministros do STF a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), a colonialidade do saber (LANDER, 2005) e a colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2007), ao adotarem o mesmo entendimento do DEM: os quilombos foram uma experiência que findou com o fim do regime escravocrata no Brasil. Esta pesquisa possui como problema empírico o risco de manutenção da semântica colonial na definição do que é quilombo, resultando em perda de direitos e garantias conquistados por homens negros e mulheres negras. Indaga, pois: quais os sentidos de quilombo acionados no âmbito da ADI 3239? Como resposta/pressuposto, parte da assertiva de que foram acionados sentidos de quilombo que expressam colonialidade e decolonialidade em disputa, com vitória da perspectiva decolonial, o que não significa solução permanente, considerando a permanência da colonialidade do poder, do saber e do ser na constituição jurídico-política e social brasileira, o que demanda a continuidade dos processos de resistência.

Palavras-chave: Quilombo. Colonialidade do poder. Colonialidade do Saber. Colonialidade do Ser. Decolonialidade. Giro Decolonial.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1.QUILOMBO: DE CRIME A DIREITO. 1.1.A escravização dos povos negros-africanos: a criminalização da existência como castigo 1.2.A Resistência Individual e Coletiva do Povo Negro. 1.3.Pós-abolição: liberdade como pertencimento. 2.A COLONIALIDADE MANIFESTA NA ADI 3239: O CONCEITO COLONIALIZADO DE QUILOMBO E O EMBRANQUECIMENTO DE TERRAS PÚBLICAS E PARTICULARES 2.1.A pessoa escravizada e o direito. 2.2.A ideia de raça como inferiorização do colonialismo e da colonialidade. 2.2.1.A Colonialidade do Poder. 2.2.2.A Colonialidade do Saber. 2.2.3.A Colonialidade do Ser. 2.3.O sujeito de direito e o ser negro no Brasil: a investida do Partido Democratas contra o artigo quilombola da Constituição de 1988. 2.3.1.O artigo constitucional quilombola: o art. 68 do ADCT da CF/88. 2.3.2.O monopólio do direito de dizer o que é quilombo. 2.3.2.1Aspectos gerais do campo jurídico brasileiro. 2.4.O enredo da Ação Direta de Constitucionalidade 3239. 2.5.A manifestação da colonialidade na ADI 3239: descrição da categorização. 2.5.1.A Colonialidade do Poder na ADI 3239. 2.5.2.A Colonialidade do Saber na ADI 3239. 2.5.3.A Colonialidade do Ser na ADI 3239. 2.6.A Colonialidade nos Discursos Textuais da ADI 3239. 3.O CONCEITO DECOLONIAL DE QUILOMBO NA ADI 3239. 3.1.A decolonialidade: uma visão de mundo dos colonizados. 3.2.A resistência quilombola como quilombismo, quilombagem e no novo constitucionalismo latino-americano 3.3.Descrição dos Dados Empíricos Decoloniais da ADI 3239. 3.3.1.Os Discursos Decoloniais na ADI 3239 como afirmação de direitos e garantias fundamentais. 3.3.2.Giros Decoloniais na ADI 3239 e na CF/88. 4.REFLEXÕES DECOLONIAIS FINAIS. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

Os sons dos tambores quilombolas ressoam nestas páginas. São sons do presente. Podem ser escutados agora. Rompem das favelas, das ruelas da periferia e das veredas do campo. Ecoam pela resistência quilombola à desumanização, à coisificação de homens negros e de mulheres negras. Um batuque franco: Dandara e Marielle vivem.

São esses sons que denunciam uma questão que se encontra silenciada há mais de um século: a legalização da posse das terras em que o povo negro trabalha e vive. A luta por um local onde possa cultivar roças, cultuar seus santos e edificar suas moradas ainda perdura, fazendo parte do cotidiano de homens e mulheres negras.

A Lei das Terras (Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850), por exemplo, procurou, antes de tudo, impedir que os negros e as negras pudessem ter acesso à terra por meio da posse, ao estabelecer, logo no seu primeiro artigo, para que não pairasse qualquer dúvida, que a única forma de aquisição de terras devolutas se daria por meio da compra.

Apenas com a Constituição de 1988, a resistência negra, materializada nos quilombos, possibilitou às comunidades negras urbanas e rurais reivindicarem como suas as terras que ocupam. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF/88 determina que “[...] aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

A inclusão do artigo constitucional quilombola é resultado da luta e da organização de mulheres negras e de homens negros. Tal matéria sofreu uma forte oposição, tanto é assim que, no primeiro momento, a proposta foi rejeitada na Assembleia Constituinte (FIABANI, 2015).

Este artigo é um marco para as comunidades quilombolas e para o povo negro. Os quilombos saíam das frestas da história, das perseguições implacáveis, das mutilações aos negros e às negras capturadas para a condição de sujeito de direitos com garantia de reivindicar suas terras por meio de preceito que garante direito. Assim, a inserção do termo quilombo na Constituição Federal fez com que, de algum modo, diversas comunidades negras rurais e até mesmo urbanas, ao olharem para a sua história e diante da legalização de um termo que fez parte do rol dos crimes contra a Coroa Portuguesa, identificassem-se como quilombolas.

Nascimento (2009) defende que os quilombos não se reduzem às comunidades encravadas em algum lugar ermo, cercadas de paliçadas – essas se traduzem apenas em uma espécie de quilombo. Há outras formas de resistência coletiva negra. A escola de samba é um quilombo. As gafieiras, com seus gingados, são quilombos. Os terreiros, com seus santos, são quilombos.

Ocorre que as narrativas com maior poder de difusão sobre os quilombos sempre foram construídas por aqueles que se beneficiavam da escravização de homens negros e de mulheres negras: primeiramente, pelos colonizadores portugueses e, depois, pelas autoridades do Brasil imperial.

A Constituição de 1988 não diz expressamente a que espécie de quilombo se refere, cabendo ao intérprete tal tarefa. Na verdade, o documento, ao silenciar-se sobre isso, possibilita diferentes visões sobre o conceito de quilombo, inclusive no campo jurídico.

Contudo, esse silêncio pode ser visto apenas como aparente, uma vez que o novo constitucionalismo latino-americano objetiva imprimir a leitura decolonial do texto constitucional, ao garantir e incentivar a coexistência do Estado de Direito com as experiências de sociedades indígenas, afrodescendentes, comunais e camponesas (BALDI, 2015).

Na referida perspectiva, a semantização e a ressemantização do termo quilombo por parte da própria comunidade quilombola podem ser vistas como giro decolonial (CASTRO- GOMEZ; GROFOSGUEL, 2007), com início em lutas diversas que encaminharam para a própria inserção do termo quilombo na Constituição de 1988.

Essa leitura decolonial requer, de fato, a adoção de novos conceitos e de uma nova linguagem que pode ser gestada a partir de um diálogo com formas não ocidentais de conhecimento e, principalmente, com a valorização dos saberes dos colonizados que foram e que continuam sendo omitidos, silenciados e ignorados (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).

Dentre o arrazoado pelos quais se afirma que o artigo constitucional quilombola representa um giro decolonial, podem ser identificadas as formas diversas de resistência às tentativas de aniquilamento físico e cultural e as lutas contra a desumanização das pessoas negras que representaram um percurso em que quilombo vai do ilícito ao lícito, ou seja, do crime ao direito.

Ressalta-se, porém, que se trata de um giro decolonial sutil, em função de ocorrer apenas no âmbito do texto, e que, pode, portanto, sofrer interpretação em que se destaca uma visão de mundo ancorada na colonialidade, impedindo o acesso ou restringindo a quantidade de terras a serem tituladas às comunidades quilombolas.

A colonialidade designa um sistema de dominação e exploração estruturado em uma classificação racial na qual as relações entre os sujeitos são verticalizadas, baseadas na suposição de que há uma raça superior à outra, associando ao branco, o mando, a pureza, a luz, a honestidade, a racionalidade; e ao negro, a obediência, as trevas, a ignorância, a desonestidade, a insensatez (QUIJANO, 2005).

Restrepo, antropólogo colombiano, afirma que “La ‘colonialidade’ es estendida como um fenômeno histórico mucho más complejo que el colonialismo, y que se extiende hasta nuestro presente”1 (RESTREPO, 2007, p. 292). Portanto, colonialidade e colonialismo não se confundem. Este se manifesta pela relação política e econômica entre duas nações ou dois povos em que um deles se apossa do território do outro, sujeitando, a partir daí, à sua autoridade e ao seu controle os recursos e a administração de pessoas e de bens do espaço ocupado. Por sua vez, a colonialidade se refere a um padrão de poder que funciona e se manifesta pela naturalização de hierarquias raciais, estabelecendo relações de dominação territoriais e epistêmicas, garantindo a exploração de seres humanos racializados e o ofuscamento, a eliminação e o desprezo pelos conhecimentos e as experiências desses sujeitos subalternizados (RESTREPO, 2007).

O artigo constitucional quilombola, artigo 68 do ADCT, representa, dessa maneira, uma pequena fenda na colonialidade ao trazer para a Constituição a experiência de resistência de homens negros e de mulheres negras ao processo de desumanização e de coisificação a que a colonialidade sempre lhes submeteu.

Da mesma forma, o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento de titulação e de identificação das terras quilombolas, baseado, sobretudo, na autoatribuição e na territorialidade, é uma norma decolonial, embora represente ainda obstáculo para a conquista do título das terras ao estabelecer critérios difíceis de serem enfrentados no processo de certificação e de titulação dos territórios quilombolas, que podem, inclusive, significar impedimento da efetivação da garantia.

A ação do Partido Democratas (DEM), a ADI n.º 3239, foi um dos obstáculos enfrentados. Para esse Partido, quilombo é coisa do passado, localizado em um tempo anterior à abolição, cabendo ao saber técnico o aferimento da localização do requerente de terras no passado da resistência à escravidão, com isso, impedindo o acesso de negros e negras às terras em que vivem, ocupam e trabalham.

Ao par disto, podem-se encontrar, nos discursos dos ministros do Supremo Tribunal Federal que participaram do julgamento dessa ação, principalmente quando não vislumbram o artigo 68 do ADCT como um direito fundamental e quando defendem a produção de laudos antropológicos para atestar à ancestralidade negra da comunidade, portanto, adotando o mesmo entendimento do DEM: os quilombos foram uma experiência que findou com o fim do regime escravocrata no Brasil.

A pesquisa que aqui é apresentada procurou enfrentar o problema empírico do obstáculo à regularização das posses quilombolas pela manutenção da semântica colonial na definição do que é quilombo no âmbito da ADI 3239. Para dar curso à pretensão, foi adotada como problemática de pesquisa a seguinte questão: quais os sentidos de quilombo acionados no âmbito da ADI n.º 3239?

Como resposta/pressuposto, partiu-se da assertiva de que foram acionados sentidos de quilombo que expressam colonialidade e decolonialidade e que o sentido decolonial foi ameaçado pela pretensão do proponente com marcas de colonialidade e pelos discursos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, proferidos por ocasião do julgamento da ADI 3239, que expressam visões da colonialidade que, no entanto, foram enfrentadas por relutância coletiva de homens negros e de mulheres negras, através das narrativas de amicus curiae materializadas como resistência decolonial (QUIJANO, 2007).

Com base no problema de pesquisa, foi eleito como objetivo geral: analisar os sentidos de quilombo acionados na ADI 3239. E como objetivos específicos: discutir a transição do conceito de quilombo de crime a direito e identificar as marcas de colonialidade e decolonialidade no âmbito da ADI 3239.

Esta pesquisa buscou associar-se às resistências epistêmicas já trilhadas, tais como: Gisely Bárbara Barreto Santana, em programa de Direito – “Aquilombar-se: panorama histórico, identitário e político do movimento quilombola brasileiro” (dissertação de Mestrado, UNB, 2008); Carlos Alexandre Barboza Plínio dos Santos, em programa de Antropologia – “Quilombo Tapuio (PI): terra de memória e identidade” (dissertação de Mestrado, UNB, 2006); Daniely Monteiro Mendes, em programa de História – “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça; história e memória de Maria Rosalina no movimento quilombola do Piauí (1985-2013)” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2014); Raimunda Ferreira Gomes Coelho, em programa de Educação – “As educações escolar e social na formação da identidade racial de jovens nos quilombos de São João do Piauí” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2013); Simone de Oliveira Matos, em programa de Antropologia – “A terra para além do chão: a construção da territorialidade quilombola em Lagoas do Piauí” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2013); Ranchimit Batista Nunes, em programa de Educação – “Educação, gênero e afrodescendência: a educação escolar e a organização de mulheres quilombolas em Brejão dos Aipins. Piauí” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2013); e Ornela Fortes de Melo, em programa de Antropologia – “O Periperi e a implantação de hidrelétrica no rio Parnaíba– PI: etnografia de um conflito socioambiental” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2016).

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Esses e outros trabalhos compartilham do processo de resistência, por meio da pesquisa e da produção de conhecimento para enfrentar a condição de invisibilidade a que foram relegadas as comunidades quilombolas. É nesse espaço que este pesquisador se propõe a entrar na militância decolonial. Como diz Nascimento (2016, p. 47): “Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada.”

O tema da pesquisa surgiu com a descoberta, quase mágica e encantadora, do pensamento do grupo modernidade/colonialidade nas aulas da professora Dione Moraes, na disciplina Sociologia da Cultura, ministradas no curso de pós-graduação stricto sensu em Sociologia da Universidade Federal do Piauí. A questão quilombola sempre trouxe fascínio e admiração pelo caráter de resistência coletiva à desumanização de homens negros e de mulheres negras. O novo constitucionalismo latino-americano, por sua vez, chegou por meio da professora e orientadora Sueli Rodrigues, que indicou como leitura o livro coordenado por César Augusto Baldi, “Apreender desde o Sul: Novas constitucionalidades, pluralismo jurídico e plurinacionalidades. Aprendendo desde o Sul”. Foi a partir desses felizes encontros, portanto, que brotou e floresceu o tema deste estudo.

Penetrou-se, então, em uma nova concepção de mundo, em que se percebe nitidamente que ser classificado como negro significa estar sempre em desvantagem, por isso, a necessidade de se organizar coletivamente. Nesse processo, o ar queimou os pulmões, tal como ocorre com o nascituro, provocando lágrimas, mas havia e há disposição para lutar pela vida, e resta a esse novo ser, negro, apenas se aquilombar.

Neste ato de resistência epistêmica decolonial, o espaço metodológico quadripolar auxilia na explicação dos resultados e do próprio processo de produção da pesquisa. Esta perspectiva metodológica considera que o campo da prática científica se encontra articulado em diferentes instâncias ou diferentes polos: o epistemológico, o teórico, o morfológico e o técnico (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991).

No caso do polo epistemológico, que garante a objetivação e que motiva uma “[...] reflexão sobre os princípios, os fundamentos, a validade das ciências” (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991, p. 41), tem-se a racionalidade moderna revisitada e criticada com autores decoloniais que orientam teoricamente esta pesquisa.

Isto é, o pensamento do grupo modernidade/colonialidade servirá como guia para a elaboração dos pressupostos, para a construção dos conceitos e para o questionamento dos próprios princípios da ciência. De acordo com esses pensadores, o colonialismo, além do espólio de exclusão e miséria, deixou o legado epistemológico do eurocentrismo, que impede que os povos colonizados compreendam o mundo a partir de suas vivências e das epistemes que lhes são próprias (PORTO-GONÇALVES, 2005).

O polo morfológico, por sua vez, toma o objeto alocado no sistema do Direito, em função da inclusão do termo quilombo no art. 68 do ADCT da CF/88, e, principalmente, em função da ADI n.º 3239, na qual o conceito de quilombo se encontra em disputa, percebido como campo jurídico (BOURDIEU, 1989), em que agentes disputam narrativas como interpretação do texto normativo.

Em relação ao polo operacional, trabalhou-se com as seguintes técnicas de captação das informações: pesquisa bibliográfica (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991) e pesquisa documental (CELLARD, 2014), tendo-se como técnica de sistematização a análise de conteúdo temática (GOMES, 2016).

Nas pesquisas bibliográfica e documental, as categorias teóricas orientadoras do estudo foram: campo jurídico; habitus; quilombo; quilombismo e quilombagem; modernidade/colonialidade; colonialidade do poder; colonialidade do saber; colonialidade do ser; decolonialidade; raça; e constitucionalismo latino-americano.

Em relação à investigação documental, principalmente no primeiro capítulo, em que se descreve o conceito de quilombo, foram utilizados autores e autoras, sendo basicamente historiadores e historiadoras, de diversas orientações historiográficas, inclusive com diferenças teóricas e metodológicas. A proposta foi apresentar versões e leituras diferentes do fenômeno quilombola. Mattoso (2016, p. 8) pontua que, em relação ao tema da escravidão, há “[...] um emaranhado de temas e de abordagens [...]”, que demandam reflexões que favorecem análises que conduzem a entendimentos de suas estruturas e que permanecem em práticas e concepções atuais.

Para a observação e a coleta dos dados, que são os documentos que compõem a ADI n.º 3239 – petição inicial, manifestações dos amici curiae –, e os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal –, empregou-se a análise de conteúdo temática. Essa técnica parte do entendimento de que a mensagem expressa obrigatoriamente um significado e um sentido e de que a relação que vincula a emissão dessa informação se encontra articulada às condições contextuais de seus produtores (FRANCO, 2012, p. 21).

A análise de conteúdo permite, pois, uma diversificada maneira de analisar os conteúdos de uma mensagem, de um enunciado, de um discurso ou de uma informação, tais como: (a) análise de avaliação ou análise representacional; (b) análise de expressão; (c) análise de enunciação; (d) análise temática (GOMES, 2016).

Na análise de conteúdo, aqui utilizada, sobressai-se o conceito central denominado de tema. O objetivo, nessa espécie de análise, consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a mensagem do texto. Para isso, optou-se por uma unidade de registro em forma de trechos dos textos dos documentos estudados. “Estas unidades se referem aos elementos obtidos através da decomposição da mensagem” (GOMES, 2016, p. 79). Esse autor defende, ainda, a necessidade de que se compreenda o contexto no qual a mensagem foi produzida.

Além das unidades de registro, numa análise de conteúdo de mensagens, faz-se necessário definirmos as unidades de contexto, situando uma referência mais ampla para a comunicação. Em outras palavras, devemos compreender o contexto da qual faz parte a mensagem que estamos analisando. (GOMES, 2016, p. 79).

O contexto em que tais discursos foram proferidos é o campo jurídico, autonomizado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo Partido Democratas e registrada sob o nº 3239, no qual se trava um embate em que um dos lados coloca obstáculos à efetivação da garantia constitucional que possibilita a regularização das terras de pretos com o enegrecimento do solo brasileiro e, do outro, há aqueles que entendem a necessidade de conceder uma parcela maior de terras às comunidades quilombolas. Ou seja, para os primeiros, o Decreto 4.887/2003 é eivado de vícios; para os segundos, a norma regulamentadora é constitucional, e nesses há aqueles que defendem que o artigo constitucional quilombola é de eficácia plena, portanto, “[...] de aplicação imediata, não precisando de lei complementar que o regulamente” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS, 2013, p. 33).

Há, portanto, uma disputa de sentidos do conceito de quilombos, materializada, no caso, na ação direta de inconstitucionalidade 3239. Aqui se defrontam duas visões de mundo antagônicas sobre o fenômeno quilombola.

Mas assim como as pessoas expressem seus pontos de vista falando, elas também escrevem – para fazer relatórios, para planejar, jogar ou se divertir, para estabelecer normas e regras, e para discutir sobre temas controvertidos. Deste modo, os textos, do mesmo modo que as falas, referem-se aos pensamentos, sentimentos, memórias, planos e discussões das pessoas, e algumas vezes nos dizem mais do que os autores imaginam. (BAUER, 2017, p. 189).

Nesse sentido, Franco (2012) destaca que todo autor, em sua mensagem, expõe uma teoria que, por sua vez, orienta sua visão de mundo. Por isso, é possível “[...] através da análise de conteúdo, [...] caminhar na descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos, indo além das aparências do que está sendo comunicado” (GOMES, 2016, 76). Assim, a análise de conteúdo da ADI 3239 possibilitou revelar ou desvelar a concepção das pessoas que iniciaram, ingressaram ou que julgaram aquela ação judicial sobre as comunidades quilombolas.

Para tanto, optou-se por um procedimento metodológico, a partir da perspectiva qualitativa, da análise de conteúdo da ADI 3239, em que se percorreu o seguinte itinerário: (a) escolha das categorias de análise por meio do problema de pesquisa, pressuposto e objetivos;

(b) decomposição de cada um dos documentos que compõem essa ação judicial em partes que expressam a mensagem do autor como ataque ou resistência à garantia constitucional; (c) distribuição dessas partes ou trechos nas categorias; (d) descrição do resultado da categorização; (e) feitura de inferências dos resultados; (f) e interpretação dos resultados obtidos com auxílio da fundamentação teórica adotada (GOMES, 2016).

Aqui se fez uma pequena adaptação ao procedimento metodológico acima descrito, ao acrescentar a fase escolha das categorias de análise, inexistente no esquema do autor. Uma vez que “A codificação, e consequentemente, a classificação dos materiais colhidos na amostra, é uma tarefa de construção, que carrega consigo a teoria e o material de pesquisa” (BAUER, 2017, p. 199). Ou seja, não há como desmontar o texto se não se sabe em quais categorias tais partes serão catalogadas.

Dessa maneira, o primeiro passo é a categorização. As categorias de análise do conteúdo documental foram extraídas e definidas a partir do quadro teórico da modernidade/colonialidade (QUIJANO, 2005), utilizado para compreender o fenômeno quilombola. De acordo com Castro-Gómez (2007, p. 79), há uma “[...] estructura triangular de la colonialidad: la colonialidad del ser; la colonialidade del poder y la colonialidad del saber.” Há, ainda, “[...] la categoria ‘decolonialidad’, utilizada em el sentido de giro decolonial [...]”2 (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 9)

Por sua vez, a seleção das partes e a consequente distribuição nas categorias correspondentes teve orientação da referida teoria. Quijano (2007) alerta que a colonialidade disputa o controle dos seguintes âmbitos da existência social dos indivíduos:

[...] (1) el trabajo y sus produtos; (2) en dependência del anterior, la “naturaleza” y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus produtos y la reproducción de la espécie; (4) la subjetividade y sus produtos materiales e intersubjetivos, incluído el conocimiento; (5) la autoridad y sus instrumentos, de coerción en particular, para assegurar la reproducción de esse patrón de relaciones sociales y regular sus câmbios. 3 (QUIJANO, 2007, p. 96).

Frisa-se que os discursos que expressam “[...] formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção de conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 236) foram alocados, respectivamente, na colonialidade do ser e na colonialidade do saber. Todos os outros se encontram dispostos na coluna referente à colonialidade do poder.

Os documentos judiciais dos quais foram extraídos os trechos que foram categorizados são os documentos produzidos pelo Partido Democratas , pela Procuradoria-Geral da República e pelos amigos da corte, que compõem as duas partes que se opõem na ação. Classificou-se, também, os votos dos ministros do STF na ADI 3239, para identificar como os julgadores se posicionam com relação à demanda.

Uma ação judicial, geralmente, se inicia com um pedido denominado petição inicial, dirigido a um dos órgãos do Poder Judiciário (Art. 319, da Lei 13.105, 2015). Na situação específica, o Partido da Frente Liberal, atual Democratas, deu origem à referida ação. Por se tratar de um pedido de declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, não há um réu especificamente, ou seja, a ação não foi provocada em função de alguém, pessoa física ou jurídica, ter causado um determinado dano, mas o enfrentamento é ao Estado, por meio do ente federal União, representado pelo chefe do Poder Executivo, que assinou o Decreto que é atacado pela ADI referida, portanto, a União é representada pela Advocacia-Geral da União que apresentou a defesa de constitucionalidade do decreto quilombola. Na verdade, não poderia fazê-lo de modo diferente (BASTOS, 1996).

A Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, estabelece, em seu artigo 7°, que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, pode admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades, denominados de amicus curiae (BRANCO; MENDES, 2012). Segundo estes autores, a participação “[...] desses peculiares partícipes [...]” possibilita “[...] que a decisão na ação direta de inconstitucionalidade seja subsidiada por novos argumentos e diferentes alternativas de interpretação da Constituição” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 1250).

Tomando partido do autor, o DEM, pediram para ser aceitos, na qualidade de amici curiae: o Estado de Santa Catarina, a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA) e Sociedade Rural Brasileira.

Por outro lado, em uma evidente oposição às ideias levantadas pelo autor da ação, há os seguintes amici curiae: Instituto Pro Bono Conectas Diretos Humanos, Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHERE), Centro de Justiça Global, o Instituto Socioambiental (ISA), Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (POLIS), Terra de Direitos, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI – Pará), Estado do Pará, Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, Associação dos Quilombos Unidos do Barro Preto e Indaiá, Associação de Moradores Quilombolas de Santana – Quilombo de Santana, Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) e o Clube Palmares de Volta Redonda (CPVR).

Vale aferir que a ADI 3239 é formada por 9 volumes, totalizando 1.600 páginas4. Delimitou-se como empírico para a presente análise, os seguintes documentos: a petição inicial do DEM; a manifestação do Estado de Santa Catarina, primeiro amigo da corte a atacar o Decreto 4.887/2003; a petição de defesa da constitucionalidade do referido Decreto, elaborada em conjunto por COHERE, Centro de Justiça Global e ISA. Esses organismos foram os responsáveis por, primordialmente, requerer o ingresso na ADI para preservar os interesses das comunidades quilombolas; o parecer da Procuradoria-Geral da República e os votos dos ministros Cézar Peluso, Rosa Weber e Dias Toffoli, que foram disponibilizados na rede mundial de computadores, seja na própria página do STF ou em outros locais, com possibilidades de atestar sua veracidade pela autenticação por meio da Infraestrutura da Chave Brasileira (ICP-Brasil).

Excluiu-se o advogado-geral da União, porque não há discricionariedade em sua participação nem mesmo no teor da manifestação, que deve ser no sentido de apresentar elementos que demonstrem a constitucionalidade do ato impugnado (BASTOS, 1996).

Classificados os elementos constitutivos dos documentos, isto é, resumidos após o tratamento analítico (GOMES, 2016), feitas as inferências, seguiu-se com a descrição do resultado da categorização da ADI 3239. Entende-se, porém, que se “[...] fazemos inferência quando deduzimos de maneira lógica algo do conteúdo que está sendo analisado” (GOMES. 2016, p. 81), tal manifestação do intelecto pode ser encontrada em cada uma das etapas descritas pelo autor.

Destaca-se que tal procedimento foi realizado no segundo e no terceiro capítulos. É a dubiedade das falas dos sujeitos que compõe o campo jurídico, autonomizado pela ADI 3239, que orienta a seccionar em dois momentos a análise do conteúdo desses discursos. Essa disposição topográfica talvez facilite a compreensão das categorias-chave desta pesquisa, lembrando que a primeira publicação do grupo modernidade/colonialidade ocorreu há menos de 20 anos (CASTRO-GÓMEZ; GROFOSGUEL, 2007).

Contudo, tais capítulos receberam um tratamento diferenciado, tanto na descrição do resultado da categorização como na interpretação dos resultados obtidos. No segundo capítulo, os dados foram descritos e interpretados em conformidade com as categorias em que foram distribuídos: colonialidade do poder; colonialidade do saber; e colonialidade do ser. O terceiro, por constar com apenas uma operação de classificação, a categoria decolonialidade ou giro decolonial, adota-se um percurso totalmente diverso.

No caso, dialoga-se a decolonialidade com o novo constitucionalismo latino- americano e, principalmente, com o conceito de direitos fundamentais elaborado por Habermas, por acreditar-se que “[...] Todo derecho, su ejercicio, genera condiciones de participación desde donde resistir, desde donde transformar [...]”5 (CONDORI, 2007, p. 471). Entende-se, pois, que a narrativa da resistência quilombola à colonialidade encontra-se alicerçada na lógica dos direitos fundamentais6: “[...] o art. 68 do ADCT reconhece um direito fundamental [...]” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2013, p. 33).

Para validar a escolha deste caminho, seccionou-se os discursos textuais, considerados decoloniais, em três subclasses: o quilombola como igual, pertencente ao pacto de nação com direito a ter direitos; o quilombola com liberdade para ser proprietário; o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais.

Esta classificação baseia-se em Habermas7 (SOUZA NETO) que entende os direitos fundamentais, entre outras coisas, como: direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito – o quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direitos a ter direitos; direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente – o quilombola com liberdade para ser proprietário; e direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos da opinião e da vontade, exercitando sua autonomia política e criando direitos legítimos – o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos fundamentais.

Assim, na coluna referente ao quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos, encontram-se os discursos que erigem o ser quilombola à categoria de pertencente ao pacto da nação. São os discursos textuais que compreendem o artigo 68 do ADCT como direito fundamental e dotado, portanto, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, e aqueles que percebem o Decreto 4.887/2003 como uma norma que possibilita a concretização do artigo constitucional quilombola.

Já na subclasse o quilombola com liberdade para ser proprietário, foram disponibilizados os discursos que defendem o enegrecimento do solo brasileiro, quais sejam: a adoção da autoatribuição como critério identificador das terras quilombolas; a destinação de verbas públicas para aquisição de terras registradas em cartórios de imóveis como particulares.

No último campo, o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais, estão as falas que compreendem a constitucionalidade do critério da autoatribuição. Ou seja, os discursos que compreendem as comunidades quilombolas como expressão do tempo presente.

Esse percurso metodológico permitiu, de forma controlada, um “[...] encontro com os fatos empíricos” (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991, p. 36) que estão imersos na ADI 3239, em um sistema de direito, portanto. Nesta trilha, a teoria da modernidade/colonialidade guia para uma ruptura epistemológica em que a fala dos colonizados pela colonialidade ganha relevo e oportuniza apreender que a ideia de raça fecunda, ainda, relações sociais hierarquizadas, estabelecendo lugares e papéis dos indivíduos na organização social.

Um dos destinos dessa viagem é revisitar a modernidade com outros olhares, outros desejos e outras intenções, possibilitando e valorizando outras visões de mundo. Revisitar a modernidade é questioná-la, indagá-la a ponto de constrangê-la. É perceber que “Nesse universo de vários tipos de saberes, a ciência é apenas uma forma de expressão dessa busca, não exclusiva, não conclusiva e não definitiva de conhecimentos” (MINAYO, 2016, p. 9).

Por isso, aqui, abraçam-se outros sentidos, outras cores, outros cheiros, outros sons. De fato, a perspectiva decolonial representa uma “resistência intelectual” (QUIJANO, 2005,p. 239) que faz ecoar os tambores dos quilombos, ressoando as experiências cotidianas de resistência de homens negros e de mulheres negras.

Trilha-se, portanto, pelas veredas abertas pelo primeiro negro fujão e pela primeira negra fujona que não aceitavam as condições deploráveis a que estavam submetidos. Desejavam vida em abundância nem que para isso fosse necessário flertar com a morte.

Por isso, a dissertação se inicia querendo entender como o fenômeno histórico denominado de quilombo, considerado crime até a edição da Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, adentrou o direito constitucional brasileiro, em 1988, um século depois, como uma experiência garantidora de direitos.

Para tanto, mostra-se como a escravização de homens negros e de mulheres negras era uma prática autorizada pelo Estado, permitida e sancionada, portanto, por lei. O direito considerava-os coisa, semoventes. Esse processo de coisificação autorizava não só a compra e a venda de seres humanos, mas a violência física e psíquica insana contra corpos negros.

Por outro lado, relatam-se os diversos mecanismos pelos quais os negros e as negras resistiram à desumanização, ao aviltamento de suas dignidades, merecendo destaque a formação de quilombos. Mostra-se, por exemplo, que não se trata de um fenômeno exclusivo do sistema escravocrata brasileiro, mas que sua ocorrência se deu em vários países da América Latina.

Porém, limitou-se o estudo às comunidades quilombolas fincadas em solo brasileiro, ressaltando o aspecto de luta contra a coisificação que o escravismo impunha aos negros e às negras, bem como a retomada da humanidade que lhes havia sido tomada e não um simples desejo de liberdade.

É nesse aspecto que se introduz a questão do campesinato negro, embora, aqui, não se trate apenas dos quilombos rurais. Quer-se demonstrar que o povo negro sempre lutou pelo acesso à terra para que pudesse cultivar os seus modos de criar, de fazer e de viver. Ou seja, a terra é expressão da dignidade reconquistada através da organização coletiva de homens negros e de mulheres negras.

Demonstra-se, então, que é nesse processo histórico de resistência e luta pelo enegrecimento do solo brasileiro que homens negros e mulheres negras conseguiram inserir no atual texto constitucional uma norma garantidora da titulação das terras que ocupam com suas roças e com suas moradas: o art. 68 do ADCT.

No segundo capítulo, porém, revela-se como o sistema escravocrata utilizou o direito para desestruturar a resistência negra à escravização e para impedir o enegrecimento do solo brasileiro. Da mesma maneira, mostra-se como a República adotou a mesma postura. Na Constituição de 1891, o art. 17, § 17 determina que o direito de propriedade é mantido, ou protegido, em toda a sua plenitude.

Faz-se, então, nesta parte do texto, um paralelo entre a Lei das Terras e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, proposta pelo Partido da Frente Liberal, atual Democratas, com a finalidade de expurgar do ordenamento jurídico brasileiro o Decreto 4.887/2003, procurando-se demonstrar que tanto a ADI 3239 como o referido decreto possuem o mesmo objetivo: evitar, ao máximo possível, o enegrecimento de terras públicas e particulares.

A proposta, aqui, é mostrar que a ADI 3239 emerge da colonialidade que inferioriza a pessoa negra na hierarquização eurocêntrica, e que se legitima pela naturalização da suposta supremacia branca com a subalternização, no caso, de homens negros e de mulheres negras. É nesta parte da dissertação que se analisa o conteúdo das falas da ADI 3239 que expressam a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser.

Definiu-se como discursos textuais que manifestam a colonialidade do poder aquelas que procuram manter um rígido controle sobre quem deve ter acesso à terra e, caso o tenha, a quantidade que se encontra disponível, bem como o quantum de capital destinado a financiar a aquisição de terras privadas. Resumidamente, anunciam a colonialidade do poder quando “[...] articuladas bajo el domínio de capital y en su beneficio” 8 (QUIJANO, 2007, p. 122).

Do mesmo modo, as mensagens discursivas que defendem que o Decreto 4.887/2003 encontra-se viciado denotam a colonialidade do poder, visto que pretendem excluir do ordenamento jurídico brasileiro uma norma que atende, a princípio, aos interesses dos quilombolas expressam a colonialidade do poder. Ou seja, o Direito, como meio de assegurar as relações sociais e suas transformações, deve espelhar, antes de tudo, a visão do mundo dos brancos.

Por outro lado, os discursos que exprimem o controle da subjetividade dos indivíduos que compõem os quilombos, principalmente quando questionam a autoatribuição como modo de definir quem é quilombola ou a territorialidade como meio de medição e demarcação das terras destinada à comunidade negra, denotam a colonialidade do ser. Nessas categorias, incluem-se as falas que subtendem que os negros e as negras são violadores e violadoras contumazes das leis, em uma indicação de inferiorização do ser negro.

Por sua vez, os discursos que entendem a necessidade de produção de laudos antropológicos, para dizer quem é um quilombola ou para atestar a autoidentidade de quem se afirma um morador de quilombo, vislumbram a colonialidade do saber. Encontram-se classificados nesta categoria os discursos textuais que fazem menção à visão de mundo centrada em ideias eurocêntricas.

Neste capítulo, aborda-se, portanto, a colonialidade. Por isso, aqui se utiliza a palavra escravo e não a expressão escravizado e/ou escravizada, que denota uma situação, algo circunstancial, e não uma condição ontológica. Não se pode esquecer que, para a colonialidade, os negros e as negras não são dignos e dignas do pagamento de salários (QUIJANO, 2005).

No entanto, negros e negras resistiram ao colonialismo que os submetia a longas jornadas de trabalho e a sevícias físicas e morais. Da mesma forma, contrapõem-se à colonialidade que ousa lhes definir papéis e lugares sociais a partir de uma suposta inferioridade natural. Em ambas as situações, que guardam certa similitude, homens negros e mulheres negras ergueram comunidades quilombolas como instrumento de afirmação de suas humanidades.

Os capítulos, pois, entrelaçam-se em um movimento ondulatório que parece a repetição de uma coisa anteriormente descrita, fincada na história: colonialismo e resistência negra. No entanto, há um outro liame, colonialidade e resistência, da mesma gênese que a anterior, mas que ainda define a situação da comunidade negra. É essa relação que dá a falsa impressão de que se está relatando o mesmo fato.

Assim, as categorias quilombismo, de Abdias Nascimento, e quilombagem, de Clóvis Moura, aparecem nesta seção para, no plano teórico, sustentar que as comunidades quilombolas continuam, em pleno século XXI, sendo erguidas.

Esta seção segue, pois, por esses processos de resistência à colonialidade, aqui denominados de decolonialidade ou de giro decolonial. Inicia-se, portanto, apresentando tais categorias. O objetivo é instrumentalizar o olhar para perceber quais as falas, mesmo imersas em contradições, que indicam, principalmente, o pensamento favorável ao enegrecimento do solo brasileiro. O novo constitucionalismo latino-americano auxilia, também, no procedimento de coleta de dados decoloniais.

Esta dissertação se ocupa do conceito decolonial de quilombo, como se afirmou anteriormente, materializado no critério da autoatribuição, da territorialidade como aspecto identificador das terras negras e da compreensão, estampada no voto da ministra Rosa Weber, que o art. 68 do ADCT possui eficácia plena e guarda em si um direito fundamental das comunidades quilombolas.

A ADI 3239 se apresenta, e é isto que se pretende demonstrar, como um momento ou local ímpar para compreender e observar como a colonialidade e o giro decolonial se defrontam para impor suas visões de mundo sobre o fenômeno quilombola.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Joaquim José Ferreira. Disputa de sentidos do conceito de quilombo.: Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7014, 14 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100146. Acesso em: 29 abr. 2024.

Mais informações

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí como requisito para obtenção do título de mestre em Sociologia. Linha de pesquisa: Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

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