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Disputa de sentidos do conceito de quilombo.

Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239

Disputa de sentidos do conceito de quilombo. Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239

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A elaboração do conceito de quilombo pela própria comunidade quilombola representa um giro decolonial, superando a experiência que se esgotou com o fim da escravidão.

Resumo: Na Constituição de 1988, a palavra quilombo obtém uma nova dimensão, alijando seu aspecto de crime para um fato garantidor de direitos. Há um cenário que indica abandono do olhar do colonizador, assumindo-se a perspectiva dos colonizados, principalmente de homens negros e de mulheres negras para quem quilombo é resistência ao sistema com estruturas herdadas da escravidão. A elaboração do conceito de quilombo por parte da própria comunidade quilombola representa um giro decolonial (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007), iniciado com a própria inserção do termo quilombo no texto constitucional. As experiências de homens e mulheres negras, seus processos de resistência ao projeto que buscou o aniquilamento físico e cultural e a luta contra a desumanização de afrodescendentes representam enfrentamento à colonialidade do poder. No entanto, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), em junho de 2004, protocolou, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação judicial, a ADI 3239, em que questiona a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 que regulamenta as terras de quilombo conquistadas na CF/88. Na ação, entre outras coisas, o DEM, ainda que de forma indireta, objetiva que o STF fixe o conceito de quilombo como “comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país”. O DEM pretende, portanto, aprisionar o conceito de quilombo a uma experiência que se esgotou com o fim da escravidão. Refuta, ainda, a possibilidade, expressa no referido Decreto, de a própria comunidade se autodefinir como quilombola. O questionamento apresentado busca afirmar que quilombo é coisa do passado, cabendo a laudos técnicos definirem quem faz parte destas comunidades. A pretensão apresentada na ação corrobora a narrativa colonial de impedir que afrodescendentes se tornem proprietários de terras como forma de manter a lógica de produção de riquezas, o que resultou em forte oposição ao enegrecimento das terras urbanas e rurais brasileiras. Ademais, emerge das manifestações de alguns ministros do STF a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), a colonialidade do saber (LANDER, 2005) e a colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2007), ao adotarem o mesmo entendimento do DEM: os quilombos foram uma experiência que findou com o fim do regime escravocrata no Brasil. Esta pesquisa possui como problema empírico o risco de manutenção da semântica colonial na definição do que é quilombo, resultando em perda de direitos e garantias conquistados por homens negros e mulheres negras. Indaga, pois: quais os sentidos de quilombo acionados no âmbito da ADI 3239? Como resposta/pressuposto, parte da assertiva de que foram acionados sentidos de quilombo que expressam colonialidade e decolonialidade em disputa, com vitória da perspectiva decolonial, o que não significa solução permanente, considerando a permanência da colonialidade do poder, do saber e do ser na constituição jurídico-política e social brasileira, o que demanda a continuidade dos processos de resistência.

Palavras-chave: Quilombo. Colonialidade do poder. Colonialidade do Saber. Colonialidade do Ser. Decolonialidade. Giro Decolonial.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1.QUILOMBO: DE CRIME A DIREITO. 1.1.A escravização dos povos negros-africanos: a criminalização da existência como castigo 1.2.A Resistência Individual e Coletiva do Povo Negro. 1.3.Pós-abolição: liberdade como pertencimento. 2.A COLONIALIDADE MANIFESTA NA ADI 3239: O CONCEITO COLONIALIZADO DE QUILOMBO E O EMBRANQUECIMENTO DE TERRAS PÚBLICAS E PARTICULARES 2.1.A pessoa escravizada e o direito. 2.2.A ideia de raça como inferiorização do colonialismo e da colonialidade. 2.2.1.A Colonialidade do Poder. 2.2.2.A Colonialidade do Saber. 2.2.3.A Colonialidade do Ser. 2.3.O sujeito de direito e o ser negro no Brasil: a investida do Partido Democratas contra o artigo quilombola da Constituição de 1988. 2.3.1.O artigo constitucional quilombola: o art. 68 do ADCT da CF/88. 2.3.2.O monopólio do direito de dizer o que é quilombo. 2.3.2.1Aspectos gerais do campo jurídico brasileiro. 2.4.O enredo da Ação Direta de Constitucionalidade 3239. 2.5.A manifestação da colonialidade na ADI 3239: descrição da categorização. 2.5.1.A Colonialidade do Poder na ADI 3239. 2.5.2.A Colonialidade do Saber na ADI 3239. 2.5.3.A Colonialidade do Ser na ADI 3239. 2.6.A Colonialidade nos Discursos Textuais da ADI 3239. 3.O CONCEITO DECOLONIAL DE QUILOMBO NA ADI 3239. 3.1.A decolonialidade: uma visão de mundo dos colonizados. 3.2.A resistência quilombola como quilombismo, quilombagem e no novo constitucionalismo latino-americano 3.3.Descrição dos Dados Empíricos Decoloniais da ADI 3239. 3.3.1.Os Discursos Decoloniais na ADI 3239 como afirmação de direitos e garantias fundamentais. 3.3.2.Giros Decoloniais na ADI 3239 e na CF/88. 4.REFLEXÕES DECOLONIAIS FINAIS. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

Os sons dos tambores quilombolas ressoam nestas páginas. São sons do presente. Podem ser escutados agora. Rompem das favelas, das ruelas da periferia e das veredas do campo. Ecoam pela resistência quilombola à desumanização, à coisificação de homens negros e de mulheres negras. Um batuque franco: Dandara e Marielle vivem.

São esses sons que denunciam uma questão que se encontra silenciada há mais de um século: a legalização da posse das terras em que o povo negro trabalha e vive. A luta por um local onde possa cultivar roças, cultuar seus santos e edificar suas moradas ainda perdura, fazendo parte do cotidiano de homens e mulheres negras.

A Lei das Terras (Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850), por exemplo, procurou, antes de tudo, impedir que os negros e as negras pudessem ter acesso à terra por meio da posse, ao estabelecer, logo no seu primeiro artigo, para que não pairasse qualquer dúvida, que a única forma de aquisição de terras devolutas se daria por meio da compra.

Apenas com a Constituição de 1988, a resistência negra, materializada nos quilombos, possibilitou às comunidades negras urbanas e rurais reivindicarem como suas as terras que ocupam. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF/88 determina que “[...] aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

A inclusão do artigo constitucional quilombola é resultado da luta e da organização de mulheres negras e de homens negros. Tal matéria sofreu uma forte oposição, tanto é assim que, no primeiro momento, a proposta foi rejeitada na Assembleia Constituinte (FIABANI, 2015).

Este artigo é um marco para as comunidades quilombolas e para o povo negro. Os quilombos saíam das frestas da história, das perseguições implacáveis, das mutilações aos negros e às negras capturadas para a condição de sujeito de direitos com garantia de reivindicar suas terras por meio de preceito que garante direito. Assim, a inserção do termo quilombo na Constituição Federal fez com que, de algum modo, diversas comunidades negras rurais e até mesmo urbanas, ao olharem para a sua história e diante da legalização de um termo que fez parte do rol dos crimes contra a Coroa Portuguesa, identificassem-se como quilombolas.

Nascimento (2009) defende que os quilombos não se reduzem às comunidades encravadas em algum lugar ermo, cercadas de paliçadas – essas se traduzem apenas em uma espécie de quilombo. Há outras formas de resistência coletiva negra. A escola de samba é um quilombo. As gafieiras, com seus gingados, são quilombos. Os terreiros, com seus santos, são quilombos.

Ocorre que as narrativas com maior poder de difusão sobre os quilombos sempre foram construídas por aqueles que se beneficiavam da escravização de homens negros e de mulheres negras: primeiramente, pelos colonizadores portugueses e, depois, pelas autoridades do Brasil imperial.

A Constituição de 1988 não diz expressamente a que espécie de quilombo se refere, cabendo ao intérprete tal tarefa. Na verdade, o documento, ao silenciar-se sobre isso, possibilita diferentes visões sobre o conceito de quilombo, inclusive no campo jurídico.

Contudo, esse silêncio pode ser visto apenas como aparente, uma vez que o novo constitucionalismo latino-americano objetiva imprimir a leitura decolonial do texto constitucional, ao garantir e incentivar a coexistência do Estado de Direito com as experiências de sociedades indígenas, afrodescendentes, comunais e camponesas (BALDI, 2015).

Na referida perspectiva, a semantização e a ressemantização do termo quilombo por parte da própria comunidade quilombola podem ser vistas como giro decolonial (CASTRO- GOMEZ; GROFOSGUEL, 2007), com início em lutas diversas que encaminharam para a própria inserção do termo quilombo na Constituição de 1988.

Essa leitura decolonial requer, de fato, a adoção de novos conceitos e de uma nova linguagem que pode ser gestada a partir de um diálogo com formas não ocidentais de conhecimento e, principalmente, com a valorização dos saberes dos colonizados que foram e que continuam sendo omitidos, silenciados e ignorados (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).

Dentre o arrazoado pelos quais se afirma que o artigo constitucional quilombola representa um giro decolonial, podem ser identificadas as formas diversas de resistência às tentativas de aniquilamento físico e cultural e as lutas contra a desumanização das pessoas negras que representaram um percurso em que quilombo vai do ilícito ao lícito, ou seja, do crime ao direito.

Ressalta-se, porém, que se trata de um giro decolonial sutil, em função de ocorrer apenas no âmbito do texto, e que, pode, portanto, sofrer interpretação em que se destaca uma visão de mundo ancorada na colonialidade, impedindo o acesso ou restringindo a quantidade de terras a serem tituladas às comunidades quilombolas.

A colonialidade designa um sistema de dominação e exploração estruturado em uma classificação racial na qual as relações entre os sujeitos são verticalizadas, baseadas na suposição de que há uma raça superior à outra, associando ao branco, o mando, a pureza, a luz, a honestidade, a racionalidade; e ao negro, a obediência, as trevas, a ignorância, a desonestidade, a insensatez (QUIJANO, 2005).

Restrepo, antropólogo colombiano, afirma que “La ‘colonialidade’ es estendida como um fenômeno histórico mucho más complejo que el colonialismo, y que se extiende hasta nuestro presente”1 (RESTREPO, 2007, p. 292). Portanto, colonialidade e colonialismo não se confundem. Este se manifesta pela relação política e econômica entre duas nações ou dois povos em que um deles se apossa do território do outro, sujeitando, a partir daí, à sua autoridade e ao seu controle os recursos e a administração de pessoas e de bens do espaço ocupado. Por sua vez, a colonialidade se refere a um padrão de poder que funciona e se manifesta pela naturalização de hierarquias raciais, estabelecendo relações de dominação territoriais e epistêmicas, garantindo a exploração de seres humanos racializados e o ofuscamento, a eliminação e o desprezo pelos conhecimentos e as experiências desses sujeitos subalternizados (RESTREPO, 2007).

O artigo constitucional quilombola, artigo 68 do ADCT, representa, dessa maneira, uma pequena fenda na colonialidade ao trazer para a Constituição a experiência de resistência de homens negros e de mulheres negras ao processo de desumanização e de coisificação a que a colonialidade sempre lhes submeteu.

Da mesma forma, o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento de titulação e de identificação das terras quilombolas, baseado, sobretudo, na autoatribuição e na territorialidade, é uma norma decolonial, embora represente ainda obstáculo para a conquista do título das terras ao estabelecer critérios difíceis de serem enfrentados no processo de certificação e de titulação dos territórios quilombolas, que podem, inclusive, significar impedimento da efetivação da garantia.

A ação do Partido Democratas (DEM), a ADI n.º 3239, foi um dos obstáculos enfrentados. Para esse Partido, quilombo é coisa do passado, localizado em um tempo anterior à abolição, cabendo ao saber técnico o aferimento da localização do requerente de terras no passado da resistência à escravidão, com isso, impedindo o acesso de negros e negras às terras em que vivem, ocupam e trabalham.

Ao par disto, podem-se encontrar, nos discursos dos ministros do Supremo Tribunal Federal que participaram do julgamento dessa ação, principalmente quando não vislumbram o artigo 68 do ADCT como um direito fundamental e quando defendem a produção de laudos antropológicos para atestar à ancestralidade negra da comunidade, portanto, adotando o mesmo entendimento do DEM: os quilombos foram uma experiência que findou com o fim do regime escravocrata no Brasil.

A pesquisa que aqui é apresentada procurou enfrentar o problema empírico do obstáculo à regularização das posses quilombolas pela manutenção da semântica colonial na definição do que é quilombo no âmbito da ADI 3239. Para dar curso à pretensão, foi adotada como problemática de pesquisa a seguinte questão: quais os sentidos de quilombo acionados no âmbito da ADI n.º 3239?

Como resposta/pressuposto, partiu-se da assertiva de que foram acionados sentidos de quilombo que expressam colonialidade e decolonialidade e que o sentido decolonial foi ameaçado pela pretensão do proponente com marcas de colonialidade e pelos discursos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, proferidos por ocasião do julgamento da ADI 3239, que expressam visões da colonialidade que, no entanto, foram enfrentadas por relutância coletiva de homens negros e de mulheres negras, através das narrativas de amicus curiae materializadas como resistência decolonial (QUIJANO, 2007).

Com base no problema de pesquisa, foi eleito como objetivo geral: analisar os sentidos de quilombo acionados na ADI 3239. E como objetivos específicos: discutir a transição do conceito de quilombo de crime a direito e identificar as marcas de colonialidade e decolonialidade no âmbito da ADI 3239.

Esta pesquisa buscou associar-se às resistências epistêmicas já trilhadas, tais como: Gisely Bárbara Barreto Santana, em programa de Direito – “Aquilombar-se: panorama histórico, identitário e político do movimento quilombola brasileiro” (dissertação de Mestrado, UNB, 2008); Carlos Alexandre Barboza Plínio dos Santos, em programa de Antropologia – “Quilombo Tapuio (PI): terra de memória e identidade” (dissertação de Mestrado, UNB, 2006); Daniely Monteiro Mendes, em programa de História – “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça; história e memória de Maria Rosalina no movimento quilombola do Piauí (1985-2013)” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2014); Raimunda Ferreira Gomes Coelho, em programa de Educação – “As educações escolar e social na formação da identidade racial de jovens nos quilombos de São João do Piauí” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2013); Simone de Oliveira Matos, em programa de Antropologia – “A terra para além do chão: a construção da territorialidade quilombola em Lagoas do Piauí” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2013); Ranchimit Batista Nunes, em programa de Educação – “Educação, gênero e afrodescendência: a educação escolar e a organização de mulheres quilombolas em Brejão dos Aipins. Piauí” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2013); e Ornela Fortes de Melo, em programa de Antropologia – “O Periperi e a implantação de hidrelétrica no rio Parnaíba– PI: etnografia de um conflito socioambiental” (dissertação de Mestrado, UFPI, 2016).

Esses e outros trabalhos compartilham do processo de resistência, por meio da pesquisa e da produção de conhecimento para enfrentar a condição de invisibilidade a que foram relegadas as comunidades quilombolas. É nesse espaço que este pesquisador se propõe a entrar na militância decolonial. Como diz Nascimento (2016, p. 47): “Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada.”

O tema da pesquisa surgiu com a descoberta, quase mágica e encantadora, do pensamento do grupo modernidade/colonialidade nas aulas da professora Dione Moraes, na disciplina Sociologia da Cultura, ministradas no curso de pós-graduação stricto sensu em Sociologia da Universidade Federal do Piauí. A questão quilombola sempre trouxe fascínio e admiração pelo caráter de resistência coletiva à desumanização de homens negros e de mulheres negras. O novo constitucionalismo latino-americano, por sua vez, chegou por meio da professora e orientadora Sueli Rodrigues, que indicou como leitura o livro coordenado por César Augusto Baldi, “Apreender desde o Sul: Novas constitucionalidades, pluralismo jurídico e plurinacionalidades. Aprendendo desde o Sul”. Foi a partir desses felizes encontros, portanto, que brotou e floresceu o tema deste estudo.

Penetrou-se, então, em uma nova concepção de mundo, em que se percebe nitidamente que ser classificado como negro significa estar sempre em desvantagem, por isso, a necessidade de se organizar coletivamente. Nesse processo, o ar queimou os pulmões, tal como ocorre com o nascituro, provocando lágrimas, mas havia e há disposição para lutar pela vida, e resta a esse novo ser, negro, apenas se aquilombar.

Neste ato de resistência epistêmica decolonial, o espaço metodológico quadripolar auxilia na explicação dos resultados e do próprio processo de produção da pesquisa. Esta perspectiva metodológica considera que o campo da prática científica se encontra articulado em diferentes instâncias ou diferentes polos: o epistemológico, o teórico, o morfológico e o técnico (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991).

No caso do polo epistemológico, que garante a objetivação e que motiva uma “[...] reflexão sobre os princípios, os fundamentos, a validade das ciências” (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991, p. 41), tem-se a racionalidade moderna revisitada e criticada com autores decoloniais que orientam teoricamente esta pesquisa.

Isto é, o pensamento do grupo modernidade/colonialidade servirá como guia para a elaboração dos pressupostos, para a construção dos conceitos e para o questionamento dos próprios princípios da ciência. De acordo com esses pensadores, o colonialismo, além do espólio de exclusão e miséria, deixou o legado epistemológico do eurocentrismo, que impede que os povos colonizados compreendam o mundo a partir de suas vivências e das epistemes que lhes são próprias (PORTO-GONÇALVES, 2005).

O polo morfológico, por sua vez, toma o objeto alocado no sistema do Direito, em função da inclusão do termo quilombo no art. 68 do ADCT da CF/88, e, principalmente, em função da ADI n.º 3239, na qual o conceito de quilombo se encontra em disputa, percebido como campo jurídico (BOURDIEU, 1989), em que agentes disputam narrativas como interpretação do texto normativo.

Em relação ao polo operacional, trabalhou-se com as seguintes técnicas de captação das informações: pesquisa bibliográfica (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991) e pesquisa documental (CELLARD, 2014), tendo-se como técnica de sistematização a análise de conteúdo temática (GOMES, 2016).

Nas pesquisas bibliográfica e documental, as categorias teóricas orientadoras do estudo foram: campo jurídico; habitus; quilombo; quilombismo e quilombagem; modernidade/colonialidade; colonialidade do poder; colonialidade do saber; colonialidade do ser; decolonialidade; raça; e constitucionalismo latino-americano.

Em relação à investigação documental, principalmente no primeiro capítulo, em que se descreve o conceito de quilombo, foram utilizados autores e autoras, sendo basicamente historiadores e historiadoras, de diversas orientações historiográficas, inclusive com diferenças teóricas e metodológicas. A proposta foi apresentar versões e leituras diferentes do fenômeno quilombola. Mattoso (2016, p. 8) pontua que, em relação ao tema da escravidão, há “[...] um emaranhado de temas e de abordagens [...]”, que demandam reflexões que favorecem análises que conduzem a entendimentos de suas estruturas e que permanecem em práticas e concepções atuais.

Para a observação e a coleta dos dados, que são os documentos que compõem a ADI n.º 3239 – petição inicial, manifestações dos amici curiae –, e os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal –, empregou-se a análise de conteúdo temática. Essa técnica parte do entendimento de que a mensagem expressa obrigatoriamente um significado e um sentido e de que a relação que vincula a emissão dessa informação se encontra articulada às condições contextuais de seus produtores (FRANCO, 2012, p. 21).

A análise de conteúdo permite, pois, uma diversificada maneira de analisar os conteúdos de uma mensagem, de um enunciado, de um discurso ou de uma informação, tais como: (a) análise de avaliação ou análise representacional; (b) análise de expressão; (c) análise de enunciação; (d) análise temática (GOMES, 2016).

Na análise de conteúdo, aqui utilizada, sobressai-se o conceito central denominado de tema. O objetivo, nessa espécie de análise, consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a mensagem do texto. Para isso, optou-se por uma unidade de registro em forma de trechos dos textos dos documentos estudados. “Estas unidades se referem aos elementos obtidos através da decomposição da mensagem” (GOMES, 2016, p. 79). Esse autor defende, ainda, a necessidade de que se compreenda o contexto no qual a mensagem foi produzida.

Além das unidades de registro, numa análise de conteúdo de mensagens, faz-se necessário definirmos as unidades de contexto, situando uma referência mais ampla para a comunicação. Em outras palavras, devemos compreender o contexto da qual faz parte a mensagem que estamos analisando. (GOMES, 2016, p. 79).

O contexto em que tais discursos foram proferidos é o campo jurídico, autonomizado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo Partido Democratas e registrada sob o nº 3239, no qual se trava um embate em que um dos lados coloca obstáculos à efetivação da garantia constitucional que possibilita a regularização das terras de pretos com o enegrecimento do solo brasileiro e, do outro, há aqueles que entendem a necessidade de conceder uma parcela maior de terras às comunidades quilombolas. Ou seja, para os primeiros, o Decreto 4.887/2003 é eivado de vícios; para os segundos, a norma regulamentadora é constitucional, e nesses há aqueles que defendem que o artigo constitucional quilombola é de eficácia plena, portanto, “[...] de aplicação imediata, não precisando de lei complementar que o regulamente” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS, 2013, p. 33).

Há, portanto, uma disputa de sentidos do conceito de quilombos, materializada, no caso, na ação direta de inconstitucionalidade 3239. Aqui se defrontam duas visões de mundo antagônicas sobre o fenômeno quilombola.

Mas assim como as pessoas expressem seus pontos de vista falando, elas também escrevem – para fazer relatórios, para planejar, jogar ou se divertir, para estabelecer normas e regras, e para discutir sobre temas controvertidos. Deste modo, os textos, do mesmo modo que as falas, referem-se aos pensamentos, sentimentos, memórias, planos e discussões das pessoas, e algumas vezes nos dizem mais do que os autores imaginam. (BAUER, 2017, p. 189).

Nesse sentido, Franco (2012) destaca que todo autor, em sua mensagem, expõe uma teoria que, por sua vez, orienta sua visão de mundo. Por isso, é possível “[...] através da análise de conteúdo, [...] caminhar na descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos, indo além das aparências do que está sendo comunicado” (GOMES, 2016, 76). Assim, a análise de conteúdo da ADI 3239 possibilitou revelar ou desvelar a concepção das pessoas que iniciaram, ingressaram ou que julgaram aquela ação judicial sobre as comunidades quilombolas.

Para tanto, optou-se por um procedimento metodológico, a partir da perspectiva qualitativa, da análise de conteúdo da ADI 3239, em que se percorreu o seguinte itinerário: (a) escolha das categorias de análise por meio do problema de pesquisa, pressuposto e objetivos;

(b) decomposição de cada um dos documentos que compõem essa ação judicial em partes que expressam a mensagem do autor como ataque ou resistência à garantia constitucional; (c) distribuição dessas partes ou trechos nas categorias; (d) descrição do resultado da categorização; (e) feitura de inferências dos resultados; (f) e interpretação dos resultados obtidos com auxílio da fundamentação teórica adotada (GOMES, 2016).

Aqui se fez uma pequena adaptação ao procedimento metodológico acima descrito, ao acrescentar a fase escolha das categorias de análise, inexistente no esquema do autor. Uma vez que “A codificação, e consequentemente, a classificação dos materiais colhidos na amostra, é uma tarefa de construção, que carrega consigo a teoria e o material de pesquisa” (BAUER, 2017, p. 199). Ou seja, não há como desmontar o texto se não se sabe em quais categorias tais partes serão catalogadas.

Dessa maneira, o primeiro passo é a categorização. As categorias de análise do conteúdo documental foram extraídas e definidas a partir do quadro teórico da modernidade/colonialidade (QUIJANO, 2005), utilizado para compreender o fenômeno quilombola. De acordo com Castro-Gómez (2007, p. 79), há uma “[...] estructura triangular de la colonialidad: la colonialidad del ser; la colonialidade del poder y la colonialidad del saber.” Há, ainda, “[...] la categoria ‘decolonialidad’, utilizada em el sentido de giro decolonial [...]”2 (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 9)

Por sua vez, a seleção das partes e a consequente distribuição nas categorias correspondentes teve orientação da referida teoria. Quijano (2007) alerta que a colonialidade disputa o controle dos seguintes âmbitos da existência social dos indivíduos:

[...] (1) el trabajo y sus produtos; (2) en dependência del anterior, la “naturaleza” y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus produtos y la reproducción de la espécie; (4) la subjetividade y sus produtos materiales e intersubjetivos, incluído el conocimiento; (5) la autoridad y sus instrumentos, de coerción en particular, para assegurar la reproducción de esse patrón de relaciones sociales y regular sus câmbios. 3 (QUIJANO, 2007, p. 96).

Frisa-se que os discursos que expressam “[...] formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção de conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 236) foram alocados, respectivamente, na colonialidade do ser e na colonialidade do saber. Todos os outros se encontram dispostos na coluna referente à colonialidade do poder.

Os documentos judiciais dos quais foram extraídos os trechos que foram categorizados são os documentos produzidos pelo Partido Democratas , pela Procuradoria-Geral da República e pelos amigos da corte, que compõem as duas partes que se opõem na ação. Classificou-se, também, os votos dos ministros do STF na ADI 3239, para identificar como os julgadores se posicionam com relação à demanda.

Uma ação judicial, geralmente, se inicia com um pedido denominado petição inicial, dirigido a um dos órgãos do Poder Judiciário (Art. 319, da Lei 13.105, 2015). Na situação específica, o Partido da Frente Liberal, atual Democratas, deu origem à referida ação. Por se tratar de um pedido de declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, não há um réu especificamente, ou seja, a ação não foi provocada em função de alguém, pessoa física ou jurídica, ter causado um determinado dano, mas o enfrentamento é ao Estado, por meio do ente federal União, representado pelo chefe do Poder Executivo, que assinou o Decreto que é atacado pela ADI referida, portanto, a União é representada pela Advocacia-Geral da União que apresentou a defesa de constitucionalidade do decreto quilombola. Na verdade, não poderia fazê-lo de modo diferente (BASTOS, 1996).

A Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, estabelece, em seu artigo 7°, que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, pode admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades, denominados de amicus curiae (BRANCO; MENDES, 2012). Segundo estes autores, a participação “[...] desses peculiares partícipes [...]” possibilita “[...] que a decisão na ação direta de inconstitucionalidade seja subsidiada por novos argumentos e diferentes alternativas de interpretação da Constituição” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 1250).

Tomando partido do autor, o DEM, pediram para ser aceitos, na qualidade de amici curiae: o Estado de Santa Catarina, a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA) e Sociedade Rural Brasileira.

Por outro lado, em uma evidente oposição às ideias levantadas pelo autor da ação, há os seguintes amici curiae: Instituto Pro Bono Conectas Diretos Humanos, Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHERE), Centro de Justiça Global, o Instituto Socioambiental (ISA), Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (POLIS), Terra de Direitos, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI – Pará), Estado do Pará, Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, Associação dos Quilombos Unidos do Barro Preto e Indaiá, Associação de Moradores Quilombolas de Santana – Quilombo de Santana, Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) e o Clube Palmares de Volta Redonda (CPVR).

Vale aferir que a ADI 3239 é formada por 9 volumes, totalizando 1.600 páginas4. Delimitou-se como empírico para a presente análise, os seguintes documentos: a petição inicial do DEM; a manifestação do Estado de Santa Catarina, primeiro amigo da corte a atacar o Decreto 4.887/2003; a petição de defesa da constitucionalidade do referido Decreto, elaborada em conjunto por COHERE, Centro de Justiça Global e ISA. Esses organismos foram os responsáveis por, primordialmente, requerer o ingresso na ADI para preservar os interesses das comunidades quilombolas; o parecer da Procuradoria-Geral da República e os votos dos ministros Cézar Peluso, Rosa Weber e Dias Toffoli, que foram disponibilizados na rede mundial de computadores, seja na própria página do STF ou em outros locais, com possibilidades de atestar sua veracidade pela autenticação por meio da Infraestrutura da Chave Brasileira (ICP-Brasil).

Excluiu-se o advogado-geral da União, porque não há discricionariedade em sua participação nem mesmo no teor da manifestação, que deve ser no sentido de apresentar elementos que demonstrem a constitucionalidade do ato impugnado (BASTOS, 1996).

Classificados os elementos constitutivos dos documentos, isto é, resumidos após o tratamento analítico (GOMES, 2016), feitas as inferências, seguiu-se com a descrição do resultado da categorização da ADI 3239. Entende-se, porém, que se “[...] fazemos inferência quando deduzimos de maneira lógica algo do conteúdo que está sendo analisado” (GOMES. 2016, p. 81), tal manifestação do intelecto pode ser encontrada em cada uma das etapas descritas pelo autor.

Destaca-se que tal procedimento foi realizado no segundo e no terceiro capítulos. É a dubiedade das falas dos sujeitos que compõe o campo jurídico, autonomizado pela ADI 3239, que orienta a seccionar em dois momentos a análise do conteúdo desses discursos. Essa disposição topográfica talvez facilite a compreensão das categorias-chave desta pesquisa, lembrando que a primeira publicação do grupo modernidade/colonialidade ocorreu há menos de 20 anos (CASTRO-GÓMEZ; GROFOSGUEL, 2007).

Contudo, tais capítulos receberam um tratamento diferenciado, tanto na descrição do resultado da categorização como na interpretação dos resultados obtidos. No segundo capítulo, os dados foram descritos e interpretados em conformidade com as categorias em que foram distribuídos: colonialidade do poder; colonialidade do saber; e colonialidade do ser. O terceiro, por constar com apenas uma operação de classificação, a categoria decolonialidade ou giro decolonial, adota-se um percurso totalmente diverso.

No caso, dialoga-se a decolonialidade com o novo constitucionalismo latino- americano e, principalmente, com o conceito de direitos fundamentais elaborado por Habermas, por acreditar-se que “[...] Todo derecho, su ejercicio, genera condiciones de participación desde donde resistir, desde donde transformar [...]”5 (CONDORI, 2007, p. 471). Entende-se, pois, que a narrativa da resistência quilombola à colonialidade encontra-se alicerçada na lógica dos direitos fundamentais6: “[...] o art. 68 do ADCT reconhece um direito fundamental [...]” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2013, p. 33).

Para validar a escolha deste caminho, seccionou-se os discursos textuais, considerados decoloniais, em três subclasses: o quilombola como igual, pertencente ao pacto de nação com direito a ter direitos; o quilombola com liberdade para ser proprietário; o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais.

Esta classificação baseia-se em Habermas7 (SOUZA NETO) que entende os direitos fundamentais, entre outras coisas, como: direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito – o quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direitos a ter direitos; direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente – o quilombola com liberdade para ser proprietário; e direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos da opinião e da vontade, exercitando sua autonomia política e criando direitos legítimos – o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos fundamentais.

Assim, na coluna referente ao quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos, encontram-se os discursos que erigem o ser quilombola à categoria de pertencente ao pacto da nação. São os discursos textuais que compreendem o artigo 68 do ADCT como direito fundamental e dotado, portanto, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, e aqueles que percebem o Decreto 4.887/2003 como uma norma que possibilita a concretização do artigo constitucional quilombola.

Já na subclasse o quilombola com liberdade para ser proprietário, foram disponibilizados os discursos que defendem o enegrecimento do solo brasileiro, quais sejam: a adoção da autoatribuição como critério identificador das terras quilombolas; a destinação de verbas públicas para aquisição de terras registradas em cartórios de imóveis como particulares.

No último campo, o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais, estão as falas que compreendem a constitucionalidade do critério da autoatribuição. Ou seja, os discursos que compreendem as comunidades quilombolas como expressão do tempo presente.

Esse percurso metodológico permitiu, de forma controlada, um “[...] encontro com os fatos empíricos” (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991, p. 36) que estão imersos na ADI 3239, em um sistema de direito, portanto. Nesta trilha, a teoria da modernidade/colonialidade guia para uma ruptura epistemológica em que a fala dos colonizados pela colonialidade ganha relevo e oportuniza apreender que a ideia de raça fecunda, ainda, relações sociais hierarquizadas, estabelecendo lugares e papéis dos indivíduos na organização social.

Um dos destinos dessa viagem é revisitar a modernidade com outros olhares, outros desejos e outras intenções, possibilitando e valorizando outras visões de mundo. Revisitar a modernidade é questioná-la, indagá-la a ponto de constrangê-la. É perceber que “Nesse universo de vários tipos de saberes, a ciência é apenas uma forma de expressão dessa busca, não exclusiva, não conclusiva e não definitiva de conhecimentos” (MINAYO, 2016, p. 9).

Por isso, aqui, abraçam-se outros sentidos, outras cores, outros cheiros, outros sons. De fato, a perspectiva decolonial representa uma “resistência intelectual” (QUIJANO, 2005,p. 239) que faz ecoar os tambores dos quilombos, ressoando as experiências cotidianas de resistência de homens negros e de mulheres negras.

Trilha-se, portanto, pelas veredas abertas pelo primeiro negro fujão e pela primeira negra fujona que não aceitavam as condições deploráveis a que estavam submetidos. Desejavam vida em abundância nem que para isso fosse necessário flertar com a morte.

Por isso, a dissertação se inicia querendo entender como o fenômeno histórico denominado de quilombo, considerado crime até a edição da Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, adentrou o direito constitucional brasileiro, em 1988, um século depois, como uma experiência garantidora de direitos.

Para tanto, mostra-se como a escravização de homens negros e de mulheres negras era uma prática autorizada pelo Estado, permitida e sancionada, portanto, por lei. O direito considerava-os coisa, semoventes. Esse processo de coisificação autorizava não só a compra e a venda de seres humanos, mas a violência física e psíquica insana contra corpos negros.

Por outro lado, relatam-se os diversos mecanismos pelos quais os negros e as negras resistiram à desumanização, ao aviltamento de suas dignidades, merecendo destaque a formação de quilombos. Mostra-se, por exemplo, que não se trata de um fenômeno exclusivo do sistema escravocrata brasileiro, mas que sua ocorrência se deu em vários países da América Latina.

Porém, limitou-se o estudo às comunidades quilombolas fincadas em solo brasileiro, ressaltando o aspecto de luta contra a coisificação que o escravismo impunha aos negros e às negras, bem como a retomada da humanidade que lhes havia sido tomada e não um simples desejo de liberdade.

É nesse aspecto que se introduz a questão do campesinato negro, embora, aqui, não se trate apenas dos quilombos rurais. Quer-se demonstrar que o povo negro sempre lutou pelo acesso à terra para que pudesse cultivar os seus modos de criar, de fazer e de viver. Ou seja, a terra é expressão da dignidade reconquistada através da organização coletiva de homens negros e de mulheres negras.

Demonstra-se, então, que é nesse processo histórico de resistência e luta pelo enegrecimento do solo brasileiro que homens negros e mulheres negras conseguiram inserir no atual texto constitucional uma norma garantidora da titulação das terras que ocupam com suas roças e com suas moradas: o art. 68 do ADCT.

No segundo capítulo, porém, revela-se como o sistema escravocrata utilizou o direito para desestruturar a resistência negra à escravização e para impedir o enegrecimento do solo brasileiro. Da mesma maneira, mostra-se como a República adotou a mesma postura. Na Constituição de 1891, o art. 17, § 17 determina que o direito de propriedade é mantido, ou protegido, em toda a sua plenitude.

Faz-se, então, nesta parte do texto, um paralelo entre a Lei das Terras e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, proposta pelo Partido da Frente Liberal, atual Democratas, com a finalidade de expurgar do ordenamento jurídico brasileiro o Decreto 4.887/2003, procurando-se demonstrar que tanto a ADI 3239 como o referido decreto possuem o mesmo objetivo: evitar, ao máximo possível, o enegrecimento de terras públicas e particulares.

A proposta, aqui, é mostrar que a ADI 3239 emerge da colonialidade que inferioriza a pessoa negra na hierarquização eurocêntrica, e que se legitima pela naturalização da suposta supremacia branca com a subalternização, no caso, de homens negros e de mulheres negras. É nesta parte da dissertação que se analisa o conteúdo das falas da ADI 3239 que expressam a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser.

Definiu-se como discursos textuais que manifestam a colonialidade do poder aquelas que procuram manter um rígido controle sobre quem deve ter acesso à terra e, caso o tenha, a quantidade que se encontra disponível, bem como o quantum de capital destinado a financiar a aquisição de terras privadas. Resumidamente, anunciam a colonialidade do poder quando “[...] articuladas bajo el domínio de capital y en su beneficio” 8 (QUIJANO, 2007, p. 122).

Do mesmo modo, as mensagens discursivas que defendem que o Decreto 4.887/2003 encontra-se viciado denotam a colonialidade do poder, visto que pretendem excluir do ordenamento jurídico brasileiro uma norma que atende, a princípio, aos interesses dos quilombolas expressam a colonialidade do poder. Ou seja, o Direito, como meio de assegurar as relações sociais e suas transformações, deve espelhar, antes de tudo, a visão do mundo dos brancos.

Por outro lado, os discursos que exprimem o controle da subjetividade dos indivíduos que compõem os quilombos, principalmente quando questionam a autoatribuição como modo de definir quem é quilombola ou a territorialidade como meio de medição e demarcação das terras destinada à comunidade negra, denotam a colonialidade do ser. Nessas categorias, incluem-se as falas que subtendem que os negros e as negras são violadores e violadoras contumazes das leis, em uma indicação de inferiorização do ser negro.

Por sua vez, os discursos que entendem a necessidade de produção de laudos antropológicos, para dizer quem é um quilombola ou para atestar a autoidentidade de quem se afirma um morador de quilombo, vislumbram a colonialidade do saber. Encontram-se classificados nesta categoria os discursos textuais que fazem menção à visão de mundo centrada em ideias eurocêntricas.

Neste capítulo, aborda-se, portanto, a colonialidade. Por isso, aqui se utiliza a palavra escravo e não a expressão escravizado e/ou escravizada, que denota uma situação, algo circunstancial, e não uma condição ontológica. Não se pode esquecer que, para a colonialidade, os negros e as negras não são dignos e dignas do pagamento de salários (QUIJANO, 2005).

No entanto, negros e negras resistiram ao colonialismo que os submetia a longas jornadas de trabalho e a sevícias físicas e morais. Da mesma forma, contrapõem-se à colonialidade que ousa lhes definir papéis e lugares sociais a partir de uma suposta inferioridade natural. Em ambas as situações, que guardam certa similitude, homens negros e mulheres negras ergueram comunidades quilombolas como instrumento de afirmação de suas humanidades.

Os capítulos, pois, entrelaçam-se em um movimento ondulatório que parece a repetição de uma coisa anteriormente descrita, fincada na história: colonialismo e resistência negra. No entanto, há um outro liame, colonialidade e resistência, da mesma gênese que a anterior, mas que ainda define a situação da comunidade negra. É essa relação que dá a falsa impressão de que se está relatando o mesmo fato.

Assim, as categorias quilombismo, de Abdias Nascimento, e quilombagem, de Clóvis Moura, aparecem nesta seção para, no plano teórico, sustentar que as comunidades quilombolas continuam, em pleno século XXI, sendo erguidas.

Esta seção segue, pois, por esses processos de resistência à colonialidade, aqui denominados de decolonialidade ou de giro decolonial. Inicia-se, portanto, apresentando tais categorias. O objetivo é instrumentalizar o olhar para perceber quais as falas, mesmo imersas em contradições, que indicam, principalmente, o pensamento favorável ao enegrecimento do solo brasileiro. O novo constitucionalismo latino-americano auxilia, também, no procedimento de coleta de dados decoloniais.

Esta dissertação se ocupa do conceito decolonial de quilombo, como se afirmou anteriormente, materializado no critério da autoatribuição, da territorialidade como aspecto identificador das terras negras e da compreensão, estampada no voto da ministra Rosa Weber, que o art. 68 do ADCT possui eficácia plena e guarda em si um direito fundamental das comunidades quilombolas.

A ADI 3239 se apresenta, e é isto que se pretende demonstrar, como um momento ou local ímpar para compreender e observar como a colonialidade e o giro decolonial se defrontam para impor suas visões de mundo sobre o fenômeno quilombola.


1. QUILOMBO: DE CRIME A DIREITO

A maior parte da narrativa sobre os quilombos encontra-se em documentos oficiais do Brasil Colônia e Imperial, nominando os quilombolas de assassinos, de salteadores, de criminosos sanguinolentos. Não se sabe, porém, como os membros dessas comunidades se autodenominavam (FREITAS, 1983; GOMES, 2015).

Em resposta a um questionamento do Conselho Ultramarino, a Coroa Portuguesa apresentou, no ano de 1740, um conceito que, para muitos, ainda hoje, resume o fenômeno quilombola: habitação de negros fugidos (SOUZA, 2012). Quilombo era crime, e como tal deveria ser tratado. Era a narrativa dos colonizadores.

A República, por sua vez, considerava apenas como cidadão, na acepção de eleitor, quem sabia ler e escrever (Art. 70, § 1º, II, da Constituição de 1891). A maioria dos negros e das negras era analfabeta, sem teto, sem emprego, sem educação, sem terra (CARVALHO, 2012). Foi se afirmando uma narrativa de que não há racismo no Brasil e aqui todos têm oportunidades iguais. É o mito da democracia racial (SILVA, 2016). É a narrativa da República.

Na Constituição de 1988, quilombo passa a ter um novo significado, migrando dos códigos de posturas municipais e de leis criminais para uma norma que garante direitos. Ou seja, as comunidades quilombolas, agora, expressam algo que o Estado não percebe como inimigo, pelo menos em sua expressão positivada no Direito, adotando no texto constitucional uma perspectiva dos colonizados, principalmente de negros e de negras para quem quilombo sempre foi resistência a um sistema opressor.

Essa opressão se materializa na desumanização do ser pela escravização de homens negros e de mulheres negras e por tê-los em índices oficiais que comprovam: “[...] é a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados, os menores salários, os piores índices de ascensão social” (CARVALHO, 2012, p. 52).

Ladeira da Gamboa

Há uma rua que eu conheço Rua Barão da Gamboa

tem uma ladeira de lado com o mesmo nome da rua nenhum barão mora lá mas, porém, gente que sua gente que sobe que desce gente que vai para a vida

gente que dela vem

não há meio de dizer-se na ladeira ninguém vem

você mesmo não se aguenta pois a ladeira é um vaivém parece mesmo com a vida tem subida tem descida Barão não

Poesia mesmo à toa

tem lama poeira buracos tudo o que a vida possui mas polícia não tem não polícia lá não influi

que a vida não tem polícia a vida é mesmo um vaivém igualmente esta ladeira

dá na gente uma canseira tem subida tem descida tem mais que tudo canseira igualmente esta ladeira

da Rua Barão da Gamboa. Que boa

Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa. (LIMA, 2016, p. 45-46).

É a partir do trabalho escravo e do comércio de seres humanos, inicialmente os indígenas, os negros da terra (FERREIRA; FRANÇA, 2012), e depois por meio do labor de mulheres negras africanas e de homens negros africanos e de afrodescendentes que o Brasil foi edificado. O longo tempo do regime escravocrata em terras brasileiras e as condições em que vive a maior parte da população negra apontam passividade, crasso engano. Nenhum desses grupos tolerou ou aceita passivamente a sua desumanização. Onde há desumanização, há quilombos.

O presente capítulo discute a escravização de povos africanos como uma espécie de criminalização da existência para usurpação de territórios, riquezas e apropriação da força de trabalho pelo domínio de corpos com a intenção de destruição de culturas para eliminar os obstáculos às pretensões do colonizador escravocrata.

O itinerário discursivo vai da abordagem da escravização africana como estratégia política de instauração da modernidade como seu par oculto, como projeto com pretensões genocidas de povos africanos e da América Latina; as resistências ao projeto e a discussão sobre o pós-abolição como continuação do projeto de escravização.

1.1. A escravização dos povos negros-africanos: a criminalização da existência como castigo

As pessoas que foram raptadas de suas moradias e trazidas ao Brasil para trabalharem compulsoriamente haviam nascido em regiões díspares, com organização social diferente uma da outra, com valores e tradições culturais peculiares:

Eram provenientes tanto de microssociedades com chefias descentralizadas da Alta Guiné e da Senegâmbia como de impérios e reinos do Daomé, Ndongo, Ketu, Matamba e outros: ou de cidades como Uidá e Luanda, nas áreas ocidentais e centrais africanas, entre savanas e florestas. (GOMES, 2015, p. 8).

Não havia uma África, mas várias. O olhar do colonizador não conseguia perceber as diferenças, os cheiros, os hábitos alimentares, as religiões, as danças. “De origens múltiplas, todos eles foram transformados – na visão dos europeus – em africanos, como se houvesse homogeneidade para inúmeros povos, línguas, culturas e religiões” (GOMES, 2015, p. 8).

Não queriam e não havia interesse em compreender essa heterogeneidade, porque crianças, jovens, homens e mulheres significavam apenas mercadoria, coisa, carne humana que seria colocada à venda. “Entre os escravizados havia reis, príncipes, rainhas, guerreiros, princesas, sacerdotes, artistas e um sem-número de agricultores, mercadores urbanos, conhecedores da metalurgia e do pastoreio” (GOMES, 2015, p. 8).

Essas pessoas tinham história própria, com conhecimentos e técnicas específicas, como agricultura, bovinocultura e destreza manual na confecção de peças em barro, couro e ferro, mas, sobretudo, cada um carregava sonhos, esperanças, frustrações, alegria, desprezo, raiva, ódio, rancor, ciúmes. Eram mães, pais, filhos, filhas, esposas, maridos, genros, noras, irmãos, irmãs, vizinhas, vizinhos, inimigos, inimigas, amantes. Todas essas relações foram violentamente desfeitas.

Trazidos à força de diferentes partes da África, falantes de dezenas de línguas, mas genericamente classificados de “boçais” ao desembarcar, os africanos tinham lugar na hierarquia da sociedade colonial. Quando recém- chegados, estavam no degrau mais baixo da escala social; [...]. (MAMIGONIAN, 2017, p. 17).

É a partir desse degrau mais baixo, em que foram jogados estes seres humanos, capturados como se fossem animais não humanos e comercializados em mercados nos quais se vendia e comprava carne humana, que se edificou a nova colônia portuguesa.

Segundo a cronologia desenvolvida por Moura (1992), a colonização do Brasil pelos portugueses é simultânea ao surgimento da raça negra por estas bandas, não sendo possível dissociar um fenômeno do outro. É a farta mão de obra negra africana e de seus descendentes que possibilitará ao colonizador gerir o sistema escravista voltado para a produção de bens que atendiam a interesses do mercado externo.

Por volta de 1530, os africanos trazidos sobre correntes, já aparecem exercendo seu papel de “força de trabalho”; em 1535 o comércio escravo para o Brasil estava regularmente constituído e organizado, e rapidamente aumentaria em proporções enormes. (NASCIMENTO, 2016, p. 57).

Esse tráfico intenso de seres humanos para a nova colônia supera a cifra de milhões de pessoas, não sendo possível apontar qual o número que mais se aproxima da realidade, uma vez que os documentos históricos e os arquivos relacionados à escravidão foram destruídos (NASCIMENTO, 2016).

Mattoso (2016) assevera que, no período de 1502 a 1860, cerca de nove milhões e quinhentos mil africanas e africanos foram deslocados para América, sendo que o Brasil recebeu a maior parte deles. Segundo Moura9, há quem estime em quinze milhões a quantidade de pessoas que foram arrancadas da África e trazidas forçosamente para estas terras. Para esse autor, no entanto,

O número exato de negros entrados no Brasil durante todo o período escravista não está definitivamente esclarecido e não acreditamos, mesmo, que isso venha a acontecer. Não apenas pelas deficiências das estatísticas, mas, especialmente, pela existência do contrabando negreiro, fato que levava a se ter uma visão minimizada das reais proporções dessa população. (MATTOSO, 1993, p. 6).

A destruição dos documentos históricos e dos arquivos relacionados à escravidão e ao contrabando negreiro, após a proibição do tráfico, em 1830, fragiliza os números apresentados por pesquisadores e pesquisadoras em relação à quantidade de seres humanos que foram arrancados da África para o Brasil, no período de 1549 a 1888. “Mas o certo é que quase 40% do total de africanos retirados do Continente Negro durante a existência do tráfico foram desembarcados no Brasil” (MOURA, 1992, p. 10).

De acordo com Nascimento (2016), o comércio escravo África-Brasil foi facilitado pela proximidade do continente africano à costa brasileira, reduzindo significativamente o preço dessa “mercadoria”, no caso, corpos de crianças, de jovens, de mulheres e de homens negros. Por isso, os proprietários de seres humanos escravizados preferiam a substituição de um negro por outro a alimentá-lo, a vesti-lo de forma a resguardar sua integridade física.

O fato de que a população escrava brasileira tivesse uma taxa de mortalidade bem superior à de natalidade indica que as condições de vida da mesma deviam ser extremamente precárias. O regime alimentar da massa escrava ocupada nas plantações açucareiras era particularmente deficiente. (FURTADO, 2017, p. 175).

Esse imenso contingente de negros e de negras foi responsável pela ocupação de praticamente todo o território brasileiro, iniciando pelo Nordeste e pelo Rio de Janeiro, depois se concentrando nas regiões das Minas Gerais, e, por fim, no estado de São Paulo. Essa distribuição de pessoas escravizadas negras ao longo de todo o país é um diferencial do escravismo brasileiro das demais regiões da América Latina.

Ao contrário de outras regiões da América do Sul, como Peru e Colômbia, onde o escravo negro ficou circunscrito a áreas determinadas, regionalizando-se o sistema escravista, aqui fincou pé a escravidão em toda a extensão territorial do que hoje constituiu a nação brasileira, marcando a existência de um modo de produção específico, no caso particular, o escravismo moderno. (MOURA, 1993, p. 5-6).

Como se pode notar, o sistema escravista no Brasil não ficou restrito a uma determinada região. Na busca incessante por lucros e riqueza, havia o deslocamento constante de negros e de negras escravizadas, seguindo a rota dos interesses da economia colonial.

Não há, portanto, nenhuma região do país que não tenha conhecido a escravidão. Para Moura (1993), essa ocupação quase uniforme do espaço geográfico brasileiro por essas almas e corpos negros possibilitou que o sistema escravista durasse por quase quatrocentos anos: “Isso porque esses escravos foram distribuídos de acordo com os interesses da economia colonial, na medida em que se desenvolviam as economias regionais, subordinadas às necessidades do mercado externo.” (MOURA, 1993, p. 8).

Essa capacidade de o tráfico negreiro adaptar-se às exigências de um mercado sedento por mão de obra escravizada deslocar-se-ia do litoral para o interior de um país de dimensão continental, “[...] mutação essencial que transformaria o mercado de escravos [...], sempre maleável, capaz de adaptar-se às novas necessidades” (MATTOSO, 2016, p. 77).

Assim, é a indústria açucareira, instalada nas regiões de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro que motivou a importação de seres humanos escravizados, nos séculos XVI e XVII, enquanto que, no século XVIII, a mineração foi a responsável pelo aumento da demanda de mão de obra escravizada. Já no século XIX, a cafeicultura impulsionou o tráfico negreiro, considerado ilícito desde 1830. Porém, o tráfico não ficou restrito apenas a esses ciclos econômicos, pois “Outros escravos eram comprados para a cultura do algodão e do arroz, para a colheita de especiarias ou serviam como domésticos, de trabalhadores alugados pelos senhores, ou mesmo como artesão.” (MATTOSO, 2016, p. 46).

Carvalho (2012) lembra que a criação do gado foi uma atividade importante desde o início da colonização, desenvolvendo-se principalmente no interior do país, gravitando em torno da grande propriedade agrícola.

Furtado, por sua vez, diz que a escravidão representou, desde a instalação do processo de colonização, “[...] uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra” (FURTADO, 2017, p. 76). Independentemente da atividade econômica, o trabalho era exercido por seres humanos escravizados: no início, os indígenas, denominados de negros da terra; depois, as negras e os negros africanos e seus descendentes.

A mão de obra indígena escravizada foi extremamente importante na etapa inicial da instalação da Colônia, sendo que “[...] a mão de obra africana chegou para a expansão da empresa, que já estava instalada” (FURTADO, 2017, p. 77). Conforme o próprio Furtado (2017, p. 84), houve, posteriormente, apenas a substituição de “[...] um escravo menos eficiente e de recrutamento mais incerto” por outro, no caso, crianças, jovens, mulheres e homens africanos.

Nas palavras de Lago (2014, p. 30),

Apesar de algumas plantações de açúcar terem sido iniciadas exclusivamente com base na mão de obra indígena, por uma série de razões esta se revelava pouco apropriada para o trabalho no campo em turmas. A solução definitiva adotada para garantir uma oferta regular de mão de obra baseou-se na experiência prévia dos portugueses na produção de açúcar com trabalho escravo africano nas ilhas atlânticas de Madeira e São Tomé, e foi em boa parte possível graças à existência de feitorias portuguesas na costa ocidental da África, onde era fácil o acesso a escravos. Com um volume suficiente de capital mercantil disponível, tornou-se praticável importar escravos africanos para o Brasil em quantidade significativa.

A colônia, à vista disso, foi edificada por seres humanos escravizados. Moura ressalta que a colonização portuguesa em terras brasileiras subjugou, inicialmente, os indígenas, primitivos habitantes e impediu “[...] o desenvolvimento autônomo dessas culturas” (MOURA, 2014, p. 76).

Negros, negras e indígenas foram tratados como mercadorias, como coisa, todavia, o comércio de corpos negros e de negras africanas mostrou-se muito mais rentável. “A burguesia comercial auferia lucros elevadíssimos do comércio de carne humana” (MOURA, 2014, p. 85). Com a escravidão negra, obtém-se lucro na compra, na venda e no aluguel. Conforme Holanda (2014), a fundação do Banco do Brasil, em 1851, está relacionada ao aproveitamento dos recursos obtidos com o tráfico negreiro.

Essa extinção de um comércio que constituíra a origem de algumas das maiores e mais sólidas fortunas brasileiras do tempo deveria forçosamente deixar em disponibilidade os capitais até então comprometidos na importação de negros. [...] A própria fundação do Banco do Brasil de 1851 está, segundo parece, relacionada com um plano deliberado de aproveitamento de tais recursos na organização de um grande instituto de crédito. (HOLANDA, 2014, p. 89).

Ao mesmo tempo em que o comércio de seres humanos gerava muito lucro, tornando- se “[...] a principal riqueza do continente negro, depois do ouro, das especiarias e do marfim” (MATTOSO, 2016, p. 40), a força humana de negros e de negras era utilizada ao extremo. É a mão de obra negra escravizada que produzirá alimentos e que será empregada em qualquer atividade lucrativa da Colônia e do Império. São essas pessoas que cumprirão as tarefas consideradas degradantes, menos nobres, aquelas tratadas como trabalho sujo: “Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os negros jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como sua geração.” (HOLANDA, 2014, p. 66, grifo no original).

Havia, também, os negros de ganho (HOLANDA, 2014), ou escravo ao ganho (SILVA, 1988), que trabalhavam em benefício de seus senhores que, dessa maneira, auferiam remuneração sem nada fazer, sem sujar as mãos ou manchar sua honra. “Assim, qualquer pessoa com fumaças de nobreza podia alcançar proveitos derivados dos trabalhos mais humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos” (HOLANDA, 2014, p. 69).

Lima (2005), em seu livro “Braço Forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí (1822-1871)”, revela que mãos negras foram utilizadas na construção de prédios públicos nas novas cidades.

As trabalhadoras viajaram de barco, saindo do porto de São Francisco, na companhia do mestre-de-obras, trabalhadores livres, ferramentas, utensílios e ‘“de alguns negros das fazendas”’. Outros trabalhadores escravizados, também pertencentes às fazendas, seguiam a pé, conduzindo os bois de carro que seriam ocupados na construção do marco da nova vila, a matriz de Nossa Senhora do Amparo. (LIMA, 2005, p. 88).

Embora o trabalho citado refira-se particularmente aos “escravos da nação”, pode-se deduzir, sem nenhum esforço, que durante o período em que vigeu o sistema escravocrata no Brasil, os negros e as negras escravizados participaram efetivamente das obras de construção, de reforma dos imóveis públicos. Nessas atividades, Silva (2014) lembra que os escravizados e as escravizadas executavam um penoso fardo, como carregar madeira, pedras, com alimentação precária e insuficiente.

Embora concentrados nas áreas de grande agricultura exportadora, podiam encontrar- se escravizados e escravizadas em todas as atividades, inclusive naquelas desenvolvidas nas áreas urbanas (CARVALHO, 2012). Este autor traz um resumo das tarefas exercidas por crianças, jovens, mulheres e homens negros escravizados:

Nas cidades, eles exerciam tarefas dentro das casas e na rua. Nas casas, as escravas faziam o serviço doméstico, amamentavam os filhos das sinhás, satisfaziam a concupiscência dos senhores. Os filhos dos escravos faziam pequenos trabalhos e serviam de montaria nos brinquedos dos sinhozinhos. Na rua, trabalhavam para os senhores ou eram por eles alugados. Em muitos casos, eram a única fonte de renda de viúvas. Trabalhavam de carregadores, vendedores, artesão, barbeiros, prostitutas. Alguns eram alugados para mendigar. (CARVALHO, 2012, p. 20).

Portanto, os negros e as negras foram essenciais para o começo da história econômica brasileira. “As necessidades variavam, porém, a mão de obra durante quase três séculos e meio era a mesma. Era o negro lavrador, minerador, doméstico, boiadeiro” (SILVA, 1988, p. 53). Foi, então, uma imensa massa escrava que impulsionou a economia brasileira, esmagando quase por completo o trabalho livre que existia antes da introdução do regime escravocrata, tornando o trabalho manual em infamante, devendo ser somente praticado por pessoas escravizadas (MOURA, 2014).

Sem o trabalho escravo, a estrutura econômica do país não teria existido (NASCIMENTO, 2016). Contudo, tal riqueza foi construída sob o signo de uma violência extrema, cruel, infame, desumana. “Punia-se o roubo, a fuga, a embriaguez, a preguiça” (COSTA, 2010, p. 333). Tudo era motivo para punição.

Nascimento (2016) destaca que se construiu o mito de que a escravidão na América Latina foi mais branda que aquelas existentes nas colônias inglesas na América. Por aqui, o escravo era fiel e obediente; o senhor, benevolente e amigo dos escravos. Para Costa (2010), a ideia romântica da suavidade da escravidão no Brasil foi orquestrada pela própria sociedade escravista. Para Silva (1988, p. 25),

Esta visão baseou-se nas fontes do século XIX, de viajantes americanos e ingleses recém-saídos da hospitalidade dos fazendeiros brasileiros proprietários de escravos e reproduziu-se, sem analisar o discurso do dominador, implícito nos sermões sobre a escravidão, nas listas de entradas de escravos no Brasil, nos relatórios policiais, nos relatórios dos governos coloniais, nas listas de mercadores negreiros.

Não é impossível que mesmo no sistema escravista, em algumas pontuais situações, o antagonismo existente entre o senhor e o ser humano escravizado tenha se diluído, abrandado, “[...] mas a instituição escravista propiciava os excessos, os crimes, a espoliação de um grupo pelo outro” (COSTA, 2010, p. 327).

O escravismo é um sistema hierárquico de produção, e seus aspectos específicos são esclarecidos por referência ao sistema. Em particular, como qualquer sistema hierárquico, ele tem contidos nele loci de violência e de opressão que estarão eventualmente situados em pontos diferentes em diferentes sociedades, mas não poderão deixar de existir. (CUNHA, 1985, p. 17).

A exceção, o bom trato às pessoas escravizadas, apenas realça a regra: o sistema escravista é violento. “Mas uma sociedade que aceitava como medida imprescindível a aplicação dos castigos corporais para manutenção da ordem era fácil chegar aos excessos criminosos cometidos por inúmeros deles” (COSTA, 2010, p. 332).

A violência era tamanha que a média de vida útil de um ser humano escravizado no Brasil não ultrapassava sete anos (MOURA, 1993). As punições, os castigos que os senhores aplicavam quando as negras e os negros escravizados se rebelavam contra as deprimentes condições de vida e de trabalho a que estavam submetidos, eram extremamente cruéis, sórdidos.

Deformações físicas resultantes de excesso de trabalho pesado; aleijões corporais consequentes de punições e tortura, às vezes de efeito mortal para o escravo – eis algumas das características básicas da “benevolência” brasileira para com a gente africana. (NASCIMENTO, 2016, p. 69).

A crueldade na aplicação de tais castigos não deve ser considerada um simples desvio psicológico do senhor, uma patologia psíquica, mas uma prática inerente, própria do sistema escravista no qual o trabalho é resultante de uma imposição, “[...] o grupo dominante vê-se frequentemente obrigado a recorrer à violência física, quando queira alcançar seus desígnios” (COSTA, 2010, p. 329). Nessa mesma linha de pensamento, Silva (1988, p. 29),

A violência continua institucionalizada, e inerente ao sistema e mesmo um senhor patriarcal e paternalista devia obrigatoriamente exercê-la, quando chegasse o caso. A manutenção da escravidão não pode em nenhum caso prescindir da violência, e tampouco de um controle e vigilância estrito do escravo. Se este aceita as normas de conduta estabelecidas e socialmente aceitas, ele pode beneficiar-se do paternalismo.

Não existe, pois, escravização sem violência. No entanto, legalmente, o senhor não possuía o direito de vida e morte sobre os escravizados, pois havia autorização legal apenas para infligir castigos moderados. Porém, Costa sugere que se tratava apenas de uma garantia formal, principalmente nas fazendas distantes das cidades.

O negro das fazendas era tratado mais brutalmente do que o da cidade, onde era mais fácil o controle das arbitrariedades, embora a proteção da justiça fosse, nos primeiros tempos, muito mais teórica do que prática. A situação agrava-se nas regiões mais distantes subtraídas à ação da lei. No isolamento das fazendas, o proprietário exercia, sem controle, um ilimitado poder. (COSTA, 2010, p. 331).

Havia, apenas, a gradação da violência praticada contra as pessoas escravizadas: na zona urbana, os negros e as negras eram violentados, porém, aparentemente de forma mais branda, uma vez que estavam sob proteção dos aparelhos do Poder Judiciário. Porém,

A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados. (CARVALHO, 2012, p. 21).

Se a lei considerava ilícito o uso da violência física, restringia-se aos excessos (COSTA, 2010), pois era lugar-comum entre os donos de seres humanos escravizados a necessidade da aplicação de corretivos, isto “[...] numa época em que os castigos corporais ainda se achavam incorporados à educação – como meio eficaz – adotados em escola de renomada [...]” (COSTA, 2010, p. 330).

A proteção legal esbarrava na realidade. De um lado, estava o senhor, dono de imensas propriedades; do outro, um ser humano escravizado, que a própria lei o considerava como coisa. “Frequentemente, em vez de conflito entre as autoridades e os grandes proprietários, havia entre eles conluio, dependência mútua” (CARVALHO, 2012, p. 22).

A própria lei estabelecia limitações processuais aos negros e às negras vítimas do abuso do senhor. Ao escravizado, não era permitido queixar-se do proprietário pessoalmente, devia fazê-lo por qualquer do povo ou pelo promotor público. E o mais grave: os demais colegas de senzala eram impedidos legalmente de testemunhar em juízo as atrocidades que porventura presenciassem (COSTA, 2010).

A autora afirma que essas restrições foram sendo modificadas por força das reivindicações abolicionistas, sendo que tais alterações ocorreram de forma mais perceptível nas cidades do que nas fazendas. Nestas, os feitores executavam os castigos de acordo com a vontade do senhor: “O escravo raramente tinha a quem apelar. Seu sofrimento, seu aviltamento, as torturas a que era submetido, preso ao tronco, açoitado, seviciado pela brutalidade dos castigos, ocorriam distantes, longes da ação da justiça” (COSTA, 2010, p. 332).

Os escravizados não tinham a quem recorrer para evitar as torturas perpetradas pelos feitores a mando dos senhores. Na fazenda, o senhor era o proprietário, o legislador, o magistrado e o próprio tribunal a quem o escravizado deveria apelar.

A imaginação dos escravizadores na criação de instrumentos de tortura era extremamente fértil, não encontrando limite ético ou legal. De acordo com Costa (2010), os castigos mais utilizados foram: o chicote, a palmatória, o tronco, as argolas de ferro, as algemas, os anjinhos, a máscara de latão e o aprisionamento.

A tortura não pretendia apenas infligir dor, sofrimento, mas envergonhar o escravizado diante dos seus, extrair-lhe por inteiro a dignidade humana, demonstrar que a propriedade sobre o seu corpo era praticamente plena: usar, gozar e dispor da forma que lhe melhor conviesse.

Tão frequente nas senzalas, quanto o do açoite e da palmatória, foi o uso dos troncos. Seu objetivo era imobilizar o escravo. Obrigava a posições mais ou menos forçada, torturava-o pelo cansaço, pela impossibilidade de se defender dos insetos que o atacavam, pelo desgaste físico e moral. (COSTA, 2010, p. 335).

Todas as torturas, os castigos objetivam desgastar física e moralmente o ser humano escravizado. Como as marcas do aviltamento moral não são perceptíveis, facilmente marcava- se o escravizado com ferro em brasa como se fosse um bicho, um animal irracional, sem nenhum valor como ser humano, apenas uma coisa, mercadoria que se aliena.

Nesse universo de horrores, em que a torturava imperava, nenhum ser humano escravizado encontrava-se isento de severas penas corporais. As crianças não estavam salvas da selvageria do regime escravocrata. Ao contrário, eram as principais vítimas das condições subumanas a que estavam submetidas.

O tratamento descuidado e os abusos de que eram vítimas provocaram uma alta taxa de mortalidade infantil entre a população escrava. No Rio de Janeiro, cidade onde teoricamente os escravos desfrutavam melhor tratamento do que em qualquer outra parte do país, a mortalidade infantil se elevava a uma taxa de 88%. (NASCIMENTO, 2016, p. 70).

As crianças que sobreviviam enfrentavam uma vida de angústia, de dor, de sofrimento, de negação da sua própria qualidade de ser humano, de coisificação de seus irmãos, de seu pai e de sua mãe.

Nascimento (2016) denuncia que era comum a manutenção de negras africanas em prostituição como meio de renda de senhores e sinhás. A mulata, a mulher negra miscigenada, segundo esse autor, quase sempre era oriunda de estupro sofrido pela mulher africana, cometido pelo homem branco, dono das terras ou da habitação em que ela residia. Em relação aos idosos, o relato do autor é extremamente elucidativo:

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado – aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, à própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres”. Não passava, a liberdade sob tais condições, de pura e simples forma de legalizado assassínio coletivo. (NASCIMENTO, 2016, p. 79).

Essa mesma sorte era destinada aos enfermos incuráveis, aos inválidos, aos quais era concedida a liberdade sem nenhuma assistência médica ou social. Porém, a violação não era dirigida apenas aos corpos dos negros e das negras africanas e de seus descendentes, havia uma “agressão espiritual” (NASCIMENTO, 2016, p. 123) por meio do batismo a que eram submetidos ainda no continente africano.

Isso tudo porque, proibindo o embarque de escravos não batizados, os portugueses organizavam batismos em grupo ou, em substituição da cerimônia, o padre se contentava em dar ao cativo um nome cristão colocando um pouco de sal na língua do cativo. (MATTOSO, 2016, p. 66).

O batismo era repetido nos portos ou nas plantações, antes que esses seres humanos escravizados iniciassem suas tarefas nas plantações em uma jornada de trabalho que geralmente ultrapassava 12 horas (MATTOSO, 2016). Talvez o escravizado não entendesse o rito, muito menos a que se destinava. O certo é que não havia crença, nem a sua nem a do seu torturador, que evitasse as sevícias, as humilhações que a partir daí receberia cotidianamente.

Castigos cruéis, jornadas de trabalho extenuantes, alimentação precária e condições de habitação deploráveis, esses elementos se entrecruzavam, entrelaçavam-se em uma dança fúnebre que durava sete anos. No entanto, aqueles seres humanos nascidos africanos ou descendentes de africano, teimosamente, cultivavam em seus corpos negros algo de humano.

De fato, o corpo negro guardava em si esta ambiguidade: mercadoria para colonizador; mediador da resistência para o ser escravizado. Por isso, as mutilações aos escravizados e às escravizadas desobedientes eram contumazes: amputavam-se pés, cortavam-se orelhas, esmagavam-se dedos (MATTOSO, 2016). O corpo expressava os vestígios do delito e da luta pela sua reumanização.

A tensão existencial do escravo reside exatamente na contradição entre pessoa e coisa. É possível tentar coisificar uma pessoa, mas é impossível levar esta coisificação ao ponto final. Restará sempre um cerne indestrutível. Um indestrutível átomo de humanidade. E é justamente esta chama de humano que aquece a rebeldia essencial. (RISÉRIO, 2012, p. 326).

E por guardar esse facho de humanidade em si que negras e negros escravizados resistiram ao sistema escravocrata que os considerava e os tratava como coisa. E mais do que isso: produziram a própria libertação (SILVA, 2016) em uma história lenta, envolta em dores, fugas, mortes, suicídios e quilombos.

1.2. A Resistência Individual e Coletiva do Povo Negro

A reação do povo negro ao sistema servil decorreu de sua situação de escravo, da sua desumanização, da sua transformação em coisa, em mercadoria (MOURA, 2014). Essa resistência deu-se de forma individual ou em grupo e se expressou de maneira bastante diversificada: a morosidade na execução das tarefas, preguiça – desamor ao trabalho –,insurreições, roubos, furtos, rebeliões, lesões corporais, homicídios, tentativas de homicídios e fugas (COSTA, 2014).

Qualquer enumeração, por mais exaustiva que seja, não consegue descrever todos os métodos, os meios e as manhas pelos quais os africanos, as africanas e os afrodescendentes resistiram à escravização. “Forjavam-se de modo complexo e multifacetado, uma vez que homens e mulheres escravizadas agenciavam sua vida com lógicas próprias entre experiências sociais concretas em cada sociedade” (GOMES, 2006, p. 8).

Costa (2014), historiadora piauiense, afirma que a fuga de escravizados e escravizadas foi a mais conhecida e habitual forma de resistência no Brasil escravista. A fuga representou uma maneira de contestar um sistema que se baseava na mão de obra servil. O escravizado fujão ou a escravizada fujona reclamavam o direito de ser humano, de gozar de liberdade.

Os escravos [...] foram reduzidos à condição de coisa, isto é, alguém que possuía apenas ‘“consciência passiva”’ da situação em que se encontrava, e cuja ação refletia os desígnios dos senhores. A ‘“socialização parcial”’ e o controle estrito de seu comportamento, que se impunham como requisitos para a persistência das relações de dominação-subordinação na ordem escravocrata, destruíam nos escravos os atributos de pessoa humana. (CARDOSO, 2011, p. 307).

Se a lei considerava a pessoa escravizada como objeto de direito, categorizando-a como coisa, como mercadoria que se aliena, a fuga resgatava a subjetividade do ser negro, “[...] ao colocar-se de modo ativo em relação ao seu proprietário e em relação ao próprio sistema escravista” (COSTA, 2014, p. 59). Todos e todas fugiram: crianças, jovens, adultos e idosos.

Essa subjetividade da pessoa escravizada que empreendia fuga provoca um giro, ainda que parcial, no olhar que o direito possuía sobre ela: de coisa do comércio para a esfera do direito penal. Leis, códigos de posturas passam a ser elaborados para exercer controle e vigilância sobre esses corpos negros em fuga (COSTA, 2014). O indivíduo escravizado desponta dos registros policiais: suas características pessoais são descritas, tornando-o único, individualizado.

Nessa descrição quase fotográfica dos indivíduos, o olhar do escrivão fixava- se em: características faciais, estatura, tamanho e formato do rosto, boca, nariz, textura do cabelo, sinais e cicatrizes no corpo, marcas étnicas e condições de dentição. Isso mostra que, ao chegar à delegacia, os presos eram submetidos a um exame físico minucioso. (FRAGA, 2014, p. 156).

De uma massa considerada uniforme, em que todos e todas se parecem, não podendo se distinguir um do outro ou uma da outra, a individualidade do homem negro em fuga ou da mulher negra em fuga emerge. Descrito, geralmente, pelas cicatrizes e pelas marcas que seu corpo rebelde traz, o escravizado ou a escravizada se individualiza, torna-se único.

As fugas também deixavam suas marcas no sistema escravocrata, ao ferir a ordem estabelecida, arranhando-a, provocando infiltrações. Na segunda metade do século XIX, por exemplo, as fugas aconteceram de forma mais intensa, em função das modificações sofridas pela sociedade escravista: perda da legitimidade da escravidão entre a população livre; recriminação mais intensa das práticas escravistas; e aumento do número de libertos (COSTA, 2014). Os escravizados e as escravizadas liam a realidade e percebiam a situação ideal para empreender fuga.

Uma nova conjuntura foi se formando gradativamente. A esse novo contexto, tanto os livres como libertos e também os escravos foram se adaptando e influenciando, através de inúmeras atitudes, essas alterações, conforme seus anseios. (COSTA, 2014, p. 60).

As fugas representavam, pois, uma fissura no regime servil e nas fendas desse sistema. O indivíduo negro escravizado se estabelecia como sujeito da história, autor e senhor da sua vontade.

Imersos em um sistema que os violentava, homens negros e mulheres negras também cometeram violência contra quem os subjugava. “Através das fontes analisadas, percebemos que a violência estava presente no cotidiano das relações sociais entre escravos e livres, e até mesmo, entre os próprios escravos e entre eles e os libertos” (COSTA, 2014, p. 76).

Assim, escravizadas e escravizados procuraram ferir de morte aqueles e aquelas que, no elo do sistema escravocrata, se encontravam mais próximo a eles e a elas, isto é, a quem, em princípio, deviam lealdade, obediência e servidão: senhores, membros da família senhorial e feitores.

Há relatos de envenenamento de toda a família senhorial por mulheres negras escravizadas:

A cozinha, local de trabalho onde provavelmente a negra Raimunda fazias as deliciosas refeições para a família do senhor Benedicto Lima Passos, também serviu de lugar de resistência, e a comida que durante muito tempo servira para alimentar seus senhores foi a mesma utilizada para envenená- los. Na noite em que matou toda aquela família, a escrava caprichou ainda mais na refeição, que exalava naquele momento o ‘“cheiro”’ da vingança e o ‘“sabor”’ da liberdade. (COSTA, 2014, p. 81).

O alimento da vingança estava posto sobre a mesa: humilhações frequentes, violência sexual, trabalho árduo, espancamento de marido, filhos e outros parentes. A aceitação de tudo que negava sua condição de ser humano era apenas aparente. Raimunda sentia todas aquelas dores e refletia sobre elas.

Em outras situações, o furto e o roubo aparecem como meio de minorar a situação de miséria em que se encontravam negras e negros escravizados. Furtavam e roubavam aquilo que era fruto do próprio trabalho, mas que não os pertencia por direito.

O direito procurava silenciá-los, amedrontá-los, punindo a ousadia. Qualquer atitude dessas pessoas que significasse uma afronta ao sistema escravocrata, que os considerava como coisa, portanto, desprovido de vontade própria, era considerada como crime na forma da lei (COSTA, 2014).

Dentro de um contexto de extrema violência, de coisificação do ser humano, da negação da dignidade humana, do aviltamento do corpo, o suicídio pode ser considerado uma forma de resistência. A morte contracenava com a liberdade.

Embora o escravo urbano gozasse de maior autonomia que o escravo das fazendas, os suicídios eram mais frequentes nas cidades do que no campo. Os relatórios policiais indicavam algumas razões pelas quais um escravo se suicidava: impossibilidade de a justiça conceder amparo contra maus-tratos, incapacidade do escravo do ganho pagar ao senhor a soma estipulada em contrato, falsas acusações, o medo de ser vendido e levado para longe, fuga fracassada, roubo descoberto etc. O medo levava ao suicídio. Medo vingador para o qual todos os meios eram bons: asfixias, engolindo a própria língua, enforcamento, estrangulamento, geofagia. (MATTOSO, 2016, p. 180).

Individual ou coletivamente, mulheres negras e homens negros resistiram à violência contra os seus corpos, contra os seus valores. Se alguns preferiram a morte a viver escravizados, outros fugiram em bando, organizando os quilombos.

Para Clóvis Moura (2014), o quilombo é a unidade básica de resistência de mulheres e de homens negros escravizados. De acordo com Mattoso (2016, p. 186), “[...] uma comunidade da recusa, uma solidariedade na resistência nascida com a força irresistível da própria escravidão”.

No Brasil, os quilombos não se restringiram a uma determinada região ou ficaram circunscritos a uma época específica da história do regime escravocrata. Moura vocifera: onde houve escravização, houve quilombo.

O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse. Não era simples manifestação tópica. Muitas vezes surpreende pela capacidade de organização, pela resistência que oferece; destruído parcialmente dezenas de vezes e novamente aparecendo, em outros locais, plantando a sua roça, construindo suas casas, reorganizando a sua vida social e estabelecendo novo sistema de defesa. O quilombo não foi, portanto, apenas um fenômeno esporádico. (MOURA, 2014, p. 163).

Ao fugirem coletivamente, homens negros e mulheres negras se aquilombavam, procurando reorganizar suas vidas com uma “[...] base econômica e estrutura social própria [...]” (GOMES, 2015, p. 9), objetivando resgatar sua condição humana violada. Espraiando-se por todo o território brasileiro, essa onda negra gerada por milhares ou algumas centenas ou dezenas de negros e de negras arrastou consigo fazendas, senhores, sinhás, feitores.

Desde o início, os escravizados e as escravizadas lutaram. Não importa se eram escravos do eito que trabalhavam nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café e algodão, ou mesmo nas minas de ouro. Escravizados ourives, pedreiros, ferreiros, carpinteiros, cozinheiros, amas de leite, barbeiros, mendigos de ganho, prostitutas de ganhos, todos se aquilombaram.

Por isso, os quilombos constituíam-se em um elemento de desgaste do sistema escravocrata, uma vez que a fuga e o rapto de escravizados e escravizadas representavam a redução das forças produtivas de quem se utilizava do regime servil.

Em diversas situações e em vários locais do país, os quilombolas se uniram aos indígenas para lutar contra a escravização (MOURA, 2014). Algumas vezes venceram, em outras, a maioria, foram destroçados. Essas derrotas convertiam-se em experiências que serviam para a construção de outro ou de outros quilombos.

Muitos dos escravos vindos de Palmares – com experiência de luta adquirida naquele reduto – estabelecerão um agrupamento de quilombolas em Cumbe, hoje usina Santa Rita. Iniciarão, logo depois de estabelecidos no local, uma série de ataques que os deixará temidos. Investiam contra fazendas para conseguirem víveres, armas e novos elementos que iriam engrossar o corpo dos insurretos. (MOURA, 2014, p. 167).

A formação de quilombo não só aumentava o desejo de fuga de homens e mulheres escravizadas, mas também gerava, por meio dos ataques às fazendas, mecanismos que facilitavam a fuga. Nas palavras de Shwartz (2016, p. 431), “[...] os quilombos se espalhavam pela zona rural e serviam de farol e refúgio para os escravos do engenho”. Os quilombos se alimentavam da esperança de resgatar a condição de humano perdida. As derrotas não os impediam de continuar se organizando para lutar.

Essa forma de luta não se constituiu em uma experiência que apenas a sociedade escravista brasileira presenciou. Nas Américas, onde houve escravidão, houve quilombos, palenques, cumbes, marrons. Em relação a esse fenômeno, mesmo na América espanhola, não há única palavra para nomeá-lo, mas várias, dependendo do país ou região em que aconteceu.

A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outras personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palenques, cumbes, etc.; na inglesa, marrons; na francesa,grande marronage (para diferencial da petit marronage, a fuga individual, em geral temporária). No Brasil, esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. (GOMES; REIS, 2016, p. 10, grifos dos autores).

Essa profusão de palavras com traduções que não guardam sintonia em si talvez indique que simplesmente resgatar a origem da palavra quilombo não seja o melhor caminho para compreender o fenômeno em sua inteireza.

Gomes (2015) chama a atenção de que, no Brasil, inicialmente, mocambo era a palavra pronunciada e escrita para designar tal fenômeno, e só posteriormente, no século XVII, foi substituída pelo termo quilombo. Além disso, “[...] as comunidades de fugitivos foram denominadas ao mesmo tempo de mocambos, principalmente na Bahia, e de quilombos em Minas Gerais; e o termo quilombo apareceu em Pernambuco somente a partir de 1681” (GOMES, 2015, p. 11, grifo no original).

Todas essas designações, a princípio, foram criadas e utilizadas pelas autoridades portuguesas. De acordo com Freitas (1983, p. 63), “[...] não dispomos de fontes diretas dos próprios quilombolas, que nada deixaram escritos, o que nos reduz às informações indiretas dos seus inimigos”. Para esses, autoridades coloniais e imperiais, a palavra quilombo designava local que abrigava escravos fugidos, por isso, criminosos, foras da lei.

No Brasil, os negros e as negras não demoraram muito para “cair na ilegalidade”. Oficialmente, o primeiro quilombo erguido em terras brasileiras aparece no Nordeste, mais precisamente no estado da Bahia, no ano de 1575. Antes havia cativos, agora há, também, os quilombolas, calhambolas ou mocambeiros (GOMES; REIS, 2016).

Fugir não era fácil. Além de vigilância severa, havia o desconhecimento, quase completo, das matas que circundavam os engenhos. Fugir, geralmente, era uma ação planejada em que os negros e as negras esperavam o momento mais adequado (GOMES, 2015).

Planejado ou fruto da angústia, os quilombos logo se espalharam por todo o Brasil, exercendo atração sobre negros e sobre negras que estavam no eito e na senzala, causando prejuízo aos senhores, pelos assaltos que os quilombolas praticavam contra os engenhos e as fazendas (GOMES, 2015).

Assim, a população de um quilombo é formada: inicialmente pelo grupo que desertou, depois alimentada em número de componentes pelos os que fugiram, individualmente ou em grupo, em sua direção após ele ser erguido. Segundo Gomes (2015, p. 14), muitos quilombos originaram-se de insurreições.

Se a revolta já atemorizava fazendeiros e autoridades – ainda mais nas áreas urbanas –, a possibilidade de uma rebelião virar um quilombo, ou, pior, um quilombo se transformar num deliberado ataque às vilas, fazendas e cidades era amedrontadora. Em fins dos séculos XVII, as autoridades baianas ficaram apavoradas com um levante com mais de cem escravos e a comunicação que eles estabeleceram com os quilombos em Camamu. Em Minas Gerais, em 1756, temia-se que escravos e quilombolas se articulassem para uma insurreição.

O temor de uma revolta coletiva da comunidade negra perseguiu os sonhos dos senhores e das autoridades coloniais e imperiais até o dia 13 de maio de 1888, e, quem sabe, depois dessa data também.

Acontece que qualquer quilombo desestabilizava a região. Havia aqueles quilombos que se fixavam em um determinado local, construindo moradias e plantando roças, e aqueles formados por pequenos grupos, que migravam permanentemente, procurando abrigo e meios que lhes garantisse sobreviver (GOMES, 2015). Um e outro causavam prejuízos.

Mais interessados em analisar os grandes e populosos quilombos, a historiografia da escravidão no Brasil deu pouca atenção aos pequenos quilombos que se incrustavam nos morros e encostas das cidades escravistas. Eles surgiam e desapareciam aos olhos das autoridades, dos senhores que reclamavam do sumiço de seus escravos, da imprensa que denunciava ou mesmo de viajantes que aqui passavam e bem sabiam disso tudo. (GOMES, 2015, p. 18).

Portanto, a composição numérica de um determinado quilombo poderia destoar significamente de outra comunidade em unidades, dezenas, centenas ou mesmo milhares.

Legalmente, porém, havia normas provinciais que considerava quilombo um ajuntamento de duas pessoas negras em fuga (MATTOSO, 2016).

Independentemente da quantidade de membros, no quilombo, pulsava vida de seres humanos que lutavam contra a coisificação, contra a sua desumanização, envolvendo-se com o comércio local, vendendo coisas que produziam, comprando alimentos e armas para enfrentar seus inimigos. Gomes (2015) defende que a proliferação de comunidade de fugitivos deveu-se pela capacidade de articulação com “[...] lógicas econômicas das regiões onde se estabeleceram” (GOMES, 2015, p. 20).

Nunca isolados, mantinham trocas econômicas com variados setores da população colonial, que incluíam taberneiros, lavradores, faiscadores, garimpeiros, pescadores, roceiros, camponeses, mascastes e quitandeiras, tantos escravos como livres. [...] No século XIX, as posturas municipais em várias regiões reproduziam num quase coro os artigos que tentavam reprimir os contatos e o comércio de quilombolas nas vendas e tabernas das vilas. (GOMES, 2015, p.20).

Tudo isso expõe que os quilombos faziam parte da dinâmica das cidades e dos lugarejos próximos onde estavam encravados, e que o isolamento não era a regra, mas exceção. Esses relacionamentos não impediram, por si só, os conflitos, mas “[...] significaram experiências que conectavam toda a sociedade escravista, tanto aquela que reprimia como a que acobertava os quilombolas e suas práticas” (GOMES, 2015, p. 20).

Essa integração entre os quilombolas e as vilas depende, logicamente, da proximidade com os núcleos habitacionais. Naqueles que se findaram nos arredores das Vilas e dos engenhos, o intercâmbio era, praticamente, intermitente.

Muitos desses quilombos não estavam longe dos núcleos populacionais, as cidades e engenhos, e sobreviviam de ataques e do comércio com populações vizinhas. No início do século XIX, os quilombos suburbanos – no Cabula, Matatu ou Itapoan, nas imediações de Salvador – estavam cada vez mais integrados à vida da escravidão urbana, talvez mesmo servindo, às vezes, como destinação de fugas temporárias, centros de assistência e descanso para os escravos urbanos. (SCHWARTZ, 2016, p. 432).

Essa integração permitia a formação de relações econômicas por meio das quais os quilombos forneciam farinha de mandioca, feijão, arroz, peixes, lenha, inclusive cachimbo e outros utensílios de cerâmica, de couro e de ferro à Vila, além de produtos roubados. Os quilombos procuravam ter produção artesanal e agrícola diversificada, embora possuíssem “vocação” própria. Freitas (1983, p. 63) classifica os quilombos de acordo com a economia da comunidade:

Segundo a forma de subsistência, houve pelos menos sete tipos de quilombos: os agrícolas, que prevaleceram por toda parte do Brasil; os extrativistas, característicos da Amazônia, onde viviam das drogas do sertão; os mercantis, também na Amazônia, que adquiriam diretamente de tribos indígenas a drogas para mercadejá-las com os regatões; os mineradores, em Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso, os pastoris, no Rio Grande do Sul, que criavam gado nas campanhas ainda não apropriadas e ocupadas pelos estanceiros; os de serviços, que saíam dos quilombos suburbanos para trabalhar nos centros urbanos, fazendo-os passar por negros forros; os predatórios, que existiram um pouco por toda parte e viviam dos saques praticados contra os brancos. Nos seis últimos tipos, a agricultura não estava ausente, mas desempenhavam um papel subsidiário.

Nos casos, quando o extrativismo era principal atividade econômica desenvolvida pela comunidade de fugitivos, como os acampamentos se encontravam mais afastados dos centros urbanos, para negociar com os donos das vendas, os quilombolas erguiam entrepostos provisórios (GOMES, 2015). Essa relação quilombo-vilarejo possibilitava a manutenção da comunidade.

No entanto, a principal face quilombola era camponesa, como bem apontou Freitas (1983). Ao lado da monocultura, marginalmente, pulsavam as hortas, as roças quilombolas: batata-doce, milho, feijão, inhame, arroz, mandioca, inclusive cana-de-açúcar. Mas não só isso: em alguns quilombos se produziam roupas e peças e utensílios de metal e de couro.

Marcações de ‘“casas de ferreiro”’, ‘“casa de tear”’, ‘“casas de pilões”’ e ‘“curtume de couros”’ sugerem ali formatações econômicas complexas, com quilombolas mantendo lavouras, fabricando farinha em seus “pilões”, produzindo roupas com os teares e manejando forjas de ferreiro para fabricarem utensílios e ferramentas, além de incipiente manufatura de couros. (GOMES, 2015, p. 27).

Moura (2014) aponta que grande parte dos grupos africanos que foram traficados para o Brasil detinha técnica agrícola relativamente adiantada, além de conhecimentos em fundição de metais. A cumplicidade dos donos das vendas advém exatamente do fornecimento pelos quilombolas de produtos que as Vilas não confeccionavam. Além de adquirirem produtos que não produziam, os quilombolas recebiam notícias sobre milícias, formadas para destruir os quilombos.

A relação dos quilombos com as cidades e as senzalas ia além da compra e da venda, havia uma verdadeira integração social. “Em Sergipe, os quilombolas eram acusados de visitar as senzalas e participar das festas de congadas organizadas pelos escravos” (GOMES, 2015, p. 21). “A reclamação de quilombolas em tabernas era tanta que se dizia que ‘[...] cada venda é um quilombo’ em Vila Rica” (GOMES, 2015, p. 20). Os quilombolas também se entrecruzavam nas feiras com escravizados e escravizadas.

Cativos e quilombos constituíram práticas econômicas a partir das quais interagiram. Escravos frequentavam feiras e mercados locais aos sábados e domingos – em seus “das livres” costumeiros – onde, montavam “quitandas” e vendiam produtos de suas roças. Lá podiam encontrar quilombolas com o mesmo objetivo: estabelecer conexões mercantis. (GOMES, 2015, p. 28).

Depreende-se desta afirmação de Gomes que os escravizados e as escravizadas também plantavam roças e que comercializavam seus produtos em feiras livres. A relação de negras e negros cativos com a terra ia além do trabalho compulsório nas plantações, pois, em algumas situações, os escravizados recebiam parcelas de terras para cultivarem suas roças, portanto, tratava-se de complexidade com várias facetas na luta para conquistar sua autonomia.

Os quilombolas radicalizavam nessa busca, e as mulheres negras exerciam papel de destaque na comunidade. Gomes (2014) assevera que há poucas notícias sobre mulheres nos quilombos. Para ele, deve-se ao fato de que os relatos sobre essas comunidades geralmente partiam de comandantes das tropas que pesavam as tintas nas dificuldades que tiveram de vencer para destruir os quilombos.

Há raras notícias sobre a presença da mulher nos mocambos, sugerindo equivocadamente sua ausência ou menor importância. Temos de lembrar que aqueles que descreveram os quilombos – especialmente os comandantes das tropas – o faziam para justificar a necessidade de sua destruição. (GOMES, 2014, p. 39).

Ao tempo em que invisibilizavam a presença feminina, os homens eram tachados de fujões, bandidos, assassinos, loucos (GOMES, 2015). Mas, segundo Gomes, as mulheres desempenhavam atividades econômicas e militares, por conseguinte, no enfrentamento das tropas escravistas. Ao que parece, havia divisão de tarefas por conta do sexo, mas em situação de agressão, a defesa do quilombo pertencia a todos e a todas. Defender, aqui, possui o sentido de combate, como de encontrar meios que garantissem a sobrevivência da comunidade.

Certos mitos na memória coletiva de alguns remanescentes revelam a função das mulheres. Por exemplo, cabia a elas esconder o máximo de grãos na cabeça – entre seus penteados – e escapar para as matas, o mais longe possível. A economia de um quilombo atacado era reconstruída exatamente a partir desses grãos. (GOMES, 2014, p. 39).

Essas sementes representam a possibilidade de se criar o novo, de gerar alimentos para a comunidade de acordo com as necessidades de cada um. A guarda desses grãos pertencia às mulheres, da mesma forma como elas traziam no útero o ser humano que não nascia e nem crescia escravizado. Sobre esse ambiente em que essas crianças brincavam, corriam, choravam, quase nada se sabe, e as notícias que se tem são oriundas daqueles que queriam destruir os quilombos (GOMES, 2014). O cotidiano dos quilombos permanece incógnito.

Acreditar em comunidades de fugitivos que procuravam reeditar as mesmas experiências vivenciadas no continente africano seria, contudo, um equívoco, pois “[...] um quilombo como fruto de uma fuga coletiva de cativos africanos, [...] reunia pessoas de várias origens étnicas” (GOMES, 2014, p. 42), sem considerar que não havia um isolamento cultural, em função das atividades comerciais com moradores das vilas.

Por isso, diz este autor que, pela diversidade cultural dos componentes do quilombo, é razoável acreditar que adaptassem suas práticas e seus costumes a partir de uma perspectiva comum, formando um “mosaico cultural gestado nas senzalas” (GOMES, 2014, p. 43). As comunidades negras no espaço quilombola, simplesmente, não reproduziam seus modos de viver adquiridos no continente africano, adaptava-os aos valores culturais dos outros e das outras que compunham o grupo e ao meio ambiente no qual estava fincado o quilombo.

As trocas culturais e as alianças sociais foram feitas intensamente entre os próprios africanos, oriundos de diversas regiões da África, além, é claro, daquelas nascidas das relações que desenvolveram com os habitantes locais, negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios. Em toda parte, esse processo de seu seguindo ritmos e criando combinações que variavam na imensidão territorial do Brasil escravocrata. (GOMES; REIS, 2016, p. 12).

Se os quilombos não eram um pedaço da África em solo brasileiro, nem todas as comunidades de quilombos surgiram da fuga de escravizados e escravizadas. Gomes (2014) menciona que existiu comunidade quilombola proveniente de ocupações das próprias fazendas onde antes estariam assenzalados.

Por muito tempo a moranagem foi considerada uma prática ‘“africana”’ e eminente colonial que diminuiu devido à crioulização da população escravizada. Entendida como prática dos quilombolas de São Mateus, ela não significava um esforço “restauracionista" de preservar ou recriar uma comunidade baseada na África, separada da sociedade escravista. Em vez disso, a maronagem foi forjada pelos quilombolas para viverem como agentes livres profundamente enredados na sociedade escravista. (MIKI, 2014, p. 36).

A maronagem era uma prática dos quilombolas de viver e agir como agentes livres nas vilas e cidades. Ao invés de fugir, permaneciam nas fazendas, vivendo como se fossem pessoas livres de fato (MIKI, 2014). Deslocando-se frequentemente, esses quilombolas ofereciam sua mão de obra em troca de alimentos, armas, munições e abrigos. “Esse quadro nos oferece um tipo diferenciado de economia quilombola, distinto daquele baseado no cultivo independente e na venda de seus produtos” (MIKI, 2014, p. 41).

A singularidade dessa experiência quilombola reside no fato de que as pessoas a quem os negros e as negras prestavam serviço não eram seus proprietários, negociando as condições de trabalho, quantidade de horas, valor da remuneração, como se fossem livres, donos da sua força de trabalho.

Acrescente-se que o processo de resistência à coisificação a que estavam submetidos não era atitude exclusiva daqueles que fugiam, construindo ou não comunidades quilombolas. Aqueles e aquelas que permaneciam nas fazendas, nas senzalas, nas minas, cotidianamente, lutavam por sua dignidade de ser humano.

Baseados numa visão integracionista da sociedade escravista, alguns estudiosos têm sugerido que os grupos escravos, na busca de forjar espaços de autonomia econômica, social e cultural, interagiram com o regime de trabalho a que estavam submetidos, respondendo às diferentes conjunturas com a acomodação e resistência, moldando, em última análise, o sistema escravista que procurava reduzi-los a meros instrumentos de produção das riquezas coloniais. (MACHADO, 1988, p. 146).

À medida que são desenvolvidas novas pesquisas sobre os escravizados e a respeito da escravidão, e dos próprios quilombos, descobrem-se novas faces dessas comunidades (MATTOSO, 2016). Considerá-las um fenômeno uniforme seria um grande erro por diversos motivos: a diversidade étnica e cultural dos negros e das negras africanas que foram trazidos para o Brasil (CUNHA, 1985); o longo período em que a escravização de seres humanos foi considerada legal, cerca de quatrocentos anos; a área em que esse fenômeno ocorreu – praticamente em todo o território nacional –, portanto, com uma relação humano-natureza cercada de diversidade de solo, de clima e de vegetação; as atividades econômicas desenvolvidas durante a Colônia e o Império, que requeriam regimes de trabalhos diferenciados e, portanto, uma relação entre senhor e escravizado diferentes, com vigilância extrema, como na mineração, ou mais leve, como nas fazendas de gado.

Um exemplo de como a experiência quilombola não comporta uma única explicação, Schwartz (2016), a partir da análise das revoltas que ocorreram na Bahia do século XIX, afirma que, em terras baianas, a formação de quilombos, a que denomina de resistência endêmica, e as revoltas e as conspirações compunham táticas mutuamente articuladas por negros e por negras contra o sistema escravocrata, demonstrando que havia cooperação e coordenação de ações entre escravizados urbanos e rurais.

Porém, as palavras de Clóvis Moura sobre esse fenômeno resumem as diversas experiências quilombolas: quilombo é resistência. Onde houve escravidão, houve quilombo.

O quilombo como meio de resistência à escravidão legalizada findou com a extinção do sistema escravocrata no Brasil, que se deu legalmente com a Lei 3.353/1888 (BRASIL, 1888). Este trabalho não pretende esmiuçar as razões pelas quais a monarquia brasileira resolveu tomar tal atitude. No entanto, quer-se destacar a luta dos próprios escravizados como uma das causas, sem estabelecer qualquer hierarquia, que determinou ou influenciou na extinção do trabalho escravo em terras brasileiras.

Próximo ao seu fim, a maioria dos escravizados e das escravizadas encontravam-se cientes de sua situação de explorados e exploradas, desobedecendo às ordens dos seus senhores, formando grupos que não estavam mais circunscritos às comunidades quilombolas. A rebeldia havia chegado às senzalas (MOURA, 2014). “Os escravos fluminenses incendiavam canaviais e fugiam” (MOURA, 2014, p. 100). E, como destaca Moura (2014), havia o medo de que os próprios escravizados fizessem a própria abolição.

1.3Pós-abolição: liberdade como pertencimento

A Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, declarou extinta a escravidão (BRASIL, 1888). A Lei Áurea, como ficou sendo conhecida, tem apenas dois artigos: um que declara extinta a escravidão no Brasil; outro que revoga as disposições em contrário.

As disposições em contrário aos negros e às negras, agora libertos, superam, em muito, questões de ordem legal. Há uma realidade que se impõe impiedosa: analfabetismo, miséria, saúde débil, acesso à terra para plantar e morar; disposições em contrário a uma vida digna, plena, que a lei não revogou.

Suprimida a escravidão, os negros continuariam irremissivelmente sujeitos a outras modalidades de escravidão e de alienação: à escravidão da miséria ou a condição de párias de uma sociedade de classes em formação, engajados automaticamente, como ficariam, no exército proletário de reserva. (CARDOSO, 2011, p. 313).

O trabalho livre não pode ser definido pelos motivos acima expostos, como o fim da coação, mas como estrutura de controle da extinta mão de obra escrava (COOPER; HOLT, SCOTT, 2005). O pagamento de salários mais baixos aos negros e às negras corroboram, infelizmente, esta afirmação.

Para Cooper, Holt e Scott (2005, p. 42), “[...] a noção de liberdade não está no passado nem em outro lugar; é o terreno histórico que habitamos hoje em dia, o sistema que governa nossa vida, nosso meio de vida e nossa consciência”. Isto é, a liberdade pretendida por negros e por negras que compõem as comunidades negras rurais hodiernamente se ocupa de outros espaços e de outras lacunas: a titulação das terras que habitam e a manutenção ou alteração, segundo os seus desejos e as suas necessidades, dos seus modos de criar, de fazer e de viver.

A resistência à coisificação a que foram submetidos homens e mulheres negras em território brasileiro apenas sofre mudanças quanto ao cenário. Em suas multivariadas manifestações, os quilombos adquirem uma nova roupagem, outro aspecto: luta pelo pertencimento, por fazer parte (COOPER; HOLT, SCOTT, 2005, p. 45) de uma comunidade, familiar ou de um país.

Argumentam que “no conceito ocidental, a antítese de ‘escravidão’ é ‘liberdade’ significa autonomia e falta de restrições sociais”. Entretanto, ‘[n]a maioria das sociedades africanas, a ‘liberdade’ não está em afastar-se numa autonomia sem sentido e perigosa, um poder – um apego que ocorria dentro de um arcabouço hierárquico bem-definido. É nesta direção que o estrangeiro comprado teria de mover-se para reduzir sua marginalidade inicial. Aqui a antítese de “escravidão” não é ‘liberdade’, no sentido de autonomia, mas sim ‘pertencer, ‘fazer parte’.´

É nesse espectro que a comunidade negra objetiva alterar ou reduzir a situação de marginalidade em que se encontra. Procura afirmar a sua dignidade humana, lutando contra o processo de desumanização, iniciado com a escravização e que não findou com a Abolição.

Para isso, a formação de quilombos continua sendo a resposta encontrada pela comunidade negra.

Nascimento (2009, p. 205) considera que “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”, rompendo com o discurso que percebe o quilombo como ilícito, e com o pensamento que o considera apenas como um fenômeno social próprio do regime escravocrata.

Abdias Nascimento refuta, portanto, a redução da palavra quilombo a escravos fugidos, dando a este termo uma conotação que abriga outras experiências coletivas de resistência dos negros e das negras ao regime escravocrata em solo brasileiro e a outras que sucederam a “Abolição”.

Os quilombos, segundo Nascimento (2009), são instrumentos que homens e mulheres negras utilizaram na luta contra a submissão, a exploração e a violência gerada no sistema escravista. Para este autor, os quilombos assumiram, ao longo da história, modelos de organizações permitidas ou toleradas, como associações religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio-mútuo, bem como proibidos e ostensivamente combatidos, como as comunidades erguidas em lugares de difícil acesso, possibilitando, no entanto, sua defesa e sua organização econômico-social própria.

Para Nascimento (2009), os quilombos são focos de resistência física e cultural. A uns se toleravam; a outros se combatiam. Os primeiros, geralmente constituídos em forma de associações; os outros, formados a partir de rebeliões, insurreições, fugas. No entanto, ele pondera: “Porém, tanto os permitidos quanto os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história.” (NASCIMENTO, 2009, p. 203).

Nesta busca de ter em suas mãos o próprio destino, homens e mulheres continuam se aquilombando. Isso porque “[...] os arranjos econômicos e sociais que seguiram à escravidão ficaram muito longe dos ideais de solo livre, trabalho livre e homens livres” (COOPER; HOLT; SCOTT, 2005).

Estes autores assinalam, ainda, que ex-escravizados e ex-escravizadas lutam por sentir que fazem parte de comunidades elaboradas por eles próprios (COOPER; HOLT; SCOTT, 2005), e mencionam, ainda, que, para Patterson, a escravidão seria uma alienação natal ou morte social, pois envolve remoção física e, consequentemente, afastamento do espaço familiar e das relações sociais.

Há relatos de pessoas negras vagando à procura de notícias de parentes para restaurar os laços familiares desfeitos (FORNER, 1988). A terra (o solo) representa o elemento aglutinador a partir do qual antigas e novas relações sociais serão atadas. É a partir de um pedaço de terra, cultivando roças, que as novas comunidades quilombolas, pós-abolição, surgirão, resistindo física e culturalmente ao processo de desumanização, iniciado pelo sistema escravocrata.

[...] o escravo foi socialmente representado não apenas como coisa, mas também como homem-tornado-coisa. Sociologicamente essa ambiguidade não pode ser interpretada como se derivasse do caráter do senhor (o bom e o mau senhor), ou da consciência que o senhor era capaz de desenvolver da situação de escravo. Ela deriva da própria situação de senhor e de escravo na sociedade escravista. (CARDOSO, 2011 p. 307).

Ora, se a sociedade escravista havia convertido homens e mulheres negras em homem-tornado-coisa, uma norma jurídica não haveria de modificar essa situação em um passe de mágica. Acreditar que a comunidade negra não continuou se aquilombando significa pensar que a Lei 3.353/1888, ao torná-los livres, restaurou-lhes a condição de humano.

Cardoso (2011) afirma que o ser humano escravizado, ao desenvolver um trabalho mais complexo, o escravo-alfaiate, o escravo-ferreiro, o escravo-tecelão, externava a possibilidade humana que lhes era inerente de atuar sobre a natureza, modificando-a de acordo com suas necessidades, despindo, assim, o trabalho escravo da aparência de atividade anti-humana.

É lógico que o cultivo de roças para seu sustento e de seus pares e a comercialização do excedente enquadra-se no trabalho mais complexo descrito pelo autor. Tem-se, então, o escravo-lavrador ou escravo-roceiro.

Os escravizados e as escravizadas desenvolviam atividades agrícolas, geralmente nos fins de semana, em pequenos lotes de terra (GOMES, 2006). Não se trata, como dito anteriormente, um ato de benevolência do senhor, mas que tinha um cunho patrimonialista e paternalista, uma vez que reduzia as despesas com alimentação, servindo, também, para atenuar, amortecer a relação conflituosa senhor-escravizado.

Largamente aplicadas nas fazendas de café de São Paulo e do Rio de Janeiro, a política de controle social dos cativos, através da concessão de terras para a prática do roçado, parece ter surtido efeito paralelo em Teresina. As crises de produção e os elevados preços dos alimentos de primeira necessidade na dieta dos escravos contribuíram para que os encarregados das obras públicas da nova capital agissem de maneira conivente com os cativos que se alternavam entre a roça e a construção da cidade, inclusive, concedendo dias de folga para o cultivo e o comércio de produtos. (SILVA, 2014, p. 44).

É a partir desses roceiros negros que escravizados e escravizadas conseguiam suprir, timidamente, a escassa alimentação que lhes era fornecida e que não supria as necessidades de um dia intenso de labor. Caso houvesse algum excedente, vendiam no comércio local e, com os trocados ganhos, compravam algo ou economizavam para a compra da alforria.

Gomes (2006) fala que o cultivo de roças em conjunto com um pequeno mercado informal originou, ao longo do tempo, uma economia camponesa, gestando o campesinato negro.

Um campesinato, predominante negro, formado ainda na escravidão, constituído e articulado por libertos, mascates, escravos, taberneiros, lavradores, vendeiros, roceiros, pequenos arrendatários e quilombolas. Em muitas regiões, alguns quilombos foram praticamente identificados como comunidades camponesas. (GOMES, 2006, p. 292).

Há, desse modo, relação estreita entre o cultivo de roças e a presença de africanos, africanas e de seus descendentes em terras brasileiras. Muitos dos protestos negros objetivavam a conquista e a manutenção de espaços de autonomia, por conseguinte, de humanização que a atividade agrícola permitia (GOMES, 2006). Conforme este autor, mesmos os negros que se encontravam em situação de escravidão podiam trabalhar com métodos próprios e com supervisão mais branda de senhores ou de feitores. Havia, então, autonomia, embora vigiada.

Ao se apropriar da natureza por meio do cultivo de roças, de forma útil e consciente, o escravizado se descoisifica e, nesse processo de humanização, luta por mais espaço de autonomia, alterando a organização do trabalho. Essa experiência modifica o modo de vida dessas pessoas negras.

Também em torno dessas roças, os escravos reelaboravam modos de vida autônomos e alternativos, forjando experiências profundas que marcaram o período da pós-emancipação. A organização social escrava em torno do sistema de roças, mais do que simplesmente reduzir-se a simples práticas econômicas, estava relacionada a importantes aspectos simbólicos e culturais do modus vivendi reinventado pelos cativos. (GOMES, 2006, p. 294).

Os escravizados e as escravizadas reinventam-se a si mesmos. Coisificados pelo direito e pelo labor cotidiano, o plantio, ainda que seja em um pequeno pedaço de terra que não lhes pertence, de coisas das quais se alimentam, nutre-os da humanidade que germina do solo e cresce em seus corpos.

A concessão de tempo e de pequenos lotes de terra às pessoas escravizadas aumentou com o passar dos anos de escravidão. Com raríssimos casos, nos séculos XVI e XVII, esta prática se torna comum ao longo dos séculos XVIII e XIX. Segundo Gomes (2006), negros e negras, além de poderem cultivar pequenos lotes de terra, recebiam a autorização para comercializar em vendas próximas às fazendas. E para comprovar, a contrário sensu, afirma que:

Desde o início do século XIX, registram-se diversas posturas municipais, proibindo taberneiros e vendeiros de comerciar com os escravos e também fugitivos, o que indica a possível existência de uma ampla economia informal em gestação, apesar de tentativas de proibições. (GOMES, 2006, p. 295).

No ato de comercializar, os escravizados e as escravizadas se distinguiam do objeto em negociação, apartando seu ser da coisificação a que estavam submetidos no sistema escravocrata. No entanto, Pinsk (2015, p. 54) entende que o plantio de roças e a comercialização de produtos em pequenas vendas em nada contribuíam para humanizar as pessoas escravizadas, constituindo-se em forma adicional de exploração do “braço escravo”.

Moura (2014) faz uma crítica mais contundente ao surgimento do campesinato a partir das brechas camponesas. De acordo com esse autor, “[...] o termo brecha camponesa foi criado por Tadeus Lepkowski para designar um tipo de exploração agrícola individual ou familiar do escravo em terra do seu senhor, para o seu sustento e da sua família” (MOURA, 2014, p. 52, grifo no original).

Moura (2014, p. 53) crítica, inicialmente, o uso da categoria camponês, pois tal conceito refere-se a “homem livre (juridicamente livre)”, condição que as pessoas escravizadas não detinham. Do mesmo modo, entende que em função de o roceiro escravizado trabalhar por consentimento do senhor, “[...] não perde a sua condição (essência) de ser alienado (socialmente), da sua condição humana [...]”, uma vez que o “[...] o direito, em abstrato, [do senhor em dispor da mão de obra escravizada], continuava existindo, não o usando por não necessitá-lo ou não querê-lo” (MOURA, 2014, p. 55).

Discorda-se dos posicionamentos adotados por Pinsk e Moura em relação aos roceiros negros. Em primeiro lugar, deve-se considerar que o cultivo de roças ocorria nos finais de semana e nos dias santos (PINSK, 2015), ou seja, a quantidade de horas, a princípio, despendida nessas atividades era definida pelo roceiro ou pela roceira. A gestão do tempo livre ficava distribuída segundo os interesses dos negros e das negras, e não do senhor.

Ora, segundo Moura (2014), é a dicotomia contraditória entre senhor e escravo que impulsiona a dinâmica social do modo de produção escravista. A contradição aqui repousa no fato de o roceiro encontrar-se em situação de escravo e trabalhar como se fosse livre, dono do seu tempo e de sua produção. O direito abstrato sublimava-se na realidade das roças, e caso o senhor houvesse intenção de tê-lo por inteiro, encontraria resistência negra (GOMES, 2006).

Quanto à utilização da categoria camponês na expressão brecha camponesa, Moura (2014, p. 53) coloca: “[...] o que interessa neste quadro não é a produção, o produto em si, mas as relações sociais concretas que são estabelecidas para produzi-la”. Sendo assim, a relação entre senhor e escravo sofria modificações substanciais: os escravizados e as escravizadas produziam o que lhes interessava; aquilo que colhiam lhes pertencia; os produtos comercializados lhes traziam rendimentos.

Cabe trazer a descrição de Fernandes, contida em seu livro “A integração do negro na sociedade de classes”, volume I, como negros e negras procuravam dispor de seu tempo e de sua energia conforme a leitura que faziam sobre liberdade.

A recusa de certas tarefas e serviços; a inconstância na frequência do trabalho; o fascínio por ocupações real ou aparentemente nobilitantes; a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio; a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada; a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer o trabalho assalariado uma fonte de independência econômica, essas e outras “deficiências” do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com se defrontavam no regime de trabalho livre. (FERNANDES, 2013, p. 46-47).

Esta descrição de Florestan Fernandes desmonta a ideia de que a pessoa escravizada aceitava sem nenhum questionamento o controle físico e moral exercido pelos senhores, sem perceber o que estava em disputa. Se livres sentem repulsa por uma supervisão efetiva das atividades que lhes foram destinadas; escravizados, resistem, na medida do possível, ao gerenciamento total e ilimitado de suas vidas.

O cultivo de roças por escravizados e escravizadas compõe, assim, um processo de negação e de afirmação. Afirmação como seres humanos e negação da escravização, da coisificação. Processo que era radicalizado quando fugiam e erguiam quilombos. Gestava, a partir da interação entre aquilombados e assenzalados, uma economia camponesa em que se encontrava em disputa o direito ao produto do trabalho e acesso às trocas mercantis e aos mercados locais (GOMES, 2006).

A partir das experiências da escravidão, destacando-se a longa tradição dos quilombos, não só no Rio de Janeiro no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas também em outras partes do Brasil, é possível avaliar que assenzalados e aquilombados tenham cada vez mais procurado forjar significados compartilhados em seus protestos. (GOMES, 2006, p. 301).

Havia, então, uma partilha de sonhos e de vivências entre aquilombados e assenzalados. Gomes procura demonstrar que senzala e quilombo não compunham dois espaços totalmente distintos e que, ao contrário, havia interação entre esses dois mundos negros.

A busca por mais autonomia, por mais liberdade para transitar, produzir e negociar não se dava de forma singular, mas dependia da situação concreta. Mesmos os que não fugiam, negociavam por mais autonomia ou auxiliavam aqueles que empreendiam fuga. Soares fala de locais em centros urbanos denominados de casa de quilombo que eram utilizados para encontros da comunidade negra e de refúgio de cativos em fuga.

Os escravos compunham a esmagadora maioria daqueles vítimas da vigilância policial na Corte. Assim, o códice 403 é também um amplo registro da cultura escrava urbana e suas singularidades, como as misteriosas casas de quilombo, onde os africanos e crioulos se encontravam para trocas sociais ou que constituíam o refúgio dos cativos em fuga. (SOARES, 2008, p. 75).

Essas casas de quilombo revelam uma rede de solidariedade entre libertos, quilombolas e assenzalados e demonstram que havia um contato permanente entre eles, tanto nas cidades quanto nas fazendas. No campo, as roças representam o elo que os une.

Assim, a gestação de um campesinato negro encontra-se vinculada aos quilombos e aos assenzalados que cultivavam roças. Tanto uma quanto a outra comunidade de roceiro visava influir no processo de coisificação em que seus corpos se encontravam. O acesso à terra, ainda que de forma frágil, pela posse vigiada, nas roças dos assenzalados, ou pelo caráter temporário do quilombo, significava trazer em suas mãos o significado da vida, mesmo dolorosa, que a escravização havia roubado.

Os quilombos representavam a radicalização dessa luta. Se não deram cabo ao sistema escravocrata, mudaram suas próprias vidas e de todo aqueles que entraram em contato com aquelas comunidades.

No entanto, como demonstrado, as roças dos cativos e as roças dos quilombos se entrelaçam e se sobrepõem embora em espaços geográficos diferentes. Após a abolição, irão con(fundir-se) em um campesinato negro, resistindo coletivamente, portanto uma experiência quilombola, ao aniquilamento físico e cultural, orquestrado pelo Brasil republicano.

Gomes (2006) acentua que a história dos quilombos se articula com a história da pós- abolição, com a questão agrária brasileira, com a história do trabalho e com a dos movimentos sociais. Segundo Risério (2012), a história da resistência de homens negros e de mulheres negras em terras brasileiras divide-se em dois períodos: um em que a comunidade negra luta contra a sua situação de escravizada; no outro, em que articula para finalizar uma abolição inconclusa.

Para este autor, “[...] se a questão central, do século XVI ao XIX, era livrar-se da condição escrava, passou esta questão a ser, do século XX ao XXI, livrar-se da linha de pobreza e da condição proletária” (RISÉRIO, 2012, p. 326). Entende-se que não há uma descontinuidade no processo de resistência negra. Tanto a escravização quanto a pobreza subtraem das pessoas sua condição de humano.

O BICHO

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem. (BANDEIRA, 2009, p. 119).

Agora livres legalmente, homens negros e mulheres negras continuavam sem poder participar ou desfrutar das riquezas que produziram como pessoas escravizadas por quase quatrocentos anos. Como dito anteriormente, a Lei 3.353/1888 nada dispõe sobre como o Estado brasileiro iria incluí-los no seu projeto de Nação. Este silêncio perdura até hoje.

Excetuando os índios, o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador, durante três séculos e meio, a erguer as estruturas deste país chamado Brasil. Mas a despeito dessa realidade histórica inegável e incontraditável, os africanos e seus descendentes nunca foram e não são tratados por iguais pelos segmentos minoritários brancos que complementam o quadro democrático nacional. Estes têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional. (NASCIMENTO, 2009, p. 202).

Anteriormente, a alimentação era escassa. A jornada diária de trabalho era extenuante. A senzala onde os negros ficavam abrigados era fétida. Os açoites eram frequentes. As prisões arbitrárias ocorriam cotidianamente. Não havia escola, apenas trabalho degradante. A abolição da escravatura mantém a comunidade negra brasileira onde ela sempre esteve: na marginalidade.

Risério aponta, por exemplo, que os negros e as negras que habitavam o meio rural não possuíam nenhuma terra para cultivar. Na cidade, ocupam os piores postos com os salários mais baixos em virtude do nível educacional. Tanto no campo como na zona urbana, os negros e as negras não sabem nem ler nem escrever.

Com a inconclusão da obra abolicionista, com o abandono ou a rejeição da meta maior do movimento, os negros viram-se entregues à sua própria sorte. No campo, não tinham terras para cultivar. Na cidade, não recebiam educação, nem contavam com a instrução técnica necessária para se engajar no novo mundo produtivo que se configurava. E assim, chegamos ao século XX. (RISÉRIO, 2012, p. 353).

Não havia sorte, apenas azares. Os negros e as negras que foram coisificados pela escravização teriam, agora, que lutar contra a desumanização que a miséria provoca, e o mais grave, alijados dos meios que possibilitam superar esta situação: sem trabalho, sem saúde, sem escola, sem moradia, sem terra.

Os motivos pelos quais os negros e as negras se aquilombaram perduram. Como afirma Abdias Nascimento (2009, p. 205), “[...] os quilombos dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista”. Este patrimônio se refere à luta coletiva para garantir a “sobrevivência e existência do ser” (NASCIMENTO, 2009, p. 202).

O legado quilombola de resistência à desumanização e ao quase genocídio negro se expressa e se materializa através de diversas falas e de múltiplos instrumentos: imprensa escrita, esporte, cinema, teatro, literatura, música. Os caminhos são diferentes, mas os negros e as negras continuam percorrendo becos, picadas e frestas da legalidade, conquistando vitórias, sofrendo derrotas, emergindo desses passos coerência e contradição.

Na leitura de Moura (1992), a primeira manifestação de resistência negra, logo após a abolição, ocorre de maneira equivocada: a Guarda Negra. Esse grupo defendia o regime monárquico, por se sentir em débito com a Coroa, chegando a provocar tumultos, inclusive com morte, em comícios republicanos. “Via a abolição como um ato de manifestação social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessa medida e as consequências negativas que a Abolição traria, feita de forma inconclusa como o foi” (MOURA, 1992, p. 65). Proclamada a República, a Guarda Negra se desmobilizou completamente.

A escravização se foi, o açoite não. Esta era a situação pela qual os marinheiros, a maioria negros, enfrentavam nos navios brasileiros, agora republicanos. Os castigos por comportamentos considerados indisciplinados eram frequentes.

O movimento que vinha sendo articulado pelos marinheiros foi antecipado em face da indignação dos marujos contra o espancamento de mais um companheiro. O marinheiro Negro Marcelino recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação, formada no convés do Minas Gerais. Desmaiou, mas os açoites continuaram. (MOURA, 1992, p. 67, grifo no original).

Lá o pelourinho, aqui o convés. Em ambos, há uma plateia observando o negro ser chicoteado, vilipendiado e humilhado (MOURA, 1992). O corpo negro era, mais uma vez, alvo de uma fúria insana, desmedida, gratuita.

Os marinheiros liderados pelo negro João Cândido amotinaram-se, ou aquilombaram- se, apoderando-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira, exigindo, principalmente, a eliminação de castigos corporais por meio do uso da chibata. Era o dia 22 de novembro de 1910. A norma que estabelecia essa espécie de punição disciplinar foi revogada. No entanto, o Estado cobrou um preço caro por isso.

João Cândido, que não embarca no Satélite, juntamente com alguns companheiros foram recolhidos a uma masmorra da Ilha das Cobras, onde viviam como animais. Dos 18 recolhidos ali, 16 morreram. Uns fuzilados sem julgamento, outros em consequência das péssimas condições em que viviam enclausurados. João Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e na miséria, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente, morre como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado, com mérito, de Almirante Negro. (MOURA, 1992, p. 69).

A eliminação física de negros e de negras rebeldes, que era uma prática no Brasil Colônia e Imperial, se estenderá por toda República. As táticas do Estado são diversas: exílio, desemprego, aprisionamento. O intento é sempre o mesmo: dobrar, física e/ou psicologicamente, os que não aceitam em silêncio um sistema que os violenta, que os desumaniza.

Em 1915, quatro anos depois do término da Revolta da Chibata, os negros paulistanos, assenzalados por uma imprensa que não os via, fundaram o próprio jornal: O Menelick.

Aquilombados, nas páginas desse jornal, lutavam para que a comunidade negra tivesse uma vida digna, combatendo o racismo e valorizando a vida associativa, cultura e social do povo negro. Estas páginas negras serão escritas até 1963, quando encerra as atividades o Correio d’Ébano.

Após o primeiro, outros se sucederam na seguinte ordem: a rua e o Xauter, 1916; O Alfinete, 1918; O Bandeirante, 1919; A Liberdade, 1919; A Sentinela, 1920; O Kosmos, 1922; O Getulino, 1923; O Clarin da Alvorada e Elite, 1924; Auriverde, O Patrocínio e O Progresso, 1928; Chibata, 1932; A Evolução e A Voz da Raça, 1933; O Clarim, O Estímulo, A Raça e A Tribuna Negra, 1935; A Alvorada, 1936; Senzala, 1946; Mundo Novo, 1950; O Novo Horizonte, 1954; Notícias de Ébano, 1957; O Mutirão, 1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso Jornal, 1961; e Correio d’Ébano, 1963. (MOURA, 1992, p. 70).

Esta relação nominal dos periódicos com a data em foram fundados demonstra que a imprensa negra se manteve com fôlego durante bastante tempo, noticiando os acontecimentos da comunidade negra. Tornava significativo aquilo que, para a grande imprensa, não era digno sequer de uma pequena nota. Nas suas páginas, era escrito um código de moral (MOURA, 1992). Os negros e as negras secretavam um sentimento de culpa, responsabilizando-se pela vida miserável que levavam (RISÉRIO, 2012, p. 353).

O preto pode e deve “subir na vida”. Para isso, é necessário educação, aprimoramento cultural, bom comportamento e boas maneiras. As duas últimas recomendações dizem respeito a uma conduta pessoal mimética. O negro tinha de aprender a comer, a ser vestir, etc., como um branco classemediano. Nada de espalhafatoso ou colorido. Nem à mesa, nem no traje. (RISÉRIO, 2012, p. 359).

Esses jornais foram escritos por uma pequeníssima classe média negra que havia rompido as barreiras sociais por meio de dedicação incomum e qualidades pessoais, sem perceber que os “[...] ex-escravizados e descendentes de escravos permaneceram, em sua maioria, não apenas em estado de pobreza – e mesmo de miséria –, mas também, sem os instrumentos indispensáveis à superação de tal situação” (RISÉRIO, 2012, p. 353).

Mantidos pelo próprio grupo que os editavam, deixavam de fora críticas ao Governo, notícias sobre greves, sobre as lutas operárias e o posicionamento do Jornal em relação a tais acontecimentos (MOURA, 1992).

Os negros paulistanos se agrupavam basicamente, até então, em sociedades dançantes e entidades esportivas. É daí que vai surgir uma pequena imprensa negra. Jornalecos que faziam uma reprodução do noticiário social da grande imprensa (onde, aliás, desde pelo menos Luiz Gama e Patrocínio, sempre existiram jornalistas negros). Falavam de bailes, aniversários, recepções; faziam fofocas e fuxicos; e mesmo caprichavam na maledicência, como o Alfinete, que se dedicava a ‘“cutucar os negrinhos e as negrinhas”. (RISÉRIO, 2012, p. 359).

Se a Frente Negra defendia a monarquia constitucional, a imprensa negra não criticava a República. No entanto, Risério (2012) afirma que o movimento modernista (1922), a revolta tenentista (1924), a Coluna Prestes (1925-1927) e a formação do Partido Comunista Brasileiro (1922) foram fundamentais para impulsionar a comunidade negra na formulação de suas demandas.

Nesse caldeirão ambíguo, em 16 de setembro de 1931, surge a Frente Negra Brasileira, movimento de caráter nacional com repercussão internacional, que, em determinados momentos, defende posições reacionárias, sendo que alguns dos seus integrantes eram simpáticos ao nazismo.

Recapitulando, o objetivo central da Frente Negra era promover a raça. Mobilizar o negromestiço, como força política autônoma, em função de seus próprios interesses. Da conquista de seu lugar na sociedade brasileira. Da participação na riqueza nacional. Reivindicava-se, portanto, a superação das assimetrias sociorraciais brasileiras, com o fito de remover a defasagem existente entre a nossa realidade jurídica e a nossa realidade social. (RISÉRIO, 2012, p. 366).

A atuação da Frente Negra se incumbiu também de defender a pátria que os relegou à situação social em condição de senzalas. Com a instalação do Estado Novo, em 1937, as organizações negras acomodaram-se em clubes de lazer. O processo de resistência sofre uma retração pelo caráter autoritário do Governo Vargas. Apenas em 1945, após a derrota do nazismo, a resistência negra, por meio do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, volta à tona com uma pauta extensa:

[...] convocação de uma Assembleia Constituinte; anistia ampla e incondicional para os crimes políticos; extinção do Tribunal de Segurança Nacional; intensificação do esforço de guerra; liberdade de palavra escrita e falada; liberdade de agremiação; direito de voto aos membros das Forças Armadas sem distinção de postos e direitos a sua participação na Assembleia Constituinte; direito de voto nos navios mercantes; reconhecimento do direito de greve; aumento de relações diplomáticas com a URSS; autonomia sindical; direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas; assistência ao trabalhador rural; direito de sindicalização para as empregadas domésticas; liberdade de culto às religiões afro-brasileiras; ensino gratuito; punição às empresas que fazem seleção racial e de cor; abolição de seleção de cor nas escolas militares; participação do negro nos assuntos de colonização e imigração; democratização de todas as organizações negras, aproximando-as das organizações dos brancos; fazer a aproximação das escolas de sambas, clubes dançantes, associações esportivas, sociedades beneficentes, organizações religiosas, livrando-as da exploração políticas e comercial; e criar escolas de alfabetização em todo o território nacional. (MOURA, 1992, p. 75).

Nesta lista de reivindicações, elaborada pelo Comitê Democrático Afro-Brasileiro, não se encontra, infelizmente, a necessidade de o Brasil fazer ou ter uma reforma agrária que contemple os ex-escravizados e as ex-escravizadas e seus descendentes. Requer, genericamente, assistência ao trabalhador rural. Uma pauta democrática que não toca no cerne da questão: a abolição inconclusa. No entanto, demonstra como a resistência negra começava a ensaiar outros movimentos, outras posturas.

O Teatro Experimental do Negro (tem), no Rio de Janeiro em 1944, trouxe a questão social negra para outros palcos e com ele surge um grande personagem quilombola urbano: Abdias do Nascimento. As peças ensaiadas e apresentadas pelo TEN objetivavam dinamizar a consciência da negritude brasileira (MOURA, 1992). O próprio nome do jornal do grupo, O Quilombo, definia bem o seu pensamento.

Em 1949, o TEN organizou a Conferência Nacional do Negro. Dessa conferência participa o quilombola-poeta Solano Trindade, um dos fundadores do Teatro Popular Brasileiro, juntamente com Edison Carneiro e Dirceu de Oliveira, “[...] composto de artífices, operários de fábricas, domésticas e pessoas de outras camadas populares” (MOURA, 1992, p. 76). A articulação das bandeiras de raça e classe eram passos significativos de uma luta mais coletivizada como cenário de rebelar-se contra forças de manutenção da ordem estabelecida.

Como se pode notar, a história de resistência pós-abolição da comunidade negra acontece de forma descontínua. O Golpe Militar, em 1964, impossibilitou a atividade de organizações que fizessem qualquer espécie de questionamento sobre o funcionamento da sociedade. Antes disso, porém, em 1954, organiza-se a Associação Cultural do Negro (ACN), em São Paulo. “A ACN possuía departamentos de Cultura, Esporte, Estudantil, Feminino, e uma comissão de Recreação. Geraldo Campos de Oliveira dinamizou as atividades da associação e editou um Caderno de Cultura Negra” (MOURA, 1992, p. 77).

Apenas em 1978, estruturam-se novas organizações que continuam a priorizar atividades culturais, sociais e recreativas e “[...] de vez em quando posições abertas contra o preconceito racial” (MOURA, 1992, p. 78). No entanto, a violência institucional contra negros fez o movimento alterar sua rota: a unificação de diversas organizações, criando-se, em 18 de junho de 1978, o Movimento Negro Unificado; e manifestações públicas passam a constar das táticas de resistência.

A unificação dessas organizações deu-se, finalmente, a partir do dia 18 de junho de 1978, quando da realização de um ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Os fatos que determinaram a sua convocação foram a morte do trabalhador negro Robson Silveira da Luz, no mês de maio, devido a torturas em uma delegacia de Guaianases, na Capital de São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas juvenis negros do Clube de Regatas Tietê; e, finalmente, o assassinato por um policial, no bairro paulistano da Lapa, de Nilton Lourenço, operário negro. (MOURA, 1992, p. 78).

As sevícias sofridas pelos escravizados e pelas escravizadas eram agora desferidas contra negros libertos. O pelourinho agora possuía uma nova denominação: Delegacia; e o capitão do mato, um policial que persegue, tortura e mata negros. Em maio, não há nada a comemorar. Os negros e as negras continuam nas senzalas e só adentram a Casa Grande (Clube Regatas Tietê) quando for para limpar banheiros e servir à mesa. Era preciso reagir.

A resistência à desumanização de negros e negras possui uma longa história de contradições, sendo que, muitas vezes, os erros se sobrepõem aos acertos. Não se pode esquecer que o capitão do mato era um negro africano ou afrodescendente; que quilombos foram destruídos e quilombolas mortos por meio de traições de pessoas negras. Da mesma forma, o processo de resistência, pós-abolição, foi pautado, na maioria das vezes, por uma classe média negra que ascendeu socialmente, que entendia que os negros e as negras deveriam copiar o padrão de comportamento estabelecido por pessoas que se autoidentificavam como brancas. E, muitas vezes, a miséria e o analfabetismo da comunidade negra são vistos como problema pessoal e não estrutural.

O processo de resistência à desumanização, imposto, inicialmente, pelo sistema escravocrata e, agora, perpetrado pelo sistema capitalista e racista, é forjado por homens e mulheres negras que se utilizam de táticas distintas por se encontrarem em circunstâncias diferentes e, por isso mesmo, fazem uma leitura da realidade com outros olhos. Não se fala, aqui, do capitão do mato. A traição se conjuga com um projeto pessoal ou familiar. Trata-se daqueles e daquelas que se aquilombaram para resgatar negros e negras das senzalas e das favelas.

Há, também, aqueles e aquelas que lutaram e lutam para que o solo se tornasse livre e que homens negros e mulheres negras quilombolas pudessem e possam manter os seus modos de criar, de fazer e de viver. Para isso, organizaram-se para incluir na Constituição norma de garantia ao quilombola do direito de propriedade de todas as terras em extensão territorial que viabilize sua reprodução física, social, econômica e cultural.

A regularização das terras de quilombo, durante muito tempo, sequer foi pautada pelas entidades de defesa dos direitos de negros e de negras (PEREIRA, 2013). Essa invisibilidade é uma via de mão dupla: uma pavimentada pelos próprios quilombolas, como meio de permanecer na clandestinidade de um sistema opressor; a outra, pela marginalidade imposta aos ex-escravizados e às ex-escravizadas pela República.

A vida de negros e de negras carrega o peso dos tempos idos de escravidão e de um presente grávido desse passado. Forner (1988, p. 10) entende que “[...] os negros trouxeram da escravidão uma compreensão da sua nova condição pautada tanto por sua experiência como escravos, quanto pela observação da sociedade livre ao seu redor”.

Desse modo, negros e negras mergulharam no pós-abolição em dois mundos ao mesmo tempo, sendo que um não excluía o outro: um passado em que foi violentado física e psicologicamente e um presente repleto de angústias e de desejos. Um alimentava o outro. Era preciso, inicialmente, extrair as marcas da escravização, “[...] a fim de destruir a autoridade real e simbólica que os brancos haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidas” (FORNER, 1988, p. 12). Era necessário, em primeiro lugar, alterar o nome cristão recebido no momento do batismo.

Escravizado não possuía sobrenome, uma vez que esta parte do nome corresponde à família a que esta pessoa pertence. Escravo era uma coisa, um bem semovente, semelhante a um animal. Chamava-se, então, o escravizado e a escravizada apenas pelo primeiro nome: Joaquim, Raimunda, Jacinta, Januária. Após a Abolição, negros e negras aproveitaram a situação para modificar o nome.

Uma crioula de 50 anos, ganhadeira, presa por desordem na freguesia da rua do Paço em 31 de outubro de 1889, que no tempo da escravidão se chamava Januária, deve ter aproveitado os ares de liberdade dos novos tempos para “chamar-se Januária Martinha dos Santos”. (FRAGA, 2014, p. 157).

A liberdade permitia aos negros e às negras construírem seus nomes segundos seus interesses e suas estratégias de vida. Há relatos de ex-escravizados e ex-escravizadas que mantinham o patronímico dos antigos senhores com o intuito de se aproveitar das benesses que os nomes das famílias influentes poderiam garantir a quem os possuísse (FRAGA, 2014).

Este autor chama a atenção para o fato de que muitos negros e muitas negras alteraram o nome e o sobrenome para mascarar a situação de ex-escravizado ou de ex-escravizada, uma vez que havia boatos de que a Lei 3.353/1888 seria revogada e, consequentemente, restaurado o sistema servil (FRAGA, 2014). Era preciso negar ou esconder o passado. Permanecer sorrateiramente, matreiro, embora às claras, naquele mundo de pessoas livres.

Contudo, a ocultação ou adoção de outro nome e sobrenome talvez refletisse a incerteza e a insegurança daqueles primeiros anos de abolição, quando ex- senhores e seus representantes reclamavam abertamente no Parlamento e na imprensa por leis que restabelecessem o controle sobre ex-escravos. Há pouco sancionada, nada garantia que a Lei Áurea “pegasse” ou que o cativeiro pudesse de alguma forma retornar, restabelecendo laços de dependência. (FRAGA, 2014, p. 159).

Negros e negras irão perambular pelas ruas das cidades e das vilas com outra identidade. Joaquim agora é João. Maria agora é Raimunda. Um era escravizado, o outro havia adquirido a liberdade pela lei. Uma era estrupada pelo seu dono; a outra queria o prazer de sentir-se livre. Ocultar-se sob o véu frágil de um nome parecia ser uma solução sagaz. Se houvesse o retorno à situação anterior, não encontraria nem o Joaquim nem a Maria.

Modificar o nome não era bastante, às vezes, mudar, ou seria melhor utilizar a palavra fugir, para outra localidade, era considerado mais seguro. Após a abolição, houve uma intensa movimentação de negros e de negras, principalmente do campo para a cidade, porém, em menor número, da cidade para o campo. Não se pretendia apenas se esconder, mas gozar o que a liberdade permitia: viajar, mudar de residência, abandonar o local onde foi cativo (FRAGA, 2014), restaurar os laços familiares desfeitos pela escravidão (FORNER, 1988).

A historiadora Ana Rios elaborou uma tipologia que – embora identificada com o Sudeste – bem pode nos ajudar a entender uma face das formações camponesas negras. Segundo ela, tais formações do pós-emancipação estavam pelo “campesinato itinerante”, ou seja, as famílias de libertos organizadas num parentesco ampliado que vivenciaram processos de imigração contínua em busca de terra e de trabalho em várias áreas entre Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. O deslocamento permanente foi um traço marcante para várias famílias de libertos nas primeiras décadas do século XX. Através de arranjos de moradias, trabalho e parceria, as primeiras gerações de libertos tentavam reconstruir territórios para si e suas famílias. (GOMES, 2015, p. 126).

Esses arranjos de moradia, trabalho e parceria irão formatar as centenas de comunidades negras rurais espalhadas por todo o território nacional que emergem da movimentação de famílias negras de libertos e de quilombolas nos anos que seguem a pós- abolição. Não se pode esquecer de que no período que antecedeu a abolição houve um aumento significativo do número de fugas, chegando até mesmo a provocar uma “desorganização do trabalho” (COSTA, 2008, p. 133), principalmente nas fazendas.

Se havia um contato permanente entre escravizados e quilombolas, após a abolição, essas relações se intensificam a tal ponto de libertos e quilombolas se confundirem nos mesmos espaços, integrando-se, ao longo do tempo, e construindo comunidades com uma lógica de produção própria e de valores culturais específicos.

Em uma época instável socialmente, no ano seguinte, a abolição dos escravizados instalou-se a República (1889), as comunidades negras permaneciam se aquilombando, no intuito de se proteger de um sistema que os oprimia, antes pela força, agora, pelo aparente abandono que se configura como política de Estado de ataque ao povo negro. O medo do retorno do sistema escravista era real, pois os fazendeiros, sentindo-se prejudicados, queriam alterar as regras do jogo com “[...] a reivindicação de indenização que prosseguiu por algum tempo” (COSTA, 2008, p. 134).

Essa autora acentua que há um “[...] silêncio das fontes sobre o que aconteceu aos escravos depois da abolição” (COSTA, 2008, p. 134-135), dificultando um estudo mais sistemático, ainda mais porque não houve nenhuma medida oficial em nível nacional destinada a oferecer assistência aos libertos (COSTA, 2008). Nesse mesmo sentido, aponta Furtado (2017, p. 200);

Se bem não existam estudos específicos sobre a matéria, seria difícil admitir que as condições materiais de vida dos antigos escravos se hajam modificado sensivelmente após a abolição, sendo pouco provável que esta última haja provocado uma redistribuição de renda de real significação.

Para fugir dessa situação de penúria, construir comunidades negras continuava ser uma solução adequada e necessária aos problemas enfrentados pelos antigos escravizados. Era preciso permanecer aquilombados.

Costa apresenta uma dica de qual trilha homens e mulheres escravizadas, agora livres, seguiram: “As poucas referências disponíveis parecem indicar que alguns abandonaram as fazendas e procuraram se estabelecer em terras aparentemente sem dono, só para se defrontar com a polícia ou com algum proprietário enfurecido que reclamava sua saída” (COSTA, 2008, p. 136).

Não se pode acreditar que o pensamento de fugir e de construir comunidades negras tenham se dissipado diante de um cenário que lhes continuava desfavorável. Kopytoff e Miers (apud COOPER; HOLT; SCOTT, 2005), como já referido, consideram que, para muitas culturas africanas, a ideia de liberdade encontra-se relacionada à noção de ‘pertencer’, ‘fazer parte’ de um grupo de parentesco, um patrono, um poder.

Por isso que é perfeitamente lógico abarcar outras experiências comunitárias negras no conceito de resistência à desumanização, desencadeada pela escravização, ainda que não seja composta por ‘escravos fugidos’. A liberdade para aqueles homens negros e mulheres negras no pós-abolição pode ter contado com algo assemelhado ao afirmado por Kopytoff e Miers, visando pertencer a uma determinada comunidade, forjada segundo seus interesses e valores, no formato de comunidades que se autoidentificam como quilombo, como unidade básica de resistência de homens e de mulheres livres, enfrentando as adversidades por meio de antigos e de novos laços comunitários.

Essas adversidades não foram e ainda não são poucas, como se já se descreveu aqui, em outros momentos: sem educação, sem teto, sem terra e sem direito à presunção de inocência e à assistência social. Aos negros e às negras, a República lhes destina o confinamento, a marginalidade, as prisões, os hospícios. Costa (2008, p. 138) apresenta um resumo de como todo um aparelho repressor se desenvolveu para controlar negros e negras, agora livres e miseráveis.

Após a abolição as autoridades pareciam mais preocupados em aumentar a força policial e em exercer o controle sobre as camadas subalternas da população. Com esse objetivo multiplicaram-se leis estaduais e regulamentos municipais. [...] Multiplicaram-se as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e mendigos.

Assenzalam-se negros e negras em presídios, hospícios, prisões fétidas, sem direito à defesa, simplesmente por se encontrarem desempregados ou desempregadas. A República faz uma assepsia das cidades, proibindo “o comércio ambulante” e “[...] festividades características da população negra, como batuques cateretês, congos e outras” (COSTA, 2008, p. 138).

Acolher parentes ou amigos negros ou negras desempregados tornou-se caso de polícia com a possibilidade de encarceramento. “Uma postura da cidade de Limeira proibia que se acolhesse liberto desempregado por mais de três dias sem avisar a polícia, que poderia intimá-lo a “tomar ocupação” sob pena de oito dias na cadeia e multa correspondente a um mês de salário” (COSTA, 2008, p. 138).

O desemprego, portanto, era considerado um desvio social que deveria ser combatido e punido exemplarmente com penas de prisão e pecuniária. Liberdade, mas não para todos e todas. Vítima de um sistema que os mantinha excluídos, negros e negras serão responsabilizados social e juridicamente por isso. Para Fernandes (2014, p. 568, grifo no original), “[...] a ordem social competitiva emergiu-se, expandiu-se compactamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos”. Apenas as portas das antigas e novas senzalas encontravam-se abertas, mas muitos nem podiam sair por não ter para onde ir.

Por tudo isso, manter-se invisível em um mundo de branco foi necessário. As comunidades negras quilombolas do período republicano se mantiveram em um silêncio que as protegia. Não havia como confiar naqueles que os seviciavam, que as estupravam, que os demonizavam, que os denominavam de preguiçosos, feios, fétidos, que controlavam suas vidas.

Em alguns lugares eles têm mais memória da escravidão do que em outros. No cajueiro, eles não gostavam de falar da escravidão. Aí toda vez que eu tocava no assunto: ‘“Não. Isso não. Isso foi do tempo do vai”’. Eles dizem que os brancos só diziam: ‘“Vai fazer isso! Vai fazer aquilo! Vai encher água! Vai”’. Aí eles ficaram dizendo que era do tempo do ‘“vai”’. Aí o que eu deduzi? Em alguns lugares, mesmo que todos tivessem em comum a história do cativeiro, uns procuravam apagar de sua memória. (PEREIRA, 2013, p. 303).

A memória e o esquecimento compartilham as mesmas angústias de um tempo em que a escravização corrompia seus corpos. Ambas são instrumentos de defesa. É o momento e a situação que define qual das duas deverá ser acionada.

No livro “Marca de fogo: quilombos, resistência e a política do medo – Minas Gerais, século XVII”I, Lima (2016) demonstra como o Quilombo de Palmares encrustou no imaginário dos colonizadores e das autoridades imperiais como expressão da possibilidade de rebeldia de toda a comunidade negra escravizada.

A memória das experiências vividas pelas autoridades colonizadoras luso- brasileiras em relação aos quilombos de Palmares foi marcante na construção dos estereótipos aos quilombos mineiros em registros escritos. O medo de repetição do fenômeno-problema de Palmares ecoou, de maneira evidente, nas representações sobre quilombos em Minas Gerais. Hipoteticamente, antes de qualquer quilombo sequer existir nas Minas, já existia o temor da rebeldia escrava e da formação de quilombos, medo sentido pelas autoridades devido à memória de Palmares. (LIMA, 2016, p. 74).

Este medo se combatia através de repressão violenta e de discurso de ódio em que se encarceravam os quilombolas em adjetivos nada elogiosos, tipificando-os como sujeitos violentos, cruéis.

No entanto, a longa duração de existência do quilombo de Palmares seduzia e demonstrava a força e o poder da organização quilombola. Não havia como apagar das vivências de homens negros e de mulheres negras a experiência palmarina.

Os famosos mocambos do Brasil estariam localizados nas sombras da sociedade escravista, em regiões onde a autoridade colonial teria dificuldades de penetrar. A memória de Palmares seria, portanto, como uma sombra que provocava temor e espanto nas autoridades não apenas pela sua ousadia e capacidade de resistência, mas também pela notoriedade da suposta organização social e cultural, religiosa e política dos palmarinos. (LIMA, 2016, p. 75).

Após a Abolição, desenvolveu-se uma narrativa para apagar os quilombos da história brasileira ou transformá-los em uma experiência esporádica e regionalizada. Zumbi estava morto. Dandara estava morta. Era preciso silenciar suas vozes e os tambores que ecoavam da Serra da Barriga. Conseguiram fazer o isolamento acústico, abafando-o, utilizando diversos artifícios. Mas as dores dos negros e das negras reverberaram e reverberam aqueles sons, repletos de esperança e de luta.

Quilombo se eterniza como símbolo de luta e de resistência. Nos anos de 1960, principalmente de 1970, resgata-se a palavra quilombo, relacionando-a à resistência à ditadura, instalada com o Golpe Militar de 1964. “Nas interpretações e nos usos políticos, o quilombo podia ser tanto a resistência cultural como a resistência contra a ditadura” (GOMES, 2015, p. 127). No entanto, a necessidade da regularização das terras que as comunidades quilombolas ocupam permanecia esquecida.

No Nordeste, região onde se encontrava encravado Palmares, os sons palmarinos foram sentidos, já no século XX, em agosto de 1985, por negros e por negras maranhenses que moravam em “terras de preto”. Tinham a posse, situação jurídica precária, queriam a titulação daquelas terras. O momento era extremamente propício para debater sobre o tema: a Assembleia Nacional Constituinte, convocada por José Sarney, em junho de 1985.

Em 1986, o Centro de Cultura Negra (CCN) realizou o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão, em que se discutiu a necessidade da regulamentação das terras em que habitavam (PEREIRA, 2013). Na verdade, “[...] desde a década de 1980, o Centro de Cultura Negra do Maranhão, através do Projeto Vida de Negro (CCN/MA/PVN), passou a priorizar os conflitos agrários nas terras de preto ou terras de quilombos no Maranhão” (GOMES, 2009, p. 188).

No mesmo ano, em Brasília, no mês de agosto, o Movimento Negro Unificado organizou a Convenção Nacional “Negro e a Constituinte”. Nesse encontro, propuseram a criminalização do racismo e a regularização das terras de quilombos, com destaque do papel das organizações nordestinas para esta última pauta, principalmente, as radicas no Maranhão.

Não se quer, aqui, descrever, minuciosamente, incluindo os debates na Assembleia Constituinte, o itinerário que os quilombolas percorreram até a inserção na Constituição de 1988 de uma norma que lhes garante a titularidade das terras que ocupam. Este caminho é muito longo, ultrapassando décadas, séculos de resistência à desumanização de homens negros e de mulheres negras.

Os quilombolas haviam conseguido, pela primeira vez na história do direito brasileiro, inverter o sinal que os identificava como criminosos, violadores da lei, para percebê-los como pessoas que resistiram e resistem à opressão. Quilombos são direitos humanos de negros e de negras brasileiras que se expressam coletivamente na luta contra a violação da dignidade da pessoa humana negra.

Não se pode esquecer que, no direito brasileiro, o termo quilombo é inserido na legislação colonial como ilícito, portanto, proibido e sancionado, conforme dispõem as Ordenações Filipinas, especialmente, no Livro V, ao estabelecer as sanções para as fugas e para quem colaborasse com elas, que vai das galés à pena de morte (LARA, 2000).

Quilombo reaparece na legislação brasileira, inicialmente, na Lei 7.668, de 22 de agosto de 1988, que criou a Fundação Palmares, e, depois, na Constituição Federal de 1988, com sentido modificado para direito, atrelado à garantia, ao gozo e à fruição dos direitos decorrentes da propriedade imóveis urbanos e rurais.

Portanto, a atual Constituição Federal brasileira abriga em seu corpo, mais precisamente no art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a seguinte norma: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Diz-se que os quilombos reaparecem na legislação brasileira, pois nas cidades e nos campos sempre estiveram presentes, principalmente, na zona rural com o cultivo de roças e na manutenção de práticas culturais aprendidas com seus descendentes escravizados. “Os quilombos [na verdade] nunca desapareceram, pelo contrário, se disseminaram mais ainda” (GOMES, 2015, p. 123).

Serra da Barriga Serra da Barriga!

Barriga de negra-mina!

As outras montanhas se cobrem de neve, de noiva, de nuvem, de verde!

E tu, de Loanda, de panos da costa, de argolas, de contas, de quilombos!

Serra da Barriga!

Te vejo da casa em que nasci. Que medo danado de negro fujão!

Serra da Barriga, buchuda, redonda,

do jeito de mama, de anca, de ventre de negra! Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!

Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos? Serra da Barriga,

Serra da Barriga, as tuas noites de mandinga, cheirando a maconha, cheirando a liamba?

Os teus meios-dias: timbum nos peraus Tibum nas lagoas!

Pixains que saem secos, cobrindo Sovacos de sucupira

Barrigas de baraúna!

Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!

De noite: tantãs, curros-curros e bumbas, batuques e baques! E cucas: ô ô!

E bantos: ê ê!

Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos! Aqui é Zumbi!

Barriga da África! Serra da minha terra!

Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi! Depois, minha serra, tu desabando, caindo,

Levando nos braços Zumbi! (LIMA, 2016, p. 134-135).

Entende-se que a picada representada por esta norma no solo íngreme, que é o Direito, pois sua interpretação encontra-se sempre em disputa (BOURDIEU, 1989), começou a ser aberta lá atrás, com o primeiro ato de resistência de uma pessoa negra, escravizada, repleta de medo e de rebeldia: a fuga.


2. A COLONIALIDADE MANIFESTA NA ADI 3239: O CONCEITO COLONIALIZADO DE QUILOMBO E O EMBRANQUECIMENTO DE TERRAS PÚBLICAS E PARTICULARES

O sistema escravocrata racializado teve início como colonialismo com hierarquia superior europeia e inferior dos povos colonizados em um mecanismo que permaneceu, como já referido, após a declaração de emancipação das nações como colonialidade que atua na manutenção das inferiorizações como par oculto da modernidade (QUIJANO, 2005). Neste capítulo, trilha-se pela colonialidade como forma de manter o laço de inferiorização pela negação de direitos aos remanescentes dos quilombos garantidos na CF/88 .

De acordo com Quijano (2005), a colonialidade possui como eixo de dominação e de exploração a classificação racial/étnica da população do mundo em que a raça branca se encontra em posição hierárquica superior às outras, operando nas dimensões materiais e subjetivas da existência social quotidiana e da escala societal.

Andando por este caminho, percebe-se que o direito se apresenta como instrumento de intimidação das revoltas escravas e de punição exemplar dos rebelados ou aquilombados. Na verdade, o direito pode ser considerado partícipe do processo de colonialidade que mantém a desumanização de negros e de negras.

Não se limita às penas cruéis que previam a pena de morte a negros rebelados ou que cometessem homicídio contra quem possuía a chave da senzala, mas também ao impedimento de pessoas negras terem seus direitos territoriais, como a Lei das Terras. É possível identificar uma nítida relação entre a Lei das Terras e a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3239 proposta pelo DEM, pois ambas possuem o mesmo objetivo: impedir que os negros e as negras tenham acesso à terra que ocupam com suas moradias rurais e urbanas e suas roças rurais.

A ADI 3239 emerge da colonialidade que inferioriza a pessoa negra na hierarquização eurocêntrica, e que se legitima pela naturalização da suposta supremacia branca com a consequente subalternização, exploração e desumanização dos não brancos. Na referida ação judicial, sobressai um entendimento de que a colonialidade do poder se utiliza da hermenêutica jurídica para mitigar os aspectos que são favoráveis aos subalternos.

A discussão no presente capítulo segue o seguinte itinerário: a pessoa escravizada e o direito; a inferiorização pela raça; a mundialidade do projeto europeu; a diferença entre colonialismo e colonialidade; a colonialidade do poder, do saber e do ser; o sujeito de direito e o ser negro; as terras quilombolas na CF/88 ; a contestação do direito às terras quilombolas e a colonialidade na ADI 3239.

2.1. A pessoa escravizada e o direito

A escravidão praticada nas colônias europeias na América Latina, entre o final do século XV e o século XIX, ataca, inicialmente, os habitantes das terras colonizadas, denominados pelos europeus de índios. Por diversas razões, entre elas, o próprio extermínio destes povos (DORIGNY; GAINOT, 2017) para eliminar o vínculo territorial de pertencentes à terra dominada, a utilização da mão de obra dos negros da terra (FERREIRA; FRANÇA, 2012), posteriormente, é substituída por negros africanos.

“Legalizado, estruturado, até mesmo, incentivado, o tráfico negreiro foi, portanto, uma prática legal desde o final do século XV para as potências ibéricas e, mais tardiamente, para os recém-chegados ao Novo Mundo” (DORIGNY; GAINOT, 2017, p. 27). Foram milhões de pessoas sequestradas da África e trazidas para as colônias instaladas na América, sendo que o cativeiro da maioria delas foi erguido no Brasil, recebendo cerca de um terço do total do tráfico (DORIGNY; GANOIT, 2017).

Apenas em 1850, o tráfico negreiro entre a África e o Brasil passou a ser considerado ilegal, embora a Lei de 7 de novembro de 1831 já declarasse livre os escravos vindos de fora do Império. O tráfico estava proibido; a escravidão, porém, perdurava, pois havia determinação legal que a autorizava. O direito escravizou crianças, jovens, mulheres, homens, ou seja, escravizou pessoas de todas as idades, incluindo aquelas que conseguiam envelhecer, que eram poucas, considerando que a expectativa de vida desse universo era muito baixa.

Em função do domínio espanhol sobre Portugal, que durou de 1581 a 1640, as Ordenações Filipinas regeram juridicamente o sistema escravocrata em terras brasileiras. Esta codificação vigeu por um longo tempo por aqui. Definiu, por exemplo, as relações civis até a entrada em vigor do Código Civil de 1916 e as criminais até o ano de 1830, quando houve a promulgação do Código Criminal do Império (SOUSA; SILVA, 2017).

Nas Ordenações Filipinas, o escravo recebe o tratamento legal destinado à coisa (SOUSA; SILVA, 2017). A Constituição brasileira de 1824 não reservou ao escravo outro destino, mantendo-o com o status de coisa. Conforme seu art. 6°, para ser cidadão brasileiro, deveria ser ingênuo ou liberto. Ingênuo era o homem que era livre desde a sua nascença, e liberto aquele que havia nascido escravo e logrou adquirir posteriormente a sua liberdade.

Portanto, a norma constitucional não lhe reconhecia como pessoa humana, como sujeito de direito. Os escravos não eram sequer admitidos a se alistarem como soldados no exército nem na marinha. A Igreja Católica, do mesmo modo, não os queria nas suas fileiras, proibindo-os de exercer cargos eclesiásticos (MALHEIROS, 1976).

O direito havia reduzido o ser humano africano à condição de coisa, extraindo-lhe a dignidade, desumanizando-o. Por ser coisa, o escravo estava sujeito ao poder e ao domínio de outro ser humano, denominado de senhor. Este podia vendê-lo, cedê-lo a título gratuito ou oneroso (MALHEIROS, 1976). O escravo possuía valor tal qual uma mercadoria.

O preço do escravo era determinado por variáveis dependentes de sua própria pessoa, tais como: idade, sexo, saúde e qualificação profissional. Outras, totalmente externas a ele, também participavam na formação do preço: a concorrência, a distância entre o porto de desembarque e o ponto de venda, a especulação e a conjuntura econômica. A concorrência entre as grandes potências econômicas nos mercados escravos representava um papel considerável na formação do preço do escravo. (MATTOSO, 2016, p. 101).

Vendiam-se e compravam-se seres humanos, ficando o preço submetido à lei do mercado. O valor era definido pelas características que trazia no seu corpo e no seu intelecto. Carne humana de boa, média ou de péssima qualidade. Havido por morto como pessoa (MALHEIRO, 1976), a força humana que o escravo possuía, no entanto, era explorada à exaustão. O corpo negro gozava, pois, de valor e não de dignidade humana.

Se a lei civil definia a pessoa escrava como coisa, a lei penal não lhe permitia esquecer de sua situação jurídica, impingindo-lhe penas cruéis e degradantes. O artigo 179, XIX, da Constituição de 1824, que abolia os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e quaisquer outras penas perversas não era dirigido aos escravos. A lei era igual para todos, dispunha o inciso XIII, do mesmo artigo. Todavia, o escravo não era ser humano, não podendo integrar o pacto que originaria a nação brasileira.

Malheiros pontua (1976, p. 35) que:

Desde que o homem é reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de um outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma, como já havia decidido o Direito Romano. Não pode, portanto, pretender direitos políticos, direitos da cidade, na frase do Povo Rei; nem exercer cargos públicos. (Grifo no original).

O direito constitucional imperial, recheado de garantias e direitos individuais (BASTOS, 1996), retirou do ser humano em situação de escravo o valor que possuía em si mesmo (SANTOS, 1999), destituindo-lhe de direitos fundamentais, negando-lhe dignidade, como já ocorria no direito romano, com a diferença da racialização da escravidão do projeto de domínio europeu, que lhe impingia a marca de naturalização. Por isso, as leis, as portarias, recomendando que os castigos guardassem proporção às irregularidades cometidas pelos escravos, eram contumazmente descumpridas (PINSKY, 2015).

O fato é que para o proprietário os escravos eram vistos antes como propriedade do que como seres humanos. Dessa forma, achavam-se no direito de descumprir leis que considerassem atentatórias à sua condição de donos; não reconheciam na Coroa portuguesa autoridade para limitar aquilo que consideravam seus direitos: propriedade absoluta sobre o escravo, condições de vendê-lo, trocá-lo ou até libertá-lo e, principalmente, de puni-lo até a morte, se não estivesse rendendo tudo aquilo que dele ela esperado. (PINSKY, 2015, p. 68).

A observação de Pinsk refere-se à época do Brasil Colônia, mas vale para o Brasil Império. Na verdade, os escravos, no cotidiano das fazendas, recebiam o tratamento de coisa, desnudados de qualquer valor como ser humano. A lei que permitia a comercialização destes seres, dando legítima posse e propriedade àqueles que os adquirissem, preponderava sobre qualquer outra.

Àqueles que resistem à opressão do sistema escravocrata, a lei garantia tratamento diferenciado. Assim, o código criminal do Império, de 1830, lançava um olhar particularizado sobre os negros escravizados rebeldes. Era preciso combatê-los nem que fosse necessário matá-los e, por conseguinte, perder mercadoria tão valiosa.

Contudo, o código criminal vinha repleto de normas que procuravam garantir o devido processo legal aos homens brancos europeus e a seus descendentes.

Saudado como símbolo de modernidade e portador das novas idéias liberais então em voga na Europa, o Código criminal editado em 16 de dezembro de 1830, exibia, entre seus 312 artigos, um significativo leque de normas diretamente destinados à contenção da rebeldia negra, seja entre escravos, seja entre livres e libertos [...]. (SILVA JR., 1998, p. 73).

A modernidade do código criminal não disfarçava que a cadeia, o presídio, era destinado aos negros. A lei criminal é negra ao punir e branca para absolver por sentença ou pela prescrição. O corpo negro é ultrajado pela Constituição, pela lei civil e pela lei criminal.

De acordo com Pinsky (2015, p. 80), “[...] não havia formalidade quando se tratava de matar um negro”. A Lei 4, de 10 de junho de 1835, demonstra como esta afirmação do autor guarda sintonia com a realidade.

No dia 7 de abril de 1831, após um processo que contou com a participação de diferentes atores e com a efetiva participação popular, Dom Pedro I abdicou do trono (BASILE, 2017). Durante a vacância, 1831 a 1840, em função da menoridade de Dom Pedro II, sucessor legítimo, o Brasil foi governado por regentes.

Basile (2017) pontua que o período regencial é marcado por forte tensão social e acirrada disputa política entre as elites locais, culminando em diversos movimentos de protesto e revolta em praticamente todo o Brasil. Nesse período, encontram-se rebeliões construídas basicamente por escravos, tais como: Carrancas, no ano de 1833, em Minas Gerais; Malês, em 1835, na Bahia; e Rebelião de Manuel do Congo, em 1838, no Rio de Janeiro. Há, ainda, aquelas que tiveram intensa participação da comunidade escrava: Cabanada, nos anos de 1832 a 1835, em Pernambuco e Alagoas; e a Balaiada, nos anos de 1838 a 1841, no Maranhão e Piauí (BASILE, 2017).

A resposta do sistema escravocrata a essas manifestações dos escravos foi a aprovação da Lei nº 4, de 10 de junho de 1835. Esta Lei estabelece em seu art. 1º que:

Serão punidos com a pena de morte os escravos ou as escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seus senhores, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem.

Se o ferimento, ou a ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.

Percebe-se que a Lei procura proteger, por meio de uma pena capital, aqueles que efetivamente exerciam o controle sobre os corpos escravizados. Era preciso cercar de cuidados aqueles que eram os responsáveis por manter o sistema escravocrata funcionando perfeitamente.

Diante da considerada insuficiência das punições tipificadas na lei penal que não foram capazes de conter a rebeldia negra, o Código Criminal punia com a pena de morte apenas os casos de insurreição de escravos, de homicídio qualificado e de homicídio com roubo (RIBEIRO, 2013), o sistema escravocrata demandou a necessidade de aprovar uma lei que trouxesse outras condutas passíveis de imposição da pena de morte aos escravos e que deixasse aos magistrados a forte discricionariedade no momento de aplicá-la: a grave ofensa física. A referida Lei não descreve as lesões que caracterizariam a grave ofensa física. Dessa incerteza semântica, surgia a convicção da punição aos escravos rebeldes.

Destaca-se que, de acordo com o art. 4º dessa Lei, em caso de sentença condenatória, não caberia qualquer recurso. Para Malheiros (1976, p. 48):

Quanto aos recursos, é exorbitante de todos os princípios de justiça que contra o escravo condenado, nos casos especiais da Lei de 10 de junho e outros, subsista a primeira e única decisão, sem lhe ser facultada a revisão do processo, quando tal condenação pode ser injusta, como infelizmente se tem verificado em muitos casos.

Desse modo, a sentença era executada sem que o escravo detivesse o direito de recorrer ao imperador, que poderia modificar a pena que lhe foi aplicada, inclusive perdoando-o (PINSKY, 2015). Sem direito a recurso, o escravo seria punido exemplarmente, protegendo, pelo possível efeito pedagógico da pena, aqueles que moravam na Casa Grande.

A proposta de 1833 elegia, nesse sentido, a família senhorial e os agentes mais diretamente ligados ao controle da produção como um grupo privilegiado, que passaria a ter uma barreira legal de proteção contra possíveis ações rebeldes dos cativos. Os ataques escravos contra esse grupo seriam severamente reprimidos. (PIROLA, 2012, p. 36).

Ao fugir, ao rebelar-se, o escravo deveria, em primeiro lugar, livrar-se das correntes que o prendiam e daqueles que o mantinham em cativeiro. Por isso, a necessidade de proteger aqueles que possuíam as chaves das senzalas. O caso de Ambrósio evidencia o afirmado.

Tudo indica que o escravo Ambrósio estava decidido a viver em liberdade, a todo custo. Ao fugir da casa de seus proprietários, negociantes da cidade de Campinas, matou o empregado que experimentou impedi-lo. Sendo alcançado em Sorocaba, novamente deu cabo de um dos que tentavam reconduzi-lo ao estado de cativeiro. Condenado e preso, logo escapou, colocando em alerta aqueles que o temiam circulando, pois ele jurava várias pessoas de morte. Apanhado em Botucatu, foi reconduzido à cadeia de Campinas. (ODA; OLIVEIRA, 2008, p. 372).

Tais fatos aconteceram no ano de 1873. O negro Ambrósio só não foi sentenciado à pena de morte porque, em 12 de outubro de 1874, suicidou-se com um golpe de faca em seu pescoço (ODA; OLIVEIRA, 2008). Os autores afirmam que as ocorrências criminais de Ambrósio tiveram grande repercussão entre os moradores da cidade de Campinas-SP.

Nas décadas que antecederam a extinção da escravidão em terras brasileiras, havia um medo crescente de insurreição de escravos, levando a sociedade escravocrata a criar normas que impediam ou que puniam exemplarmente quem dela participasse (COSTA, 2010).

Uma delas proibia que os escravos adquirissem e portassem armas. Outra que compensava pecuniariamente o escravizado que denunciasse algum plano insurrecional. Havia, quase sempre, alguém pronto a trair seus companheiros de senzala. Entre esses, havia aqueles que se tornariam capitão do mato, o que minava internamente a resistência.

Durante toda a existência do Estado brasileiro, no regime escravista, ele se destinava, fundamentalmente, a manter e defender os interesses dos donos de escravos. Isto quer dizer que o negro que aqui chegava coercitivamente na qualidade de semovente tinha contra si todo o peso da ordenação jurídica e militar do sistema, e, com isso, todo o peso da estrutura de dominação e operatividade do Estado. (MOURA, 1988, p. 22).

A figura do capitão do mato compõe essa estrutura de dominação e operatividade do Estado escravocrata. Sua origem encontra-se relacionada aos quadrilheiros, que possuíam o encargo de controlar os moradores das vilas e das cidades portuguesas. Tinham como atribuição o policiamento dos costumes e de repressão a ilícitos penais. Em 1730, a Câmara do Rio de Janeiro institui os quadrilheiros em terras brasileiras, modificando a designação para capitão do mato, com a função exclusiva de captura de escravos fugidos (FIABANI, 2005).

Se alguns escravos desafiavam o regime escravocrata individualmente, o capitão do mato, um negro que capturava os escravos fugidos, fazia dessa empreita seu projeto de ascensão social. Segundo Pinsk (2015), o serviço desempenhado pelo capitão do mato ,além de ser bem renumerado, era legitimado socialmente: “Ser capitão do mato, trair suas origens, era uma das poucas formas de o negro romper a barreira etnossocial e usufruir – carregando embora a maldição de traidor – o sistema que o havia oprimido” (PINSK, 2015, p. 88).

Freire (2016) acentua que, em um processo de desumanização, o oprimido compreende que “ser é parecer e parecer é parecer com o opressor”. Uma humanização que não se completa por inteiro, pois não permite a consciência de si. Uma humanização por aparência.

A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade. (FREIRE, 2016, p. 44).

É imerso nessas contradições que o capitão do mato procura desempenhar com robustez a sua profissão: caçar negros fugidos. Desse modo, ele representa uma peça em uma engrenagem que o sistema escravocrata construiu para combater as fugas individuais e principalmente os quilombos. Criaram-se uma estrutura administrativa e um arcabouço jurídico que cuidavam da repressão aos quilombos, criminalizando, inclusive, o auxílio aos escravos fugidos. “A fuga não era crime, mas auxiliar e esconder fugitivos – acoutar – se constituía em crime grave” (FIABANI, 2005, p. 295). Os escravistas sabiam que não havia como se manter em fuga se não houvesse ajuda de cativos, libertos ou livres.

Pequeno ou grande, os quilombos foram enfrentados tenazmente, geralmente por tropas organizadas pelas autoridades locais. Esse aparelho repressor aos quilombos é desarticulado com a extinção da escravidão, em 1888.

Não havia mais necessidade de controlar a fuga dos cativos e de destruir quilombos. Agora era necessário desarticular os que permaneciam fincados em algum lugar e os que estavam em processo de formação, e construir o discurso de que os quilombos pertenciam ao passado escravista. O direito continuava sendo um forte aliado. Agora, com uma tática sui generis: o silêncio, e, com isso, o apagamento das experiências, evitando o acionamento de demandas jurídicas por pessoas marcadas pela herança escravocrata.

Nenhuma das constituições republicanas, até a promulgação da Constituição em vigor, no ano de 1988, faz qualquer menção aos quilombos, inclusive a primeira Constituição da República, datada do ano de 1891, portanto, apenas três anos após a edição da Lei 3.353/1888, que declarou extinta a escravidão no Brasil.

Após um longo período de invisibilidade, os quilombos voltam a integrar o direito pátrio. Como a maioria dos quilombos que se ergueram em local de difícil acesso, escondidos em serras, pântanos e florestas, a comunidade quilombola edificou suas cercas no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988. Um local com aparência de puxadinho em relação ao texto constitucional, considerando a natureza e a localização do ADCT no final do texto constitucional, provocando discursividades sobre a natureza constitucional e o prazo de validade deste.

Para o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffloli10, as disposições contidas no ADCT não possuem a mesma natureza jurídica que as outras regras constitucionais que se localizam, propriamente, no texto constitucional, insinuando que tratam de preceitos de caráter transitório e excepcional. No entanto, há quem entenda que “As normas do ADCT são normas constitucionais e têm o mesmo status jurídico das demais normas do Texto principal” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 88).

Independentemente da natureza jurídica do art. 68 do ADCT da CF/88, o aparelho repressor aos quilombos, que não havia se desmantelado por inteiro, cuidou de destruir as cercas, as paliçadas e silenciar os sons dos tambores das comunidades quilombolas. Para isso, utilizou-se de antigas e de novas estratégias, mas ambas com apoio do direito.

De fato, o direito não apenas respalda essas ações, como representa o próprio mecanismo de enfrentamento aos quilombos. Assim, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), em junho de 2004, protocolou, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação judicial, a ADI 3239, em que questiona a constitucionalidade do Decreto 4.887/200311.

Este Decreto regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de l988 (CF/88).

Na ação, entre outras coisas, o DEM, ainda que de forma indireta, objetiva que o STF fixe o conceito de quilombo como “[...] comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país” 12.

Adstringir o movimento quilombola a um passado remoto, significa dizer que não existem mais os motivos pelos quais os negros se aquilombaram. A partir da leitura do seu pedido de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, pode-se afirmar de forma incisiva que o DEM deseja destruir os quilombos permanentemente.

Nina Rodrigues entendia que os quilombos, referindo-se principalmente a Palmares, representavam uma ameaça ao processo civilizatório brasileiro e que, por isso, aqueles que os destruíram mereciam todos os louvores.

A todos os respeitos menos discutível é o serviço relevante prestado pelas armas portuguesas e coloniais, destruindo de uma vez maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro, nesse novo Haiti, refratário ao progresso e inacessível à civilização, que Palmares vitorioso teria plantado no coração do Brasil. E esse sucesso não foi produto de uma ação fácil e sem perigo. Custou, ao contrário, à tenacidade e previdência do governo colonial, grandes sacrifícios de homens e de dinheiro. (RODRIGUES, 1982, p. 78).

Embora, aparentemente, uma revolução negra tenha se dissipado nos horizontes históricos do Brasil, o projeto da colonialidade permanece e, com ele, a perspectiva de apagar da história qualquer referência positiva que se faça aos quilombos com a política de enaltecer os responsáveis pela destruição das comunidades quilombolas, erguendo bustos em praças públicas, nomeando escolas, ruas, avenidas, cidades com seus nomes para enterrar na história para sempre a rebeldia negra.

Para tanto, o DEM almeja aprisionar o conceito de quilombo a uma experiência que se esgotou com o fim da escravidão. Mais do que isso, quer deslegitimar o discurso dos quilombolas. É preciso esvaziar por completo o significado que o art. 68 do ADCT da CF/88 pode representar para as comunidades negras. O direito é o instrumento escolhido para tal empreita.

Acontece que é a partir da norma constitucional que as comunidades quilombolas acionam processos que lhes dão visibilidade, principalmente jurídica, e que serve ao mesmo tempo como ponto de partida para que negros e negras se aquilombem na luta por terra, moradia e pela preservação dos seus modos de criar, de fazer e viver.

No caso, há uma disputa, expressa na ADI 3239, pelo conceito de quilombo em que o DEM pretende relegar a experiência quilombola ao passado de um Brasil escravocrata. Nega, por meio desse discurso, que ainda perduram os motivos pelos quais os negros e as negras se aquilombavam, invisibilizando os quilombos que se formaram e se levantam hodiernamente nas periferias das cidades brasileiras.

Esse processo de desvalorização da resistência negra constitui um dos elementos da colonialidade, assim como, a demonização das religiões de matriz africana, a folclorização de suas culturas e, principalmente, na desumanização de seus corpos negros. Tudo isso com um objetivo bastante nítido: embranquecer a religião, o saber, os corpos. Santos (2002, p. 101) afirma que no Brasil há “um desejo do branqueamento”. No caso, o DEM pretende evitar o enegrecimento do solo brasileiro com o reconhecimento do devido pertencimento das pessoas negras pela titulação das terras em que vivem e trabalham. Sem terra para cultivar seus modos de criar, de fazer e de viver, não há como negros e negras viverem de forma digna, plena. É privar o negro de sua beleza estética, moral e material (SANTOS, 2002).

Quijano (2005) demonstra que os negros africanos e afrodescendentes, a partir da ideia de raça, foram colocados em uma situação natural de inferioridade pelos povos europeus. Esta construção mental ainda permeia, mesmo com o fim da dominação colonial, as relações sociais nos países da América Latina, incluindo, logicamente, o Brasil.

2.2A ideia de raça como inferiorização do colonialismo e da colonialidade

Segundo Godeiro e Soares (2016), o mercado mundial capitalista se formou entre 1500 e 1750, apoiado em capital comercial que financiou um sistema que dominou e escravizou indígenas e africanos, e se apropriou das riquezas existentes, em sua maior parte, na América. A prosperidade da Holanda, da Inglaterra, da Espanha, e em menor escala, de Portugal, só foi possível graças ao sistema colonial.

A exploração das colônias permitiu uma acumulação inicial de riqueza que deu vida ao capitalismo industrial nascido na Inglaterra por volta de 1750 e, posteriormente, possibilitou a nova época do capitalismo mundial, o imperialismo, que surgiu entre 1875 e 1900. (GODEIRO; SOARES, 2016, p. 26).

A acumulação destas riquezas na Europa significou o empobrecimento das colônias e uma matança generalizada e desmedida dos povos originários da América e de negros africanos que serviram de mão de obra escrava nas áreas colonizadas. “Quanto mais as metrópoles se enriqueciam, mais as colônias se empobreciam” (GODEIRO; SOARES, 2016,p. 27). Para estes autores,

Com o surgimento do mercado mundial, a história só pode ser apreendida numa totalidade. Sem entender o fenômeno do capitalismo nascente e seu domínio do mundo não é possível analisar, seriamente, a economia e a política mundial e local, de 1500 em diante. Desde então, o capitalismo assumiu três fases (mercantil, industrial e monopolista) e se consolidou como um sistema econômico e político mundial. (GODEIRO; SOARES, 2016, p. 27).

De fato, a compreensão desse evento histórico, o surgimento do capitalismo/moderno e eurocentrado (QUIJANO, 2005), serve como ponto de partida para analisar a economia, a política e, principalmente, as relações sociais travadas nos países colonizados. No entanto, chama-se a atenção para incluir nos elementos dessa reflexão a ideia de raça.

De acordo com Quijano (2005), a América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial: o capitalismo/moderno e eurocentrado. O espaço, o continente americano; o tempo, os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

Para isso, segundo esse autor, os colonizadores europeus construíram a ideia de raça, em que uma delas, apenas uma, se sobressai sobre as outras por ser naturalmente superior. Essa superioridade outorgaria legitimidade às relações de dominação que surgem a partir da colonização de territórios e da escravização de seres humanos.

Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importante do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. (QUIJANO, 2005, p. 227).

Portanto, a dominação colonial dos europeus sobre os povos latino-americanos, incluindo aqueles trazidos da África para estas terras, baseou-se na ideia de que há uma raça superior à outra. Essa classificação social obedece a um padrão estabelecido pelo colonizador no qual preponderam seus interesses e seus objetivos.

Escobar (2005, p. 136) afirma que os lugares são uma criação histórica que devem ser explicados, considerando-se as maneiras pelas quais “[...] a circulação global do capital, o conhecimento, e os meios configuraram a experiência da localidade”. A América Latina seria, então, um lugar forjado em processos de dominação e escravização de indígenas e de negros africanos, da exploração dos recursos naturais e de suas riquezas pelos colonizadores, permitindo o acúmulo de capitais que possibilitou a concretização do projeto de modernidade na Europa.

Uma história movida pela vontade de apropriação de riquezas e territórios, de extrema ganância, de banalização do ser humano, de violência insana, de genocídio de povos indígenas e da escravização de milhões de pessoas por europeus brancos. Uma experiência que deixou um gosto amargo na vida dos não brancos e que, ainda, costura relações sociais assimétricas em seu cotidiano. Há um pós-colonial, mas não existe uma pós-colonialidade.

La colonialidad va más allá del colonialismo, el cual es apenas una parte de ella. Ni siquiera es simplemente una jerarquía política sino también una jerarquía sociocultural. Por esta razón, prevalece sin tropiezos aún después de que las colonias obtuvieron su independencia formal. La colonialidad ha existido como parte del sistema mundial moderno hasta hoy es el producto y la justificación de las desigualdades entre las zonas centrales y las zonas periféricas de la economía -mundo capitalista. Se manifiesta política, económica y culturalmente, en nuestra forma de pensar, hablar y proceder. La colonialidad se reproduce así mismo, pese a que las personas que se encuentran en los niveles más bajos de la jerarquía tratan, obviamente, de luchar contra ella.13 (WALLERSTEIN, 1992, p. 3).

Colonialidade, logo, não possui o mesmo significado de colonialismo. Este se manifesta pela relação política e econômica entre duas nações ou dois povos em que um deles tem seu território ocupado, ficando submetido à autoridade e ao controle desmedido do outro. Por sua vez, colonialidade expressa um padrão de poder, moldado juntamente com o colonialismo e refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si, por meio do sistema capitalista e da ideia de raça (MALDONADO-TORRES, 2007).

A atuação da colonialidade como padrão se deve ao fato de possuir uma gênese única que determina um modelo que serve de paradigma para processos e procedimentos. A origem é eurocentrada e o modelo fundamentado na ideia de que a raça branca é superior a qualquer outra.

A relação colonizador-colonizado se manifestava pela tonalidade da pele em que o primeiro se arvora do direito de classificar o outro e de escravizá-lo. Com o fim do colonialismo, essa relação resumiu-se a branco-negro, branco-mestiço, em que o segundo continua desempenhando papéis similares àqueles imputados aos escravizados.

O colonialismo precede, pois, à colonialidade e esta não findou com o término do regime colonial, encontrando-se entranhada, ainda hoje, no modo como se vive e como se sente no continente latino-americano, na África e na Europa na relação com migrantes não brancos. Nada escapa à colonialidade. Maldonado-Torres (2007) afirma que, cotidianamente, respira-se a colonialidade. Poder-se-ia usar a crase que o sentido não se modificaria: respira- se à colonialidade.

La misma se mantiene viva em manuales de aprendizaje, em el critério para el buen trabajo acadêmico, en la cultura, en sentido común, em la auto- imagem de los pueblos, en las aspiraciones e de los sujetos, y en tantos otros aspectos de nuestra experiência moderna.14 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).

O colonialismo se apossa de riquezas e desumaniza seres humanos pela escravização. A colonialidade também trilha por esses mesmos caminhos, porém o faz sutilmente, embora se utilize da mesma carga de violência: é preciso se embranquecer para ser um ser humano.

A colonialidade designa, pois, um sistema de dominação, estruturado na ideia de raça, na qual as relações entre os sujeitos são verticalizadas, baseada na suposição de que há uma identidade superior a outra. Os destinos dos seres humanos foram traçados, por conseguinte, em função da raça: ao branco, o mando, a pureza, a luz, a honestidade, a racionalidade; ao negro, a obediência, as trevas, a ignorância, a desonestidade, a insensatez, a irracionalidade e tudo qualificado como ruim, mal.

Maldonado-Torres (2007) alerta que não se pode considerar a colonialidade como resultado ou o resíduo de qualquer relação colonial. A colonialidade possui uma lógica de funcionamento específica que se estrutura e se movimenta sobre dois eixos: a codificação das diferenças biológicas na ideia de uma raça na qual os brancos são superiores a todas as outras e a constituição de uma nova estrutura de controle do trabalho e dos recursos naturais. A colonialidade sobrevive e se constrói independentemente da existência de uma relação colonial.

Como já se assinalou em outros momentos, é a partir da ideia de raça, isto é, da classificação da população mundial de acordo com o critério racial estabelecido pelos europeus que se gestou um sistema de dominação sobre o qual se forjou a identidade na modernidade.

Desde o início da primeira modernidade, sob hegemonia ibérica, que a colonialidade lhe é constitutiva. A América teve um papel protagônico, subalternizado é certo, sem o qual a Europa não teria acumulado toda riqueza e poder que concentrou. Sublinhemos que a teoria da moderno- colonialidade ao ressaltar o papel protagônico subalternizado indica um lugar menor da América e maior da Europa, como se poderia pensar nos marcos dicotomizantes do pensamento hegemônico. (PORTO- GONÇALVES, 2005, p. 11).

Por isso, pode-se dizer que a colonização da América não possui apenas um significado local, tem alcance planetário, que implica resultados positivos para a Europa e negativo para a América: a melhoria no nível de vida, a participação maior da população na gestão do Estado, o avanço tecnológico na área da saúde e no saneamento básico europeu, por exemplo, relacionam-se diretamente à poluição de rios e mares, à derrubada de florestas, ao genocídio dos povos indígenas e à escravização de negros e de negras na América. A democracia europeia está assentada em regimes de opressão na América Latina e na África.

A modernidade racional, secular dorme tranquilamente com as mãos sujas de sangue de seres humanos e deleita-se à sombra de riquezas roubadas. O genocídio dos indígenas, o estupro de mulheres negras, a mutilação de corpos negros, a banalização da vida de pessoas negras, tudo isto faz parte da modernidade como seu lado não visível, a colonialidade.

Este modelo de poder está en el corazón mismo da la experiência moderna. La modernidade, usualmente considerada como el producto, ya sea del Renascimento europeo o de la Ilustración, tiene um lado oscuro que le es constitutivo. La modernidade como discurso y prática no seria possible sin la colonialidade, y la colonialidad constituye una dimensión inescapable de discursos modernos.15 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132).

A modernidade ensaiou um discurso de que seria resultado de fenômenos sociais que tem como espaço a Europa e como tempo o século XVIII, alijando os povos dos outros continentes desse processo, no qual o ser humano havia superado as trevas da ignorância e derrotado governos despóticos.

Para tal, tornou invisível a escravização e o genocídio de seres humanos e o roubo de riquezas que haviam sido construídas ou que pertenciam a outros povos e que permitiram à Europa se modernizar. Portanto, a colonização da América é “[...] o movimento historicizante que [...] dá forma e conteúdo” (FANON, 1968, p. 26), à modernidade.

O discurso da modernidade aparece com o surgimento e a consolidação da economia capitalista, capitaneada pelo circuito comercial do Atlântico e, consequentemente, com a exploração das minas, do solo, das florestas, das águas dos países colonizados. Mas não só isso. Também acumulou capital com a venda e a compra de seres humanos e estabeleceu novas relações entre raça e trabalho em que não há pagamento de salário ou uma remuneração condizente com o esforço físico ou mental desprendidos (MIGNOLO, 2005).

A partir deste momento, do momento da emergência e consolidação do circuito comercial do Atlântico, já não é possível conceber a modernidade sem a colonialidade, o lado silenciado pela imagem reflexiva que a modernidade (por ex.; os intelectuais, o discurso oficial do Estado) construiu de si mesma [...]. (MIGNOLO, 2005, p. 74-75).

Esse silêncio não deixa enxergar que a modernidade se alicerçou com fixação de colônias no continente americano e da classificação dos seres humanos a partir da ideia de raça. A colonialidade mascara que a modernidade é fruto das relações verticalizadas que se construiu entre colonizador e colonizado no qual aquele, por ter “entre más clara sea la piel” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132)16, domina, subordina os outros silenciosamente. A colonialidade é o outro lado da modernidade, como bem disse Mignolo (2005).

Assim, há uma narrativa que descreve o capitalismo, como a própria modernidade, como um fenômeno europeu e não um sistema-mundo, no qual todos os grupos humanos participaram de sua construção e consolidação, ocupando, logicamente, posições distintas de poder. Os europeus colonizaram, exploravam, pilharam; os povos autóctones, negros e afrodescendentes trabalharam compulsoriamente.

Ávidos por obter lucros, reduzem os custos da produção com a desumanização de seres humanos e a objetivação da natureza. Wallerstein observa que a motivação dos proprietários dos meios de produção consiste basicamente em acumular capital.

La esencia de este sistema[capitalista] consistió en reunir todo tipo de procesos de producción en una área muy amplia (la “economía – mundo”) en la cual la principal motivación de los propietarios era acumular capital. La búsqueda incesante de esta acumulación es la característica concreta que define al capitalismo.

El afianzamiento de este sistema económico requirió de varios cambios: Una creciente mercantilización de todas las actividades productivas y una acentuada división geográfica del trabajo en la cual las actividades más rentables y monopolizadas se concentrarían en un centro y las menos rentables y más competitivas quedarían en la periferia. Como las actividades eran menos rentables en la periferia, era necesario un mayor esfuerzo para reducir los costos de mano de obra, utilizando un alto grado de coacción sobre los trabajadores.17 (WALLERSTEIN, 1992, p. 3-4).

Nessa divisão geográfica do trabalho, a uma América-Latina colonizada coube fornecer recursos para a Europa, principalmente, por meio da exploração predatória do meio ambiente e por meio da utilização da mão de obra escravizada na produção de bens exportáveis para a Europa. A independência política não alteraria radicalmente a tarefa que lhes foi destinada pela modernidade. Para o sociólogo americano, o sistema capitalista representa um dos diversos fenômenos que compõe a modernidade.

Desse modo, o uso da expressão modernidade/colonialidade evidencia que a divisão social do trabalho, a partir da classificação da humanidade em raça, ainda perdura e que alimenta a fome do capitalismo por lucro, e que não pode haver modernidade sem colonialidade. Mais do que uma simples consequência, a colonialidade é constitutiva da modernidade (MIGNOLO, 2005) que se fundamenta na ideia de raça.

Mignolo (2005) afirma que a colonialidade é o lado mais escuro da modernidade. No entanto, é a colonialidade que permite aos europeus iluminar suas consciências com a racionalidade e preencher de novas ideias e de novas formas de percepção do mundo suas mentes.

A colonialidade em suas múltiplas formas de manifestação, do poder, do saber, e do ser, inviabiliza o ser negro de ser, de concretizar suas mais banais aspirações, como moradia, lazer, alfabetização, e de ser humano por inteiro.

2.2.1A Colonialidade do Poder

A partir de suposta diferença biológica, estabeleceu-se, então, a inferioridade natural do outro (QUIJANO, 2005), que tal como um animal irracional deveria ser domesticado para alimentar ou proteger o seu dono. Ao mesmo tempo, legitima o apossamento das terras e das riquezas desses seres humanos inferiores, incapazes intelectualmente de geri-las.

A ideia de raça, portanto, em sentido moderno, nasce com o descobrimento da América. As hipotéticas diferenças biológicas adquiriram conotação racial. As relações sociais originadas dessa forma de pensar produziram identidades sociais que podem ser historicamente datadas. É nesse momento que surgem os índios, os negros e os mestiços (QUIJANO, 2005).

Se a ideia de “negro” foi construída por supressão ou minimização das diferenças tribais, é preciso salientar que os negros africanos tampouco se viam como “africanos”. A África foi também uma construção da “Europa”. [...] Quem pela primeira vez avaliou estes povos a partir de uma identidade étnica e continental – enquadrada em um lugar único – foi o próprio homem “branco” europeu, já que esta questão não se colocava então para os “negros africanos” da época. (BARROS, 2014, p. 40).

Essa codificação foi inicialmente estabelecida, provavelmente, na área britânico-americana. Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raça colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa sociedade colonial. Em consequência, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos. (QUIJANO, 2005, p. 229).

Ao chamaram-se a si mesmos de brancos, os colonizadores não estavam definindo apenas um elemento que os diferenciava dos escravizados, mas uma marca de superioridade natural. Essa classificação a partir da cor da pele tornava o continente africano uma unidade cultural, sem diferença religiosa, alimentar ou mesmo política. Havia, ali, apenas um mercado fornecedor de mão de obra negra escravizada.

Os colonizadores europeus se aproveitaram dessa diferença biológica para construir uma diferença social. Por meio dessa distinção, comercializaram seres humanos, estupraram mulheres, espancaram crianças, torturaram idosos, violentaram física e psicologicamente homens negros.

A cor da pele não foi, naturalmente, uma invenção do capitalismo, nem de sistema algum – foi produto das diferentes condições ecológicas que o homem encontrou na sua dispersão pelo planeta. Mas prestou ao capitalismo um inestimável serviço, separando neste fantástico mercado em que se compra e vende mão de obra, a mercadoria de primeira da de segunda (mais ou menos como fazem os vendedores de tomate: os melhores, 80; os piores, 50). (SANTOS, 1984, p. 34).

O lema romano era dividir para conquistar; os europeus classificavam para dominar. Paralelo a isso, os colonizadores imprimiam a compreensão deles sobre a cultura, o conhecimento, a natureza e a economia. Aos europeus estava reservado o destino histórico de administrar povos e riquezas; aos de outras raças, cabia assessorá-los forçosamente nessa tarefa.

Tal como lo conocemos históricamente, el poder es un espacio y una malla de relaciones sociales de explotación / dominación / conflicto articuladas, básicamente, en función y en torno de la disputa por el control de los siguientes ámbitos de existencia social: 1) el trabajo y sus productos; 2) en dependencia del anterior, la “naturaleza” y sus recursos de producción; 3) el sexo, sus productos y la reproducción de la especie; 4) la subjetividad y sus productos materiales e intersubjetivos, incluido el conocimiento; 5) la autoridad y sus instrumentos, de coerción en particular, para asegurar la reproducción de ese patrón de relaciones sociales y regular sus câmbios.18 (QUIJANO, 2014, p. 289).

Para o sociólogo peruano (2014), portanto, nas principais esferas da existência social, as pessoas disputam o controle do que está em jogo nessa relação interpessoal ou intergrupal da qual há vitoriosos e derrotados, originando as relações de exploração/dominação/conflito que constituem o poder.

No caso da colonialidade do poder, esse padrão de poder se encontra estruturado em dois eixos fundamentais: a classificação social de acordo com a ideia de raça e a divisão racializada do trabalho. No Brasil, os povos indígenas, denominados de negros da terra, são os primeiros seres humanos a serem escravizados pelos europeus; após isso, são os filhos e as filhas do continente africano, classificados pela modernidade como negros, que são obrigados a trabalhar compulsoriamente.

De origem e caráter colonial, a dinâmica referida não se esgotou ou cessou com o fim das colônias latino-americanas, ao contrário, mostrou ser duradoura e estável, expressando-se, agora, como colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). Os indicadores sociais brasileiros revelam que os homens negros e as mulheres negras recebem os mais baixos salários.

Conforme Quijano (2005), raça e divisão de trabalho reforçam-se mutuamente, embora um não dependa do outro para existir. No entanto, foram estruturalmente associados, configurando-se divisão racial do trabalho. Aos indígenas, nas colônias espanholas, coube, basicamente, o regime da servidão e a prática da reciprocidade19. Aos negros, o trabalho não assalariado, isto é, o trabalho escravo. Aos brancos, o salário.

Combinaram-se, pois, a distribuição racista de novas identidades sociais, amarelos, azeitonados, brancos, índios, negros e mestiços, a uma divisão racista do trabalho. A consequência disso foi que se associou exclusivamente aos brancos o recebimento de salário e a ocupação de postos de comando.

A classificação racial da população e a velha associação das novas identidades raciais dos colonizados com as formas de controle não pago, não assalariado, do trabalho, desenvolveu-se entre os europeus ou brancos a específica percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos. A inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário. (QUIJANO, 2005, p. 234).

Aqueles que não eram dignos de salários deveriam trabalhar até morrer, ou morrer de trabalhar. Corpos descartáveis que trabalhavam para gerar riquezas e modernizar a Europa.

O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi causado principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que os conquistadores trouxeram em seus corpos, mas porque tais índios foram usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer. (QUIJANO, 2005, p. 234).

Desenvolveu-se, assim, no entendimento de Quijano (2005), uma tecnologia de dominação/exploração, materializada na relação raça/trabalho, em que se associou às raças não brancas a escravidão ou o trabalho a ser exercido em condições degradantes e com salários miseráveis, “[...] o que, até o momento, tem sido excepcionalmente bem-sucedido” (QUIJANO, 2005, p. 232). A garantia de salário igual por trabalho igual vale quando se compara pessoas do mesmo tom da pele e do mesmo gênero.

Esse autor (2005) lembra que qualquer explicação para o fato de as raças inferiores receberem salários menores que os brancos, desconsiderando a classificação social racista da população, é seguramente falha. Nesses casos, para uma análise que mais se aproxima da realidade, afirma Quijano, é melhor trilhar pela colonialidade do poder, estruturado com a classificação das pessoas pela raça, configurando-se como um poder sobre os corpos e todo o ser. Quase invisível, fere e mata. Embora cheire a passado, define as feridas do presente.

II

Passará

Tem passado

Passa com a sua fina faca. Tem nome de ninguém.

Não faz ruído. Não fala.

Mas passa com a sua fina faca.

Fecha feridas, é unguento. Mas pode abrir a tua mágoa Com a sua fina faca.

Estanca ventura e voz Silêncio e desventura. Imóvel

Garrote Algoz.

No corpo da tua água passará Tem passado

Passa com a sua fina faca. (HILST, 2013, p. 72).

O poder sobre corpos racializados formam as identidades sociais forjadas durante o colonialismo europeu, nesse caso, corpos negros que ocupam hierarquias, lugares e exercem os mesmos papéis sociais que lhes foram outrora destinados ou designados pelos seus algozes. Agora, pela colonialidade do poder. Em silêncio, passa com a sua fina faca como uma episteme que estrutura toda a realidade.

O colonialismo em terras brasileiras findou no século XIX, a colonialidade do poder, baseada na ideia de que uma raça é superior à outra, ainda define as relações sociais em todo o universo eurocentrado. A divisão racial do trabalho ainda se impõe, abre a mágoa das feridas deixadas pela escravidão.

2.2.2A Colonialidade do Saber

A Europa havia se tornado o centro do capitalismo mundial, exercendo controle sobre praticamente todas as rotas comerciais, colonizando terras e povos. Esse domínio “[...] para tais regiões e populações, [...] implicou um processo de re-identificação histórica, pois da Europa foram-lhes atribuídas novas identidades geoculturais” (QUIJANO, 2005, p. 236).

A hegemonia ocidental impeliu que todas as experiências, as histórias, os recursos e os produtos culturais de origem tão diversas quanto heterogêneas gravitassem em torno da Europa (QUIJANO, 2005).

Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005, p. 236).

Os colonizadores tomaram para si o controle sobre a produção do conhecimento não só na Europa, mas também nos lugares que se encontravam sob o seu domínio. Essa hegemonia se materializava na determinação de quais bens as colônias produziriam e no controle desmesurado sobre a subjetividade, a cultura e o conhecimento dos colonizados.

Para tanto, os colonizadores desavergonhadamente tomaram para si as descobertas culturais dos povos indígenas e dos negros africanos que lhes seriam úteis no desenvolvimento ou no aprimoramento de novas técnicas de produção de bens e serviços. Não bastasse o roubo intelectual, reprimiram os saberes dos colonizados como se quisessem sugar o que eles tinham de humano.

[...] reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção do conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. (QUIJANO, 2005, p. 237).

Nesse tolhimento generalizado, sistematizado, os colonizadores europeus, no seu projeto de extrair tudo o que as colônias pudessem lhes oferecer, mitigaram ou turvaram a consciência de si dos colonizados. Essa modificação ou alteração nos padrões de produção de sentido, de construção do universo simbólico e das formas de produção do conhecimento (QUIJANO, 2005) os faziam estranhos em um local real e imaginário que anteriormente eles se moviam com extrema facilidade e desenvoltura. Eram agora estrangeiros em seu próprio território, sem proteção de sua língua nem dos seus deuses, que estavam todos mortos.

No processo de colonização, não há espaços para a sutileza. Quijano (2005) aponta que os europeus colonizadores violentaram física e psicologicamente os povos autóctones a tal ponto que os povos indígenas sobreviventes ao genocídio foram condenados a “[...] ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança intelectual objetivada” (QUIJANO, 2005, p. 237), permitindo a opinião de que coisa de índio é sinônimo de atraso e preguiça física e mental.

À medida que os colonizadores europeus se apropriavam do conhecimento dos colonizados, forçaram-nos a aprender aspectos da sua cultura que facilitassem ou viabilizassem o processo de dominação, “[...] seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã” (QUIJANO, 2005, p. 237).

Mas os comunicados triunfantes das missões informam, na realidade, sobre a importância dos fermentos da alienação introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da religião cristã e ninguém tem o direito de se espantar. A Igreja nas colônias é uma Igreja de Brancos, uma igreja de estrangeiros. Não chama o homem colonizado para a vida de Deus, mas a via do Branco, a via do patrão, a vida do opressor. E como sabemos, neste negócio são muitos os chamados e poucos os escolhidos. (FANON, 1968, p. 31).

Uma igreja de brancos. Não se pode esquecer que a Igreja Católica não permitia que escravos pudessem se tornar vigários, no máximo ,eram aceitos na condição de rebanho.

As medidas acima indicadas, apropriação/repressão dos saberes dos colonizados e uma pedagogia da opressão em que se ensina aquilo que é útil ao funcionamento do sistema que desumaniza, provocaram, nos dizeres de Quijano (2005, p. 237), uma “[...] colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da sua cultura”.

Os colonizadores violentaram os corpos e as almas de indígenas e de negros africanos. Tornaram sem sabor os seus saberes; amaldiçoaram os seus santos; praguejaram contra suas línguas e riram de suas comidas. Para ser humano deveria se embranquecer na forma de falar, do vestir, do pensar, da fé, do desejo e do agir. Para ser gente, era preciso ser branco ou parecido com branco.

A construção social do mundo colonial expressa, pois, os valores, os interesses e as necessidades dos colonizadores europeus brancos. Nessa perspectiva, os seres humanos colonizados giram ao redor de uma Europa moderna como se fossem satélites que não possuem uma trajetória histórica própria, mas definida pela força gravitacional que o eurocentrismo exerce.

O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. (QUIJANO, 2005, p. 239, grifo no original).

A civilização europeia seria o ensaio de um novo mundo em que haveria liberdade, fraternidade e igualdade, superando um passado anunciados fartamente na literatura historiográfica e de outras áreas como lugares de governos despóticos que governavam um bando de miseráveis e analfabetos que acreditavam piamente em um deus ou deuses que lhes prometia vida em abundância após a morte. “De acordo com essa perspectiva, a modernidade e racionalidade foram imaginadas como experiência e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005, p. 238).

Na linha evolutiva da humanidade, os europeus ocupariam o topo da cadeia alimentar; os povos colonizados estariam ali, disponíveis, para saciar-lhes a fome. Dessa forma de pensar, chega-se à conclusão que “[...] os povos colonizados eram raças inferiores e – portanto – anteriores aos europeus” (QUIJANO, 2005, p. 238).

É que o padrão de poder baseado na colonialidade implica, necessariamente, um padrão cognitivo (QUIJANO, 2005) em que a percepção dos povos colonizados se encontra no passado, como se este, necessariamente, tivesse que ser desprezado ou subjugado pelo presente ou pelo futuro. “O passado era o não europeu e desse modo inferior, sempre primitivo” (QUIJANO, 2005, p. 249).

É a partir dessa forma de pensar e se de mover por becos sujos da história que os colonizadores brancos europeus saquearam os colonizados de suas singularidades históricas (QUIJANO, 2005) e, ao mesmo tempo, menosprezaram qualquer atitude que sinalizasse demonstrar a importância dos saberes dos colonizados na produção cultural da humanidade. Aos colonizados, a Europa havia estabelecido uma nova identidade racial, colonial e negativa (QUIJANO, 2005).

2.2.3A Colonialidade do Ser

Em uma situação de colonialidade (BENEVAVENTE; PIZARRO, 2014), os sujeitos racializados são despidos de faculdade cognitiva e essa desclassificação epistêmica, ainda mais em um contexto que privilegia o conhecimento, converte-se em instrumento de negação ontológica. A modernidade transmuta não pensar em não ser (MALDONADO-TORRES, 2007).

O pensamento se torna mecanismo de exclusão e invisibilidade. A partir da colonialidade, gesta-se um ser que é incapaz de pensar, de falar por si mesmo (MALDONADO-TORRES, 2007).

La formulación cartesiana privilegia a la epistemologia, que simultaneamente esconde, no sólo la pregunta sobre el ser (el “soy”) sino también la colonialidade del conocimiento (otros no piensan). El privilegio del conocimento em la modernidade y la negácion de faculdades cognitivas em los sujetos racializados ofrecen la base para la negación ontológica.20

(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 144-145).

A negação do ser colonizado encontra-se fundamentada na sua suposta incapacidade de pensar sobre a produção dos seus saberes, de refletir a respeito de sua própria vivência. Como não reflete sobre isto, tal qual uma abelha que fabrica o mel, não pode ser considerado um ser humano. Daí a coisificação do escravo e o questionamento promovido pelo DEM ao critério de a própria comunidade se autoatribuir como quilombola.

A colonialidade do poder descortina os laços entre este ser desumanizado e o projeto colonial europeu. Maldonado-Torres (2007) pondera que a colonialidade do ser é um conceito que pretende capturar a maneira como a colonialidade se apresenta na experiência vivida dos sujeitos subalternos. Portanto, é no cotidiano que a colonialidade do ser vasculha o ser colonizado e não em sua mente, ressaltando, pois, sua dimensão histórica.

A colonialidade do ser surge no momento em que o colonizador branco europeu questiona a humanidade dos colonizados, isto é, de negros e de indígenas. Há um ego conquiro que antecede o ego cogito. Para o europeu, há a indubitabilidade em sua tarefa de conquistar que precede a certeza de Descartes sobre o eu.

Isso porque, o ego cogito foi formulado e adquiriu relevância prática sobre as bases do ego conquiro (MALDONADO-TORRES, 2007). Para esse autor, a filosofia de Descartes, [eu] penso, logo [eu] sou, possui pelo menos duas dimensões insuspeitas: da primeira oração, sugestiona os outros não pensam; da segunda, pode-se destacar a ideia de os outros não são ou estão desprovidos de ser. Na sua releitura, tem-se: os outros não pensam, logo não são.

De esta forma descumbrimos uma complejidad no reconhecida de la formulación cartesiana: del “yo pienso, luego soy” somo llevados a la noción más compleja, pero a la vez más precisa, histórica y filosoficamente: “Yo pienso (otros não piensam o no piensam adecuadamente), luego soy (otros no son, están desprovistos de ser, no deben existir o son dispensables).21 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 144).

O bárbaro agora é um ser racializado e sobre o qual pende uma vigorosa dúvida sobre a sua humanidade. Daí que, no processo de colonização, o europeu entende que não interage com um outro ser humano, visto que o colonizado não pensa, despido, pois, de humanidade. Assim, os seres racializados são descartáveis no projeto racional europeu.

“Não pensar se converte em um sinal de não ser na modernidade” (MALDONADO- TORRES, 2007, p. 145). Dessa maneira, os europeus suspeitavam que os indígenas não fossem humanos porque não possuíam escrita alfabetizada e, principalmente, pela ausência de religiosidade. A partir de Descartes, essa dúvida se esvai com o fundamento de que os colonizados/racializados são desprovidos de razão ou do ato de pensar.

Faltam-lhe, pois, humanidade. A colonialidade do ser transforma em objeto os povos indígenas e os negros africanos. Descartáveis, seus corpos são alvos de violência e violação cotidianas. Em um mundo em situação de colonialidade do ser, a vida dos seres colonizados/racializados encontra-se constantemente ameaçada. A morte é uma realidade ininterrupta (MALDONADO-TORRES, 2007).

A vida desses seres é de tal forma banalizada que nenhum número impressiona: número de analfabetos; número de encarcerados no sistema prisional; número de crianças subnutridas; número de desempregados; número de sem teto; número de sem terra. Nenhum número é muito em se tratando de corpos negros.

A irracionalidade desses corpos colonizados/racializados os faz uma ameaça constante, uma vez que não se submetem a nenhuma autoridade. A colonialidade do ser projeta que a violência é da essência dos negros. Essa violência excessiva dos negros justifica serem seus corpos alvos de uma violência insana (MALDONADO-TORRES, 2007).

Para a modernidade, a gente negra é uma população dispensável (MALDONADO- TORRES, 2007). No entanto, essa gente é indispensável como escravizado, trabalhador inferiorizado, que produz a riqueza para os brancos.

2.3O sujeito de direito e o ser negro no Brasil: a investida do Partido Democratas contra o artigo quilombola da Constituição de 1988

Castro-Gómez (2005, p. 169) afirma que a modernidade se constitui em “[...] uma máquina geradora de alteridades que, em nome da razão e do humanismo, exclui do seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas”.

Mas em que consistiria o projeto da modernidade? Para Castro-Gómez (2005), traduz- se no intento de o homem administrar o meio ambiente em todas as suas dimensões, baseado em um conhecimento científico. A partir da razão, o homem submete a vida ao seu controle.

Já não é a vontade inescrutável de Deus que decide sobre os acontecimentos da vida individual e social, e sim o próprio homem que, servindo-se da razão, é capaz de decifrar as leis inerentes à natureza para colocá-las a seu serviço. Esta reabilitação do homem caminha de mãos dadas com a ideia do domínio sobre a natureza através da ciência e da técnica [...]. (CASTRO- GÓMEZ, 2005, p. 170).

Os acontecimentos da vida individual e social que antes eram atribuídos aos desígnios de uma entidade divina, portanto, incompreensíveis, insondáveis, passam a ser objeto de investigação. Se há mistérios, é possível desvendá-los, utilizando-se da teoria e do método adequados.

Ocorre que, longe de apenas elaborar um sistema abstrato de normas, pondera Castro- Gómez (2005), as ciências sociais possuem uma matriz de ordem prática que, a princípio, justificaria seu surgimento: moldar a vida dos humanos de acordo como os interesses do modo de produção capitalista.

Todas as políticas e as instituições estatais (a escola, as constituições, o direito, os hospitais, as prisões, etc.) serão definidas pelo imperativo jurídico da ‘“modernização”’, ou seja, pela necessidade de disciplinar as paixões e orientá-las ao benefício da coletividade através do trabalho. (CASTRO- GÓMEZ, 2005, p. 172).

Conhecer o corpo, entender e explicar as leis da natureza, tudo isto se faz necessário para submetê-los aos processos de produção. Por exemplo, como tempo é dinheiro, é preciso administrá-lo eficientemente. Coube às ciências sociais decifrar e ensinar quais as normas que regulamentam empiricamente a economia, a sociedade, a política e a história.

A par disso, há a “invenção do outro”’ (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 172), isto é, criam-se perfis de subjetividade, estatalmente coordenados a partir de dispositivos de saber/poder que são significativos e imprescindíveis para a construção dessas representações. Não há neste processo uma simples ocultação da identidade cultural preexistente, mas a verdadeira invenção de uma nova identidade.

Castro-Gomez explica que os mecanismos desta invenção do outro, no contexto latino- americano, repousa essencialmente na decodificação e na capacidade de comunicação pela palavra escrita. “A palavra escrita constrói leis e identidades nacionais, planeja programas modernizadores, organiza a compreensão do mundo em termos de inclusões e exclusões” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173).

“Escreveu não leu, o pau comeu”. O ditado popular corrobora o pensamento de Castro-Gómez. Aqueles que não conseguiam decifrar o código linguístico eram justamente os que se encontravam marginalizados socialmente. A escrita atua como parâmetro para identificar os cidadãos.

A formação do cidadão como “’sujeito de direito”’ somente é possível dentro do contexto e da escrita disciplinar, e neste caso, dentro do espaço de legalidade definido pela constituição. A função jurídico-política das constituições é, precisamente, inventar a cidadania, ou seja, criar um campo de identidades homogêneas que tornem viável o projeto moderno de governabilidade. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173, grifo do autor).

A Constituição homogeneíza as identidades ao definir os valores que o Estado e os homens devem nutrir. É preciso conhecer os direitos e os deveres que estão impressos no texto constitucional. Na verdade, sabê-los é insuficiente. É preciso, lê-los.

Por isso, o estrangeiro que deseja se naturalizar brasileiro deve demonstrar conhecimento da língua portuguesa por meio da leitura de trechos da Constituição, conforme estabelece o art. 13, do Decreto-Lei nº 389/1938, que regula a concessão da nacionalidade brasileira.

A Constituição cumpre o papel de incluir ou excluir aqueles que possuem o perfil exigido pelo projeto da modernidade. De acordo com Castro-Gómez (2005), figura como viável para conduzir tal projeto quem detém as seguintes características: homem, branco, pai de família, católico, proprietário, letrado e heterossexual. A quem não se encaixa nessa descrição, cabe controle moral e legal; confinamento em hospícios e presídios.

Os indivíduos que não cumprem com estes requisitos (mulheres, empregados, loucos, analfabetos, negros, hereges, escravos, índios, homossexuais, dissidentes) ficarão de fora da “cidade letrada”, reclusos no âmbito da ilegalidade, submetidos ao castigo e à terapia por parte da mesma lei que os exclui. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173).

No caso das comunidades quilombolas, o silêncio foi o mecanismo utilizado para submetê-las reclusas no âmbito da ilegalidade ou mesmo da inexistência, fazendo-as desaparecer por completo de preceitos constitucionais ou legais. No momento em que a Constituição de 1988 assentou os quilombos em seu texto, ambiguamente, a leitura que o direito faz sobre o artigo constitucional quilombola cumpre o papel de excluí-los do projeto da modernidade.

2.3.1O artigo constitucional quilombola: o art. 68 do ADCT da CF/88.

A Constituição Federal de 1988 faz referência à palavra quilombo duas vezes: uma no art. 215, § 5º, em que determina o tombamento de todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos; a outra no art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição de 1988.

Eis a sua redação: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

O Decreto 4.887/2003 foi editado para regulamentá-lo. Cuida, portanto, do procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, revogando o Decreto 3.912/2001.

O Decreto revogado determinava que somente fosse reconhecida a propriedade sobre as terras que eram ocupadas por quilombos em 1888 ou, então, que estivessem ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal.

Por esse Decreto, competia à Fundação Cultural Palmares (FCP) iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação das comunidades de quilombos. “A Fundação Cultural Palmares, até onde se sabe, não chegou a realizar nenhuma titulação de terras nesses dois anos, por absoluta falta de estrutura” (VITORELLI, 2015, p. 247). Talvez, por isso, o Decreto 4.887/2003, em seu art. 3º, transferiu para o INCRA este encargo.

Substancial, porém, foi a alteração promovida pelo Decreto 4.887/2003 no mecanismo de identificação da comunidade quilombola. Antes, cabia ao Estado, via Fundação Cultural Palmares, doravante, a própria comunidade irá dizer se se constitui em um quilombo. É o art. 2º, § 1° quem o diz: “Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”.

Merece, também, destacar que o Decreto determina que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos são aquelas que garantam sua reprodução física, social, econômica e cultural e que, no processo de medição e demarcação, devem ser considerados critérios de territorialidade indicados pela comunidade.

Little (2002) fala que a territorialidade nasce de um esforço coletivo do grupo social que se traduz em uma conduta territorial, buscando ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de determinado ambiente biofísico. A territorialidade expressaria “[...] as práticas e racionalidades culturais, ecológicas e econômicas que as acompanham” (ESCOBAR, 2005, p. 135)

É nesse território que se materializam os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas. Contudo, a Instrução Normativa n. 57/2009, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável por regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento dessas terras, apresenta um grande retrocesso ao determinar a necessidade de produção de laudos por técnicos do INCRA para corroborar o território definido pela comunidade quilombola.

Art. 9º A identificação dos limites das terras das comunidades remanescentes de quilombos a que se refere o art. 4º, a ser feita a partir de indicações da própria comunidade, bem como a partir de estudos técnicos e científicos, inclusive relatórios antropológicos, consistirá na caracterização espacial, econômica, ambiental e sócio-cultural da terra ocupada pela comunidade, mediante Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID, com elaboração a cargo da Superintendência Regional do INCRA, que o remeterá, após concluído, ao Comitê de Decisão Regional, para decisão e encaminhamentos subseqüentes. (BRASIL, 2009).

Nesse caso, permite-se aos negros autodefinirem-se como quilombolas, porém, a identificação dos limites das terras deve passar pelo crivo do Estado. Dessa forma, o ponto nevrálgico para os quilombolas, a titulação das terras a partir da conduta territorial da comunidade, permanece sob a gestão estatal. O direito mantém, por conseguinte, o controle efetivo em relação à quantidade de terra que o Estado se encontra disposto a ceder. Não há como deixar de fazer uma relação entre esta norma e a Lei das Terras, editada em 1850.

Gadelha (1989) aponta que o século XIX caracteriza-se por profundas alterações de ordem política, econômica e social, reflexo do surgimento do modo de produção capitalista, modificando, por completo, as velhas estruturas europeias e, consequentemente, os espaços colonizados no continente latino-americano.

A Inglaterra, por exemplo, que havia acumulado capitais com o tráfico negreiro, passou a combatê-lo e a exigir que os outros países europeus, que ainda alimentavam suas colônias com braços negros arrancados da África, adotassem a mesma postura, publicando leis proibitivas (COSTA, 2010). Dentro desse contexto, no Brasil, aprova-se a Lei 581, de 4 de setembro de 1850, que estabelece medidas para a repressão do tráfico.

Interessante é que os representantes no Parlamento dos interesses dos latifundiários e dos escravocratas incorporaram as ideias difundidas pelo liberalismo europeu, porém, apenas no plano teórico, enclausurando com um ferrolho conservador as estruturas que alicerçavam a economia brasileira (GADELHA, 1989). O pensamento liberal domina, mas é preciso manter a escravidão e a estrutura agrária no país.

Há, afirma Gadelha (1989, p. 157), uma “[...] persistência de nossas estruturas agrárias [...], tanto no tempo como no espaço, estruturas estas reforçadas após os anos de 1830 pelo café”. Esta autora (1989) lembra que houve uma concentração de terra nos séculos XVII,

XVIII. No início do século XIX ocorre, porém, um gradual processo de fracionamento em função da divisão da propriedade originária em lotes, distribuídas a diversos herdeiros, já que as famílias eram bastante numerosas, bem como o abandono de outras porções por motivo de esgotamento do solo.

A decretação da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, Lei das Terras, barra, desse modo, um processo de apossamento tardio, ao determinar a compra como a única forma de aquisição de terras devolutas (GADELHA, 1989).

A Lei das Terras sedimenta, pois, a “[...] estrutura latifundiária da terra” (GADELHA, 1989, p. 162) ao proibir a posse como instrumento legal de aquisição da propriedade do solo. Não se pode esquecer que os roçados, conforme a referida Lei, não eram bastante para caracterizar a posse.

Para Gadelha (1989), essa norma jurídica procurava contrabalançar os efeitos da extinção da escravidão, ao incentivar a colonização por meio de aquisição de terras devolutas pelos colonos imigrantes. Se os latifúndios eram brancos, os solos das pequenas propriedades seriam embranquecidos.

De 1822 a 1850, foi a posse a única via de acesso à apropriação legítima das terras públicas. [...]. À tramitação burocrática, que por si só favorecia os poderosos, acrescentou a lei das terras de 1850 dispositivos que vedaram aos pobres o acesso à propriedade fundiária e asseguravam a preservação da estrutura fundiária vigente. (GORENDER, 1988, p. 397).

A Lei das Terras procurou, antes de tudo, impedir que os negros pudessem ter acesso à terra por meio da posse, ao estabelecer, logo no seu primeiro artigo, para que não pairasse qualquer dúvida, que a única forma de aquisição de terras devolutas dar-se-ia pela compra.

Por sua vez, a norma que estabelece o procedimento de identificação das terras quilombolas subtrai-lhes a autodeterminação, ao transferir para agentes estatais a tarefa de elaborar laudos que podem confirmar ou infirmar a história narrada por aquela comunidade. Os roçados culturais dos negros continuam sem nenhum valor, necessitando de laudos antropológicos para aquilatá-los. O direito trava a formação dos quilombos.

2.3.2O monopólio do direito de dizer o que é quilombo

A produção do direito por seus operadores ocorre no campo jurídico, uma espécie de autonomização do espaço social. Para Bourdieu (2016), os indivíduos e os grupos sociais existem e subsistem na e pela diferença, ocupando posições relativas em um espaço de relações. Essa diferenciação social catalisa antagonismos individuais ou mesmo confrontos intergrupais que se encontram em posições diferentes no espaço social.

Portanto, cada um ocupa uma determinada posição neste espaço, conforme a dotação de capital que detém (JOURDAIN; NAULIN, 2017). É o capital que o indivíduo possui que o faz distanciar-se do outro. Não há, pois, uma posição absoluta, mas sempre tendo outro indivíduo ou grupo como referência.

Assim, o grau de prestígio, de riqueza ou de poder de um agente individual ou de uma instituição coletiva (uma universidade, um sindicato, uma igreja, uma família, etc.) só poderiam ser considerados em termos de distância que essas mantêm em relação ao demais agentes individuais ou coletivos. Ter uma escolarização básica numa sociedade em que a maioria não teve acesso à escola pode ser suficiente, por exemplo, para se ocupar uma posição de prestígio ou mesmo para se garantir algum poder e renda. (NOGUEIRA, 2017, p. 177).

No espaço social, portanto, desenvolve-se um “[...] sistema de relações de concorrência e conflito entre grupos situados em posições diferentes” (BOURDIEU, 2015, p. 186), sendo que a posição de cada indivíduo é definida pelo quantum de capital que traz consigo. Quanto mais capital, maior a possibilidade de ocupar uma posição dominante. Resumidamente: o espaço social estrutura-se de forma relacional tendo como referência a dotação de capital.

A noção de capital veio de Marx. Para Bourdieu, existem capitais de diferentes naturezas, incluindo, logicamente, o capital econômico. Por serem capitais, revelam recursos sociais que podem ser empregados para beneficiar quem os detém. “Cada espécie de capital é fruto de uma acumulação em vista de obter um proveito ou rendimento, material ou não” (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 126).

Portanto, os indivíduos e os grupos usam esses capitais para manterem-se em posições de vantagem (GIDDENS; SUTTON, 2017). Têm-se, então, por exemplo: capital econômico, capital cultural, capital, social e o capital simbólico.

Na teoria bourdiana, a vida social se organiza por meio dos campos, uma espécie de arena social onde se operam as relações de poder baseadas nas formas de capital (GIDDENS, 2012). O espaço social é, pois, constituído por uma pluralidade de campos sociais que possuem entre eles certa similaridade de estrutura, e, por conseguinte, de funcionamento. (JOURDAIN; NAULIN, 2017). Assim como há diversos capitais, existe uma multiplicidade de campos: campo artístico, campo econômico, campo religioso, campo jurídico e outros.

Segundo Jourdain e Naulin (2017, p. 146), “Pierre Bourdieu define os campos como esferas da vida social que, graças ao processo de diferenciação progressiva do mundo social devido ao crescimento da divisão do trabalho, tornaram-se autônomas”. Desse modo, o campo é uma esfera da vida social autonomizada.

Essa autonomização do campo significa que possui suas próprias regras de funcionamento e que dispõe de um capital lhe que é específico. Além disso, o acesso ao campo é definido por uma lei que lhe é peculiar. A quantidade de capital, por sua vez, determina a posição no interior do campo (JOURDAIN; NAULIN, 2017).

Em cada campo, há um litígio específico, ou “[...] uma aposta que lhe é própria” (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 146). No caso do campo jurídico, disputa-se o monopólio do direito de dizer o direito, obedecendo-se a regras pré-estabelecidas e a qualificações específicas dos litigantes.

O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou boa ordem, na qual se defronta agentes investidos de competência ao mesmo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre o autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.

Por conseguinte, a distância que há entre os agentes resulta da instância que cada um ocupa no campo jurídico. A formação universitária em Curso de Direito, no caso brasileiro, é obrigatória e considerada, portanto, o único meio de se acessar o campo. Há restrições sobre os próprios textos que devem ser interpretados e há mecanismos que extirpam do campo as interpretações que não seguiram as regras do jogo.

A interpretação dos textos jurídicos mantém a sua eficácia à custa de restrição de sua autonomia, por meio de um corpo integrado de instâncias hierarquizadas que possuem competência para a resolução dos conflitos entre os intérpretes e as interpretações.

E a concorrência entre os intérpretes está limitada pelo fato de as decisões judiciais só poderem distinguir-se de simples ato de força políticos na medida em que se apresentem como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos: como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apoiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões. (BOURDIEU, 1989, p. 214).

Portanto, no campo judicial a concorrência entre os intérpretes dos textos jurídicos encontra-se devidamente regulada, desde as normas e as fontes que lhe dão suporte, até o detalhamento de todo o processo em que uma instância hierarquicamente superior corrige a interpretação equivocada.

Diferentemente do que se pensa, o campo jurídico possui autonomia menor do que outros campos que também contribuem para a manutenção da ordem simbólica, tais como o campo artístico, literário ou científico. Bourdieu (1989) aponta que, em função do papel determinante que o campo jurídico desempenha na reprodução social, as mudanças externas se retraduzem mais diretamente e que os conflitos internos não se encontram livres da influência e do poder das forças externas.

O campo jurídico colabora, pois, para a manutenção da ordem simbólica ao imprimir um “[...] selo de universalidade” àquilo que representa apenas um determinado ponto de vista do mundo social e que, dependendo do que esteja em jogo, dificilmente contraria o ponto de vista dos dominantes (BOURDIEU, 1989, p. 245).

Por isso, destaca Bourdieu, que na análise estrutural dos sistemas de relações que definem um determinado estado do campo, deve-se atentar para o habitus. O conceito de habitus, para Bourdieu, versaria em: “[...] um sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2015, p. 191).

Desse modo, a prática dos agentes atualiza permanentemente as estruturas sociais que independem das suas vontades e das suas consciências. O habitus atua, então, como mediador entre o mundo social e natural externo e aquele em que os agentes existem e vivem (STONES, 2010).

O habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade do senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidade treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente. (WACQUANT, 2017, p. 214).

O indivíduo, ao receber da sociedade modos de pensar, de sentir e de agir, compulsoriamente, aplica-os em investimentos ou práticas que lhe sejam mais interessantes e convenientes, ou seja, ajusta-os de acordo com as suas necessidades, fazendo-os retornar para a sociedade modificados, alterados pela sua própria vivência.

As disposições a que Bourdieu se refere ao conceituar habitus consistem em uma gama de orientações, habilidades e formas duradouras de Know-how que as pessoas adquirem no processo de socialização que lhes possibilita perceber, pensar, agir e avaliar o mundo. Expressa-se, por exemplo, no comportamento corporal, na fala, nos gestos, no vestuário, nas maneiras sociais e “[...] até tipos específicos de conhecimento mútuo e memória coletiva, passando por uma ampla gama de habilidades motoras e práticas” (STONES, 2006, p. 98).

Bourdieu (1989, p. 242) aponta, ainda, que a proximidade dos interesses e, principalmente, a similitude dos habitus, “[...] ligada a formações familiares e escolares semelhantes”, propicia uma afinidade de visões de mundo entre os agentes encarregados de produzir e de aplicar o direito com aqueles que possuem o poder econômico, o político ou mesmo o poder temporal.

Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões de mundo diferentes ou antagonistas têm poucas possibilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar (sic) como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão dos mundo dos dominantes. (BOURDIEU, 1989, p. 242).

Além de os textos jurídicos reproduzirem os interesses, os valores e a visão de mundo dos dominantes, os próprios magistrados, lembra Bourdieu (1989), são oriundos daquela classe.

Bourdieu defende que há uma espécie de modo de reprodução do espaço social em que o capital atrai o capital, fazendo com que a estrutura social tenda a perpetuar-se, “[...] não sem sofrer deformações mais ou menos importantes” (BOURDIEU, 2016, p. 35).

Desse modo, o campo judicial não escapa às imposições do macrocosmo, possuindo, portanto, autonomia parcial, pouco acentuada. Essa porosidade permite que as simbologias de outros campos adentrem o campo jurídico, influenciando na hermenêutica das normas.

Não se pode olvidar que a entrada no universo judicial implica a aceitação tácita da lei fundamental do campo jurídico: os conflitos, após adentrarem o terreno do campo, só podem ser resolvidos juridicamente, isto é, devem obedecer às regras e às convenções do campo jurídico (BOURDIEU, 1989).

O campo jurídico estabelece, pois, uma fronteira entre os que estão preparados para entrar em jogo daqueles que estão excluídos. A competência jurídica controla, portanto, o acesso ao campo, ao mesmo tempo em que filtra os conflitos que merecem ser judicializados bem como os requisitos que devem preencher os pedidos para se constituírem em debates propriamente jurídicos.

Considerando os aspectos materiais acima expressos sobre a competência jurídica, Bourdieu propõe outra de caráter simbólico: “[...] só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer o trabalho de construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz” (BOURDIEU, 1989, p. 233).

O autor ressalta que o sentido de um texto jurídico nunca se impõe de maneira absolutamente imperativa. Qual interpretação deverá, então, se sobrepor às demais? Bourdieu lembra que os juristas se encontram localizados em instâncias hierarquizadas que são reconhecidamente aptas para resolver os conflitos entre os intérpretes. Ademais, o intérprete tem seu campo de atuação limitado pelas normas e pelas fontes.

Bourdieu, utilizando uma linguagem matemática, diz que as obras jurídicas delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, desse modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. A resposta encontrada pelo intérprete deve se adequar a uma daquelas descritas nas leituras das leis expostas nas obras jurídicas, sob pena de ser considerada falsa, inadequada para resolver o problema.

Não é, portanto, qualquer interpretação, ainda que parta de um agente com competência social e técnica, que será considerada válida. Uma vez que:

De modo diferente da hermenêutica literária ou filosófica, a prática teórica de interpretação de textos jurídicos não tem nela própria sua finalidade; diretamente orientada para fins práticos, e adequada á determinação de efeitos práticos, ela mantém a sua eficácia à custa de uma restrição da sua autonomia. (BOURDIEU, 1989, p. 213).

Então, a fim de manter a eficácia do discurso jurídico, há restrição da autonomia da interpretação do texto jurídico, que é feita basicamente de duas maneiras: quem são os intérpretes autorizados; quais as normas e as fontes em que se baseiam suas deduções. Dessa maneira, as decisões judiciais se apresentam como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos.

A Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apoiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões. (BOURDIEU, 1989, p. 214).

A hierarquia das instâncias judiciais é responsável pela distribuição do capital específico da autoridade jurídica. Afere-se, então, a autonomia do agente jurídico de dizer o direito pelo lugar que ocupa na pirâmide do Poder Judiciário. No caso brasileiro, cabe ao Supremo Tribunal Federal dizer qual a interpretação do texto jurídico constitucional que representa uma solução propriamente jurídica.

Na verdade, a Constituição Federal faz uma distribuição aos diversos tribunais das matérias às quais eles são competentes para dizer qual interpretação ou qual norma deve ser aplicada ao caso concreto ou mesmo abstrato. Na situação específica, a ação proposta pelo DEM só pode ser apreciada pelo STF.

2.3.2.1Aspectos gerais do campo jurídico brasileiro

Qualquer manual de direito que fale do funcionamento da justiça brasileira descreve que cabe aos órgãos do Poder Judiciário a função de compor conflitos de interesses em cada caso concreto (SILVA, 1996). A Constituição Federal detalha, em seu artigo 92 ,quais são esses órgãos jurisdicionais:

  1. – o Supremo Tribunal Federal;
  2. – o Superior Tribunal de Justiça;
  3. – o Tribunal Superior do Trabalho;
  4. – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; V – os Tribunais e Juízes do Trabalho;

VI – os Tribunais e Juízes Eleitorais; VII – os Tribunais e Juízes Militares;

VIIII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

Cada um desses órgãos é responsável por apreciar um conjunto de matérias de acordo com o que se encontra estabelecido na própria Constituição. Um órgão não pode julgar uma matéria que a Constituição não lhe atribuiu (SILVA, 1996).

Assim, em seu art. 102, I, alínea a, a Constituição diz que cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação declaratória de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.

Compete, então, ao STF julgar a ação judicial proposta pelo Partido da Frente Liberal, atual Democratas, contra o Decreto 4.887/2003 por dois motivos: a) tratar-se de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade; b) o Decreto 4.887/2003 caracteriza-se por ser um ato normativo federal, ato de Presidente da República.

2.4.O enredo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239

No dia 25/06/2004, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Partido Democratas (DEM), protocolou um pedido, dirigido ao ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, para que fosse declarado inconstitucional o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, baseado, principalmente, no art. 102, I, a, e 103, VI, ambos da CF/88, que autorizam o partido político com representação no Congresso Nacional a propor ação declaratória de inconstitucionalidade de ato normativo federal.

Essa ação recebeu o número 3239. Por se tratar de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI), tem-se ADI 3239. Esta espécie de medida judicial objetiva impedir que uma determinada norma, supostamente contrária às regras e aos princípios definidos na Constituição, produza qualquer eficácia jurídica (DIMOULIS; LUNARDI, 2013). A ADI pretende, pois, eliminar, em caráter definitivo, do ordenamento jurídico, a norma declarada inconstitucional.A Lei 9.868/1999 define o rito que deve seguir a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Há, ali, dispositivo que determina que o relator22 deve, inicialmente, pedir informações aos órgãos ou às entidades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado. Em 29/06/2004, Cézar Peluso proferiu o seguinte ato judicial:

DESPACHO: O pedido comporta apreciação nos termos do art. 12 da Federal nº 9.8686, de 10 de novembro de 1999. Solicitem-se, pois, informações, no prazo de 10(dez) dias. Após vista, sucessivamente, por 5 (cinco) dias, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República.

Quanto ao advogado-geral da União, há determinação legal23 de que, invariavelmente, ele deve apresentar a defesa do ato normativo ou da norma legal que está sendo impugnado (BASTOS, 1996).

Essa Lei prevê, ainda, em seu artigo 7°, que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, pode admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades. Porém, Cézar Peluso nada disse sobre isto. Mesmo assim, diversas entidades requereram suas admissões na ADI 3239 para atacar ou defender a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003.

Tomando partido do DEM, pediram para ser aceitos, na qualidade de amici curiae, o Estado de Santa Catarina, a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA) e Sociedade Rural Brasileira.

Por outro lado, em uma evidente oposição às ideias levantadas pelo autor da ação, há os seguintes amici curiae: o Instituto Pro Bono, Conectas Diretos Humanos, Sociedade Brasileiro de Direito Público (SBDP), Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHERE), Centro de Justiça Global, o Instituto Socioambiental (ISA), Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (POLIS), Terra de Direitos, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI – Pará), Estado do Pará, Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, Associação dos Quilombos Unidos do Barro Preto e Indaiá, Associação de Moradores Quilombolas de Santana – Quilombo de Santana, Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul, INCRA, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) e o Clube Palmares de Volta Redonda (CPVR).

Com a integração dos amigos da corte ao campo jurídico, a Lei da ADI pretende, aparentemente, garantir um amplo debate entre o Poder Judiciário e a sociedade sobre o assunto de que trata a lei impugnada. Nessa mesma direção, prevê, em seu artigo 9º, §1º, a realização de audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. No entanto, Cézar Peluso não acatou os diversos pedidos para que fossem realizadas tais oitivas.

A primeira decisão foi proferida no ano de 2012, pelo relator, ministro Cézar Peluso, tendo a Corte do STF se pronunciado sobre o mérito da ação apenas no ano de 2018, catorze anos após o protocolo do DEM, com o seguinte teor:

Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, conheceu da ação direta, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. No mérito, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto da Ministra Rosa Weber, que redigirá o acórdão, julgou improcedentes os pedidos, vencidos o Ministro Cezar Peluso (Relator), e, em parte, os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Votaram, no mérito, os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Não votou o Ministro Alexandre de Moraes, por suceder ao Ministro Teori Zavascki, que sucedera ao Ministro Cezar Peluso. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 8.2.2018.24

Portanto, o STF julgou improcedente a ADI 3239, proposta pelo Partido Democratas, considerando, pois, constitucional o Decreto 4.887/2003, mas, até a presente data, Rosa Weber não apresentou o acórdão ao qual faz referência a decisão acima citada.

Dessa maneira, o campo jurídico da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 é composto pelos discursos textuais do Partido Democratas , que deu origem ao campo, das diversas entidades, que nele ingressaram como amigo da corte, da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que nele proferiram decisões.

2.5A manifestação da colonialidade na ADI 3239: descrição da categorização

A análise do conteúdo ensina a necessidade de se classificar os elementos constitutivos da mensagem para que se possa apreender os sentidos que dela emana (GOMES, 2016). Para tanto, utilizam-se as categorias indicadas pelo referencial teórico adotado.

Portanto, agora, não há uma análise, propriamente dita, do conteúdo do texto categorizado, expõem-se, apenas, “[...] os achados na análise” (GOMES, 2016, p. 79).

Nessa seção, as classes em que os discursos textuais da ADI 3239 foram classificados são as seguintes: colonialidade do poder, colonialidade do ser e colonialidade do saber. Na colonialidade do poder, encontram-se as mensagens em que se questiona ou se critica a própria edição do Decreto 4.887/2003. Não se pode esquecer que tal norma guarda em si falas do movimento negro quilombola.

Do mesmo modo, os discursos proibitivos sobre a destinação de verbas do orçamento público para a desapropriação de terras identificadas como integrantes do território da comunidade quilombola foram dispostos na coluna da colonialidade do poder. A colonialidade se expressa no controle, quase absoluto, dos recursos. Por isso, nesta quadra, encontram-se, também, as falas que defendem a propriedade privada.

Na colonialidade do saber, há os discursos que são contrários à utilização da autoatribuição como critério legal na identificação dos quilombos. Adentra, também, os recortes extraídos da ADI 3239, em que o conceito de quilombo está atrelado ao escravismo brasileiro. Em um, a narrativa das comunidades quilombolas é totalmente desprestigiada; no outro, a concepção sobre fenômeno quilombola é monofônica e colonizada.

Em relação à coluna destinada à colonialidade do ser, transcreveram-se os trechos em que se menciona que os negros e as negras falseiam a realidade para obter vantagens; as que desautorizam as falas da comunidade de quilombos; e as que afirmam que a luta travada pelos quilombolas causa convulsão e violência social.

Deve-se destacar que a dissecação da ADI 3239 e a posterior catalogação dessas partes em classes possui mera funcionalidade, pois os limites, caso existam, entre uma categoria e outra são muito tênues. Refutar a narrativa dos membros das comunidades de quilombos é negar o ser quilombola. A colonialidade do saber pretende deixar os negros e as negras sem o sabor de ser.

2.5.1A Colonialidade do Poder na ADI 3239

O documento que inaugura a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, a petição do DEM, carrega em seu corpo trechos ou passagens que materializam a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). Isto é, pensa e vê a comunidade negra composta por seres inferiores que devem ocupar papéis e hierarquias correspondentes a essa situação. Por isso, uma norma jurídica que atende os anseios dos quilombos e contém no seu texto falas das comunidades quilombolas deve ser extraída do ordenamento jurídico brasileiro.

O ato normativo ora contestado refoge – e muito a matéria de que trata o mencionado dispositivo, pois disciplina direitos e deveres entre particulares e administração pública, define os titulares da propriedade das terras onde se localizam os quilombos, disciplina procedimentos de desapropriação e, consequentemente, importa aumento de despesa. (DEMOCRATAS, 2004).

O ataque ao Decreto 4.887/20003 pelo DEM resume-se basicamente a dois elementos: a proteção da propriedade privada e a destinação de dinheiro público para o erguimento de comunidades negras quilombolas. Ou seja, expressam um controle sobre recursos de produção: terra e capital (QUIJANO, 2005).

Ora, o orçamento público deveria ser pensado de forma a possibilitar atingir um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (Art. 2°, II, da CF/ 1988).

Contudo, para o DEM, não se justifica nenhum gasto público com a desapropriação de imóveis de particulares para compor o território da comunidade quilombola. Nesse mesmo sentido:

Ante o enunciado constante do art. 68 do ADCT, descabe o Poder Público desapropriar a área, visto que a propriedade decorre diretamente da Constituição. Nos termos da dicção constitucional é reconhecida a propriedade definitiva. Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer a futuras indenizações. (DEMOCRATAS, 2004).

O Democratas discorda, insistentemente, da utilização de dinheiro público em processos desapropriatórios de terras que seriam utilizadas na formação do território quilombola para a proteção dos modos de criar, de fazer e de viver dessas comunidades. É a possibilidade do aumento das despesas públicas que faz com que o DEM peça a imediata suspensão dos efeitos jurídicos do Decreto 4.887/2003.

Pede-se também a concessão de medida cautelar inaudita altera pars, em vista da excepcional urgência e risco de dano à segurança jurídica, nos termos do artigo 10, § 3º, da Lei 9.8668, de 10 de Novembro de 1999, ainda que ad referendum do plenário (em face da proximidade do recesso), de modo a suspender a eficácia do ato normativo ora impugnado até o julgamento final desta Ação, demonstrando à exaustão, a probabilidade e a plausibilidade jurídica do pedido, bem como o perigo na demora da prestação jurisdicional, inclusive para os cofres públicos. (DEMOCRATAS, 2004).

O Estado de Santa Catarina se utiliza do mesmo argumento para atacar a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003: o aumento de despesa sem previsão legal.

O Ato Executivo, em análise, pretende regulamentar direta e imediatamente preceito constitucional, com isso, transborda os limites do art. 84, IV e VI da Constituição Federal, já que disciplina direitos e deveres entre particulares e a administração pública, define os titulares das terras onde se localizam os quilombos, além de, criar nova forma de desapropriação, o que importa em aumento de despesa, sem previsão constitucional ou legal. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007) .

Vê-se, então, que a oneração dos cofres públicos com a constituição de comunidades quilombolas encontra oposição firme por parte do DEM e do Estado de Santa Catarina.

Merece destacar a forte defesa da propriedade privada em detrimento do direito de vida ou de qualquer outro direito, conforme se vê pelo seguinte trecho: “Faz tábula rasa do direito à propriedade (CF, art. 5.o., XXII) e cria nova forma de desapropriação, alargando os limites constitucionais ao direito de propriedade, sem previsão constitucional ou legal (CF, art. 5.o.,XXIV)” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007). Aliás, é para proteger a propriedade privada que este Estado roga para ingressar na ADI 3239.

O Estado de Santa Catarina, como ente político, se insere no rol amplo de legitimidade, notadamente por se tratar de interesse difuso, [...] ademais, possui em seu território remanescentes das comunidades de quilombos cujos direitos sobre as terras que estejam ocupando pretende ver reconhecidos dentro do disposto pela norma constitucional, como também pretende ver respeitado o direito às demais formas de propriedade constitucionalmente asseguradas. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007, grifo nosso).

A possibilidade do enegrecimento de terras urbanas e rurais encontra resistência, também, nos discursos dos ministros do STF. Por isso, a exigência de que a comunidade quilombola tenha posse centenária das terras que ocupam: “Já ficou fora de dúvida que as terras a serem tituladas são aquelas cuja posse é secular” (PELUSO, 2012).

Outro argumento utilizado para restringir o acesso da comunidade negra ao território que ocupa ou que, porventura, venha mais tarde a ocupar, é estabelecer como marco temporal a data em que foi promulgada a Constituição Federal de 1988: “Diante dessa perspectiva, no meu sentir, a partir da leitura do dispositivo constitucional, foram contemplados com a titularidade aqueles remanescentes que estavam ocupando suas terras no momento da promulgação da Constituição de 1988” (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Em outra passagem, este ministro pontua que a inclusão no território a ser destinado aos quilombolas de terras, que a comunidade não ocupava quando da entrada em vigor da atual Constituição, representaria “[...] alagar o alcance do dispositivo constitucional” (TOFFOLI, 2017).

Restringe-se a interpretação do artigo constitucional quilombola – art. 68 do ADCT da CF/88 –, para proteger a sagrada propriedade privada. Por isso mesmo, tal ministro discorda que as terras ocupadas pelos quilombolas são aquelas utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade.

Em verdade, enquanto, para as terras indígenas, a Constituição adotou os critérios da imprescindibilidade e da necessidade, para os quilombolas, pautou-se pelo critério da ocupação. Dessa forma, não se deve alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução de sua cultura e valores”, independentemente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

A fração do solo a ser destinada à comunidade pauta-se, unicamente, pelo instituto jurídico da posse. Desconsidera, desse modo, a proteção constitucional aos modos de criar, de fazer e de viver dos homens negros e das mulheres negras quilombolas.

De igual modo, embora não faça referência específica à questão da territorialidade, a ministra Rosa Weber defende que a comunidade tenha a posse mansa e pacífica do território almejado. “Necessária a evidência da ocupação tradicional das terras reivindicadas, em caráter minimamente estável – sem o que, de resto, sequer se poderia cogitar de relação territorial específica” (WEBER, 2015, grifo no original).

A ministra Rosa Weber esquece e sedimenta as agressões históricas às áreas ocupadas pelos quilombos, perpetradas por grileiros, empreiteiras, especuladores imobiliários e, até mesmo, pelo próprio Estado. A comunidade tem que se virar com o que lhes restou. É a parte que lhes cabe nesta interpretação da Suprema Corte do que é um território quilombola.

O Estado de Santa Catarina, por seu turno, vê o Decreto 4.887/2003 como uma violação a direitos individuais ao impor obrigações e restringir direitos. Se, um dia, a fuga de escravos causou transtornos, prejuízos incomensuráveis aos seus senhores, a formação do território quilombola atormenta os proprietários das terras embranquecidas pela Lei das Terras e pelo empobrecimento da comunidade negra.

A competência para expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis não pode ser compreendida como a competência para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo, com a criação de direito novo com a imposição de ônus aos particulares, melhor dizendo, não se reveste o Decreto de meio idôneo, para restringir direitos ou criar obrigações. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).

O Decreto 4.887/2003 é percebido como uma manifestação da rebeldia negra, logo, ilegal, desmesurado, causador de transtorno em um ambiente de paz social, uma violação ao direito de propriedade e que, portanto, deve ser combatido. Esta é a tarefa a que a ADI 3239 se propõe.

2.5.2. A Colonialidade do Saber na ADI 3239

A colonialidade do saber corresponde a um legado epistemológico do eurocentrismo que tolhe a compreensão de que o pensamento humano se encontra em todos os lugares onde os diferentes povos e suas diferentes culturas se desenvolveram. Há, pois, múltiplas epistemes com seus diversos mundos de vida. Para cada mundo, há uma visão específica, isto é, há uma diversidade epistêmica, apesar do eurocentrismo (PORTO-GONÇALVES, 2005).

Assentado na colonialidade do saber, o Partido Democratas defende que a demarcação das áreas quilombolas deve ser pautada por laudos elaborados por especialistas e não pela narrativa dos negros e das negras que conhecem a história de todas as intempéries pelas quais passou a comunidade quilombola. Para o DEM (2003), “A demarcação das áreas, antes de levar em conta critérios históricos-antropológicos, será realizada mediante a indicação dos próprios interessados (art. 2º, § 3°)”.

Em outra parte da petição do DEM, esse pensamento é reiterado. O Partido Democratas entende que o Estado deve ter o controle absoluto sobre a definição do território quilombola: “A caracterização das terras a serem reconhecidas aos remanescentes das comunidades quilombolas também enfrenta problemas ante a sua excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados” (DEMOCRATAS, 2004). O Estado de Santa Catarina comunga dessa forma de pensar:

19. – Ora, dessa forma, admite a norma impugnada que os interessados se declarem remanescentes dos quilombos, por vontade própria, sem estudo antropológico que possa verificar essa situação, e, a partir desse primeiro pressuposto também declarem qual a área de terras que pretendem ver reconhecida e por outro lado, na ausência de impugnação, considera como tacitamente aceito por terceiros que possam ser proprietários dessas áreas. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).

A interpretação da Constituição que o DEM e o Estado de Santa Catarina apresentam não comporta qualquer outra experiência constitucional que não seja aquela vivenciada pelos europeus ou pelos norte-americanos. Os negros e as negras não podem falar no direito constitucional ocidental por si sós, precisam de um interlocutor, geralmente branco, para externar suas angústias e seus desejos.

Por isso, o Partido Democratas defende que “À toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional”. A lógica do direito ocidental repousa na impossibilidade de os subalternos poderem falar.

A forma coletiva do apossamento da terra (LITTLE, 2002) convulsiona a propriedade privada que tem base constitucional no direito brasileiro. Desse modo, essa experiência quilombola não pode se materializar em direito. É a vontade individual que deve ser prestigiada e protegida.

De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava, à época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional “suas terras” constante do art. 68 do ADCT. (DEMOCRATAS, 2004).

Portanto, de acordo com o DEM, apenas quando o integrante da comunidade quilombola se comporta de maneira individualista, tomando para si as terras que pertencem à comunidade, é que seu comportamento traduz uma conduta que merece reconhecimento do direito. Quando a atitude do negro ou da negra quilombola se assemelha a do colonizador, a ciência do direito a traduz como uma prática legal.

Da mesma maneira, o aprisionamento do conceito de quilombo ao passado escravagista representa olhar esse fenômeno pelas lentes do colonizador europeu. Nessa linha, o DEM defende, em sua manifestação inicial, que “A área cuja a propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão somente o território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formara” (DEMOCRATAS, 2004, p.).

Para Peluso (2012), os elaboradores da Constituição Federal de 1988, a quem denomina de constituintes, priorizaram a adoção do conceito ou a visão sobre o mundo quilombola dos historiadores.

Já no que tange ao conceito de quilombos, é de se ter presente que as muitas acepções que o termo admite são condicionadas por alguns fatores, tais quais, época, ponto de vista sociopolítico e a área do conhecimento daqueles que lidam com o tema. Ora, identificados os requisitos temporais acima vistos, é seguro afirmar que, para os propósitos do art. 68 do ADCT, o constituinte optou pela acepção histórica, que é conhecida de toda a gente.

A narrativa que prepondera, neste caso, considera os quilombos como local de agrupamento de negros indolentes e boçais e não de um instrumento de resistência negra à desumanização. O quilombo é algo negativo, um ato ilícito que o Estado deve combater.

Peluso se vale, ainda, do monismo estatal para defender a tese de que quilombo é um mero agrupamento de escravos fugidos:

Reafirmo que os respeitáveis trabalhos desenvolvidos por juristas e antropólogos, que pretendem ampliar e modernizar o conceito de quilombos, guardam natureza metajurídica e por isso não têm, nem deveriam ter, compromisso com o sentido que apreendo ao texto constitucional. (PELUSO, 2012).

No processo de desprezar todos os saberes produzidos pela comunidade quilombola sobre si mesma e das narrativas que percebem os quilombos como mecanismo de resistência à coisificação de negros e de negras pela escravização, pela fome, pelo analfabetismo, pela perseguição aos seus cultos religiosos, o ministro Cézar Peluso indeferiu o pedido que diversas entidades fizeram para que se realizasse audiência pública para discutir a questão do território quilombola.

E, antes de adentrar-lhe o mérito, registro que, apesar de muitos pedidos para a realização de audiência pública, não descobri razão que a justificassem, à luz da própria legislação de regência desse instituto.

[...]

Ora, à toda evidência, a causa encerra matéria de direito. Os autos estão fartamente instruídos, e não há tema que envolva complexidade técnica.

Bem mais expressivas são, aliás, neste caso, as muitas contribuições dos amici curiae admitidos, pois que tais manifestações prescindem de reconhecido “notório saber” em qualquer área de conhecimento (PELUSO, 2012).

Para Peluso, a questão quilombola é uma questão menor. Teima em não perceber que a abolição da escravatura em terras brasileiras encontra-se incompleta. Daí derivando questões sociais que envolvem desde o analfabetismo e a situação de miséria em que se encontra a comunidade negra, o encarceramento de negros e de negras, o embranquecimento das terras urbanas e rurais, o genocídio da juventude negra, e, até mesmo, a demonização dos cultos africanos.

No caso da ministra do STF Rosa Weber, o conceito de quilombo encontra-se preso à palavra reminiscente, outorgando-lhe sentido de uma comunidade atual que tem um tronco comum, individual ou coletivo, das comunidades de escravos fugidos.

Já a data de 13 de maio de 1888 não tem serventia metodológica à definição do status dos quilombos. A uma porque o próprio conceito de remanescente de quilombo nos dias atuais exige a reprodução contínua de uma comunidade que, originada da resistência à escravidão, permaneceu coesa até o presente. (WEBER, 2015, grifo nosso).

Assim, Rosa Weber associa, também, as comunidades quilombolas à resistência da comunidade negra ao sistema escravocrata. Se a Lei 3.353/1888 extinguiu a escravidão no Brasil, a Lei das Terras marginalizou definitivamente os afrodescendentes brasileiros.

A passagem da escravidão para o trabalho livre não afetou por isto os interesses dessas oligarquias, pois, ao perderem os escravos, muitos deles já onerosos por serem membros de um estoque envelhecido, continuaram com a posse da terra, símbolo econômico e social de poder. E essa tática apelou para uma solução alternativa que permitisse a essa oligarquia continuar na posse da terra: a vinda dos imigrantes. (MOURA, 2014, p. 92).

[...]

A Lei da Terra tinha, no fundo, conteúdo político. Ela deu um cunho liberal à aquisição de terras no Brasil, mas visava a, de um lado, impossibilitar uma lei abolicionista radical que incluísse a doação pelo Estado de parcelas de gleba a libertos e, de outro, estimular o imigrante que via, a partir daí, a possibilidade de transformar em pequeno proprietário, aqui chegando. (MOURA, 2014, p. 110-111).

Portanto, as comunidades quilombolas são mecanismos de resistência à escravização, mas também à marginalização social que tem a negação do acesso à terra como um dos seus pilares. Dessa maneira, os quilombos atuais não são meros museus culturais a céu aberto, exposto a visitações de curiosos, porém, manifestações da resistência negra que surgiram antes e depois da extinção do sistema escravagista no Brasil.

Merece, pois, descrédito o seguinte discurso de Toffoli sobre o conceito de quilombo:

Nessa concepção, as comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos étnico-raciais que compartilham certa identidade, baseada numa ancestralidade comum, em manifestações culturais com forte vínculo com o passado, em relações organizacionais próprias e em formas específicas de relacionamento com a terra. (TOFFOLI, 2017).

Tal conceito abriga apenas uma das espécies de comunidade quilombola. Há outras que foram forjadas em situações e em contextos diferentes dos mencionados por Toffoli. Esse equívoco, também, é cometido pela Procuradoria-Geral da República.

Ali se prevê o critério autoatribuição, mas também a necessidade de trajetória histórica própria, a dotação de relações territoriais específicas e a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, critérios estes que se complementarão àquele. Essa idéia é reafirmada na regulamentação dos procedimentos administrativos do INCRA, feita pela sua Instrução Normativa 16/2004. Ali se repete esta prescrição dos beneficiários da política pública (art. 3°).

Os quilombos nunca desapareceram. É lógico que existem comunidades quilombolas como as descritas pela Procuradoria-Geral da República, mas há outras que se formaram nas zonas urbanas e rurais, em que seus membros nem se conheciam. Conforme Carril (2009, p. 39):

O estudo das terras de quilombos no Vale do Ribeira conduziu-nos a refletir sobre os camponeses no Brasil que, diante das pressões socioeconômicas, refazem o processo histórico, remetendo-o à escravidão e a origem das terras. Agora, grupos localizados nas periferias de São Paulo identificam também essas partes da cidade com o quilombo.

Carril quer demonstrar que em algumas zonas periféricas da cidade de São Paulo grupos se autodenominam e se autodefinem como quilombos. Fazem-no pela semelhança da tática de resistência empregada contra as “condições opressivas” (STRECK, 2006, p. 82) do abandono social: valoração da identidade e da cultura negras.

No entanto, a resistência cultural é apenas uma das facetas dos antigos e dos atuais quilombos. Deve-se guardar alguma distância da seguinte fala da Procuradoria-Geral da República:

Hoje, conforme a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), quilombo é o termo utilizado para designar a herança cultural e material das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos, que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico, abrangendo toda a área ocupada e utilizada para subsistência, e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

Da mesma maneira, quando o Instituto Pro-bono, o Conectas Direitos Humanos e a Sociedade Brasileira do Direito Público associam o movimento quilombola apenas à resistência cultural, “A discussão sobre o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas é parte de um processo histórico de valorização da cultura negra, que alcançou em 1988 importantes conquistas”. Os quilombos expressam, também, uma “[...] cultura de resistência” (MOURA, 1992, p. 34).

De fato, a colonialidade do saber pode ser encontrada em todas as peças da ADI, pelo menos foi o que se percebeu naquelas em que se realizou o levantamento dos dados que compõem a categorização da empiria estudada (ALVES, 2007). Os saberes das comunidades quilombolas, suas narrativas precisam ser legitimadas pelo discurso acadêmico.

19. – Ora, dessa forma, admite a norma impugnada que os interessados se declarem remanescentes dos quilombos, por vontade própria, sem estudo antropológico que possa verificar essa situação, e, a partir desse primeiro pressuposto também declarem qual a área de terras que pretendem ver reconhecida e por outro lado, na ausência de impugnação, considera como tacitamente aceito por terceiros que possam ser proprietários dessas áreas. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).

[...]

Não há, portanto, razão de ser na referida impugnação, tendo em vista que a indicação do território pelas comunidades interessadas não é critério isolado, precedendo à titulação das terras outras fases técnicas, inclusive com a emissão do Relatório Técnico de Identificação de Delimitação, com a observância de diversos critérios antropológicos e de natureza objetiva. (TOFFOLI, 2017).

[...]

A rigor, não há uma questão de inconstitucionalidade em jogo. Evidencia-se, isso sim, uma controvérsia metodológica (se é que assim se possa considerar, na medida em que os mais recentes avanços da Antropologia ratificam os critérios estabelecidos no Decreto 4.887, de 2003), que há de resolver-se no âmbito da ciência antropológica, e não do Direito” (fls.112). (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA).

[...]

Prevê ainda a realização de trabalhos de campo para a produção do Relatório Técnico-Científico (RTC), determinando a localização da comunidade, a identificação e a descrição da área, conforme limites indicados pela comunidade, com base nas atividades econômicas e construções já existentes. Procede-se também ao diagnóstico jurídico do território auto- identificado, que consiste no levantamento de sua situação dominial, da situação jurídico-ambiental e da situação jurídica da comunidade, verificando se cabe ação de usucapião ou se é o caso de desapropriação.

(INSTITUTO PRO BONO, CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO PUBLICO, 2004).

Então, mesmo naqueles que defendem a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, a fala dos quilombos necessita da academia para credenciá-la. Os negros e as negras são vistos como seres inferiores que necessitam da tutela do Estado e do discurso científico eurocentrado para chancelar os seus quereres.

2.5.3A Colonialidade do Ser na ADI 3239

A noção de raça e sua diferenciação, e respectivas associações, objetivava naturalizar o discurso do colonizador no qual o binômio inferior/superior se relacionava, nessa ordem, às negras e aos negros escravizados e ao branco europeu colonizador. Essa ideia ainda se mantém nas relações sociais formadas no espaço social brasileiro (QUIJANO, 2005).

Dentro dessa perspectiva, a fala dos negros e das negras é sempre relacionada à mentira, a devaneios, em uma relação de negação da alteridade que não reconhece a outra pessoa, no caso, a pessoa negra, como membro da mesma nação:

Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não remanescentes-, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto- sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aquelas que efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT, e realizar, por via oblíquas uma reforma agrária sui generis. (DEMOCRATAS, 2004).

De acordo este partido, a utilização do critério da autoatribuição ocasionaria destinar terras a quem não é efetivamente um quilombola.

Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país. (DEMOCRATAS, 2004).

A propensão a mentir que a comunidade negra se encontra inclinada exige a elaboração de laudos científicos que permitam verificar a veracidade das narrativas dos negros e das negras que se dizem quilombolas. Rosa Weber acata a autoatribuição, porque a narrativa quilombola, na sua forma de interpretar o Decreto 4.887/2003, necessita obrigatoriamente de uma certidão emitida pela Fundação Palmares.

Para os efeitos do Decreto 4.887/2003, a autodefinição da comunidade como quilombola é atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do art. 2°, III, da Lei 7.668/1988.

Embora apresentem congruências, vale registrar que não se sobrepõem os conceitos de consciência da própria identidade, consagrado na Convenção 169 da OIT, e o de autoatribuição/autodefinição, da forma como previsto no Decreto 4.887/2003. (WEBER, 2015, grifo no original).

Toffoli (2017) compartilha de tal entendimento: “Por outro lado, verifica-se que a impugnação do autor parte do entendimento equivocado de que o critério da autoatribuição seria suficiente para a titularização das terras, não acompanhado da utilização de critérios complementares para a identificação dos remanescentes de quilombo”. Portanto, de acordo com Rosa Weber e Dias Toffoli, a narrativa quilombola fica em suspensão, aguardando que terceiros estranhos à comunidade possam atestar a sua fidelidade, franqueza e honestidade.

Em outra passagem de sua petição, o DEM é categórico em afirmar que a fala dos negros e das negras não possui idoneidade: “Trata-se, na prática, de atribuir ao pretenso remanescente o direito delimitar a área que lhe será reconhecida. Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição” (DEMOCRATAS, 2004).

Do mesmo modo, o DEM acredita que os modos de viver, de criar e de fazer não possuem qualquer importância, e, portanto, não podem ser utilizados como critérios para definir a delimitação da área quilombola: “Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural” (DEMOCRATAS, 2004).

O Estado de Santa Catarina possui entendimento semelhante:

18. – Ademais, como vimos acima, o procedimento regulado pelo Decreto impugnado, aceita, para a apuração dos fatos que às pessoas supostamente remanescentes dos quilombos, assim se auto-declarem, como também aceita que essas mesmas pessoas que assim se autodeclararam, faça a indicação da área de terras a lhes ser titulada. (ESTADO DESANTA CATARINA, 2007).

O Decreto é combatido por legitimar a fala e os desejos de seres que sempre estão à espreita, propensos à marginalidade, à farsa, ao embuste. Porém, para o Estado de Santa Catarina, além disso, os negros e as negras são responsáveis pela instalação do caos social ao reivindicarem os seus direitos.

27. A Constituição Federal assegurou uma realidade fática anteriormente existente, atribuindo ao Estado apenas o dever de emitir o respectivo documento público, todavia, o malsinado Decreto aparentemente, sobrepõe direitos e cria conflitos de interesses, onde antes havia paz social. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).

O ministro Cesar Peluso concorda com tal argumento: “Convencido da inconstitucionalidade do diploma impugnado, não posso, todavia, furtar-me a sopesar, com igual atenção, o crescimento de conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer, se já não a trouxe”. Em outra passagem do seu voto, Peluso (2012) afirma:

Convencido da inconstitucionalidade do diploma impugnado, não posso, todavia, furtar-me a sopesar, com igual atenção, o crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer, se já a não trouxe. É que o nobre pretexto de realizar justiça social, quando posto ao largo da Constituição, tem como conseqüência inevitável a desestabilização da paz social, o que o Estado de Direito não pode nem deve tolerar. Antes, deve afastar, como é óbvio.

O discurso do ministro denota que os conflitos agrários não são resultantes da concentração de terra, mas desencadeados pelas comunidades quilombolas que não aceitam pacificamente viver na invisibilidade e na periferia das cidades brasileiras. As negras e os negros são tidos como transgressores, violadores contumazes da lei e da ordem e da paz pública.

Já o ministro Dias Toffoli afirma, como já referido, que deixar que as comunidades quilombolas se autodefinam como tais é provocar insegurança jurídica. Dessa forma de pensar emana que a garantia da estabilidade jurídica fica condicionada à sujeição dos quilombolas à negação de suas dignidades. Aceitar as migalhas de vida que a Casa Grande lhes oferece. Uma leitura seguindo as premissas do constitucionalismo liberal em que “A liberdade individual, fundada na propriedade privada, passa a ser a essência do novo ordenamento jurídico” (MAGALHÃES, 2015, p. 56).

Datada do século XVIII, é esta visão de mundo que ainda define a visão sobre as comunidades quilombolas. Mesmo aqueles que defendem a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 possuem uma visão negativa sobre as comunidades quilombolas. No voto da ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber pairam ambiguidades:

Entendo que, se de um lado a falta de cuidado no seu emprego é um convite à irregularidade e ao oportunismo, de outro a sua recusa frustra a concretização de direitos constitucionais protegidos pela Constituição da República. O sentido das normas protetivas de direitos fundamentais, como já enfatizado, deve sempre ser buscado na interpretação que lhes confere a máxima eficácia. (WEBER, 2015).

A autoatribuição quilombola encontra-se mutilada, fragilizada por aqueles que percebem os negros e as negras como oportunistas e lacaios que querem se aproveitar de forma indevida e furtiva das benesses que o Estado lhes presenteia, o que lhes afeta na sua dignidade.

De forma escamoteada, a defesa de se definir um limite temporal do erguimento das comunidades quilombolas também possui esta mesma visão de mundo: “E a ausência de um marco temporal de ocupação servirá, nesse caso, de estímulo ao agravamento de conflitos fundiários” (TOFFOLI, 2017).

A visão que o STF possui sobre as comunidades quilombolas, aqui materializada no voto do ministro Dias Toffoli, não destoa muito da proposta de trégua que o governador de Pernambuco ofereceu a Ganga-Zumba (RODRIGUES, 1982):

O governador d. Pedro de Almeida garantia autonomia – reconhecimento da liberdade aos palmaristas – com a condição de demarcar as terras e de proibir-se o ingresso de novos fugitivos. Esse teria sido o acordo entre os negros do Palmar e as autoridades pernambucanas. (GOMES, 2011, p. 22).

O marco temporal é um convite à traição àquelas negras e àqueles negros que se encontram na periferia. Os quilombolas pérfidos devem esquecer seus irmãos e suas irmãs nas senzalas modernas.

2.6 A Colonialidade nos Discursos Textuais da ADI 3239

Coronil (2005, p. 109) destaca o papel da natureza como uma “[...] força geradora de riqueza e modernidade”. O sistema capitalista, a partir de conquistas tecnológicas, consegue superar algumas limitações que a natureza lhe impõe na produção de mercadorias e na exploração de recursos minerais. Porém, o desenvolvimento das relações capitalistas na agropecuária encontra um inimigo quase invencível: não é fácil fabricar novas terras (SILVA, 1980).

Para esse autor, por ser dificultoso produzir novas terras, seja por deficiência tecnológica ou pelo alto custo que representa, é que ganha importância a “[...] forma de apropriação dos solos criados pela Natureza, quer dizer, dos solos não fabricados” (SILVA, 1980, p. 21). O Estado legisla em profundidade o acesso à terra.

No início da colonização, século XVI, os portugueses perceberam que, além do açúcar que podia gerar vultosas somas de dinheiro, havia também o tráfico de corpos negros que se mostrava extremamente rentável. Gerava-se, assim, o latifúndio escravista. Um sistema de produção que envolve doações de grandes extensões de terras a particulares, denominadas de sesmarias e, obrigatoriamente, a propriedade de escravos (GORENDER, 1988).

Como dito em outras paragens, no início do século XIX ocorre uma expansão dos sítios (SILVA, 1986) em função do fracionamento de grandes áreas por conta de heranças e até pelo abandono de imóveis rurais pelas condições deploráveis em que o solo se encontrava (GADELHA, 1989). Segundo Gorender (1988, p. 375), “[...] a fertilidade das terras virgens fazia preferível nova plantação ao trabalho com a revitalização [do solo]”.

A Lei 601/1850 impede esse processo de apossamento (GADELHA, 1989) e possibilita a constituição de um mercado de trabalho livre para substituir o sistema escravista que se encontrava em vias de extinção. Por isso, pondera Silva (1986), não se deve estranhar que se tenha criado uma legislação que defina o acesso à propriedade com a proibição do tráfico negreiro em 1850.

É fácil entender a importância da Lei de Terras de 1850 para a constituição do mercado de trabalho. Enquanto a mão de obra era escrava, o latifúndio podia até conviver com terras de “acesso relativamente livre” (entre aspas porque a propriedade de escravos e de outros meios de produção aparecia como condição necessária para alguém usufruir a posse destas terras). Mas quando a mão de obra se torna formalmente livre, todas as terras têm que ser escravizadas pelo regime de propriedade privada. (SILVA, 1986, p. 25).

A escravização das terras a que faz referência José Graziano da Silva ocorreu para impedir que, principalmente, negros e negras tivessem acesso à terra. Mais ainda, para financiar o processo de embranquecimento do Brasil. Isto porque, a comercialização das terras devolutas destinava-se ao financiamento da vinda de colonos da Europa (SILVA, 1986). Eis a colonialidade do poder.

Ao atribuir às comunidades quilombolas a titulação das terras que ocupam, o art. 68 do ADCT rompe com a colonialidade do poder materializada pela Lei das Terras. Primeiro, porque torna a palavra quilombo prenhe de esperança, elevando-a a símbolo de resistência à opressão e a gozo de direito; segundo, porque retira da lógica da propriedade privada uma porção de terras.

No entanto, como se houvesse cometido um equívoco ao permitir a inserção de tal direito na Constituição, a colonialidade do poder reage e se manifesta, aqui, na interpretação que lhe confere o Poder Judiciário e no conceito de quilombo atribuído pelo Estado de Santa Catarina25 e pelo Partido Democratas.

Há, por parte daqueles que sustentam a inconstitucionalidade do decreto quilombola – Decreto 4.887/2003 –, uma visão monocular do artigo 68 do ADCT. Na ânsia de defender a propriedade privada, esquecem que a territorialidade quilombola possui uma função social: acolher os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas, considerados no art. 216 da atual Constituição republicana como patrimônio cultural imaterial brasileiro.

Assim, o Estado de Santa Catarina defende que a interpretação do art. 68 do ADCT da CF/1988, deva ocorrer de tal maneira que seja “[...] respeitado o direito às demais formas de propriedade constitucionalmente asseguradas” (BRASIL, 1988). Por isso, ataca a possibilidade de desapropriação de imóveis de particulares quando a comunidade quilombola indicar essas áreas como aquelas que compõem o seu território.

O DEM se utiliza dos mesmos argumentos do Estado de Santa Catarina em relação à desapropriação prevista no Decreto 4.887/2003 e realça a indignação do “[...] uso de recursos públicos por ocasião de indenização decorrentes de desapropriações realizadas ao arrepio da Constituição”.

O objetivo é restringir ao máximo a quantidade de solo que possa ser transferido para os negros e as negras quilombolas. Dessa maneira, o momento de constituição dessas comunidades ou mesmo o conceito de quilombo entram no baile. O DEM aponta o período imperial em que os quilombos se formaram. O Estado de Santa Catarina e Dias Toffoli indicam a data em que a atual Constituição foi promulgada.

Tanto um quanto o outro sabem que a inserção de tal direito na Constituição de 1988 promoveu que comunidades negras se atribuíssem a identidade quilombola. De fato, o texto constitucional incentiva o debate nas comunidades quilombolas sobre suas histórias, suas tradições, seus anseios e suas frustrações.

A organização política local teve seus inícios na localidade Lagoa das Emas, que se desenvolvia, desde 2008, um trabalho de articulação social e política, através da Associação local, envolvendo comunidades além das que atualmente constituem o agrupamento. Esta data se refere a reuniões para se trabalhar, localmente, a ideia de reconhecimento do território como quilombola; porém, o debate sobre identidade quilombola e seu reconhecimento territorial pautou-se, localmente, a partir de 2005, com forte presença de lideranças locais já vinculadas ao Movimento Quilombola Estadual, cujas lideranças diziam existir ali um povo com “costumes tradicionais”. (MATOS; MORAES, 2015, p. 224).

Percebe-se, pelo relato das autoras, que a comunidade localizada no município de São Raimundo Nonato, Piauí, denominada de Lagoa das Emas, apenas em 2005 iniciou o debate sobre a identidade quilombola, mas que já se encontrava encravada naquele espaço há bastante tempo. Por certo, tal comunidade se adéqua ao perfil estabelecido pela colonialidade do poder.

Mas não é difícil imaginar que diversas comunidades negras foram expulsas do local que habitavam e outras que se formaram após 1988 em um processo organizado de ocupação de terras devolutas e de imóveis improdutivos pertencentes a particulares.

A empresa Suzano Papel e Celulose não deslocou, mas restringiu o modo de vida da população tradicional e quilombola, que ficou impedida de extrativismo, de criar animais soltos porque as florestas de eucaliptos não eram cercadas e teve alterado o lugar de fazer roças; é o caso da comunidade Nova Esperança no município de Palmeirais (PI), que ficou com a floresta de eucalipto no seu terreiro, teve que deixar de criar galinhas, porcos, de extrair o coco babaçu e as roças ficaram a 15 quilômetros de distância (UFPI/DCJ/DIHUCI, 2015). (SOUSA, 2015, p. 114-115).

A estrutura fundiária de Caxias caracteriza-se pela predominância de grandes proprietários de terra, o que gera muitos conflitos com os donos de minifúndios, entre estes os remanescentes de quilombolas. De certo modo, a estagnação das técnicas de produção e o esgotamento do solo constituem-se dilemas para os pequenos lavradores, apesar da riqueza do solo. O município possui um quadro migratório preocupante, da zona rural para a zona urbana [...]. (MAIA, 2015, p. 34).

A destruição das comunidades quilombolas, perpetrada por ações e por atores diversos, fazendo que algumas delas desapareçam ou que se desloquem para outras áreas rurais e mesmo zonas urbanas, ocorre cotidianamente. Estabelecer o ano de 1988 como o marco para garantir a titulação das terras representa fechar os olhos ao processo de fagocitose do latifúndio em relação às comunidades quilombolas e à invasão de suas áreas por empreendimentos de particulares e até por obras governamentais.

Representa, antes de tudo, a defesa da propriedade privada. E essa forma de apropriação de imóveis rurais e urbanos expressa a colonialidade do poder.

O domínio das minorias brancas pode ser verificado, por exemplo, no aspecto da privação e luta pelo acesso à terra de movimentos como os índios, quilombolas e sem-terras, cujo processo de exclusão fora estabelecido historicamente. Desde a colonização do Brasil grandes parcelas de terras foram encaminhadas a poucos proprietários, gerando grandes latifúndios. Da concentração, assegurada por leis que protegem os interesses dos proprietários, na maioria de brancos de origem europeia, exclui-se os demais, pois hierarquicamente e racialmente inferiores, restando para estes a acentuação da pobreza e a exclusão social. (ORTIGARA, 2016, p. 47).

Essa privação de acesso à terra foi estabelecida historicamente, sempre pautada pelo direito, excluindo negros e negras relegados à condição hierárquica e racialmente inferiores, marginalizando-os sem moradia ou sem solo para cultivar roças. No caso do artigo 68 do ADCT da CF/88, cabe à colonialidade do poder interpretá-lo de tal forma que os impactos sejam quase irrelevantes para o latifúndio e para a propriedade privada.

A interpretação do artigo constitucional quilombola se faz a partir de um olhar que sacraliza a propriedade privada, cultua o pensamento europeu e inferioriza os saberes dos quilombos. Não se aponta, necessariamente, a menção que Rosa Weber fez ao constitucionalismo alemão. Mas custa a acreditar que um pensamento forjado em uma comunidade totalmente distinta da brasileira possa ser aqui aplicado sem nenhum ajuste. Pode até ser uma luva, mas as mãos e os dedos são diferentes.

Dias Toffoli, por exemplo, se apressa em corrigir o DEM, lembrando que a indicação do território pela comunidade não vale por si só. É o conhecimento produzido nas universidades que sanciona a narrativa quilombola. Cézar Peluso, por sua vez, entendeu que não havia necessidade de audiência pública em que poderia ouvir depoimento de pessoas com experiência e autoridade na matéria, portanto, os quilombolas. Aqui se respira colonialidade do saber.

Do mesmo modo, Dias Toffoli entende que os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas, previstos no art. 216, da CF/88, não se encontram intrinsecamente relacionados com a titulação do território onde essas manifestações se traduzem, dando a entender que constituem, meramente, patrimônio cultural brasileiro que deve ser preservado em museus de imagem e som. Não percebe que o solo quilombola possui vida, pulsa em meio a angústias, a abandono social e a marginalização.

A categorização da fala do ministro Dias Toffoli pode ser equiparada ao tratamento dos saberes quilombolas como “produto do primitivo” (LANDER, 2005, p. 34), portanto, “[...] obstáculos à tarefa transformadora do desenvolvimento” (LANDER, 2005, p. 42). Por isso, a necessidade de aprisioná-los em museus, identificando-os com um passado que necessariamente deve ser superado. Daí entender que o artigo 68 carrega preceito que possui um “comando transitório e excepcional”.

Essa percepção de que a causa quilombola se encerrou com a extinção da escravidão encontra guarida no silêncio que o direito manteve por um longo período. Na verdade, os negros se encontram apenas nas entrelinhas dos livros de História do Brasil, como se fosse possível explicar este país sem considerar que o sistema escravocrata costurou com a linha e a agulha da colonialidade do poder as relações sociais travadas aqui.

Apenas em 2003, objetivando resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, a Lei 10.639/2003 tornou obrigatório, nas escolas públicas e particulares brasileiras, o ensino da História da África e dos africanos, o processo de resistência do negro à sua desumanização, e, principalmente, a contribuição do negro na formação da sociedade nacional.

Medida necessária, mas insuficiente. A história de negros e de negras continuará sendo escrita por brancos. Em pleno século XXI, apenas 7,7% de negros e de negras com idade superior a 18 anos se encontram nas universidades brasileiras (ALENCASTRO, 2014).

O DEM, ao afirmar que os quilombos se formaram durante a fase imperial da história do Brasil e se extinguiram em 13 de maio de 1888, procura deslegitimar toda produção literária que afirma que Dandara e Zumbi vivem, pois, os quilombos, como mecanismo de enfrentamento à desumanização de homens negros e de mulheres negras, continuam sendo erguidos cotidianamente.

A manifestação cultural do quilombo no rap, ao contrário das comunidades negras rurais, emerge no interior dos grupos juvenis que vivem nas metrópoles contemporâneas e aponta para o fenômeno da cultura na ordem mundial em sua intersecção local. Insere-se em uma dimensão urbana, contraditória, desagregadora e de escassez, aproximando São Paulo de outras metrópoles, como Lisboa, Paris ou Chicago, no que diz respeito à segregação espacial urbana. (CARRIL, 2009, p. 24).

Os quilombos são urbanos e rurais. Em uns, os quilombolas cultivam roças; em outros, cultivam músicas, danças e grafitam as cidades. O DEM se propõe a apagar ambos das ruas, das praças, dos bairros, das cidades, dos campos, tornando-os invisíveis, reafirmando a narrativa colonizadora que manda silenciar os tambores e o rap quilombola que denunciam a desumanização de negros e de negras, mas que, antes de tudo, propõem a pedagogia de luta (VARGAS, 2012).

Maldonado-Torres (2007) observa que a invisibilidade e a desumanização expressam a colonialidade do ser. “Acho que até então ela me olhava como aquela imperatriz da antiguidade, que se despia diante de seu escravo porque não o considerava como a um ser humano” (DOSTOIÉVSKI, 2014, p. 21).

A autodefinição anuncia a restauração de uma humanidade violada pela escravização e pela colonialidade do ser porque traz para o próprio indivíduo a possibilidade de pensar sobre sua existência e de cogitar sobre o seu ser. É que a colonialidade classifica os negros como uma raça inferior, incapazes de gerir os seus próprios destinos incertos da vida.

Segundo Rosa Weber, a autodefinição da comunidade como quilombola, obrigatoriamente, deve ser atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares. Esta entidade simboliza o conhecimento originário nas universidades, o único saber válido porque qualificado como científico. “La universidad es vista, no sólo como el lugar donde se produce el conocimiento que conduce al progresso moral o material de la sociedade, sino como el núcleo vigilante de esa legitimidade26” (CÁSTRO-GÓMEZ, 2007, p. 81).

Há, pois, um padrão cognitivo que não só nasce das universidades, mas que possui validade, porque é originário desse espaço acadêmico. É essa espécie de conhecimento que possui legitimidade para aferir a validade dos outros saberes, das outras falas e até dos desejos.

A colonialidade se exsurge, também, no controle sobre a autoridade e seus meios de coerção. Assim, a lei e a interpretação da lei devem atender aos anseios dos colonizadores. Por isso, a vontade do negro em atribuir-se como quilombola não pode ser objetivada em uma categoria jurídica que materialize direitos. Isso agride quem alimenta e quem se beneficia da colonialidade. O DEM protesta: “Em outras palavras, o texto regulamentar resume a rara característica de remanescente das comunidades quilombolas numa mera manifestação de vontade do interessado27”.

Do mesmo modo, pela lente da colonialidade do ser, os negros representam uma ameaça constante (MALDONADO-TORRES, 2007) à paz social que os brancos a todo custo procuram manter. É sob este olhar que é feita a leitura do artigo 68 do ADCT da CF/1988, e do Decreto 4.887/2003. É preciso ter paciência, serenidade na hora da titulação das terras quilombolas, coisa que os negros não tiveram na hora de influenciar os critérios estabelecidos no Decreto. É o que afirma indiretamente o ministro Dias Toffoli, trecho aqui já citado, ao afirmar que há insegurança jurídica em deixar em aberto a definição do território como quilombola, ou seja, deixar que quilombolas definam seus territórios na afirmação do ministro é produzir insegurança jurídica.

A estabilidade jurídica, mencionada pelo ministro do STF, foi construída a partir de um processo de segregação social. Para mantê-la, sacrificam-se mais ainda as necessidades de uma raça que, aparentemente, se acostumou a ser submetida à desumanização. A violência sofrida pelos negros não pode incomodar a paz dos brancos.

Em muitas das falas que se encontram na ADI 3239, quer-se ancorar a formação das comunidades quilombolas a uma resposta ao aprisionamento físico em que se encontravam os negros escravizados durante o Brasil Colônia e Imperial. Negam, dessa forma, que o processo de coisificação, de desumanização de negras e de negros ainda não se encerrou, tendo a colonialidade do saber e do ser seus principais catalisadores.

Esse pensamento guarda coerência com uma vasta produção acadêmica que, por exemplo, via o problema do ser escravizado pelas diferenças entre as culturas africanas e a europeia (MOURA, 2014). “A tônica foi sempre a mesma: o estudo de duas culturas, os seus níveis de convergência ou divergência, as posições antagônicas do seu mundo religioso, da sua culinária, dos seus gostos musicais, indumentária, linguagem, etc.” (MOURA, 2014, p. 35). Como em outros momentos, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser se entrecruzam.

O pensamento propagandeado é que a cultura africana é atrasada e rudimentar que colide com uma cultura europeia avançada, moderna e modernizante. Nada escapa à colonialidade: as feições negras, o cabelo dos negros, os santos dos negros são demonizados, suas danças consideradas exóticas, nas quais os negros se comportam como se fossem animais no cio. São considerados feios, fétidos, preguiçosos, indolentes. Os negros representam o atraso e são responsáveis pelo fato de o Brasil rico ser subdesenvolvido. A senzala foi edificada com artefatos do colonialismo e da colonialidade e as favelas são produzidas pela colonialidade do poder, do saber e do ser. E, do mesmo modo, são os acampamentos dos sem- terra, os manicômios e os presídios.

[...]

depois de dias e dias, partiu pro hipocampo o atum e a cor lilás fizeram-lhe o convite

no mundo objetivo não era um homem livre:

a hiperfiguração passou a ser seu canto (E., 2016, p. 241). [...]

Ser negro não é uma tarefa fácil. A colonialidade silenciosamente opera para que isto ocorra diariamente.


3.O CONCEITO DECOLONIAL DE QUILOMBO NA ADI 3239

Se, no capítulo anterior, o foco se dirigiu aos discursos presentes na ADI 3239 que expressam ou manifestam a colonialidade do poder, do saber e do ser, neste, o cerne é a discussão dos aspectos que representam a decolonialidade ou giro decolonial, que conduziram à produção do resultado da declaração de constitucionalidade do decreto regulamentador do art. 68 do ADC da CF/88 .

Portanto, é nas falas que defendem a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 que se pode encontrar tal giro decolonial. Emerge desses discursos a percepção de que o fim do colonialismo ou mesmo o fim do regime escravocrata em terras brasileiras não representou o fim da coisificação e da desumanização de homens e de mulheres afrodescendentes. Ao contrário, a esses ainda lhes cabem papéis e lugares sociais definidos pelos colonizadores europeus.

Porém, perceber-se-á que o giro decolonial não se resume apenas a isso. Ao contrário, materializa-se no entendimento de que cabe exclusivamente aos membros da comunidade atribuir-se a identidade quilombola, valorizando a narrativa de homens negros e de mulheres negras, desprestigiada e ocultada pela colonialidade.

Do mesmo modo, verificar-se-á que há decolonialidade quando afirmam que a utilização da territorialidade, como marco identificador das terras quilombolas, é constitucional, pois esse critério possibilita o enegrecimento de maior parcela do solo brasileiro, além de criar condições para efetivar o sentimento de pertencimento à nação brasileira por parte de afrodescendentes como materialização do conceito de liberdade como já referido.

Tais leituras foram possíveis, como se verá, porque, em alguns momentos, se adotou no seio da ADI 3239 uma perspectiva decolonial de quilombo na qual se abandona a visão de que tal fenômeno é próprio e exclusivo do sistema escravocrata para considerá-lo como todo mecanismo de resistência à coisificação e à desumanização de negros e de negras. Entra em cena, portanto, a hermenêutica decolonial do fenômeno social quilombola.

O itinerário discursivo apresentado nesta seção inicia-se com a apresentação da ideia de decolonialidade como a visão de mundos das pessoas inferiorizadas no projeto de europeização do mundo, para, em seguida, descrever a resistência quilombola como quilombismo, quilombagem e como ela se expressa no novo constitucionalismo latino-americano. No fim deste percurso, faz-se uma reflexão sobre as categorias levantadas e localizadas nos discursos decoloniais.

3.1A decolonialidade: uma visão de mundo dos colonizados

Castro-Gomez e Grosfoguel (2007) defendem que o uso da categoria decolonialidade desconstrói o pensamento de que o fim da administração colonial de Portugal e Espanha na América Latina gerou Estados-nação descolonizados. Ao contrário, afirmam estes autores, negativa se sobressai, uma vez que o eurocentrismo, a divisão racial do trabalho, pensada a partir da hierarquização étnico-racial, forjados durante a expansão colonial europeia na América Latina, ainda perduram, mesmo com o fim do colonialismo.

Um dos mais poderosos mitos do século XX foi a noção de que a eliminação das administrações coloniais conduzia à descolonização do mundo, o que originou o mito de um mundo “pós-colonial”. As múltiplas e heterogêneas estruturas globais, implantadas durante um período de 450 anos, não se evaporaram juntamente com a descolonização jurídico-política da periferia ao longo dos últimos 50 anos. Continuamos a viver sob a mesma “matriz de poder colonial”. Com a descolonização jurídico-política saímos de um período de “colonialismo global” para entrar num período de “colonialidade global”. (GROSFOGUEL, 2008, p. 126).

O termo colonialidade perpassa a noção, então, de que o processo de independência não provocou uma fissura ou uma descontinuidade histórica entre o período colonial e a época atual. Já que, formalmente, desmontaram-se os instrumentos e as estruturas de domínios econômico-político e jurídico-administrativo, mantendo-se, todavia, incólume, inclusive a dimensão epistêmica que dava vida às instituições coloniais.

Ou seja, além de o colonialismo ter deixado como herança desigualdade e injustiça social profundas, as colônias herdaram um legado epistemológico e ontológico do eurocentrismo “[...] que nos impede [até os dias atuais] de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhe são próprias” (PORTO- GONÇALVES, 2005, 10).

Grosfoguel (2008) defende que a colonialidade do poder “[...] reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da diferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes”. É preciso lembrar que esses colonizadores brancos não retornaram para a Europa com o fim do colonialismo. Continuam colonizando, alicerçados na colonialidade do poder.

A decolonialidade, pois, possibilita entender como as formas coloniais de dominação/exploração do branco europeu em relação às negras e aos negros africanos e a seus descendentes continuam praticamente imaculadas, mesmo após o fim das administrações coloniais. “De este modo, la estructuras de larga duración formadas durante los siglos XVI y XVII continúan jugando un rol importante em el presente28” (CASTRO-GOMÉZ e GROFOSGUEL, 2007, p. 14). Decolonizar é, pois, desmantelar essas estruturas, ou, pelo menos, perceber que elas se mantêm praticamente intactas.

La primera descolonialización (iniciada en el siglo XIX por las colonias españolas y seguida en el siglo XX por las colonias inglesas y francesas) fue incompleta, ya que se limitó a la independencia jurídico-política de las periferias. En cambio, la segunda descolonialización – a la cual nosostos aludimos com la categoria decolonialidade – tendrá que dirigirse a la heterarquía de la múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas.29 (CASTRO-GOMÉZ; GROFOSGUEL, 2007, p. 14).

Portanto, a decolonização se propõe a concluir a tarefa iniciada pela descolonização que se limitou ao plano jurídico-político, sem alterar as instituições que se encontram no controle do trabalho, do sexo, da autoridade e da subjetividade (QUIJANO, 2005). O sociólogo peruano pontua que as estruturas de cada âmbito da existência social estão sob a hegemonia de uma instituição produzida dentro do processo de formação e desenvolvimento da colonialidade do poder.

Assim, no controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, está a empresa capitalista; no controle do sexo, de seus recursos e produtos, a família burguesa; no controle da autoridade, de seus recursos e produtos, o Estado-nação; no controle da intersubjetividade, o eurocentrismo. (QUIJANO, 2005, p. 241-242).

Para decolonizar este “piso básico de práticas sociais comuns” (QUIJANO, 2005, p. 242), estabelecendo uma nova orientação valorativa da vivência humana, Castro-Gomes e Grofosguel (2007) entendem que há necessidade de se construir novos conceitos e nova linguagem, e que isto só é possível caso se firme um diálogo com formas não ocidentais de conhecimento e com novas formas de teoria da complexidade.

[...] La idea de decolonialidad tiende a mostrar el carácter explicitamente colonial de la modernidade. Es decir, que si queremos transitar hacia um proyecto distinto del la modernidade, lo que se deduce de esta reflexión es que no podemos partir ingenuamente del marco categorial del pensamento moderno, por que éste está contenido explicitamente su carácter colonial o colonizador.30 (SEGALÉS, 2014, p. 72).

A decolonialidade se propõe a apresentar novos valores, novos modelos, e, principalmente, novas definições do que é existência humana, escusando-se de, por exemplo, copiar simplesmente o receituário colonial ditado pela Europa e pelos Estados Unidos, emergindo disso tudo uma “alteridade epistêmica” (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 20).

Essa alteridade epistêmica se formula na intersecção entre o moderno e o tradicional, permitindo uma análise crítica da modernidade a partir de “[...] las experiencias geopolíticas y las memorias de la colonialidade31” (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 20), incorporando o conhecimento dos colonizados ignorados pela colonialidade do poder aos processos de produção e valoração do conhecimento.

Em efecto, la ciencia social contemporânea no ha encontrado aún la forma de incorporar el conocimiento subalterno a los processos de producción de conocimiento. Sin esto no puede haber decolonizácion alguna del conocimiento ni utopopía más allá del occidentalismo. La complicidad de las ciencias sociales com la colonialidade del poder exige la emergencia de nuevos lugares institucionales desde onde los subalternos puedan hablar y ser escuchados.32 (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 21).

A decolonialidade, ao tempo em que desmascara a cumplicidade das ciências sociais com a colonialidade, empresta à vida significados diferentes a fim de que surjam novos lugares institucionais de onde os colonizados possam falar e ser escutados. A título de exemplo, cita-se a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), fundada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 2005, localizada no município de Guarema, São Paulo, Brasil.

A incorporação do conhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras sem-terra aos processos de produção de conhecimento afronta a modernidade, sistema (WALLERSTEIN, 1992) calcado em um conhecimento que se diz universal, mascara não só aquele que fala como também o lugar a partir do qual o sujeito se pronuncia.

La última característica, aunque la no menos importante del paquete de la modernidad, fue el universalismo: creer que los valores que descubrimos, los valores que anhelamos y los derechos que tenemos, pertenecen a todas las personas sin excepción y sin que implique pasar por un rito de ingreso (como pertenecer a algún credo o patrimonio genético determinado). Esta fue una idea muy liberadora que le ofrecía a todo el mundo acceso a la vida en sociedad. Pero, por otra parte, fue una visión sofocante e imperialista, que proporciono a quienes detentaban el poder la justificación para imponer a los débiles su forma de organizar la vida a nombre de los valores universales33 (WALLERSTEIN, 1992, p. 5).

Não se trata, porém, de rejeitar simplesmente a modernidade que carrega consigo o ideário de igualdade, de fraternidade e liberdade, mas de se construir uma visão de mundo a partir das cosmologias e das epistemologias de mulheres negras e de homens negros, oprimidos, oprimidas, explorados, exploradas pela colonialidade do poder, com o intuito de superar a racionalidade eurocentrada (GROSFOGUEL, 2008) que trama contra quem tem a pele mais escura.

Segalés aponta que nos países colonizados os subalternos orientam-se por visões de mundo contrárias às suas vivências. Isto é, raciocinam com ideias que se mostram verdadeiros e intransponíveis obstáculos aos seus projetos de vida. Disso surge uma contradição ontológica: não é o que quer ser, porque pensa a partir do que não é.

[...] és decir, descubrimos la autocontradicción cuando nos damos cuenta de que razonamos com ideas, conceptos, ideologias, teorias, lógicas y hasta teologias contrários a nuestros proyectos, y de que, cuando intentamos salir de esta autocontradicción, entramos em contradicción con lo que éramos y qye aún em parte somos y que ya no queremos ser.34 (SEGALÉS, 2014, p. 74).

Por isso, o pensamento decolonial orienta a adoção de outra racionalidade distinta e contraposta à razão eurocentrada, já que os negros e as negras na América Latina percorreram e percorrem uma outra trilha histórica, com desejos e angústias distintos dos colonizadores brancos. Além do fato de o projeto da modernidade maquinar contra mulheres e homens subalternizados.

Conforme Segalés (2014), a modernidade ocidental continua destruindo as fontes a partir das quais é possível produzir e reproduzir qualquer forma de vida: a natureza e o trabalho humano. No pensamento moderno, a natureza aparece como objeto e seres humanos são coisificados.

Além disso, a técnica e a ciência na modernidade encontram-se a serviço de um desenvolvimento que privilegia o acúmulo de capital em detrimento da vida.

Pero ahora sabemos que tanto a idea de desarrollo como las de economia, racionalidad y ciencia que ha producido la modernidade son irracionales, porque tiende ella hacia el socavamiento de las condiciones de possibilidade de sí misma y de la vida en cuanto tal. Por esto es irracional, porque tiende hacia la muerte y no hacia la vida. 35 (SEGALÉS, 2014, p. 277).

Assim, o projeto decolonial, sob pena de resultar infrutífero ou até mesmo de fortalecer a colonialidade do poder, não pode abrigar simplesmente outras formas de construção do conhecimento, mas deve, sobretudo, propor e se organizar para que haja a implementação de outras políticas, orientadas por esse conhecimento decolonizado, e, a partir daí, garantir um desenvolvimento que não esteja pautado na destruição da natureza e na desumanização de negros e de negras.

Pues bien, lo que sigue, entonces, a la descripción de la colonialidad de la modernidad es su descolonización, primeramente en términos cognitivos, para desde ella fundar no sólo otra forma de construir conocimiento, sino también para definir políticas posibles otras a partir de este otro conocimiento. De ahí que, como en Zemelman, la relación entre lo político y lo epistemológico se torne aquí fundamental. No percibir esta relación es un síntoma de que la colonialidad del conocimiento de la modernidad sigue operando de modo eficiente en procesos que supuestamente tienen una intencionalidad explícita de descolonización.36 (SEGALÉS, 2014, p. 72).

Segundo este filósofo boliviano (2014), não perceber a relação entre o político e o epistemológico significa manter inalteráveis os empreendimentos de subalternização e de desumanização de negros e de negras, ainda que se vislumbre a intencionalidade explícita de decolonialidade. Maldonado-Torres (2009, p. 69) assevera que “Se trata de la articulación precisa de la razon des-colonial cuya finalidade primordial no es solanamente el cambio em métodos de conocimiento, sino tambíen el cambio social”37. É preciso, pois, decolonizar o direito brasileiro.

Nesse sentido, Walsh (2015) afirma que mesmo após o fim do colonialismo na América Latina, perduram, ainda, as estruturas que lhe davam suporte, incluindo a “[...] estructura jurídica y constitucional” (WALSH, 2015, p. 345). Se o Estado colonial era o único legitimado a produzir o direito, negando a existência de outras concepções de direito e de justiça, o direito contemporâneo brasileiro encontra-se alicerçado na mesma lógica do monismo estatal.

Para Walsh (2015, p. 347),

Así a partir de este mismo patrón [colonialidad] se estableció el eurocentrismo como perspectiva única de conocimiento, justificó la esclavización y deshumanización y descarto como bárbaros, salvajes y no modernos (ler: subdesarrolados y “tradicionales” las filosofias, cosmologias, lógicas y sistemas de vida de la gran mayoría: los pueblos indígenas e y los pueblos de origem africano Esta matriz o patrón – que siempre ha servido los interesses y necessidades del capitalismo – hace que la mirada se fija em Europa como modelo, perspectiva y modernidade ideal.

Y es a partir de esta mirada – aun presente – que se formó los Estados nacionales y, por supuesto, sus sistemas jurídicos38.

Portanto, para decolonizar o direito brasileiro, pelos menos em sua dimensão epistêmica, faz-se necessário aprender a dialogar com outras perspectivas de conhecimento, que não aquelas advindas da Europa. Beber da doutrina e da jurisprudência dos países latino- americanos, africanos e daqueles que compõem o mundo oriental. Ampliar o leque do intercâmbio jurídico a fim de abarcar outras experiências, principalmente, daqueles povos que foram vítimas da colonização europeia.

É preciso, pois, desmantelar a colonialidade. Fazer do texto e da norma mecanismos que possibilitem superar a identidade negativa atribuída aos povos indígenas e afrodescendentes e as suas consequências danosas.

Assim, embora a Constituição atual reflita os interesses liberais burgueses, (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016), o artigo que garante às comunidades quilombolas a titulação das terras que ocupam representa uma pequena fenda decolonial no âmbito do direito colonizado brasileiro.

É possível fazer uma leitura decolonial de tal artigo, porque a sua inclusão na Constituição resultou de uma mobilização da comunidade negra que, ao mesmo tempo, valoriza os quilombos como instrumento de luta e de enfrentamento à desumanização de negros e de negras pelo colonialismo e pela colonialidade do poder. Houve, portanto, um giro decolonial.

El giro des-colonial se rifiere más bien, em primer lugar, a la percepción de que las formas de poder modernas han producido y ocultado la creación de tecnologias de la muerte que afectan de forma diferencial a distintas comunidades y sujetos. Este también se rifiere al reconocimiento de que la formas de poder coloniales son múltiples, y que tanto los conocimientos como la experiencia vivida de los sujetos que más han estado marcados por el proyecto de muerte y deshumanización modernos son altamente relevantes para entender las formas modernas de poder y para proveer alternativas a las mismas.39 (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66).

Desse modo, a experiência quilombola de resistência ao processo de desumanização de negros e de negras e dos mais miseráveis, sejam de pele mais clara ou mais escura, intentada pela colonialidade do poder, ganhou relevo em um país marcado por injustiça social crônica.

Não cabe, aqui, especificar quais os atores sociais, mulheres negras e homens negros, responsáveis por esse processo de resistência. Há aqueles e aquelas que lutam de forma organizada em movimentos sociais, partidos políticos ou mesmo religiões. Existem outros e outras que lutam silenciosamente pela sobrevivência diária e pelo respeito à cor negra dos corpos.

HOMO

Sua ração de vida o homem vê minguando a cada dia. Mas duro recomeça

como se o tempo lhe sobrasse. E vagaroso não conta as eras que se extinguem.

Nem conta a solidão dos dias claros

se desdobrando iguais como esquecidos de mudar. Nem a distância

que o grito não transpõe, a passagem da vida cumprida só em mínimos desejos.

Sua lástima no piar das nambus, sóbrio se esquiva às armadilhas da tarde.

A incerteza nos paióis, o chão batido em que levanta a casa, o amor

como água das cabaças.

Lavrador do milho e do feijão, sua frugal colheita em gleba alheia. Passa-lhe a ida,

e queima o céu com a cinza de suas roças. (DOBAL, 2001, p. 31).

Há uma grande possibilidade de que tal ser humano seja uma pessoa negra. A gleba que ocupa com suas roças, lavrando milho e feijão, repousa em uma territorialidade quilombola. O chão batido pelos passos dos seus avôs, avós, filhos e filhas marcam as veredas que indicam as trilhas de suas vidas. Naquele chão, homens negros e mulheres negras colhem da angústia a vida e a certeza da necessidade de recomeçar e de resistir.

Nesse processo de resistência, aprenderam a se esquivar das armadilhas orquestradas pela colonialidade. Negros e negras, independentemente das incertezas dos paióis e da ração minguada, continuam se aquilombando, lutando cotidianamente contra a desumanização.

É importante, pois, trazer à tona as narrativas desenvolvidas por Abdias Nascimento e Clóvis Moura sobre o fenômeno quilombola em que o aspecto da resistência negra à desumanização e à coisificação se sobressai sobre o aspecto da luta pela liberdade, bem como o novo constitucionalismo latino-americano, que incorporou nos textos constitucionais a resistência negra como garantia de direitos. Por isso, aqui, considerados e tratados como pensamentos decoloniais.

3.2A resistência quilombola como quilombismo, quilombagem e no novo constitucionalismo latino-americano

Nascimento destaca que as negras e os negros brasileiros encontram-se à margem da sociedade brasileira, ocupando a periferia política, econômica e social e que, se há uma igualdade jurídica entre os que possuem a pele mais escura e os de pele mais embranquecida, tal garantia nunca se materializa na realidade.

Excetuando os índios, o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador, durante três séculos e meio, a erguer as estruturas deste país chamado Brasil. Mas a despeito dessa realidade histórica inegável e incontraditável, os africanos e seus descendentes nunca foram e não são tratados como iguais pelos segmentos minoritários brancos que complementam o quadro democrático nacional. Estes têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional. (NASCIMENTO, 2016, p. 101).

Nesse mesmo sentido, Moura destaca:

O negro urbano brasileiro, especialmente do Sudeste e Sul do Brasil, tem uma trajetória que bem demonstra os mecanismos de barragem étnica que foram estabelecidos historicamente contra ele na sociedade branca. Nele estão reproduzidas as estratégias de seleção estabelecidas para opor-se a que ele tivesse acesso a patamares privilegiados ou compensadores socialmente, para que as camadas brancas (étnica e/ou socialmente brancas) mantivessem no passado e mantenham no presente o direito de ocupá-los. (MOURA, 1988, p. 8).

Se, em solo brasileiro, cabe aos brancos o monopólio do usufruto e do gerenciamento de bens e de pessoas, aos negros e às negras a colonialidade do poder lhes estabelece hierarquias e papéis que guardam similitude àqueles destinados às pessoas que pertencem a uma hierarquia inferiorizada pelo critério raça. É na periferia geográfica e social que a maior parte da comunidade negra se localiza.

É dessa realidade que não encontra na história brasileira qualquer momento de interrupção ou descontinuidade que surgiram e que irrompem as comunidades quilombolas. Não se tratava simplesmente de fugir para encontrar a liberdade, porém de resgatar a dignidade humana que a colonialidade lhes havia roubado com uso de força física e de grave ameaça (NASCIMENTO, 2009).

Os quilombos se estruturavam em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização social própria, como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. (NASCIMENTO, 2009, p. 202-203).

No intuito de resgatar a dignidade, de retomar à condição de humano, de fugir da coisificação que o direito lhes havia reduzido que os negros se aquilombaram. Como o colonialismo e a colonialidade do poder se utilizam de diversos instrumentos sociais para desumanizá-los, as negras e os negros encontram uma reposta peculiar a cada uma dessas miseráveis situações.

Mas nem tudo separava internamente essa população. Existem casos de solidariedade que atravessavam a linha de liberdade, os mais óbvios sendo os que se assentam no parentesco: mães pais resgatam filhos, amantes e esposos se resgatam mutuamente. Mas há também alguns exemplos de libertos que ajudam membros da mesma etnia a comprarem sua alforria. (CUNHA, 1986, p. 25).

A cooperação entre libertos e escravizados era um mecanismo que homens e mulheres negras encontravam para enfrentar a coisificação a que estavam submetidos. Erguer comunidades negras pode se enquadrar nessa rede coletiva de solidariedade.

Desse modo, os quilombos são formados por mulheres e homens que fogem da violência física e psicológica da colonialidade do poder que ousa tratá-los e vê-los como seres inferiores, embrenhando-se em redes de solidariedade e de afirmação de antigos e novos valores que lhes fornecem um pequeno sopro da dimensão de seres humanos.

Genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. (NASCIMENTO, 2009, p. 203).

Nascimento (2009) afasta qualquer dúvida de que os quilombos não se reduzem às comunidades encravadas em algum lugar ermo, cercadas de paliçadas. Essas se traduzem apenas em uma espécie de quilombo. Há outras formas de resistência coletiva negra. A escola de samba é um quilombo. As gafieiras, com seus gingados, é um quilombo. Os terreiros, com seus santos, é um quilombo. É partir dessa concepção que Nascimento constrói a noção de quilombismo.

Porém tanto os permitidos quando os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta praxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo. (NASCIMENTO, 2009, p. 203).

O quilombismo de Abdias Nascimento engloba experiências coletivas de homens e mulheres negras na luta por dignidade. Não se trata, pois, de uma prática individual, porém que se objetiva de maneira grupal, solidária e fraterna.

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico. (NASCIMENTO, 2009, p. 205).

O quilombismo é uma prática atual de enfrentamento às tecnologias de desumanização e genocida da colonialidade do poder. Essas “sociedade[s] criativa[s]” (NASCIMENTO, 2009), as comunidades quilombolas, possuem, portanto, natureza decolonial, já que burlam ou deslegitimam “[...] idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados” (QUIJANO, 2005, p. 229).

O quilombismo buscou um ideal político de atuação dos negros [e das negras] assentado sobre seus próprios valores, já que na sociedade construída a participação destes só poderia se realizar mediante a assimilação dos valores culturais do branco e pelo branqueamento. (CARRIL, 2009, p. 183, grifo no original).

Portanto, é possível relacionar o quilombismo com a ideia de que ele des(ensina) negros e negras que foram educados sob a hegemonia do eurocentrismo (QUIJANO, 2009). Nascimento já havia detectado como a colonialidade do saber, envolta em sua falaciosa neutralidade, impede que se faça a leitura das desigualdades sociais brasileiras a partir da colonialidade do poder que as naturaliza, tendo a comunidade negra artífice da sua própria desgraça.

Agora devolvemos ao obstinado segmento “branco” da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral que pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista. (NASCIMENTO, 2009, p. 206).

As comunidades quilombolas brasileiras demonstram que o projeto de descolonização permanece inacabado, e que os elementos mais importantes do eurocentrismo continuam sendo cultivados e desenvolvidos pela colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). No entanto, representam um embrião de decolonização das relações sociais em que os negros e as negras se impõem política e identitariamente, porque se encontram organizados e porque possuem um solo onde podem cultivar seus modos de criar, de fazer e de viver.

Nascimento afirma que os quilombos dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX deixaram um patrimônio de resistência à opressão, trilhando por um caminho em que o ser humano é mais importante do que o acúmulo de capital. Por isso, “Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade” (NASCIMENTO, 2009, p. 205).

É possível estabelecer a correlação de que o quilombismo é uma estratégia de resistência que se dirige à comunidade negra contemporânea, com atuação em forma de alerta para continuidade da colonialidade do poder, assenzalando negros e negras na periferia das cidades brasileiras.

Já a categoria quilombagem, de Clóvis Moura, é tratada como agente que provoca mudança social, ao questionar e ao enfrentar as estruturas da colonialidade do poder. Organizado e dirigido por mulheres e homens negros, ocupou todo o território nacional durante o escravismo brasileiro, atingindo, em algumas situações, os dias atuais.

A quilombagem não se restringe à formação de quilombos, abrigando “outras manifestações de protesto social” (MOURA, 1992, p. 23). A quilombagem engloba, pois, qualquer espécie de resistência, individual ou coletiva, à desumanização de negros e de negras.

Dessa forma, o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestação de rebeldia também se apresentassem, como as guerrilhas e diversas outras formas de protesto individuais ou coletivas. Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimento de protesto do escravo, tendo como centro organizacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia. (MOURA, 1992, p. 23).

O quilombo representa, pois, o elo entre todas as outras formas de resistência negra, sendo que, ao mesmo tempo em que influencia, é instigado por outros atos de repulsa de negros e de negras à colonialidade do poder. Essa constelação de movimento de protesto negro gira em torno do quilombo, e com sua força gravitacional influencia marés de revolta.

Na quilombagem, não cabe apenas negras e negros fugitivos, mas todos os marginalizados pela colonialidade. Fugitivos e perseguidos pelas instituições controladas ou produzidas pela colonialidade do poder.

Nele [quilombagem] se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas. (MOURA, 1992, p. 25).

A quilombagem restaura a dignidade daquelas e daqueles excluídos socialmente. A obtenção da humanidade vilipendiada se faz “[...] sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial” (MOURA, 1992, p. 22). Não há conciliação entre interesses tão díspares e contraditórios.

Moura (2014) afirma que as negras e os negros brasileiros transformaram as culturas africanas em uma cultura de resistência. Assim, em um ambiente assenzalado em que se falavam línguas e dialetos diferentes, para poderem ser compreendidos mutuamente, criaram um “dialeto das senzalas” (MOURA, 2014, p. 241, grifo no original). Hoje, nas periferias das grandes cidades, o rap serve como elo de comunicação de jovens negros marginalizados pela colonialidade do poder.

O quilombo representado pelo rap busca identificá-lo à periferia, aludindo a um território de liberdade de expressão, construído sobre um determinado código cultural que contemple sua forma de ser e de se manifestar os que foram excluídos pelo sistema. A idéia subjacente é a da segregação territorial, marcada pela territorialidade com seus próprios signos, que, dificilmente são compreendidos pela metrópole, pois são estranhos a ela. (CARRIL, 2009, p. 235, grifo no original).

Se o colonialismo os impedia de falar, a colonialidade do poder os cala. Segregados, devem permanecer em silêncio. O rap, o samba, o funk, o reggae, porém, vocalizam rebeldia, quilombagem. Negros e negras falam o que lhes interessa e o que bem querem dizer.

Em todo esse espaço de tempo, ele não podia usar uma negação que contrariasse o que o grupo senhorial ordenava. Não podia dizer não. E é justamente essa contradição entre o pensamento do escravo e a sua verbalização programada coercitivamente que produz uma tensão permanente nele. A verbalização que extrapolasse do código de linguagem aprovado poderia ser considerada uma forma de rebeldia, indisciplina ou negligência. Ela era analisada dentro do julgamento global que se fazia da conduta do escravo. Isto pode ser comprovado nos anúncios de escravos fugidos em jornais da época, nos quais, entre as suas características identificadoras encontramos, quase sempre, a maneira como ele falava. Um detalhe importante que não escapava ao seu senhor. (MOURA, 2014, p. 264).

Coagidos, fustigados, homens negros e mulheres negras escravizadas eram obrigados a desenvolver fala e expressões corporais que denotassem submissão, sujeição, vassalagem. No entanto, por meio de manifestações coletivas através da palavra, da música e da dança, libertam-se do silêncio e dos nãos.

De acordo com Moura (1992), é no quilombo e nas demais manifestações da quilombagem que mulheres negras e homens negros marginalizados se recompõem socialmente. Leminski fala em “[...] genial gesto quilombola de defesa e resistência [...]”, o disfarce, a tradução dos orixás africanos “[...] sob as aparências legais dos santos católicos do hagiológio romano” (LEMINSKI, 2014, p. 34).

Como se percebe, não há uma longa distância entre o quilombismo de Abdias Nascimento e a quilombagem de Clóvis Moura. Ambos entendem que o fenômeno quilombola se expressa de forma múltipla, diversa, adaptando-se às necessidades imediatas dos negros e das negras quilombolas e ao contexto social e histórico em que se encontram inseridos e inseridas.

Dessa forma, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 abriga o quilombismo de Abdias Nascimento e a quilombagem de Clóvis Moura. Um genial gesto quilombola de defesa e resistência, nos dizeres do poeta.

Essa visão de mundo vem ancorada no novo constitucionalismo latino-americano que, pelo menos no texto legal, acolhe as vozes e as experiências dos colonizados.

Na América Latina, surgiu, nas últimas décadas, um constitucionalismo calcado em outros parâmetros. A expressão outros, aqui utilizada, deve-se ao fato de que durante a maior parte da história do constitucionalismo latino-americano, as normas, as teorias e as doutrinas construídas em instituições europeias e estadunidenses eram aceitas e propagadas como critérios de validade e atribuídas a elas ares de pensamento moderno que deveria ser seguido e venerado (BALDI, 2015).

A Constituição Brasileira de 1988 inaugura (WOLKMER, 2015), em solo latino- americano, um constitucionalismo que possui como um dos fundamentos a garantia de direitos a comunidades indígenas e afrodescendentes, inovando, principalmente, por adotar leve perspectiva de resistência, portanto, podendo ser relacionada com a discussão decolonial.

Isso porque, ao garantir às comunidades de quilombos a titularidade das terras das quais tenham a posse, provoca uma pequena fissura na colonialidade do poder. A uma, porque este artigo resulta das lutas e resistências de mulheres e homens negros; a duas, porque apresenta a possibilidade de se construírem categorias interpretativas da realidade a partir das experiências das comunidades negras; a três, porque revoga, ainda que tardiamente e de forma bastante tímida, a Lei das Terras.

Ademais, essa garantia constitucional demanda romper com os princípios da dominação colonial portuguesa, especialmente por dizer o oposto da legislação colonial: a tipificação de um ato como crime que passa a representar a concretização de um direito. Desse modo, exige uma perspectiva hermenêutica que também expresse o oposto daquela produzida pelo pensamento das autoridades coloniais em que os negros e as negras eram coisas, sob os quais se poderiam exercer o direito de posse e de propriedade.

Essa forma de pensar deixou como herança uma construção mental, calcada em relações de dominação e em uma racionalidade que tem como um dos eixos fundamentais a classificação dos indivíduos de acordo com a ideia de raça (QUIJAN0, 2005).

A ação judicial 3239, proposta pelo DEM, que vê inconstitucionalidade no Decreto 4.887/2003, indica que essa estrutura básica do colonialismo permanece praticamente intocável. Seria necessário, portanto, desvelar a colonialidade do poder sob a qual se estruturou o sistema jurídico brasileiro, e incidir na matriz colonial de poder que ainda se parece presente (WALSH, 2015).

Um conceito decolonial de quilombo trilha por uma episteme que compreende as comunidades quilombolas como a materialização de uma experiência de resistência à negação da coisificação de negros e de negras. E que as condições de miséria e a luta por identidade negra, por terra e por moradia forçam que mulheres e homens negros continuem forjando cotidianamente comunidades quilombolas.

Para tanto, a adoção dessa visão e uma correspondente leitura do texto constitucional possibilitaria a sua decolonização por inteiro, impedindo, em grande medida, que a propriedade privada se sobreponha sobre qualquer outro direito, inclusive à vida e à dignidade humana de homens e mulheres afrodescendentes.

Segundo Fajardo (2015), as constituições latino-americanas do século XXI descrevem, em seus textos, um projeto descolonizador. No nosso caso, embora a Constituição Federal seja do século passado, possui faceta decolonial, como bem se disse anteriormente. No entanto, a decolonialidade que o texto constitucional brasileiro imprime, muitas vezes, não guarda sintonia com a interpretação que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição40, lhe confere.

Como um caminho a seguir, a fim de evitar esta dubiedade, Baldi (2015) propõe que o STF se inspire na jurisprudência de cortes constitucionais latino-americanas, como, por exemplo, a colombiana, que possuem realidades históricas, culturais e sociais próximas da brasileira.

Outro tema que poderia ganhar densidade jurisprudencial distinta é o princípio da igualdade. O STF, durante muito tempo, como bem analisa Roger Raupp Rios, foi condescendente diante de “realidades discriminatórias e desoneração argumentativa perante tratamentos díspares”, tendo, nos últimos tempos, alterado posicionamento no sentido de “maior rigor em face de diferenciações e a emergência do conteúdo antidiscriminatório do princípio da igualdade”. Aqui, também, a Colômbia poderia ajudar: há mais de dez anos, tendo em vista a análise de direitos coletivos dos povos indígenas, a Corte vem entendendo que “sob o princípio da igualdade e na perspectiva de proteger a diversidade étnica e cultural do país é necessário, guardando simetrias legais, projetar simetricamente a outros grupos étnicos normas que garantam direitos coletivos para os povos indígenas” (Sentencia C-370/2002). E, neste sentido, estendeu-se, também com base na Convenção 169-OIT, o tratamento para as populações raizales e palenqueras daquele país e, hoje, as comunidades ciganas vêm peticionando junto à Corte o estabelecimento de uma política de habilitação diferenciada, que a legislação nacional reconhece apenas para indígenas e comunidades negras. (BALDI, 2015, p. 29).

Há, de fato, uma profunda submissão ao pensamento produzido por autores europeus e americanos e um desprezo às contribuições do pensamento jurídico latino-americano.

Essa leitura anoréxica e míope que o STF faz da Constituição Brasileira fortalece a tese de que os Estados latino-americanos se organizaram por intermédio de constituições que não ousaram desestruturar as instituições forjadas pela colonialidade do poder que impõem submissão/exploração de indígenas, de negras e de negros (FARJADO, 2015).

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, não obstante manter ainda certo perfil republicano liberal, analítico e monocultural, foi a mais avançada, relativamente a qualquer outro momento da história brasileira. Tal traço deve-se por haver ampliado a gama de direitos fundamentais (e suas garantias) e por ter inaugurado amplas perspectivas pluralistas em seus diferentes campos de ação, como o religioso, filosófico, político e cultural. (WOLKMER, 2015, p. 257-258).

Na verdade, podem-se encontrar alguns artigos na Constituição Brasileira que assinalam um projeto decolonial, porém, há outros que expressam a colonialidade do poder. Assim, para superar essas contradições e ambiguidades e concluir a decolonialidade das instituições jurídicas, requer uma hermenêutica que abrace o projeto decolonizador que a norma constitucional guarda nas suas entrelinhas.

Já a Constituição Venezuelana, de 1999, assinala Wolkmer (2015), de forma mais nítida que a brasileira, expressa o anticolonial, privilegiando o pluralismo político e a democracia participativa. Inova, por exemplo, ao dividir o Poder Público Nacional em cinco poderes: legislativo, executivo, judicial, eleitoral e cidadão.

Esse autor, no entanto, entende que a etapa mais representativa do novo constitucionalismo latino-americano é inaugurada pelas Constituições do Equador, no ano de 2008, e da Bolívia, em 2009. A primeira, a Constituição Equatoriana, introduz a natureza como sujeito de direito, destoando radicalmente das constituições ocidentais que vislumbram apenas os seres humanos como detentores de direitos subjetivos e fundamentais.

Por sua vez, a Constituição Boliviana, de 200941, incorpora em seu texto norma que estabelece que uma das funções do Estado boliviano é constituir uma sociedade justa e harmônica, baseada na descolonização. Há, portanto, nesse dispositivo constitucional, a percepção de que o colonialismo ainda perdura nas instituições criadas pelo Estado e nos métodos e nos critérios definidores de validade do pensamento científico e, sobretudo, nas relações sociais.

De fato, a Constituição da Bolívia, como texto, embora, aqui, não se possa afirmar que alterou as práticas sociais, decoloniza as demais normas bolivianas, atuais e vindouras, uma vez que “[...] tem valor de norma – e de norma suprema do ordenamento jurídico” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 44), ou seja, é formada por um conjunto de regras e de princípios que devem ser aplicados e respeitados por governantes e governados. Decoloniza, ainda, e, principalmente, o “pensamento constitucionalista” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 44).

Esse pensamento surge da necessidade de se preservar e de se erigir certas regras jurídicas, limitadoras do poder do Estado e garantidoras das liberdades individuais, à categoria de fundamental, na acepção de estrutura e de essencialidade (DAMÁZIO, SPAREMBERGER, 2016). De acordo com esses autores, essa ideia surge no cenário das revoluções liberais burguesas, por conseguinte, tem sua localização espacial na Europa, e seu tempo os fins do século XVII e início do século XVIII.

Dentro desse contexto de afirmação das ideias liberais, originam-se as primeiras constituições modernas, singularizadas por serem documentos escritos e aprovados em um procedimento formal e solene. Como marco desse pensamento, têm-se as Constituições dos Estados Unidos, em 1787, e da França, em 1791 (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016). “El constitucionalismo es un invento americano o, por decirlo con más precisión, um invento euroamericano, de contigentes europeos emigrantes a las Americas”42 (CLAVERO, 2017, p. 24).

Desse modo, trata-se de um fenômeno histórico, político, localizado geograficamente. Embora tenha se efetuado com elementos culturais e institucionais de procedência europeia (CLAVERO, 2017), o constitucionalismo se construiu ao longo do tempo sob a dissimulação de uma universalidade epistêmica. Dessa forma, produz discursos constitucionais que afirmam representar o melhor para toda a humanidade (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016).

[...] a ideia de constitucionalismo se constrói por meio de uma lógica colonialista, exploradora e genocida que, no entanto, justifica-se pelos projetos da modernidade construídos a partir de categorias “universais” como Constituição e Estado. Trata-se de ideias localizadas, que são impostas como sendo o melhor para todos e segundo as quais qualquer tipo de exploração e invasão é explicado como um caminho necessário para a realização plena da humanidade. (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016. p. 273).

Não é apenas a partir do manto do universalismo que o pensamento constitucionalista europeu e americano se impõe sobre os países latino-americanos, porém, pela colonização dessa região em meados do século XV. As instituições jurídicas, aqui forjadas, são criadas à imagem e à semelhança das europeias e das estadunidenses, como por exemplo, o STF que se assemelha à Suprema Corte Americana, com o intuito de contribuir no gerenciamento de pessoas e na exploração dos recursos da colônia.

O colonizador é o sujeito constitucional, detentor de direitos e a quem caberá a administração dos poderes legislativo, executivo e judicial (CLAVERO, 2017).

Constitución era el documento normativo superior de las unidades y del conjunto de este nuevo sistema político conforme al entendimento de las presunciones culturales que le inspiraban, las europeas. Vino a componerse de dos secciones, una de derechos o liberdades y outra de poderes o instituciones. Los primeiros, los derechos, tendían a formularse em términos universalistas, pero se entendían como atribuicíones del sujeito colonizador, esto es, del padre da família proprietário, autónomo o patrón y de cultura europea. Sujeto constitucional no lo era ní la el esclavo ni el emancipado ni el trabajador dependíente ní el inmigrante eudeudado ni la mujer ni el menor ni el indígena.43 (CLAVERO, 2017, p. 25).

Inicialmente, as constituições não mascaram sequer que o sujeito constitucional é apenas o colonizador, excluindo dessa categoria as mulheres, os escravizados, as escravizadas e os povos indígenas. A universalidade abriga apenas os homens brancos, proprietários e católicos. Nos termos do art. 195 da Constituição Venezuelana de 1811, “Ninguno es hombre de bien, ni buen ciudadano, si no observa las leyes fiel y religiosamente, si no es buen hijo, buen hermano, buen amigo, buen esposo e buen padre de família”44.

Clavero (2017) defende que o constitucionalismo latino-americano é consubstancial ao colonialismo, ou seja, ambos possuem a mesma natureza. “Lo fue y lo es”45 (CLAVERO, 2017, p. 29). Portanto, pode-se afirmar que o constitucionalismo dessa região tem a mesma essência da colonialidade do poder.

Dessa maneira, o constitucionalismo latino-americano se inventou, desenvolveu-se e se manifesta a serviço do colonialismo (CLAVERO, 2017) e da colonialidade do poder. O jurista espanhol o denomina de constitucionalismo colonial. “Entre ayer y hoy corre una larga historia em cuyo transcurso muchas cosas han cambiado, hasta el punto de que el colonialismo constitucional no es tan facilmente reconocíble a estas alturas46 (CLAVERO, 2017, p. 29).

As dissimulações, os disfarces, as aparências aumentaram, contudo, o constitucionalismo da América Latina foi e continua sendo o vetor da colonialidade do poder, isto é, hospeda em seu corpo “[...] valores ideológicos, políticos, doutrinários e filosóficos [...]” (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016, p. 286) do colonizador. Segundo estes autores, “[...] o constitucionalismo foi utilizado pelos liberais burgueses para [...] a defesa dos seus interesses concretos” (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016, p. 286).

O art.170, II, da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer que a ordem econômica brasileira se encontra fundada na livre iniciativa e que possui como um de seus fundamentos a propriedade privada e a livre concorrência, não permite outra leitura a não ser a que os autores acima mencionados apontaram.

No entanto, como se disse anteriormente, é possível afirmar a existência de resistência, portanto, algo que se aproxime da ideia de giro decolonial, ainda que apenas em forma de texto, não havendo possibilidade de afirmá-lo como prática social consolidada. Em seus artigos 215 e 216, a título de exemplo, a Constituição Brasileira decoloniza-se sutilmente. Ali ficou estabelecido que as manifestações indígenas e afro-brasileiras devem ser protegidas pelo Estado, e que os modos de criar, de fazer e de viver dos povos indígenas e de mulheres e homens negros constituem patrimônio cultural brasileiro.

Não se pode esquecer que os traços fenotípicos e culturais dos colonizados pelo colonialismo e pela colonialidade do poder foram dispostos em uma situação de inferioridade (ABDALA JÚNIOR, 2014). Ao valorizá-los, tais artigos cometem um giro decolonial. Trata- se, porém, de uma brisa decolonial. Em outras constituições latino-americanas, os ventos decoloniais foram mais intensos.

Assim, algumas constituições latino-americanas reconhecem o direito consuetudinário dos povos indígenas, excluindo-os, dessa forma, da tutela colonial, adotando uma postura que os percebem como povos com igual dignidade (FAJARDO 2015).

La constitucionalización del pluralismo jurídico y la jurisdicción indígena pone em cuestion el monismo jurídico, esto es, la identidade Estado- derecho, y la monoculturalidad estatal, esto es, la identidad Estado-nación, ambos, herdados del s. XIX.47 (FAJARDO, 2015, p. 35).

Caracterizam-se tais aspectos por decoloniais pelo fato de romperem com o monismo jurídico em que o Estado detém o monopólio da criação e da aplicação do direito. O poder exclusivo de o Estado criar normas desconsidera os valores culturais que forjaram as outras nações, impondo apenas os interesses do Estado-nação.

Farjado (2015) assinala que durante a década de 90 do século XX algumas constituições latino-americanas introduziram em seus textos constitucionais o reconhecimento da existência de diversas culturas. A partir disso, definem a nação ou o Estado como multicultural ou pluricultural, garantindo, assim, o direito à diversidade cultural ou de igualdade entre as culturas. “Con este reconocimiento, las constituciones quiebran la identidade Estado-derecho que se impuso desde en sel.XIX. El monismo jurídico es substituído por um pluralismo jurídico interno, bajo techo constitucional48 (FARJADO, 2015, p. 44).

O pluralismo jurídico encorpado à Constituição representa o desenlace com o eurocentrismo, uma vez que o monopólio do Estado de dizer o direito é mitigado. São exemplos dessas espécies de Constituição, a Colombiana, de 1991, a Peruana, de 1993, a Boliviana, de 1994, a Equatoriana, de 1998, e, por fim, a Venezuelana, de 1999 (FAJARDO, 2005).

No entanto, mais recentemente, há o aprofundamento, e muito, nesse rompimento com o constitucionalismo euroamericano. A Constituição Equatoriana de 2008 reconhece o direito à autodeterminação das comunidades indígenas, e a Constituição Boliviana de 2009, a livre determinação dos povos que compõem aquela nação.

A diferencia de las constituciones precedentes, que apenas tenían um artículo sobre el derecho y la justicia indígena, estas nuevas cartas, sobre todo la de Bolívia, tienen varios artículos específicos, y sua vez menciones al derecho indígena que atraviesan todo el texto constitucional. (FAJARDO, 2015, p. 50).

Desse modo, a Constituição da Bolívia, logo no início do seu texto, entende que as nações e os povos indígenas autóctones são livres à autodeterminação desde que não frustrem a unidade daquele Estado. Para tal, garante-lhes direito à autonomia, ao autogoverno, a suas culturas, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais. Assim, enfraquece as estruturas de poder sob as quais se encontram edificadas a sociedade boliviana.

Um Estado-nação é uma espécie de sociedade individualizada entre as demais. Por isso, entre seus membros pode ser sentida como identidade. Porém, toda sociedade é uma estrutura de poder. É o poder aquilo que articula formas de existência social dispersas e diversas numa totalidade única, uma sociedade. Toda estrutura de poder é sempre, parcial ou totalmente, a imposição de alguns, freqüentemente certo grupo, sobre os demais. Conseqüentemente, todo Estado-nação possível é uma estrutura de poder, do mesmo modo que é produto do poder. (QUIJANO, 2005, p. 255).

A colonialidade do poder, porém, enfrenta o ataque ao monismo desferido pela Constituição Boliviana, ao circunscrever a jurisdição indígena às contendas entre os seus pares. A justiça indígena não possui, desse modo, competência para julgar casos em que não indígenas violem bens ou direitos daquelas comunidades (FAJARDO, 2015).

Portanto, como bem afirma Quijano (2005), a colonialidade do poder ainda exerce seu domínio contra os interesses dos não brancos. No caso do Brasil, mais especificamente, o direito e suas instituições, como se disse em outro lugar, cumpre um papel fundamental nesta estrutura de poder que “[...] foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo colonial” (QUIJANO, 2005, p. 267).

Porém, há um processo de resistência, aqui caracterizado como decolonialidade, ou giro decolonial (CASTRO-GOMES; GROSFOGUEL, 2007), que procura fragilizar essas estruturas de poder. As comunidades quilombolas espalhadas por todo território brasileiro materializam esse giro, ao não aceitar ou não acatar o papel e os lugares que foram atribuídos, destinados aos negros e às negras pela colonialidade do poder. Quilombo é decolonização.

Por sua vez, há uma resistência ao constitucionalismo colonial por meio de uma hermenêutica jurídica que se afasta de uma visão universalista e eurocêntrica do direito, embora, às vezes, o faça de maneira vacilante, contraditória.

Essa dubiedade, como se verá a seguir, pode ser localizada nos diversos discursos que compõem a ADI 3239, principalmente naqueles construídos com o nítido propósito de se afastar da visão de mundo imposta pela colonialidade do poder.

3.3Descrição dos Dados Empíricos Decoloniais da ADI 3239

Neste trecho da dissertação, a parte em que se analisam os discursos decoloniais da ADI 3239, há apenas uma categoria principal: a decolonialidade ou giro decolonial. Em função disso, com base nos direitos e nas garantias fundamentais constantes no art. 5º ao art. 17 da CF/88, segmentaram-se os discursos considerados decoloniais em três subclasses: o quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos; o quilombola com liberdade para ser proprietário; o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais.

Entende-se que a narrativa da resistência quilombola à colonialidade, encontra-se alicerçada na lógica dos direitos fundamentais49: “[...] o art. 68 do ADCT reconhece um direito fundamental [...]” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2013, p. 330).

Na primeira subcategorização, o quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos, encontram-se os discursos que erigem o ser quilombola à categoria de pertencente ao pacto da nação. Descoisificado, reumanizado, conquista um tratamento legal que o considera como igual, garantindo-lhe, formalmente, a inviolabilidade do direito à vida e o direito de materializar em normas jurídicas direitos peculiares à sua condição de vida. São os discursos textuais que entendem o artigo 68 do ADCT como uma manifestação de um direito fundamental e dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata e aqueles que percebem o Decreto 4.887/2003 como uma norma que possibilita a concretização do artigo constitucional quilombola.

Na subclasse o quilombola com liberdade para ser proprietário, encontram-se dispostos os discursos que defendem a adoção da autoatribuição como critério identificador das terras quilombolas; a destinação de verbas públicas para aquisição de terras registradas em cartórios de imóveis como particulares.

No último campo, o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais, estão as falas que compreendem a constitucionalidade do critério da autoatribuição. Ou seja, as comunidades quilombolas como expressão do presente.

3.3.1Os Discursos Decoloniais na ADI 3239 como afirmação de direitos e garantias fundamentais

O pensamento decolonial aponta para uma visão de mundo em que se sobressai o olhar de que no Brasil há um fosso social entre os brancos e os nãos brancos, construído quando este país ainda era colônia de Portugal e que não há o menor esforço para eliminá-lo por parte dos donos do poder. Há, aqui, a hierarquização étnico-racial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007), em que cabe aos negros e às negras papéis e lugares sociais subalternos contra os quais, porém, sempre houve resistência.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, vislumbram-se algumas destas posturas decoloniais. No caso, o giro decolonial pode ser representado pelas falas que entendem que o Decreto 4.887/2003 não se encontra eivado do vício da inconstitucionalidade ou que fazem uma interpretação forte do artigo constitucional quilombola. Isto é, compreendem que tal norma materializa um direito fundamental e que, por isso, possui aplicação imediata (Art. 5º, § 1°, da CF/88). A menção a palavra forte deve-se, pois, ao fato de que tal norma não precisa aguardar uma ação do Estado para que possa produzir os efeitos jurídicos por ela mencionados.

Por integrar o pacto da nação, nos termos do art. 12 da CF/88, que inaugura o capítulo que cuida da nacionalidade, o ser quilombola reconquista formalmente a sua condição de humano e nacional, principalmente em função de romper, em parte, a invisibilidade imposta pela colonialidade do poder.

No caso do direito constitucional brasileiro, há uma norma que determina que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, deve proteger os modos de criar, de fazer e de viver das comunidades quilombolas, arts. 215 e 216. E há outra, que afirma que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, art. 5º. Inclui-se, neste rol de normas constitucionais negras, também, o art. 68 do ADCT. É na territorialidade quilombola que se manifestam, logicamente, os modos de criar, de fazer e de viver dos membros dos quilombos. Portanto, a propriedade quilombola possui uma função social que lhe foi atribuída pelo próprio texto constitucional.

Por isso, categorizam-se como decoloniais os discursos que afirmam que tal artigo é uma norma de eficácia plena e aplicação imediata. Nesse sentido, a norma constitucional dos quilombos entende o ser quilombola como igual pertencente ao pacto da nação brasileira, situação impensável em uma situação de invisibilidade social.

O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas. Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico- racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitável, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração legislativa. (WEBER, 2015, grifo no original).

Portanto, Rosa Weber defende que o art. 68 do ADCT não necessita da edição de outra norma qualquer para que a comunidade quilombola possa exercer o direito que aquele artigo guarda. Para a ministra, o art. 68 do ADCT, além de se configurar como um direito de propriedade qualificado, expressa uma ordem ao Estado para que atue positivamente a fim de concretizá-lo sem delongas.

Decomposto analiticamente o texto, extraio duas categorias de enunciados constitucionais:

  1. uma disposição substancial assentando um direito fundamental – um direito de propriedade qualificado (“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”);
  2. uma ordem ao Estado para que pratique determinado ato necessário ao direito fundamental assentado – a expedição dos títulos respectivos (“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”). (WEBER, 2015).

Em outro trecho do seu voto, a ministra do STF reforça sua visão de mundo sobre o art. 68 do ADCT da CF/88: esta norma anuncia preceito que o Estado deve observar e proteger, devendo estruturar sua burocracia para cumpri-lo fielmente.

O direito fundamental insculpido no art. 68 do ADCT em absoluto demanda do Estado delimitação legislativa, e sim organização de estrutura administrativa apta a viabilizar a sua fruição. A dimensão objetiva do direito fundamental que o preceito enuncia, enfatizo, impõe ao Estado o dever de tutela – observância e proteção –, e não o dever de conformação. (WEBER, 2015, grifo no original).

Dessa forma, as terras que as comunidades quilombolas ocupam lhes pertencem, cabendo ao Estado apenas emitir os respectivos títulos. Na manifestação de Dias Toffoli encontra-se esta forma de pensar:

Ressalte-se, ainda, que o art. 68 do ADCT, ao consagrar um comando de imperatividade ao Poder Público, é dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não necessitando, em verdade, de intermediação de lei formal para a regulamentação dos procedimentos necessários à concretude do comando constitucional. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Assim, ainda que o Decreto 4.887/2003 fosse considerado inconstitucional, não haveria a necessidade da edição de outro Decreto para dizer o que a Constituição já o diz: a posse da terra pela comunidade quilombola gera o direito à propriedade definitiva.

Ressalta-se que a Procuradoria-Geral da República, por meio do procurador Cláudio Fonteles, afirma que o art. 68 do ADCT exige uma interpretação diligente.

Mister se faz ressaltar, antes de tudo, que o art. 68 do ADCT requer cuidadosa interpretação, de modo a ampliar ao máximo o seu âmbito normativo. Isso porque trata a disposição constitucional de verdadeiro direito fundamental, consubstanciado no direito subjetivo das comunidades remanescentes de quilombos a uma prestação positiva por parte do Estado. Assim, deve-se reconhecer que o art. 68 do ADCT abriga uma norma jusfundamental; sua interpretação deve emprestar-lhe a máxima eficácia. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

Não é demais lembrar que, diante de norma constitucional assim qualificada, recomenda a doutrina se evite “método interpretativo que reduza ou debilite, sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos fundamentais.” Observa Jorge Miranda que “a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação”, imperativo que assume, na lição de Konrad Hesse, a seguinte sistematização. (WEBER, 2015).

Desse modo, não pode ser considerada uma interpretação conforme a Constituição aquela que debilita ou reduz a proteção que o texto constitucional dirigiu à comunidade quilombola. Segundo a Procuradoria-Geral da República, pelo fato de a norma constitucional quilombola se tratar de um direito fundamental, sua hermenêutica deve se realizar de tal maneira que seja avultado o seu âmbito normativo.

A ministra Rosa Weber advoga, também, que o art. 68 do ADCT constitui em uma norma definidora de direito fundamental, e que, por isso, acolhe o mesmo raciocínio da Procuradoria-Geral da República, não se pode atribuir exegese que danifique a sua densidade normativa.

Tenho, pois, que, levada a sério, à norma constitucional – especialmente a definidora de direito fundamental – não pode ser atribuída exegese que lhe retire toda e qualquer densidade normativa. Em absoluto merece endosso, data venia, interpretação atribuidora de sentido e eficácia que impliquem a própria inexistência do texto interpretado: impacto jurídico indistinguível de uma ordem jurídica carente do preceito. (WEBER, 2015).

O DEM pretende, argumenta a ministra Rosa Weber, retirar a eficácia do artigo 68 do ADCT da CF/88, a tal ponto de torná-lo inexistente. Uma interpretação que sai do âmbito da constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 para adentrar o plano da existência da norma constitucional quilombola.

A ministra, então, reafirma que a burocracia estatal deve se movimentar de tal forma que atinja o objetivo desejado pela Constituição. No caso, a emissão de título de propriedade das terras ocupadas pela comunidade quilombola.

Em qualquer hipótese, é obrigação do Estado agir positivamente para alcançar o resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas legislativas, ora por políticas e programas implementados pelo Executivo, desde que apropriados e bem direcionados. No contexto dos direitos fundamentais compreendidos como um sistema, é exigência constitucional que “para serem razoáveis, medidas não podem deixar de considerar o grau e a extensão da privação do direito que elas se empenham em realizar”, conforme assentou a Corte Constitucional da África do Sul no julgamento do caso Governo da República da África do Sul e outros vs. Irene Grootboom e outros, verdadeiro divisor de águas no constitucionalismo contemporâneo. (WEBER, 2015, grifos no original).

Portanto, para essa ministra, é a extensão da privação, suportada pelo indivíduo ou por um determinado grupo, que finca os marcos da leitura da norma constitucional.

Há, pois, que se destacar os discursos que defendem a territorialidade como critério a ser utilizado no momento da delimitação das terras a serem destinadas à comunidade quilombola.

Portanto, a identificação das terras pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos deve ser realizada segundo critérios histórico e culturais próprios de cada comunidade, assim como levando-se em conta suas atividades sócio-econômicas. A identidade coletiva é parâmetro de suma importância, pelo qual são determinados os locais de habitação, cultivo, lazer e religião, bem como aqueles em que o grupo étnico identifica como representantes de sua dignidade cultural. O critério estabelecido no Decreto n° 4.897/03 está de acordo com os parâmetros mencionados. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

Rosa Weber, por exemplo, compactua que a leitura do artigo quilombola constitucional deve ser feita em conjunto com as determinações contidas nos artigos 215 e 215 da Constituição Federal de 1988.

A adequada exegese do art. 68 do ADCT passa, pois, pela perspectiva de sua íntima relação com o disposto nos arts. 215 e 216 do corpo da Constituição da República. Nessa medida, a compreensão sistemática da Carta Política não só autoriza como exige, quando incidente título de propriedade particular legítimo sobre as terras ocupadas por quilombolas, seja o processo de transferência da propriedade para estes mediada por regular procedimento de desapropriação. E esse imperativo constitucional é preservado pelo art. 13 do Decreto 4.887/2003. (WEBER, 2015, grifo no original).

Ou seja, a preservação, imposta ao Estado pelo texto constitucional, dos modos de criar, de fazer e de viver das comunidades quilombolas exige a titulação das terras que essas comunidades ocupam por serem iguais pertencentes ao pacto de nação e, portanto, podendo reivindicar direitos sociais de igual pertencimento.

Nesse sentido, a manifestação do Instituto Pro Bono, Conectas e Sociedade Brasileira de Direito Público entende que o território quilombola envolve outros aspectos, abrangendo os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas.

Os territórios de quilombos são utilizados para garantir a reprodução física, social, econômica e cultural, abrangendo todas as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias. Assim, os direitos dessas comunidades devem ser salvaguardados não apenas em relação àquelas terras por eles ocupadas, mas também àquelas às quais têm acesso para desenvolver suas atividades tradicionais de subsistência, bem como a afirmação da identidade de seus integrantes e a manutenção de suas tradições. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

A transcrição abaixo trilha nessa mesma direção:

A partir da identificação desse modo de vida, conclui-se que a titulação deve recair não só sobre os espaços em que o grupo mora ou cultiva, mas também sobre aqueles necessários ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias do grupo e também aqueles destinados ao estoque de recursos naturais.

Essas são as “suas terras”, a que reporta a Constituição, sendo que nesses locais os quilombolas não só “tiveram” (pg. 11 da petição inicial) a sua reprodução física, social, econômica e cultural, mas ainda a têm, como realidade viva que são, e é desejo da Constituição que a tenham com a propriedade definitiva. (INSTITUTO, PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

Por sua vez, em seu voto, Toffoli entende que as desapropriações necessárias à formação do território quilombola possuem natureza de interesse social.

Necessário, porém, o ato expropriatório, deve o Estado, como responsável direto pela execução das políticas e diretrizes constitucionais, indenizar os proprietários particulares, se regularmente exerciam o seu direito até a promulgação da Carta de 1988. O referido processo de desapropriação é de nítido interesse social e será feito em benefício das comunidades remanescentes de quilombos. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Como bem lembra Toffoli, a desapropriação só se faz necessária se a propriedade do particular é legítima e se, ainda, não se operou a usucapião.

Nesse sentido, foi cuidadoso o art. 13 do decreto impugnado, na medida em que não excluiu a possibilidade de aquisição do domínio pelos remanescentes das comunidades quilombolas mediante prescrição aquisitiva (usucapião) que já tenha se operado, ou quando presente vício no título de propriedade particular, hipóteses nas quais não haverá desapropriação. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Então, defendem a territorialidade como critério de delimitação da comunidade quilombola, incluindo a desapropriação de imóveis pertencentes a particulares, quando for necessário para efetivar o que dispõe a CF/88 como garantia ao direito territorial quilombola.

Há, do mesmo modo, a defesa da constitucionalidade do critério de autoatribuição, como o fez a Procuradoria-Geral da República (2004): “32. Portanto, como bem afirma O’DWYER, ‘[...] em última análise, cabe aos próprios membros de grupos étnicos se autoidentificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão, mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas”’.

Destacam-se, ainda, as seguintes falas:

E a adoção da autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola em absoluto se ressente, a meu juízo, de ilegitimidade perante a ordem constitucional. Assumindo-se a boa-fé, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída – e para a má-fé o direito dispõe de remédios apropriados. Logo, em princípio, ao sujeito que se afirma quilombola ou mocambeiro não se pode negar o direito de assim fazê-lo sem correr o risco de ofender a própria dignidade humana daquele que o faz. (WEBER, 2015).

Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação. (WEBER, 2015).

Ao contrário do que afirma o requerente, trata-se, em verdade, de critério plenamente adequado à identificação dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”. Com efeito, cabe aos próprios indivíduos e membros do grupo se reconhecerem e se identificarem como pertencentes determinado grupo étnico. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Vê-se que, para Rosa Weber, a autoatribuição relaciona-se com a própria dignidade da pessoa humana, no caso, aqui, do homem negro e da mulher negra quilombolas. Interessante notar que, em seu voto, esta ministra cita jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos relacionada à questão das terras quilombolas para fundamentar sua decisão.

A temática mereceu debate no âmbito do sistema regional interamericano de proteção internacional dos direitos humanos. No caso da comunidade Moiwana v. Suriname (2005), a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito de propriedade de comunidade descendente dos maroons – designação dada em diversos países das Américas aos escravos fugitivos que formaram grupos independentes, que guardam evidentes similaridades com os quilombolas brasileiros – sobre as terras tradicionais com as quais mantidas relações territoriais específicas. (WEBER, 2015).

Já no caso da comunidade Saramaka v. Suriname (2007), também descendente de maroons, a Corte Interamericana ressaltou que o Estado demandado estava sujeito, forte no art. 21 do Pacto de San José da Costa Rica, a uma obrigação positiva “consistente em adotar medidas especiais que garantam aos membros do povo Saramaka o pleno e igualitário exercício do seu direito aos territórios que tradicionalmente tem utilizado e ocupado,” aí incluídos os recursos naturais imprescindíveis à sua sobrevivência neles contidos. (WEBER, 2015).

A ministra busca, ainda, na legislação de países latino-americanos, argumentos que possam reforçar a sua tese:

Observo, no direito comparado, que a Constituição adotada em 2008 pela República do Equador, após referendo popular, reconhece as comunidades afroequatorianas como povos distintos e assegura a proteção das terras comunais e dos territórios ancestrais por elas ocupados. (WEBER, 2015).

No mesmo passo, a Constituição da República da Colômbia, promulgada em 1991, consagra, no Artigo 55 das Disposições Transitórias, o direito de propriedade das comunidades negras daquele país sobre as terras por elas tradicionalmente ocupadas segundo suas próprias práticas [...]. (WEBER, 2015).

Rosa Weber menciona, além disso, decisão da Corte Constitucional da África do Sul a qual presta reverência, em trecho já citado, o que ressalta o impacto que essa jurisprudência causou no constitucionalismo ocidental, ao afirmar a obrigação de o Estado agir positivamente para efetivar o resultado pretendido pela Constituição, seja por meio do legislativo ou de políticas públicas, e que, para que a atuação do Estado seja razoável, é necessário considerar o grau e a extensão da privação de direito a que ao Estado cabe enfrentar.

Para falar dessa privação de direito, Toffoli (2017, grifo no original) traz para seu voto a fala de Leinad Ayer de Oliveira, pesquisadora da Comissão Pro-Índio de São Paulo:

Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI” (Negros em busca de justiça. In: Oliveira, Leinad Ayer de. Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001, p.11). (TOFFOLLI, 2017).

Uma inversão do pensamento jurídico provocada pelo aquilombamento do pensamento de negros e de negras no artigo 68 do ADCT. Esses dados, extraídos da ADI 3239, permitem ou favorecem a análise das posturas decoloniais que os autores ou autoras assumiram no referido campo jurídico.

Assim, mesmo repletas de contradições, há na ADI 3239 falas que sutilmente notam que os quilombos representam um enfrentamento à colonialidade do poder. Isto é, percebem que na sociedade brasileira há hierarquização étnico-racial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007) em que cabe aos homens negros e às mulheres negras papéis e lugares sociais subalternos.

Nessas manifestações, surgem discursos decoloniais. Diferentemente, a petição do DEM e a manifestação do Estado de Santa Catarina secretam em cada palavra, cada frase, cada parágrafo a colonialidade do poder. Do mesmo modo, o voto de Cézar Peluso, em que pese a crítica que tece sobre a burocracia que o Decreto 4.887/2003 representa no procedimento da identificação e na titulação das terras quilombolas, também, excreta colonialidade, mas há aspectos de denúncia de aspectos de colonialidade no próprio decreto:

Por fim, não posso deixar de advertir efeito que, com base na legislação vigente, embora indesejado, quero crer, é perverso. Trata-se do caminho da titulação”, composto por mais de 20 etapas, as quais devem ser vencidas pelos interessados, para obtenção do registro dos títulos em cartório. É autêntica “via crucis”. Estou entregando a Vossas Excelências mapa ilustrativo delas, com suas descrições, e que pode ser consultado no sítio eletrônico da Comissão Pró-Índio de São Paulo.

Note-se que o processo passa pelos seguintes órgãos: INCRA, Fundação Palmares, IPHAN, IBAMA, Secretaria do Patrimônio da União - SPU, FUNAI, Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional – CDN, Instituto Chico Mendes, e Serviço Florestal Brasileiro. (PELUSO, 2012).

Este trecho da fala de Peluso não tem o condão de, por si só, afirmar que a sua visão de mundo sobre as comunidades de quilombos constitui um giro decolonial, uma vez que destoa da maior parte do pensamento que construiu ao longo de sua decisão. De fato, seu voto representa uma “[...] resistência ao reconhecimento das ‘barreiras de cor’” fechando os olhos para o “impasse racial” (FLORESTAN, 1972, p. 9) que existe neste país.

Isto não impede, todavia, de identificar em seu discurso uma denúncia aos obstáculos à titulação quilombola erigidos pelo Decreto 4.887/20003 ao impor barreiras burocráticas que ampliam o tempo para efetivar o que a CF/88 garante.

Na verdade, o próprio Decreto 4.887/2003 manifesta, em alguns dos seus artigos, a colonialidade, como, por exemplo, quando deixa à mercê do INCRA a regulamentação dos procedimentos administrativos para identificação e titulação das terras quilombolas.

Art. 3o Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.

§ 2o Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não- governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.

§ 3o O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado.

§ 4o A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento.

Como se viu no capítulo anterior, o Ministério do Desenvolvimento Agrário editou a Instrução Normativa n. 57/2009, estabelecendo, entre outras coisas, que a identificação dos limites das terras das comunidades quilombolas necessita de estudos técnicos e científicos e da elaboração de relatórios antropológicos. A narrativa da comunidade quilombola deve, obrigatoriamente, passar pelo crivo do discurso acadêmico.

Dessa maneira, a colonialidade do saber, explícita naquela Instrução Normativa, enclausura e desprestigia os saberes e as práticas quilombolas, além de obstaculizar o enegrecimento do solo urbano e rural. E denunciar essas barreiras que expressam colonialidade representa uma performance decolonial necessária para afirmar a condição de igual pertencente ao pacto de nação. E, como tal, reivindicar as condições necessárias para o exercício das liberdades em condições dignas garantidas na CF/88 .

3.3.2Giros Decoloniais na ADI 3239 e na CF/88

O Estado nacional brasileiro foi estruturado para atender uma pequena parcela de seus habitantes, notadamente, os descendentes de europeus, as elites econômicas e os militares, alijando a maior da parte da população de seu processo de formação e desenvolvimento (GASPARIN; RODRIGUES, 2016). Esses autores (2016, p. 28) denunciam que “[...] os povos nativos foram totalmente excluídos do processo de construção da nação latino- americana”. Incluam-se, também, no caso brasileiro, as comunidades quilombolas.

A Constituição republicana de 1988 sinaliza um projeto do Estado nacional disposto a incluir em seu processo de formação os quilombos e os afrodescendentes. Em seu artigo 215,

§1º, estabelece que cabe ao Estado proteger as manifestações culturais dos povos negros. Logo em seguida, no art. 216, informa que os modos de criar, de fazer e de viver das comunidades quilombolas constituem patrimônio cultural imaterial brasileiro. Há, pois, uma nítida visualização constitucional de tais comunidades.

“Nesse sentido é que se verifica a importância do sentimento de pertencer àquele Estado e ter nacionalidade, haja vista que a ausência desses elementos traz como consequência a exclusão e falta de participação da sociedade” (GASPARIN; RODRIGUES, 2016, p. 28). O resultado dessa exclusão é a ausência de normas legais que garantam ao grupo ou ao povo viver de acordo com suas especificidades. Esse ocultamento legal objetiva gerar morte social e física.

O artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 rompe com a invisibilidade dos quilombos e estabelece uma “[...] igualdade jerárquica50” (WALSH, 2015, p. 471) aos quilombolas. A lei passa a perceber os negros e as negras dessas comunidades como indivíduos que possuem o direito a ter direito.

A inclusão do povo de quilombo como igual pertencente ao pacto de nação (HABERMAS,2007) tem sido historicamente demandada. E as narrativas de resistências foram incluídas nas discursividades da ADI 3239 por meio dos amicus curiae que assumiram a defesa do lado quilombola. De acordo com Vitorelli (2015), o fator primordial para as conquistas das comunidades quilombolas foi a mobilização das próprias comunidades.

Dessa maneira, a causa quilombola passaria toda a década de 1990 ignorada pelo governo. Apesar disso, os mesmos militantes que lutaram pela inclusão do art.68 no ADCT, continuavam mobilizados pela implementação não apenas do acesso à terra, garantido constitucionalmente, mas também dos demais direitos devidos às comunidades tradicionais (VITORELLI, 2015, p.246).

As discursividades acionadas em defesa das terras quilombolas foram incorporadas nos votos dos ministros, seja para defender a garantia do art. 68 como direito fundamental, seja para afirmar a eficácia plena e a aplicabilidade imediata da norma, seja incorporando experiências constitucionais de povos colonizados como a África do Sul, a Colômbia e o Equador, o que expressam giro decolonial.

Rosa Weber (2015) pontua que o art. 68 do ADCT estabelece um direito fundamental, ou seja, há nesta norma constitucional uma imposição ao Estado que consiste em um dever de tutela das comunidades quilombolas.

O direito fundamental insculpido no art. 68 do ADCT em absoluto demanda do Estado delimitação legislativa, e sim organização de estrutura administrativa apta a viabilizar a sua fruição. A dimensão objetiva do direito fundamental que o preceito enuncia, enfatizo, impõe ao Estado o dever de tutela – observância e proteção –, e não o dever de conformação. (Grifos no original).

Assim, a Constituição define as comunidades quilombolas como sujeitos de direito, obrigando que as demais normas aceitem, coadunem-se com tal determinação. Ao mesmo tempo, proíbe que outra normal legal diga algo contrário do que ela expressa. É “[...] dentro do espaço de legalidade definido pela constituição” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173) que os quilombos se assentam.

Ao Estado brasileiro, que ao longo da história dos povos negros no solo deste país empreendeu perseguições, mutilações de homens e de mulheres negras, cabe, agora, a proteção das comunidades quilombolas. A fala de Rosa Weber é decolonial, porque determina o desmonte das instituições estatais, ainda em plena atividade, que foram criadas e pensadas para combater as negras e os negros quilombolas.

Da mesma forma, há um giro decolonial ao se considerar que o artigo constitucional quilombola não necessita de outra lei para o exercício do direito que ele descreve e garante. Isto porque o conceito de quilombo fica incólume dos vícios e das limitações que o Decreto 4.887/2003 carrega.

O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas. Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico- racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitável, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração legislativa. (WEBER, 2015, grifos no original).

O Estado deve, pois, cumprir o comando constitucional de titular as terras que as comunidades quilombolas tenham a posse. Uma leitura decolonial do artigo quilombola afirma que sua aplicabilidade é imediata e dotada de eficácia plena.

A fim de demonstrar a importância de o STF categorizar o artigo constitucional quilombola como direito fundamental, traz-se a seguinte lição de Gilmar Ferreira Mendes e de Paulo Gustavo Gonet Branco:

Verifica-se marcado zelo nos sistemas jurídicos democráticos em evitar que as posições afirmadas como essenciais da pessoa quedem como letra morta ou que só ganhem eficácia a partir da atuação da legislação. Essa preocupação liga-se à necessidade de superar, em definitivo, a concepção do Estado de Direito formal, em que os direitos fundamentais somente ganham expressão quando regulados por lei, com o que se expõem ao esvaziamento de conteúdo pela atuação ou inação do legislador. (BRANCO; MENDES, 2012, p. 173-174).

Deve-se destacar que a própria Constituição determina em seu artigo 5º, § 1º, que as normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Ou seja, ao reconhecer a norma quilombola como um direito fundamental, o STF busca evitar que tal preceito se transforme em letra morta ou que só tenha sua eficácia garantida a partir da autuação do Poder Legislativo (BRANCO; MENDES, 2012).

O ministro Dias Toffoli, ao proferir sua decisão, ressalta a prescindibilidade de edição de lei formal para regulamentar os procedimentos necessários à titulação das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas.

Ressalte-se, ainda, que o art. 68 do ADCT, ao consagrar um comando de imperatividade ao Poder Público, é dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não necessitando, em verdade, de intermediação de lei formal para a regulamentação dos procedimentos necessários à concretude do comando constitucional. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

O artigo 68 do ADCT possui, pois, eficácia plena e aplicabilidade imediata. Não há, assim, a necessidade da edição de qualquer ato normativo para que a comunidade quilombola usufrua do direito que ele estampa. Poder-se-ia afirmar, portanto, que desde a promulgação da atual Constituição que as terras que os negros e as negras quilombolas utilizam para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural lhes pertencem, podendo até mesmo afirmar que a rebeldia negra, ao aquilombar-se, gerou direito como garantia constitucional, que cabe ao Estado garantir a sua fruição.

O Poder Público não pode perder de vista o dever de dar à norma constitucional o máximo de efetividade possível, sob pena de agir de modo inconstitucional, por restringir indevidamente o direito garantido às comunidades remanescentes de quilombos de reconhecimento e titulação das terras por elas ocupadas. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

Esse modo de agir inconstitucional surge quando o Poder Público esvazia o conceito de quilombo, dificulta o reconhecimento da comunidade negra como quilombola ou provoca embaraços à titulação das terras de quilombo. Isto é, restringe indevidamente direito garantido aos negros e às negras pela Constituição.

Para a ministra Rosa Weber, o artigo 68 do ADCT traz consigo uma ordem ao Estado para que cumpra todos os atos necessários à titulação das terras das comunidades de quilombos, porque tal direito abriga a dignidade da pessoa negra, representando, pois, um direito fundamental, como expressa, em passagem já citada, como direito qualificado de propriedade, na primeira parte do artigo: “[...] aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva” (WEBER, 2015). E como ordem ao Estado para que cumpra o direito fundamental: “[...] devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

É possível depreender da leitura do trecho citado e de outra passagem já também mencionada que, em vez de conformação com a restrição de direitos, o que a CF/88 oportuniza é rebelião para garantir a condição de igual pertencente ao pacto da nação brasileira (HABERMAS, 2007). No lugar da submissão à ordem estabelecida pela colonialidade do poder, quilombos. É o Estado que atua à margem da lei quando não protege as comunidades quilombolas. Esta é uma leitura decolonial do artigo constitucional quilombola.

Do mesmo modo, cabe ao operador do direito atribuir um sentido ao conceito de quilombo que rompa com o processo de desumanização e coisificação de homens negros e de mulheres negras. Outra leitura deve ser tachada e impingida de inconstitucional, conforme se depreende de trecho constante da decisão da ministra Rosa Weber, em que ela afirma que a norma constitucional que define direito fundamental não pode ser atribuído sentido que lhe retire a densidade normativa que torne praticamente inexistente o texto interpretado.

É possível afirmar, no mesmo sentido, que uma leitura levada a sério do artigo 68 do ADCT levaria a uma concepção de que, na sociedade brasileira, a ideia de raça é utilizada como critério de delimitação dos lugares e dos papéis destinados aos negros e às negras (BENAVENTE; PIZARRO, 2014). É a percepção da colonialidade do poder e a resistência autorizada pela CF/88 que autoriza uma interpretação forte do artigo constitucional quilombola.

Proporciona, por exemplo, afirmar, a partir desta fala de Weber, que o Decreto 4.887/2003 abriga apenas uma determinada experiência dos quilombos. Há outras comunidades quilombolas que não se adéquam necessariamente àquela descrita no art. 2º daquele decreto.

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto- atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Como bem diz Moura (1993), os quilombos possuíam várias formas de organização, possuindo uma estrutura diversificada que dependia do espaço ocupado, da população inicial, da qualidade do terreno onde a comunidade se encontrava encravada e dos recursos naturais disponíveis.

Ademais, não se pode esquecer de que “[...] o quilombo era refúgio de muitos elementos marginalizados pela sociedade escravista, independentemente da sua cor. Era o exemplo da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil, fora das unidades quilombolas” (MOURA, 1993, p. 37).

O problema, talvez seja, como alertam o Instituto Pro Bono, o Conectas e a Sociedade Brasileira de Direito Público (2004), é que “[...] toma-se como premissa o conceito colonial de quilombo, muito embora, como demonstrado, este conceito se mostre insuficiente e pobre para a descrição da realidade das comunidades amparadas pelo art. 68 do ADCT”.

Pode-se dizer, portanto, que as rebeliões das senzalas, o quilombismo de Abdias Nascimento e a quilombagem de Clóvis Moura se encontram materializadas no artigo 68 do ADCT. É o direito que protege as antigas comunidades quilombolas, as que surgiram logo após a extinção do regime escravocrata e as que continuam sendo erguidas cotidianamente. Esta é uma leitura decolonial do artigo constitucional quilombola.

Portanto, cabe ao Estado, por meio de políticas e programas implementadas pelo Poder Executivo, adotar todas as medidas necessárias para que sejam tituladas as terras quilombolas. Do mesmo modo, o Legislativo não pode editar leis que criem obstáculos ao processo de delimitação e demarcação daqueles territórios ou que esvaziem o conceito de quilombo.

A extensão da privação do direito que a norma constitucional quilombola empenha-se em corrigir é secular: dignidade de homens negros e de mulheres negras, consubstanciada no acesso à terra. Ocorre que a Lei 601, de 18 de setembro de 1850, se impôs, quase como uma barreira intransponível, impedindo que negras e negros não tivessem acesso à terra para morar e plantar, o que impeliu as crianças a, literalmente, se alimentarem de terra:

Daqueles tempos coloniais nasce o costume de comer terra, ainda vigente. A falta de terra causa anemia; o instinto compele as crianças nordestinas a compensar com terra os sais minerais ausentes de sua alimentação habitual, limitada à farinha de mandioca, ao feijão e, com sorte, ao charque. Antigamente castigava-se esse “vício africano” das crianças, pondo-lhes focinheiras ou pendurando-as dentro de cestas de vime distantes do chão. (GALEANO, 2018, p. 96, grifo nosso).

O art. 68 do ADCT da CF/88 mira em modificar o “perfil fundiário” (VEIGA, 1994) brasileiro extremamente embranquecido. A palavra quilombo, como se fosse um grafite no texto constitucional, significa, ali, resistência negra à colonialidade do poder que compele as crianças a se alimentarem de terra.

A definição do território pela própria comunidade quilombola, violando os preceitos sagrados da propriedade privada, embranquecida pelo colonialismo e pela colonialidade, representa, ao lado da autoidentificação, para comunidade de quilombos, uma vitória contra a segregação racial.

Os territórios de quilombos são utilizados para garantir a reprodução física, social econômica e cultural, abrangendo todas as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias. Assim, os direitos dessas comunidades devem ser salvaguardados não apenas em relação àquelas terras por eles ocupadas, mas também àquelas às quais têm acesso para desenvolver suas atividades tradicionais de subsistência, bem como a afirmação da identidade de seus integrantes e a manutenção de suas tradições. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

De fato, de pouca importância possui a autoidentificação quilombola se a comunidade não pode definir o seu território. A afirmação dessa identidade requer que a reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade de quilombo seja garantida e protegida pelo Estado.

A positivação das comunidades quilombolas inaugura “[...] uma concepção de organização social pautada na autonomia, participação [de negros e de negras],” (GASPARIN; RODRIGUES, 2016, p. 30). A territorialidade e a autoidentificação reafirmam esse projeto desencadeado pela Constituição republicana de 1988. Esta norma possui desejos novos:

A partir da identificação desse modo de vida, conclui-se que a titulação deve recair não só sobre os espaços em que o grupo mora ou cultiva, mas também sobre aqueles necessários ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias do grupo e também aqueles destinados ao estoque de recursos naturais.

Essas são as “suas terras”, a que reporta a Constituição, sendo que nesses locais os quilombolas não só “tiveram” (pg. 11 da petição inicial) a sua reprodução física, social, econômica e cultural, mas ainda a têm, como realidade viva que são, e é desejo da Constituição que a tenham com a propriedade definitiva. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

A titulação das terras necessárias ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias dos grupos e ao estoque de recursos naturais encontra sua base legal no Decreto 4.887/2003, que apenas descreve o modo como as comunidades quilombolas se relacionam com o seu território. Na verdade, a territorialidade quilombola possui assento constitucional, uma vez que os modos de criar, de fazer e de viver dos membros dessas comunidades constituem patrimônio cultural brasileiro.

Se a colonialidade do poder alimenta as crianças negras de terra (GALEANO, 2018), o giro decolonial nutre-as de territorialidade (LITTLE, 2002). Há um “vínculo afetivo” (LITTLE, 2002, p. 254) entre a comunidade quilombola e seu território, retirando do comércio as terras onde aprendem e desenvolvem, por exemplo, seus “saberes ambientais” (LITTLE, 2002, p. 254).

Portanto, a identificação das terras pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos deve ser realizada segundo critérios histórico e culturais próprios de cada comunidade, assim como levando-se em conta suas atividades sócio-econômicas. A identidade coletiva é parâmetro de suma importância, pelo qual são determinados os locais de habitação, cultivo, lazer e religião, bem como aqueles em que o grupo étnico identifica como representantes de sua dignidade cultural. O critério estabelecido no Decreto n° 4.897/03 está de acordo com os parâmetros mencionados. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

As narrativas da comunidade quilombola definirão o quanto do solo brasileiro será enegrecido. Cada negro e cada negra são responsáveis por delimitar o território do quilombo. Nesse processo de identificação territorial, a dignidade humana de cada membro se entrelaça com a dignidade cultural do grupo.

Esses locais, na verdade, representam mais do que a dignidade cultural da comunidade quilombola, significam a luta contra a coisificação, a desumanização a que os negros e as negras foram e continuam sendo submetidos cotidianamente.

O conflito social não existia, ou era irrelevante. Existiam diferenças culturais. Eram choques culturais, adaptação cultural, aculturação e finalmente assimilação. Com isto, com este final feliz assimilacionista teríamos resolvido as contradições estruturais da sociedade, o conflito de classes, as diferenças entre oprimidos e opressores. Toda uma produção acadêmica dirigia-se nesse sentido. As próprias comunidades negras que existem no território brasileiro, comunidades rústicas de camponeses, eram quistos culturais. Os pesquisadores debruçavam-se sobre particularidades etimológicas do linguajar, a forma de construir moradias, reminiscências religiosas, musicais e folclóricas, abadonando do seu universo de análise a estrutura concreta de cada uma dessas comunidades, o nível de vida de sua população, os problemas da propriedade da terra, a expulsão das suas populações com a penetração do capitalismo no campo e, finalmente, as forças sociais e econômicas que determinavam a sua desagregação e posterior destruição ou dissolução. (MOURA, 2014, p. 37).

A dimensão cultural encontra-se envolta nesse processo de resistência, porém, a essa não se resume. A territorialidade quilombola é a materialidade da “cultura de resistência social” (MOURA, 1992, p. 34) negra contra a colonialidade do poder. Estabelece uma “diversidade fundiária” (LITTLE, 2002, p. 254), rompendo com o monismo da propriedade privada.

Nas palavras da ministra Rosa Weber, o processo de recebimento do título da terra, almejado pela comunidade, apresenta dois aspectos que não se excluem: a luta pelo reconhecimento identitário do grupo e a luta por justiça social e econômica.

Na questão do reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, convergem as dimensões da luta pelo reconhecimento – expressa no fator de determinação da identidade de grupo – e da demanda por justiça socioeconômica, de caráter redistributivo – compreendida no fator de medição e demarcação das terras. Da ótica de uma Constituição comprometida com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e com a redução das desigualdades sociais, consoante o art. 3º, I e III, da Lei Maior, não se mostra, portanto, adequado abordar a "questão quilombola" sem atentar para a necessária conciliação entre "reconhecimento cultural e igualdade social de forma a que sustentem um ao outro, ao invés de se aniquilarem (pois há muitas concepções concorrentes de ambos)". Há de se reconhecer que se cuida de problemática na qual "a privação econômica e o desrespeito cultural se entrelaçam e sustentam simultaneamente". (WEBER, 2015).

Essa forma de pensar agride a estrutura agrária brasileira, embranquecida ao longo da história, pois requer que mais porções de terras sejam dirigidas às comunidades negras. Enegrece as terras urbanas e rurais, também, a possibilidade de desapropriação de terras particulares para compor o quinhão do território quilombola.

Ao Estado cabe o acautelamento e a preservação dos territórios quilombolas, autorizando a desapropriação de terras privadas para comporem ou restaurarem o espaço objetivo e subjetivo da comunidade quilombola.

Cabe lembrar que as comunidades remanescentes de quilombos, como grupos formadores da sociedade brasileira, receberam a proteção jurídico- constitucional do art. 216, §1º, que prevê a desapropriação como uma das formas de acautelamento e preservação de que o Poder Público dispõe.

(INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

De fato, pode-se dizer que a territorialidade antecede o processo expropriatório do imóvel registrado em nome de particular. A função social da territorialidade dos quilombos, espaço social onde os modos de criar, de fazer e viver dos quilombolas se materializam, deve se sobrepor sobre a propriedade privada.

É evidente que a desapropriação só se faz necessária se essas terras foram adquiridas legalmente. Ou seja, a grilagem das terras quilombolas deve ser combatida com veemência em função da diferença constitucional que elas possuem. Toffoli (2017, grifos no original) entende que:

Nesse sentido, foi cuidadoso o art. 13 do decreto impugnado, na medida em que não excluiu a possibilidade de aquisição do domínio pelos remanescentes das comunidades quilombolas mediante prescrição aquisitiva (usucapião) que já tenha se operado, ou quando presente vício no título de propriedade particular, hipóteses nas quais não haverá desapropriação.

Portanto, as terras obtidas ao arrepio da lei devem ser simplesmente entregues à comunidade de quilombo. No caso contrário, urge instalar o processo desapropriatório.

Dessa maneira, o território quilombola avança, por meio da desapropriação, sobre a sagrada propriedade privada, cabendo ao Estado fazê-lo no interesse e no total da área identificada pela comunidade de quilombos como territorialidade que lhe permite viver com dignidade:

A adequada exegese do art. 68 do ADCT passa, pois, pela perspectiva de sua íntima relação com o disposto nos arts. 215 e 216 do corpo da Constituição da República. Nessa medida, a compreensão sistemática da Carta Política não só autoriza como exige, quando incidente título de propriedade particular legítimo sobre as terras ocupadas por quilombolas, seja o processo de transferência da propriedade para estes mediada por regular procedimento de desapropriação. E esse imperativo constitucional é preservado pelo art. 13 do Decreto 4.887/2003. (WEBER, 2015, grifos no original).

A territorialidade quilombola, pois, perfila com a proteção constitucional dos modos de criar, de fazer e de viver dos membros da comunidade de quilombos. A decolonialidade, assim como a colonialidade do poder, é discurso e prática (MALDONADO-TORRES, 2007). Esse processo desapropriatório é uma prática decolonial.

A proteção do território quilombola é mandamento constitucional, o que impõe ao Estado adotar todas as medidas necessárias para mantê-lo.

Não se atenta, portanto, às prováveis hipóteses de legítimas comunidades quilombolas que foram ilegalmente expulsas das terras que ocupavam e se fixaram em outra localidade próxima. Ignora-se a relação que a comunidade possui com a terra, esta mais importante do que a determinação “dessa ou daquela” terra. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

Na verdade, toda forma de aquisição da propriedade imobiliária pela comunidade quilombola deve ser protegida e amparada pelo Estado. Assim, o processo desapropriatório só faz sentido se a comunidade não adquiriu as terras por meio da usucapião. Nesse sentido, Weber pontua que:

Por outro lado, na medida em que assegura uma proteção especial, a previsão do art. 68 do ADCT não prejudica nem interfere na aquisição da propriedade por meio do usucapião que já se tenha eventualmente operado: se já ocorreu o usucapião em favor dos remanescentes das comunidades quilombolas, não há razão para a instauração do procedimento de desapropriação. Diversamente, se por alguma razão não se operou a prescrição aquisitiva – pela intercorrência de alguma causa suspensiva ou interruptiva – aí sim tem lugar a desapropriação. (WEBER, 2015, grifos no original).

Qualquer medida necessária para a restauração ou composição do território quilombola deve ser adotada pelo Estado. No caso, a propriedade de parcela de terras por particulares e que foram assinaladas pelos membros da comunidade de quilombo como integrantes do seu território não pode configurar como empecilho para o cumprimento do preceito decolonial constitucional.

Isso, porque é o interesse social que impõe a desapropriação das terras que configuram a territorialidade quilombola.

Necessário, porém, o ato expropriatório, deve o Estado, como responsável direto pela execução das políticas e diretrizes constitucionais, indenizar os proprietários particulares, se regularmente exerciam o seu direito até a promulgação da Carta de 1988. O referido processo de desapropriação é de nítido interesse social e será feito em benefício das comunidades remanescentes de quilombos. (TOFFOLI, 2017).

A reconstrução do território quilombola, portanto, encontra guarida no texto constitucional. Esse discurso decolonial desvela o “ocultamiento de la colonialidad”51 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 32) que tem a propriedade privada como um dos seus pilares. A proteção especial que o artigo constitucional quilombola carrega, de estatura decolonial, mitiga a propriedade privada, com seu aspecto oculto da colonialidade do poder.

Pode-se afirmar, então, que o enegrecimento da estrutura fundiária brasileira, inaugurada pelos primeiros quilombos, recebe proteção constitucional, artigos 68 do ADCT, e 215 e 216, e tem, apenas, o seu mero detalhamento no Decreto 4.887/2003. Essa visão de mundo retira a legitimidade da classificação racial e de suas odientas “assimetrias de poder” (BENAVENTE; PIZARRO, 2014, p. 157), impostas pela colonialidade. Esses artigos da Constituição de 1988 representam a resistência negra à coisificação de homens e mulheres negras e a afirmação de suas dignidades.

Os quilombos subverteram a ordem do regime escravocrata e denunciam a marginalidade social a que se encontram submetidos, no regime republicano que se encontra estruturado, a partir de uma “[...] lógica opressiva [...] de la colonialidad [...] (MIGNOLO, 2007, p. 25). Os quilombos emergem como contrapartida à fundação da modernidade/colonialidade (MIGNOLO, 2007).

Mi tesis es la seguiente: el pensamiento decolonial emergió en la fundación misma de la modernidade/colonialidad como su contrapartida. Y eso ocurrió em las Américas, en el pensamiento indígena e y em pensamento afro-caribeño; continuó luego en Asia y África, no relacionados com el pensamiento decolonial em las Américas, pero sí como contrapartida de la reorganizacación de la modernidad/colonialidad del império britânico y el colonialismo francês.52 (MIGNOLO, 2007, p. 27).

Portanto, o critério da autoatribuição quilombola pode ser tomado como a contrapartida à colonialidade a que faz referência Mignolo, uma vez que conturba a classificação social empreendida pela colonialidade do poder.

A autoidentificação quilombola permite a integração ao Estado-nação qualificada em função do reconhecimento de suas identidades e das diferenças (GASPARIN; RODRIGUES, 2016). Rosa Weber, em seu voto, associa a autoatribuição de uma determinada identidade, no caso quilombola, à própria dignidade humana.

E a adoção da autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola em absoluto se ressente, a meu juízo, de ilegitimidade perante a ordem constitucional. Assumindo-se a boa-fé, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída – e para a má-fé o direito dispõe de remédios apropriados. Logo, em princípio, ao sujeito que se afirma quilombola ou mocambeiro não se pode negar o direito de assim fazê-lo sem correr o risco de ofender a própria dignidade humana daquele que o faz. (WEBER, 2015).

A colonialidade do ser atribui uma identidade negativa às pessoas que possuem a tonalidade da pele mais escura, inferiorizando-os, tornando-os dispensáveis, descartáveis. Conforme Maldonado-Torres (2007, p. 135), “O, bien, podría plantearse la colonialidad como discurso y práctica que [...] predica la inferioridad natural de sujetos [...], lo que marca a ciertos sujetos como dispensables53[...]”. A autoatribuição quilombola associa à identidade negra rebeldia, resistência, organização, batuques, festas, companheirismo, solidariedade. Ser negro é saber resistir.

Esse autorreconhecimento como quilombola traz para si, negros e negras, escolhas próprias, boicotando a categorização que lhes havia sido imposta pelos colonizadores. “O cônsul inglês no Pará, por exemplo, distinguia entre brancos nativos e brancos estrangeiros, enquanto reservava uma única categoria para pretos e pardos livres” (CUNHA, 1985, p. 19).

Ao contrário do que afirma o requerente, trata-se, em verdade, de critério plenamente adequado à identificação dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”. Com efeito, cabe aos próprios indivíduos e membros do grupo se reconhecerem e se identificarem como pertencentes a determinado grupo étnico. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Portanto, a autoatribuição é oportunidade de decolonizar a classificação identitária imposta pela colonialidade do poder. A autoidentificação representa, também, uma recusa à marginalização social prescrita pela colonialidade do poder. Segundo Weber (2015, grifos no original), “Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação.”

Da mesma maneira, o critério de autoatribuição adotado no Decreto 4.887/2003 rompe com a colonialidade, ao não se ajustar ou não se adequar ao perfil exigido pelo projeto da modernidade (CASTRO-GÓMEZ, 2005).

Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI” (Negros em busca de justiça. In: OLIVEIRA, Leinad Ayer de. Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001, p. 11).

Não é demais lembrar que, diante de norma constitucional assim qualificada, recomenda a doutrina se evite “método interpretativo que reduza ou debilite, sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos fundamentais.” (TOFFOLI, 2017).

O artigo constitucional quilombola trouxe os indesejáveis, os marginalizados, os párias para o texto sagrado, a Constituição Federal. Nos dizeres de Castro-Gómez (2005, p. 173), “[...] a constituição define formalmente um tipo desejável de subjetividade moderna”.

É lógico que os quilombolas não se adequam a espécime desejado e alentado por uma subjetividade alicerçada na colonialidade do ser. Por isso, a colonialidade do poder, objetivada na petição do Partido Democratas, conspira contra o critério da autoatribuição: “À toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional” (DEMOCRATAS, 2004).

Porém, a decolonialidade da Constituição brasileira exige que sua leitura tenha como “[...] puntos de apoyo [...] otros palenques [...] en las memorias y experiencias de la esclavitud [...]” 54(MIGNOLO, 2007, p. 33). Rosa Weber, por exemplo, em seu voto, cita a jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul, em citação já referida. E, com isso, provoca um leve giro decolonial do direito brasileiro ao apoiar sua tese em uma jurisprudência de um tribunal do continente africano. A maior parte da população da África do Sul é de homens negros e de mulheres negras, atingindo cerca de 80%. As condições de vida de sua população negra são deploráveis. A expectativa de vida, por exemplo, naquele país, é inferior a 60 anos (DATHEIN, 2010). Vale destacar que “Várias dificuldades, desafios e opções econômicas e sociais têm surpreendente semelhança com as do Brasil” (DATHEIN,2010, p. 99).

Asi, cada nudo de la red de esta genealogia es um punto de despegue y apertura que reintroduce lenguas, memorias, economias, organizaciones socialies, subjetividades, esplendores y misérias de los legados imperiales. La actualidad pide, reclama, um pensamiento decolonial que articule genealogias desperdigadas por el planeta e ofrezca modalidades económicas, políticas, sociales y subjetivas “otras”.55 (MIGNOLO, 2007, p. 45).

É a composição racial e as semelhanças sociais da África do Sul com o Brasil que torna essa parte da decisão da ministra Rosa Weber em um discurso decolonial. Ou seja, sua fala se apropria de uma experiência constitucional de um país em que suas riquezas naturais e seus recursos humanos foram explorados por europeus, sendo que a comunidade negra é a principal vítima do processo de colonização ali instalado.

As respostas constitucionais que os juízes e os tribunais europeus apresentam para a resolução dos seus problemas, quando não se trata dos imigrantes, não devem ser aplicadas em solo brasileiro sem o mínimo questionamento ou mesmo adaptações. Rosa Weber, portanto, rema contra a maré da colonialidade do saber.

É a similitude do grau de privação de direitos da comunidade negra, tanto no continente africano quanto em terras brasileiras, que justifica a menção à jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul, e isto é uma postura decolonial. Do mesmo modo, há decolonialidade na fala da ministra Rosa Weber, ao citar a seguinte decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos:

A temática mereceu debate no âmbito do sistema regional interamericano de proteção internacional dos direitos humanos. No caso da comunidade Moiwana v. Suriname (2005), a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito de propriedade de comunidade descendente dos maroons – designação dada em diversos países das Américas aos escravos fugitivos que formaram grupos independentes, que guardam evidentes similaridades com os quilombolas brasileiros – sobre as terras tradicionais com as quais mantidas relações territoriais específicas. (WEBER, 2015).

Dessa maneira, as comunidades quilombolas da América Latina iniciam um processo de diálogo em que as experiências quilombolas do Suriname fortalecem as comunidades de quilombos brasileiras. Ademais, Rosa Weber traz a fala dos subalternos para a jurisprudência constitucional deste país. As vozes dos quilombos ecoam por todo continente americano. A resistência negra ganha, logicamente, uma dimensão continental.

[...] Desenvolveram-se, assim, comunidades de fugitivos que receberam diferentes nomes, como cumbes na Venezuela e palenques na Colômbia. Na Jamaica, no restante do Caribe inglês e no Sul dos EUA, foram chamados de marrons. Na Guiana Holandesa e depois Suriname, ficaram conhecidos como bush negroes. Em São Domigos (Haiti) e outras partes do Caribe francês, o termo era marronage; já em Cuba e Porto Rico, cimarronaje; no Brasil, receberam inicialmente o nome de “mocambos”, para depois serem denominados “quilombos” [...]. (GOMES, 2018, p. 367).

Os quilombos representam uma práxis política (WALSH, 2007) contra a colonialidade do poder. Ao demonstrar que não se trata de um fenômeno localizado em um determinado país, mas que ocorreu e ocorre onde houve escravização, enfraquece a classificação racial realizada pela colonialidade do poder. Houve resistência negra, com heróis conhecidos e anônimos, à inferiorização ditada pelos colonizadores e pela colonialidade.

No caso, pois, não se trata apenas de um pensamento decolonial, mas de uma práxis política que incorpora a proteção que as comunidades negras do Suriname receberam ao patrimônio das comunidades quilombolas brasileiras. Há, nesse comportamento de Weber, um resultado prático, objetivo: o enegrecimento de terras urbanas e rurais no Brasil.

Em convergência com esse entendimento a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do paradigmático caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em 2001, ao declarar violados os artigos 21 (direito de propriedade) e 25 (direito a proteção judicial eficaz) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) pelo Estado da Nicarágua porque, não obstante reconhecida, na Constituição daquele país, a propriedade comunal dos povos indígenas sobre as terras por eles ocupadas, jamais havia sido regulado procedimento especifico para permitir o exercício desse direito.

Sentenciou a Corte Interamericana que o Estado demandado – a Nicarágua – equipasse o seu direito interno com mecanismos para efetivar a delimitação e a titulação da propriedade dos povos tradicionais, em conformidade com seus costumes, fosse por medidas legislativas, fosse por medidas administrativas ou de qualquer outro caráter justamente por se tratar de direito fundamental. (WEBER, 2015, grifo no original).

A ADI 3239 é o mecanismo que a colonialidade do poder se utiliza para frear a implementação do direito que as comunidades quilombolas possuem à titulação das terras que ocupam. A colonialidade defende apenas uma única forma de apropriação da propriedade. Qualquer outra é rechaçada pelo silêncio das leis, dos tribunais ou pelo uso da violência. Essa é a manobra que a minstra Rosa Weber denuncia.

Nesse giro decolonial, merece ser mencionada a referência que Weber faz das Constituições do Equador e da Colômbia.

Observo, no direito comparado, que a Constituição adotada em 2008 pela República do Equador, após referendo popular, reconhece as comunidades afroequatorianas como povos distintos e assegura a proteção das terras comunais e dos territórios ancestrais por elas ocupados. (WEBER, 2015).

No mesmo passo, a Constituição da República da Colômbia, promulgada em 1991, consagra, no Artigo 55 das Disposições Transitórias, o direito de propriedade das comunidades negras daquele país sobre as terras por elas tradicionalmente ocupadas segundo suas próprias práticas, verbis: [...]. (WEBER, 2015).

A ministra do Supremto Tribunal Federal Rosa Weber profana a jurisprudência constitucional brasileira ao mencionar normas constitucionais de países latino-americanos e que possuem dimensão positiva superior a do art. 68 do ADCT. Ora, a Constituição equatoriana menciona expressamente que o Estado respeita a propriedade coletiva de suas comunidades de quilombos, enquanto a colombiana constitucionaliza a territorialidade quilombola.

Há, pois, uma fumaça de uma “[...] revuelta intelectual contra esa perspectiva y contra esse modo eurocêntrico de producir conocimiento56 [...]” (QUIJANO, 2007, p. 95), no voto da ministra Rosa do STF Weber. Toffoli, em menor grau, embarca nessa rebeldia, que foi instaurada pelos movimentos de resistência, com suas narrativas conduzidas à ADI pelos amici curiae:.

Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI”. (OLIVEIRA, 2001, p. 11).

Os sobreviventes à colonialidade do poder ocupam um espaço no constitucionalismo brasileiro. É a experiência dos que resistem ao genocídio da colonialidade que ecoa pelos artigos da Constituição de 1988. Porém, é preciso enegrecer as vozes dos que falam em nome dos quilombos.

O conceito decolonial de quilombo orienta que se perceba, antes de tudo, que a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Tal poder se fundamenta e tem como pedra angular a classificação racial/étnica da população mundial, atuando em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas da existência cotidiana (QUIJANO, 2007).

Por isso, pode-se afirmar que as comunidades de quilombos são instrumentos de resistência ao colonialismo e à colonialidade do poder. Logo, cotidianamente se erguem quilombos nas zonas urbanas e rurais do Brasil e de toda a América Latina. Onde há colonialidade, há quilombismo e quilombagem.

O artigo 68 do ADCT não se trata, portanto, de uma mera norma, ainda que sua concretude não tenha se materializado por inteiro. Há de se perceber, por perspectiva decolonial, que “[...] o texto [constitucional] é sempre um evento – representa a real possibilidade de ruptura com o velho modelo de direito e de Estado (liberal-individualista) [...]” (STRECK, 2006, p. 5).

Tal preceito, por conseguinte, possui natureza decolonial ao impedir a invisibilidade histórica das comunidades quilombolas e ao possibilitar o enegrecimento do branco solo brasileiro. É do artigo constitucional quilombola que ecoam os tambores, anunciando que Dandara e Marielle vivem.


4 REFLEXÕES DECOLONIAIS FINAIS

Esta pesquisa qualitativa analisou, sob a perspectiva de colonialidade e decolonialidade, o conceito de quilombo que foi disputado no campo jurídico, autonomizado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 3239.

Na referida ação, o Partido Democratas pretendia que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, editado para regulamentar o artigo constitucional quilombola – art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988.

O julgamento da ADI 3239 encerrou-se em 8 de fevereiro de 2018, portanto, 14 anos após o seu ajuizamento. Apenas o relator da ação, Cézar Peluso, votou a favor do pedido dos Democratas. Votaram pela constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 as ministras Rosa Weber, Carmem Lúcia, e os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio, Celso de Mello57.

No entanto, Dias Toffoli e Gilmar Mendes adotaram o entendimento, minoritário, de que apenas as comunidades que se encontravam de posse de suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição republicana, ou que comprovassem a suspensão ou a perda da posse em função de atos criminosos praticados por terceiros possuiriam o direito ao título de propriedade.

Dessa forma, o giro decolonial grafado em algumas partes do texto do Decreto 4.887/2003, materializado, principalmente, pelos critérios da autoatribuição e pela territorialidade, manteve-se incólume na leitura que os ministros do Supremo Tribunal Federal fizeram da mencionada norma jurídica.

Dissipa-se, portanto, em parte, o olhar do colonizador sobre as comunidades quilombolas. Anteriormente tipificadas como crime, agora sinalizam um direito que se adquire pela posse de terras. Em um solo praticamente ocupado por brancos, os quilombos enegreciam as terras brasileiras. É disso de que se tratavam as comunidades quilombolas: a luta de homens negros e de mulheres negras contra a desumanização e por terra onde pudessem cultivar os seus modos de criar, de fazer e de viver.

A orientação teórica foi oriunda do pensamento do grupo modernidade/colonialidade que possibilitou lançar olhar sobre esta realidade para perceber que as regras ditadas pelas instituições do Brasil Colônia e do Brasil Império em relação às negras e aos negros foram revogadas como normas. Todavia, a colonialidade do poder, do saber e do ser ainda determina quais são os papéis e os lugares destinados à comunidade negra na organização social. Ainda os mantêm na desigualdade e os trata como seres inferiores.

A colonialidade desconhecendo, pois, qualquer barreira, porventura existente, entre Colônia, Império e República, assenzala os negros e as negras nas periferias, nas favelas, nos manicômios e nos presídios. Não há no direito contemporâneo brasileiro regramento que considere os afrodescendentes como objeto, mas a colonialidade os desumaniza, os coisifica, por meio da miséria, do analfabetismo, do aprisionamento e de outras inúmeras barreiras sociais. Os indicadores sociais brasileiros afirmam: corpos negros são descartáveis.

Em um primeiro momento, os quilombos reagiam contra a coisificação e contra a desumanização desencadeadas pelo direito; agora, são instrumentos de luta ante a continuidade desse processo de negação da humanidade de homens negros e de mulheres negras provocada pela colonialidade.

A quilombagem de Clóvis Moura e o quilombismo de Abdias Nascimento revelam que os mecanismos de resistência negra à colonialidade não ocorrem de forma singular, ao contrário, são múltiplos, diversos, envolvendo cores, sons, silêncios, articulações diferentes, embora todos expressem a força simbólica do significado de um quilombo. Por isso, o RAP, as escolas de samba, as ocupações dos sem-terra são quilombos. Ousa-se dizer aqui que os brincantes do bumba meu boi, do samba de cumbuca, do pagode do Mimbó, do tambor de crioula são expressões quilombolas.

Os quilombos representam, pois, a decolonialidade, uma vez que subvertem as hierarquias, os lugares e os papéis tipificados pela colonialidade e um giro decolonial ao valorizar os saberes e os sabores das comunidades quilombolas.

Os quilombos materializam, portanto, a resistência à classificação imposta pela colonialidade e a seus mecanismos de poder, de controle e de reprodução social. Assim, a inclusão do artigo constitucional quilombola no texto constitucional representa a decolonialidade. Onde há colonialidade, há quilombos.

A experiência da comunidade negra na luta contra a opressão da colonialidade do poder encontra-se estampada na principal lei da República. Por isso, não há como esquecer essa tática negra de resistência. Há uma norma que garante terras às comunidades negras quilombolas envoltas a outras que divinizam a propriedade privada e que elevam a livre concorrência como princípio da atividade econômica brasileira.

Na verdade, cuida de um leve giro decolonial. A própria localização da norma constitucional quilombola, incluída entre aquelas que constituem o corpo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, demonstra que a colonialidade encontrava-se atenta para as movimentações efetuadas pelos quilombolas, reagindo oportunamente.

Do mesmo modo, o Decreto 4.887/2003, cujo conteúdo anuncia um giro decolonial, sofreu uma oposição sistemática da colonialidade, por meio do ajuizamento de uma ação judicial: a ADI 3239.

Não se pode esquecer que como texto decolonializado, sua interpretação, e, portanto aplicação, encontra-se sujeita à visão de mundo de instituições formatadas na colonialidade. Esta foi a aposta do Partido da Frente Liberal, atual Democratas. A tática adotada pelo DEM parecia acertada, uma vez que o relator da ADI 3239, Cézar Peluso, considerou que o Decreto 4.887/2003 feria a Constituição.

Em seu voto, Peluso destila colonialidade. Em primeiro lugar, entende que o artigo 68 do ADCT não é uma norma de eficácia plena e de aplicação imediata e que o Decreto 4.887/2003 seria responsável pela desestabilização da paz social. Pondera, ainda, que as comunidades quilombolas deveriam comprovar que haviam procurado abrigo nas terras que, agora, reclamavam como suas, antes ou logo após a abolição, e lá permanecido até a promulgação da Constituição de 1988.

Eis a colonialidade materializada no voto de Cézar Peluso: os quilombos expressam um fenômeno social que findou com o fim do regime escravocrata em terras brasileiras. Os negros e as negras fugiam para conquistar a tão sonhada liberdade.

No entanto, os discursos de Rosa Weber e de Dias Toffoli que floram da ADI 3239, embora dúbios, contraditórios, apontam para uma visão decolonial da resistência negra coletiva. É a partir deles, principalmente, que emergem da ADI 3239 o conceito decolonial das comunidades quilombolas. Quilombo é toda comunidade negra que se autoidentifica como tal, independentemente, portanto, de elaboração de laudo antropológico ou de quaisquer outras espécies de perícia administrativa ou judicial para avaliar a veracidade de tal afirmação. E pelo fato de o artigo 68 do ADCT abrigar um direito fundamental, cabe ao Estado organizar sua estrutura administrativa a fim de titular a parcela das terras que a comunidade, baseada em critérios de territorialidade, identifica como integrante do quilombo.

Dessa forma, torna-se perceptível dos discursos textuais da ADI 3239 que os quilombos são direitos humanos de negros e de negras brasileiras que se expressam coletivamente na luta contra a violação da dignidade da pessoa humana negra. Direitos que são violados cotidianamente pelas situações simbólicas e reais concebidas pela colonialidade.

Deveras, a colonialidade está sempre à espreita. Entende-se, aqui, por exemplo, que, embora a ação proposta pelo DEM tenha sido julgada improcedente, a perspectiva decolonial, como texto, expressa no artigo constitucional quilombola, encontra-se sob o risco de ter sua eficácia esvaziada pela colonialidade do poder.

As razões são diversas. O decreto 4.887/2003 abriga apenas uma das experiências das comunidades de quilombos. Há outras manifestações quilombolas, conforme apontam Abdias Nascimento e Clóvis Moura, não protegidas por aquela norma; a medição e a demarcação das terras, ainda que se respeitem os critérios de territorialidade indicados pela comunidade de quilombos, requer uma instrução procedimental em que a narrativa quilombola pode ser negada ou violada pelo conhecimento científico; a própria existência do decreto 4.887/2003 enfraquece o entendimento de que o artigo 68 do ADCT comporta uma norma garantidora de um direito fundamental e de eficácia plena, portanto, despido da necessidade de integração legislativa.

Depreende-se, portanto, que a colonialidade do poder, define, em sua maior parte, os papéis e os lugares sociais que os negros e as negras ocupam na sociedade brasileira. Mas não só isso: permanece sobre seu controle a quantidade da parcela do solo que será destinada às comunidades quilombolas e, ainda, qual a espécie de conhecimento que serve para aquilatar as falas e as experiências de homens negros e de mulheres negras. A autoatribuição é decolonial, mas a territorialidade, disciplinada no Decreto 4.887/2003, excreta colonialidade do poder, do saber e do ser.

A ambiguidade que o Decreto 4.887/2003 guarda em si talvez seja pelo fato de que a atual Constituição brasileira não propôs, explicitamente, como o fez a Constituição boliviana de 2009, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, baseada na decolonização. Embora isto não fosse o bastante para resgatar a humanidade roubada de milhões de pessoas negras, pelo menos apontava um caminho epistêmico a ser trilhado, e, sem dúvida, assim como ocorre na Bolívia, a condição de colonialidade não estaria superada, cabendo a exigência de resistência permanente.

Independentemente de tudo isto, os quilombos continuam sendo instrumentos de resistência à colonialidade. Se, no campo jurídico, revela-se predominante intelectual, no dia a dia são as comunidades quilombolas que dão o tom rebelde. Na verdade, o giro decolonial se traduz em cores e sons diversos.

Por isso, o pensamento decolonial abriga infindas possibilidades de pesquisa social, uma vez que a colonialidade do poder, a partir de uma classificação racial, atua em cada um dos planos, dos âmbitos e das dimensões materiais e subjetivas da existência de homens negros e de mulheres negras.

É preciso, pois, decolonizar o olhar, o agir. A percepção da colonialidade do poder não permite neutralidade, ainda mais para quem tem a pele escura, como o autor da presente pesquisa. Não se pode esquecer que a colonialidade classifica os negros e as negras como seres inferiores, desprovidos de quaisquer saberes, ou mesmo de alma.

Por isso, esta pesquisa trouxe as falas de pessoas negras que escreveram sobre a escravização e sobre o fenômeno quilombola, destacando, aqui, Maria Sueli Rodrigues de Sousa (2015), Débora Cardoso (2014), Solimar Oliveira Lima (2016), Francisca Raquel Costa (2014) e Mairton Celestino da Silva (2014). Negros e negras piauienses que enfrentam a colonialidade do saber.

Ao longo destas páginas, há algumas lágrimas negras, mas há, também, a certeza da necessidade de continuar resistindo à colonialidade do poder, do saber e do ser e que o caminho a ser trilhado foi aberto pelo primeiro homem negro e pela primeira mulher negra que fugiu para as matas para organizarem coletivamente os quilombos.


Apêndices - CATEGORIZAÇÃO DOS DISCURSOS TEXTUAIS

APÊNDICE A – Petição Inicial do Partido Democratas. APÊNDICE B – Manifestação do Estado de Santa Catarina. APÊNDICE C – Voto do Ministro Cézar Peluso. APÊNDICE D – Voto do Ministra Rosa Weber. APÊNDICE E – Voto do Ministro José Antônio Dias Toffoli. APÊNDICE F – Parecer da Procuradoria-Geral da República. APÊNDICE G – Manifestação do Instituo Pro-bono, Conectas Direito Humanos e Sociedade Brasileiro de Direito Público.

Legenda: Colonialidade do poder – Colonialidade do saber – Colonialidade do ser

APÊNDICE A – Petição Inicial do Partido Democratas

  • A demarcação das áreas, antes de levar em conta critérios históricos-antropológicos, será realizada mediante a indicação dos próprios interessados (art. 2º, § 3°).
  • O ato normativo ora contestado refoge – e muito á matéria de que trata o mencionado dispositivo, pois disciplina direitos e deveres entre particulares e administração pública, define os titulares da propriedade das terras onde se localizam os quilombos, disciplina procedimentos de desapropriação e, consequentemente, importa aumento de despesa.
  • Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer a futuras indenizações.
  • A toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional .
  • Segundo a letra da Constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos.
  • Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não remanescentes-, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto-sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aquelas que efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT, e realizar, por via oblíquas uma reforma agrária sui generis.
  • Ademais, somente fazem jus ao direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição.
  • De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava, à época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional “suas terras” constante do art.68 do ADCT.
  • Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país.
  • A caracterização das terras a serem reconhecidas aos remanescentes das comunidades quilombolas também enfrenta problemas ante a sua excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados.
  • Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural.
  • Parece evidente que as áreas a que se refere a Constituição consolidam-se naquelas que, conforme estudos histórico-antropológicos, constatou-se a localização efetiva de um quilombo.
  • Trata-se, na prática, de atribuir ao pretenso remanescente o direito delimitar a área que lhe será reconhecida. Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição.
  • A área cuja a propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão-somente o território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formara.
  • Ademais, ter-se-ia o uso de recursos públicos por ocasião de indenização decorrentes de desapropriações realizadas ao arrepio da Constituição.

APÊNDICE B – Manifestação do Estado de Santa Catarina58

  • O Estado de Santa Catarina, como ente político, se insere no rol amplo de legitimidade, notadamente por se tratar de interesse difuso, [...] ademais, possui em seu território remanescentes das comunidades de quilombos cujos direitos sobre as terras que estejam ocupando pretende ver reconhecidos dentro do disposto pela norma constitucional, como também pretende ver respeitado o direito às demais formas de propriedade constitucionalmente asseguradas.
  • O Ato Executivo em análise pretende regulamentar direta e imediatamente preceito constitucional, com isso, transborda os limites do art. 84, IV e VI da Constituição Federal, já que disciplina direitos e deveres entre particulares e a administração pública, define os titulares das terras onde se localizam os quilombos, além de, criar nova forma de desapropriação, o que importa em aumento de despesa, sem previsão constitucional ou legal.
  • Faz tábula rasa do direito à propriedade (CF, art. 5.o., XXII) e cria nova forma de desapropriação, alargando os limites constitucionais ao direito de propriedade, sem previsão constitucional ou legal (CF, art. 5.o.,XXIV).
  • 9. – A competência para expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis não pode ser compreendida como a competência para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo, com a criação de direito novo com a imposição de ônus aos particulares, melhor dizendo, não se reveste o Decreto de meio idôneo, para restringir direitos ou criar obrigações.
  • 13- O Decreto viola também o princípio da legalidade, inscrito no caput do art. 37 da Constituição Federal, pois o administrador público deve fazer o que a lei determina, não cabe a ele ditar a lei, existindo espaço para a discricionariedade, notadamente, quando se trata de invadir Direitos individuais.
  • 16 – O Decreto 4.887/2003, de 21 de novembro de 2003, ofende o princípio do contraditório e da ampla defesa assegurado pelo art. 5.o. LV da Constituição Federal, ao prever a presunção absoluta, no art. 8.o., parágrafo único, estabelecendo que haverá concordância tácita dos interessados e demais órgãos no caso de não haver impugnação do procedimento administrativo conduzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
  • 18. – Ademais, como vimos acima, o procedimento regulado pelo Decreto impugnado, aceita, para a apuração dos fatos que às pessoas supostamente remanescentes dos quilombos, assim se auto-declarem, como também aceita que essas mesmas pessoas que assim se autodeclararam, faça a indicação da área de terras a lhes ser titulada.
  • 19. – Ora, dessa forma, admite a norma impugnada que os interessados se declarem remanescentes dos quilombos, por vontade própria, sem estudo antropológico que possa verificar essa situação, e, a partir desse primeiro pressuposto também declarem qual a área de terras que pretendem ver reconhecida e por outro lado, na ausência de impugnação, considera como tacitamente aceito por terceiros que possam ser proprietários dessas áreas.
  • 25. – Para fins do art.68 do ADCT da Constituição do Brasil não há necessidade de desapropriação, trata-se apenas, de titular a propriedade definitiva aos remanescentes dos quilombos, que já a possuíam no momento da promulgação da Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988.
  • 27. A Constituição Federal assegurou uma realidade fática anteriormente existente, atribuindo ao Estado apena o dever de emitir o respectivo documento público, todavia, o malsinado Decreto aparentemente, sobrepõe direitos e cria conflitos de interesses, onde antes havia paz social.
  • 30. Como se observa a atribuição dada pelo art. 13.o. do Decreto impugnado, ao INCRA, viola o direito de propriedade e cria nova modalidade de desapropriação, com a perda definitiva da propriedade, pelo particular, sem amparo, na Constituição Federal ou na lei.
  • 33. Trata-se, pois, de inconstitucionalidade manifesta do Decreto 4.887/2003, que maltrata direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Política de outubro de 1988, que reclama a autuação urgente desse Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal.

APÊNDICE C – Voto do Ministro Cézar Peluso59

  • E, antes de adentrar-lhe o mérito, registro que, apesar de muitos pedidos para a realização de audiência pública, não descobri razão que a justificassem, à luz da própria legislação de regência desse instituto.
  • Ora, a toda evidência, a causa encerra matéria de direito. Os autos estão fartamente instruídos, e não há tema que envolva complexidade técnica.
  • Bem mais expressivas são, aliás, neste caso, as muitas contribuições dos amici curiae admitidos, pois que tais manifestações prescindem de reconhecido “notório saber” em qualquer área de conhecimento.
  • Por resumir, não obstante o artigo 68 do ADCT não seja norma de eficácia plena e imediata, [...]
  • Também a mim me impressionaram os trabalhos de respeitados antropólogos e juristas, dentre os quais relevo aquele desenvolvido pela Sociedade Brasileira de Direito Público, para a Fundação Palmares, sob a coordenação do Professor CARLOS ARY SUNDFELD, e que consubstancia ampla análise do tema, sob os aspectos constitucional e administrativo. É admirável o esforço que desenvolveram, em ambos as áreas do conhecimento, numa perspectiva tão humanista quanto de apurada consciência social.
  • São aqueles que subsistiam nos locais tradicionalmente conhecidos como quilombos, entendidos estes na acepção histórica, em 05 de outubro de 1998. Noutras palavras: os que, tendo buscado abrigo nesses locais (quilombos), antes ou logo após a abolição, lá permaneceram até a promulgação da Constituição de 1988.
  • Já que tange ao conceito de quilombos, [...] é seguro afirmar que, para os propósitos do art. 68 do ADCT, o constituinte optou pela acepção histórica, que é conhecida de toda a gente. Dos Dicionários da língua portuguesa, Aurélio Século XXI e Houaiss, retiram-se as seguintes definições, respectivamente:
  • Reafirmo que os respeitáveis trabalhos desenvolvidos por juristas e antropólogos, que pretendem ampliar e modernizar o conceito de quilombos, guardam natureza metajurídica e por isso não têm, nem deveriam ter, compromisso com o sentido que apreendo ao texto constitucional.
  • Também não creio que os destinatários da norma sejam necessariamente as comunidades.
  • Embora, a rigor , seja desnecessário nomear essa forma de aquisição de propriedade, disciplinada pelo artigo 68 do ADCT, é de se reconhecer que suas características muito a aproximam do instituto de usucapião, como bem notou CLÁUDIO TEIXEIRA:
  • [...] a) característica não prospectiva, no que respeita ao termo inicial da posse, necessariamente anterior à promulgação da Constituição de 1988;
  • Já ficou fora de dúvida que as terras a serem tituladas são aquelas cuja posse é secular.
  • Convencido da inconstitucionalidade do diploma impugnado, não posso, todavia, furtar-me a sopesar, com igual atenção, o crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer, se já a não trouxe. É que o nobre pretexto de realizar justiça social, quando posto ao largo da Constituição, tem como conseqüência inevitável a desestabilização da paz social, o que o Estado de Direito não pode nem deve tolerar. Antes, deve afastar, como é óbvio.
  • Do exposto, julgo procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03.

APÊNDICE D – Voto do Ministra Rosa Weber60

  • Destaco, a propósito, que a contemporânea doutrina constitucional alemã distingue, na prática jurisprudencial do Tribunal Constitucional, a declaração de constitucionalidade propriamente dita da constatação declaratória de constitucionalidade.
  • O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas.
  • Nele definidos, como destaca a melhor doutrina, o titular (os remanescentes das comunidades de quilombos), o objeto (as terras por eles ocupadas), o conteúdo (o direito de propriedade), a condição (ocupação tradicional), o sujeito passivo (o Estado) e a obrigação específica (emissão de títulos).
  • Para os efeitos do Decreto 4.887/2003, a autodefinição da comunidade como quilombola é atestada pela certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do art. 2º, III, da Lei 7.666/1988.
  • A consciência da identidade não se impõe de modo solipsita, não se imuniza ao controle social da legitimidade de sua pretensão de verdade.
  • Entendo que, se de um lado a falta de cuidado no seu emprego é um convite à irregularidade e ao oportunismo, de outro a sua recusa frustra a concretização de direitos constitucionais protegidos pela Constituição da República.
  • Assim, para os fins específicos da incidência desse dispositivo constitucional transitório, além de uma dada comunidade ser qualificada como remanescente de quilombo – elemento subjetivo que reside no âmbito da autoidentificação –, mostra-se necessária a satisfação de um elemento objetivo, empírico: a reprodução da unidade social que se afirma originada de um quilombo há de estar atrelada a uma ocupação continuada do espaço ainda existente, em sua organicidade, em 05 de outubro de 1988, de modo a se caracterizar como efetiva atualização histórica das comunidades dos quilombos.
  • Necessária a evidência da ocupação tradicional das terras reivindicadas, em caráter minimamente estável – sem o que, de resto, sequer se poderia cogitar de relação territorial específica.
  • Já a data de 13 de maio de 1888 não tem serventia metodológica à definição do status dos quilombos. A uma porque o próprio conceito de remanescente de quilombo nos dias atuais exige a reprodução contínua de uma comunidade que, originada da resistência à escravidão, permaneceu coesa até o presente.
  • Não invalida os títulos de propriedade eventualmente existentes, de modo que a regularização do registro exige o necessário o procedimento expropriatório.

APÊNDICE E – Voto do Ministro José Antônio Dias Toffoli61

  • Não há dúvida de que o preceito constitucional motivou-se na necessidade de se reparar uma dívida histórica decorrente da injustiça secularmente praticada contra os negros desde o período escravocrata brasileiro.
  • Trata-se de reparação concretizada no reconhecimento dos direitos de descendentes das comunidades dos antigos escravos à propriedade das terras por eles historicamente ocupadas.
  • Há de ressaltar o caráter inovador da Carta da República ao conceder especial atenção à relevância da raça negra e de suas manifestações culturais para a formação da sociedade brasileira, em especial ao reconhecer direitos territoriais a grupos étnicos e minoritários.
  • Nessa concepção, as comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos étnico-raciais que compartilham certa identidade, baseada numa ancestralidade comum, em manifestações culturais com forte vínculo com o passado, em relações organizacionais próprias e em formas específicas de relacionamento com a terra.
  • Por outro lado, verifica-se que a impugnação do autor parte do entendimento equivocado de que o critério da autoatribuição seria suficiente para a titularização das terras, não acompanhado da utilização de critérios complementares para a identificação dos remanescentes de quilombo.
  • Por sua vez, embora seja idôneo estabelecer requisitos não contidos no dispositivo constitucional, de igual forma, não há de se interpretar o texto constitucional de forma a ampliar em demasia o seu comando.
  • Não há dúvida de que se trata de disposição constitucional transitória orientada a promover uma discriminação positiva, atribuindo vantagens especiais e extraordinárias a minorias oprimidas ao longo da história brasileira.
  • Para tanto, adotou a Constituição a solução específica, determinada e transitória, a qual deve ser adotada nos estritos limites do art. 68 do ADCT.
  • Diante dessa perspectiva, no meu sentir, a partir da leitura do dispositivo constitucional, foram contemplados com a titularidade aqueles remanescentes que estavam ocupando suas terras no momento da promulgação da Constituição de 1988.
  • De início, é importante destacar a posição topográfica do art.68 do ADCT, o qual, diversamente dos arts. 215, 216 e 231 da Constituição Federal, foi inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, não se podendo atribuir a essa disposição consagrados no texto definitivo da Constituição, por se tratar de comando transitório e excepcional destinado a solucionar situação verificada ao tempo da promulgação da Carta.
  • Não se deve, por outro lado, alargar o alcance do dispositivo constitucional para incluir entre as terras de propriedade dos remanescentes das comunidades dos quilombos áreas que não eram por eles ocupadas à época da entrada em vigor da Constituição de 1988.
  • Ora, Senhores Ministros, não vejo espaço normativo para a interpretação acima mencionada. Em verdade, estenderam-se para a demarcação das terras das comunidades remanescentes de quilombos os critérios constitucionais assegurados expressamente pela Constituição Federal às terras indígenas.
  • Em verdade, enquanto, para as terras indígenas, a Constituição adotou os critérios da imprescindibilidade e da necessidade, para os quilombolas, pautou-se pelo critério da ocupação. Dessa forma, não se deve alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução de sua cultura e valores”, independentemente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais.Dessa forma, não se pode alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução da sua cultura e valores”, independente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais.
  • A meu ver, essa interpretação de “terras ocupadas” em aberto, admitindo inclusive a ampliação das faixas territoriais, de acordo com as necessidades da comunidade, não resolve inúmeras situações conflitivas às quais o comando constitucional buscou fim.
  • Bem se sabe que a questão da terra se apresenta historicamente conflituosa, cercada de fortes interesses e expectativas. Buscou a Lei Maior promover a paz fundiária, transformando as posses precárias dessas comunidades em domínio. Mas, para tanto, exigiu-se precisa definição dos limites territoriais destas terras a serem reconhecidas.
  • Deixar em aberto a possibilidade de definição desse território a partir de parâmetros de “necessidade” ou mesmo de sua ampliação futura, sem critérios objetivos, é conferir insegurança jurídica a relações já essencialmente conflituosas, enfraquecendo, desse modo, a estabilidade jurídica que se quis alcançar com o reconhecimento expresso do território dessas comunidades.
  • E a ausência de um marco temporal de ocupação servirá, nesse caso, de estímulo ao agravamento de conflitos fundiários.
  • Não há portanto, razão de ser na referida impugnação, tendo em vista que a indicação do território pelas comunidades interessadas não é critério isolado, precedendo à titulação das terras outras fases técnicas, inclusive com a emissão do Relatório Técnico de Identificação de Delimitação, com a observância de diversos critérios antropológicos e de natureza objetiva.
  • Contudo, não é ampliando o alcance do texto constitucional que se vai efetivar esse relevante direito. Pelo contrário, talvez tenha sido exatamente essa tentativa de se ampliar em demasia o seu alcance que tenha retardado e tornado ainda mais complexa a demarcação e a titulação definitiva dessas terras.
  • Entendo que essa é a interpretação que deriva diretamente do texto constitucional e que é passível de ser garantida e realizada pelo Estado brasileiro; nem mais, nem menos e sem idealismos ou falsa promessas.

APÊNDICE F – Parecer da Procuradoria-Geral da República

  • A rigor, não há uma questão de inconstitucionalidade em jogo. Evidencia-se, isso sim, uma controvérsia metodológica (se é que assim se possa considerar, na medida em que os mais recentes avanços da Antropologia ratificam os critérios estabelecidos no Decreto 4.887, de 2003), que há de resolver-se no âmbito da ciência antropológica, e não do Direito” (fls.112).
  • No presente caso, para a delimitação do conteúdo essencial da norma do art. 68 do ADCT, não pode o jurista prescindir das contribuições da Antropologia na definição da expressão “remanescentes das comunidades dos quilombos”.
  • Assim, o critério da auto-atribuição é considerado pela Antropologia como o parâmetro mais razoável para a identificação das comunidades quilombolas.
  • Nesse sentido, o critério utilizado pelo Decreto 4.887/2003 parece ser mais compatível com os parâmetros eleitos pelos estudos antropológicos para definição das comunidades quilombolas e de seus respectivos espaços de convivência.

APÊNDICE G – Manifestação do Instituo Pro-bono, Conectas Direito Humanos e Sociedade Brasileiro de Direito Público

  • Hoje, conforme a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), quilombo é o termo utilizado para designar a herança cultural e material das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos, que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico, abrangendo toda a área ocupada e utilizada para subsistência, e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado.
  • A discussão sobre o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas é parte de um processo histórico de valorização da cultura negra, que alcançou em 1988 importantes conquistas.
  • Prevê ainda a realização de trabalhos de campo para a produção do Relatório Técnico- Científico (RTC), determinando a localização da comunidade, a identificação e a descrição da área, conforme limites indicados pela comunidade, com base nas atividades econômicas e construções já existentes. Procede-se também ao diagnóstico jurídico do território auto-identificado, que consiste no levantamento de sua situação dominial, da situação jurídico-ambiental e da situação jurídica da comunidade, verificando se cabe ação de usucapião ou se é o caso de desapropriação.
  • Nestas discussões, a perspectiva antropológica mais recente tende a conceituá- las como grupos étnicos que existem e persistem ao longo da história como um "tipo organizacional". Esta interpretação só é possível através de uma pesquisa que privilegie o ponto de vista do nativo, isto é, descrevendo as suas auto-identificações, suas categorias de pertencimento à comunidade, suas representações e suas formas de organização social.
  • Ali se prevê o critério autoatribuição, mas também a necessidade de trajetória histórica própria, a dotação de relações territoriais específicas e a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, critérios estes que se complementarão àquele. Essa idéia é reafirmada na regulamentação dos procedimentos administrativos do INCRA, feita pela sua Instrução Normativa 16/2004. Ali se repete esta prescrição dos beneficiários da política pública (art. 3°).
  • Não bastasse isso, outro aspecto do decreto em questão garante a sua constitucionalidade e legitimidade: é a instituição de procedimento administrativo escorreito, marcado especialmente pelos caracteres da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, publicidade e atendimento ao interesse público.

APÊNDICES - CATEGORIZAÇÃO DOS DISCURSOS TEXTUAIS DECOLONIAIS

Giro Decolonial – APÊNDICE H – Parecer da Procuradoria-Geral da República. APÊNDICE I – Manifestação do Instituto Pro Bono, do Conectas Direitos Humanos e a Sociedade Brasileira de Direito Público. APÊNDICE J – Voto da Ministra Rosa Weber. APÊNDICE K – Voto do Ministro dias Toffoli.

Legenda: o quilombola como igual pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos – o quilombola com liberdade para ser proprietário – o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais

APÊNDICE H – Parecer da Procuradoria-Geral da República

  • Mister se faz ressaltar, antes de tudo, que o art. 68 do ADCT requer cuidadosa interpretação, de modo a ampliar ao máximo o seu âmbito normativo. Isso porque trata a disposição constitucional de verdadeiro direito fundamental, consubstanciado no direito subjetivo das comunidades remanescentes de quilombos a uma prestação positiva por parte do Estado. Assim, deve-se reconhecer que o art. 68 do ADCT abriga uma norma jusfundamental; sua interpretação deve emprestar-lhe a máxima eficácia.
  • [...] No caso de a terra reivindicada pela comunidade quilombola pertencer a particular, não só será possível, como necessária a realização da desapropriação. [...]
  • 32. Portanto, como bem afirma O’DWYER, “em última análise, cabe aos próprios membros dos grupo étnico se auto-identificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão, mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas”.
  • 40. Portanto, a identificação das terras pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos deve ser realizada segundo critérios histórico e culturais próprios de cada comunidade, assim como levando-se em conta suas atividades sócio-econômicas. A identidade coletiva é parâmetro de suma importância, pelo qual são determinados os locais de habitação, cultivo, lazer e religião, bem como aqueles em que o grupo étnico identifica como representantes de sua dignidade cultural. O critério estabelecido no Decreto n° 4.897/03 está de acordo com os parâmetros mencionados.

APÊNDICE I – Manifestação do Instituto Pro Bono, do Conectas Direitos Humanos e a Sociedade Brasileira de Direito Público

  • Foi exatamente devido à inadequação dos critérios de identificação das comunidades quilombolas e de suas terras, sugeridos pelo Autor (e que constavam do Decreto federal 3.912/2001, que anteriormente regulava a matéria), que foi elaborada a nova regulamentação. Ou seja, o que Autor demanda é um retrocesso a um conteúdo normativo para a matéria que já se mostrou falho e causador de instabilidade jurídica, como se demonstrará abaixo.
  • As habitações de negros surgiram no contexto da escravidão de negros africanos, trazidos a partir do século XVII pela colonização européia. Como sinal de protesto às condições desumanas e degradantes a que estavam sujeitos, os escravos passaram a organizar-se em comunidades de quilombos, que se constituíram em territórios étnicos de resistência, como alternativa de organização social às modalidades de exploração do trabalho negro.
  • Os territórios de quilombos são utilizados para garantir a reprodução física, social econômica e cultural, abrangendo todas as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias. Assim, os direitos dessas comunidades devem ser salvaguardados não apenas em relação àquelas terras por eles ocupadas, mas também àquelas às quais têm acesso para desenvolver suas atividades tradicionais de subsistência, bem como a afirmação da identidade de seus integrantes e a manutenção de suas tradições.
  • A constitucionalização de certos direitos não significa, infelizmente, a sua imediata efetivação. Mais de quinze anos se passaram após a promulgação da Constituição sem que a enorme maioria das comunidades quilombolas conquistasse o seu direito constitucional à propriedade definitiva dessas áreas.
  • O Poder Público não pode perder de vista o dever de dar à norma constitucional o máximo de efetividade possível, sob pena de agir de modo inconstitucional, por restringir indevidamente o direito garantido às comunidades remanescentes de quilombos de reconhecimento e titulação
  • O Poder Público não pode perder de vista o dever de dar à norma constitucional o máximo de efetividade possível, sob pena de agir de modo inconstitucional, por restringir indevidamente o direito garantido às comunidades remanescentes de quilombos de reconhecimento e titulação das terras por elas ocupadas.
  • Infelizmente foi apenas de forma tardia que se iniciou o processo de recuperação de espaços quilombolas usurpados e ou turbados por supostos proprietários
  • Cabe lembrar que as comunidades remanescentes de quilombos, como grupos formadores da sociedade brasileira, receberam a proteção jurídico- constitucional do art. 216, §1º, que prevê a desapropriação como uma das formas de acautelamento e preservação de que o Poder Público dispõe.
  • A partir da identificação desse modo de vida, conclui-se que a titulação deve recair não só sobre os espaços em que o grupo mora ou cultiva, mas também sobre aqueles necessários ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias do grupo e também aqueles destinados ao estoque de recursos naturais. Essas são as “suas terras”, a que reporta a Constituição, sendo que nesses locais os quilombolas não só “tiveram” (pg. 11 da petição inicial) a sua reprodução física, social, econômica e cultural, mas ainda a têm, como realidade viva que são, e é desejo da Constituição que a tenham com a propriedade definitiva.
  • Não se atenta, portanto, às prováveis hipóteses de legítimas comunidades quilombolas que foram ilegalmente expulsas das terras que ocupavam e se fixaram em outra localidade próxima. Ignora-se a relação que a comunidade possui com a terra, esta mais importante do que a determinação “dessa ou daquela” terra.
  • Não se atenta, portanto, às prováveis hipóteses de legítimas comunidades quilombolas que foram ilegalmente expulsas das terras que ocupavam e se fixaram em outra localidade próxima. Ignora-se a relação que a comunidade possui com a terra, esta mais importante do que a determinação “dessa ou daquela” terra.
  • Toma-se como premissa o conceito colonial de quilombo, muito embora, como demonstrado, este conceito se mostre insuficiente e pobre para a descrição da realidade das comunidades amparadas pelo art. 68 do ADCT.

APÊNDICE J –  Voto da Ministra Rosa Weber

  • O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas. Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitável, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração legislativa.
  • Decomposto analiticamente o texto, extraio duas categorias de enunciados constitucionais: (i) uma disposição substancial assentando um direito fundamental – um direito de propriedade qualificado (“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”); (ii) uma ordem ao Estado para que pratique determinado ato necessário ao direito fundamental assentado – a expedição dos títulos respectivos (“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”).
  • O direito fundamental insculpido no art. 68 do ADCT em absoluto demanda do Estado delimitação legislativa, e sim organização de estrutura administrativa apta a viabilizar a sua fruição. A dimensão objetiva do direito fundamental que o preceito enuncia, enfatizo, impõe ao Estado o dever de tutela – observância e proteção –, e não o dever de conformação.
  • Não é demais lembrar que, diante de norma constitucional assim qualificada, recomenda a doutrina se evite “método interpretativo que reduza ou debilite, sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos fundamentais.”
  • Tenho, pois, que, levada a sério, à norma constitucional – especialmente a definidora de direito fundamental – não pode ser atribuída exegese que lhe retire toda e qualquer densidade normativa. Em absoluto merece endosso, data venia, interpretação atribuidora de sentido e eficácia que impliquem a própria inexistência do texto interpretado impacto jurídico indistinguível de uma ordem jurídica carente do preceito.
  • Em qualquer hipótese, é obrigação do Estado agir positivamente para alcançar o resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas legislativas, ora por políticas e programas implementados pelo Executivo, desde que apropriados e bem direcionados. No contexto dos direitos fundamentais compreendidos como um sistema, é exigência constitucional que “para serem razoáveis, medidas não podem deixar de considerar o grau e a extensão da privação do direito que elas se empenham em realizar”, conforme assentou a Corte Constitucional da África do Sul no julgamento do caso Governo da República da África do Sul e outros vs. Irene Grootboom e outros, verdadeiro divisor de águas no constitucionalismo contemporâneo.
  • Em convergência com esse entendimento a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do paradigmático caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em 2001, ao declarar violados os artigos 21 (direito de propriedade) e 25 (direito a proteção judicial eficaz) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) pelo Estado da Nicarágua porque, não obstante reconhecida, na Constituição daquele país, a propriedade comunal dos povos indígenas sobre as terras por eles ocupadas, jamais havia sido regulado procedimento especifico para permitir o exercício desse direito. Sentenciou a Corte Interamericana que o Estado demandado – a Nicarágua – equipasse o seu direito interno com mecanismos para efetivar a delimitação e a titulação da propriedade dos povos tradicionais, em conformidade com seus costumes, fosse por medidas legislativas, fosse por medidas administrativas ou de qualquer outro caráter justamente por se tratar de direito fundamental.
  • Não bastasse o Brasil ter sido o último país das Américas a abolir o regime escravocrata, negligenciou, até o advento da Constituição Cidadã, os direitos – inclusive territoriais – das coletividades originadas dos agrupamentos formados por escravos fugidos.
  • A partir de então, dada a nova conformação sociopolítica no que diz com o fato da escravidão humana, as comunidades negras rurais remanescentes de quilombos – também chamados mocambos, palmares, ladeiras etc., conforme a época e o lugar – passam a ser designadas e a se autodesignar por diversas outras denominações – rincões, redutos, arraiais, vilas etc.
  • Essas comunidades eram invisíveis até o advento da Constituição de 1988 – verdadeiros párias os quilombolas –, à margem da sociedade, sujeitas a "um quadro de miséria e abandono, diretamente vinculado à sua situação territorial", passíveis de designação, em geral, como populações extremamente vulneráveis e com elevado déficit na fruição de direitos fundamentais.
  • Na questão do reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, convergem as dimensões da luta pelo reconhecimento – expressa no fator de determinação da identidade de grupo – e da demanda por justiça socioeconômica, de caráter redistributivo – compreendida no fator de medição e demarcação das terras. Da ótica de uma Constituição comprometida com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e com a redução das desigualdades sociais, consoante o art. 3º, I e III, da Lei Maior, não se mostra, portanto, adequado abordar a "questão quilombola" sem atentar para a necessária conciliação entre "reconhecimento cultural e igualdade social de forma a que sustentem um ao outro, ao invés de se aniquilarem (pois há muitas concepções concorrentes de ambos)"44. Há de se reconhecer que se cuida de problemática na qual "a privação econômica e o desrespeito cultural se entrelaçam e sustentam simultaneamente".
  • E a adoção da autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola em absoluto se ressente, a meu juízo, de ilegitimidade perante a ordem constitucional. Assumindo-se a boa-fé, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída – e para a má-fé o direito dispõe de remédios apropriados. Logo, em princípio, ao sujeito que se afirma quilombola ou mocambeiro não se pode negar o direito de assim fazê-lo sem correr o risco de ofender a própria dignidade humana daquele que o faz.
  • Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação.
  • Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação.
  • Observo, no direito comparado, que a Constituição adotada em 2008 pela República do Equador, após referendo popular, reconhece as comunidades afroequatorianas como povos distintos e assegura a proteção das terras comunais e dos territórios ancestrais por elas ocupados.
  • No mesmo passo, a Constituição da República da Colômbia, promulgada em 1991, consagra, no Artigo 55 das Disposições Transitórias, o direito de propriedade das comunidades negras daquele país sobre as terras por elas tradicionalmente ocupadas segundo suas próprias práticas, verbis:
  • A temática mereceu debate no âmbito do sistema regional interamericano de proteção internacional dos direitos humanos. No caso da comunidade Moiwana v. Suriname (2005), a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito de propriedade de comunidade descendente dos maroons – designação dada em diversos países das Américas aos escravos fugitivos que formaram grupos independentes, que guardam evidentes similaridades com os quilombolas brasileiros – sobre as terras tradicionais com as quais mantidas relações territoriais específicas.
  • Já no caso da comunidade Saramaka v. Suriname (2007), também descendente de maroons, a Corte Interamericana ressaltou que o Estado demandado estava sujeito, forte no art. 21 do Pacto de San José da Costa Rica, a uma obrigação positiva “consistente em adotar medidas especiais que garantam aos membros do povo Saramaka o pleno e igualitário exercício do seu direito aos territórios que tradicionalmente tem utilizado e ocupado,” aí incluídos os recursos naturais imprescindíveis à sua sobrevivência neles contidos.
  • Por outro lado, na medida em que assegura uma proteção especial, a previsão do art. 68 do ADCT não prejudica nem interfere na aquisição da propriedade por meio do usucapião que já se tenha eventualmente operado: se já ocorreu o usucapião em favor dos remanescentes das comunidades quilombolas, não há razão para a instauração do procedimento de desapropriação. Diversamente, se por alguma razão não se operou a prescrição aquisitiva – pela intercorrência de alguma causa suspensiva ou interruptiva – aí sim tem lugar a desapropriação.
  • 4.5.5. Entender, como o fazem Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, que o escopo do dispositivo se limita às terras devolutas, chancela, com a devida vênia, discriminação indevida entre remanescentes das comunidades dos quilombos alcançados pela proteção constitucional e remanescentes das comunidades dos quilombos em relação aos quais se retira a concretude da norma do art. 68 do ADCT – norma definidora de direito fundamental. Tal discriminação, fundada tão só o status da terra ocupada, não encontra respaldo no sistema da Constituição da República de 1988.
  • A adequada exegese do art. 68 do ADCT passa, pois, pela perspectiva de sua íntima relação com o disposto nos arts. 215 e 216 do corpo da Constituição da República. Nessa medida, a compreensão sistemática da Carta Política não só autoriza como exige, quando incidente título de propriedade particular legítimo sobre as terras ocupadas por quilombolas, seja o processo de transferência da propriedade para estes mediada por regular procedimento de desapropriação. E esse imperativo constitucional é preservado pelo art. 13 do Decreto 4.887/2003.

APÊNDICE K – Voto do Ministro dias Toffoli

  • Em momento histórico singular, a Constituição de 1988, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, consagrou aos remanescentes das comunidades de quilombos o direito à propriedade das terras que estivessem ocupando.
  • Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI” (Negros em busca de justiça. In: OLIVEIRA, Leinad Ayer de. Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001, p. 11).
  • Ressalte-se, ainda, que o art. 68 do ADCT, ao consagrar um comando de imperatividade ao Poder Público, é dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não necessitando, em verdade, de intermediação de lei formal para a regulamentação dos procedimentos necessários à concretude do comando constitucional.
  • Ao contrário do que afirma o requerente, trata-se, em verdade, de critério plenamente adequado à identificação dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”. Com efeito, cabe aos próprios indivíduos e membros do grupo se reconhecerem e se identificarem como pertencentes determinado grupo étnico.
  • Nesse sentido, foi cuidadoso o art. 13 do decreto impugnado, na medida em que não excluiu a possibilidade de aquisição do domínio pelos remanescentes das comunidades quilombolas mediante prescrição aquisitiva (usucapião) que já tenha se operado, ou quando presente vício no título de propriedade particular, hipóteses nas quais não haverá desapropriação.
  • Necessário, porém, o ato expropriatório, deve o Estado, como responsável direto pela execução das políticas e diretrizes constitucionais, indenizar os proprietários particulares, se regularmente exerciam o seu direito até a promulgação da Carta de 1988. O referido processo de desapropriação é de nítido interesse social e será feito em benefício das comunidades remanescentes de quilombos.

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Notas

1 “A ‘colonialidade’ é entendida como um fenômeno histórico muito mais complexo que o colonialismo, e que se estende até ao nosso presente.” (RESTREPO, 2007, p. 292, tradução livre).

2 "[...] estrutura triangular da colonialidade: a colonialidade do ser; a colonialidade do poder e a colonialidade do saber, "Ha, ainda," [...] a categoria da 'decolonialidade', usada no sentido da virada decolonial [...]" (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 9, tradução livre)

3 “[...] (1) o trabalho e seus produtos; (2) em dependência do anterior, a "natureza" e seus recursos de produção; (3) sexo, seus produtos e a reprodução das espécies; (4) a subjetividade e seus produtos materiais e intersubjetivos, incluindo o conhecimento; (5) a autoridade e seus instrumentos, particularmente a coerção, para assegurar a reprodução desse padrão de relações sociais e regular suas mudanças” (QUIJANO, 2007, p. 96, tradução livre)

4 Vide http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2227157.

5 "[...] Todo direito, seu exercício, gera condições de participação das quais resistir, de onde se transformar. [...]" (CONDORI, 2007, p. 471, tradução livre).

6 “Os direitos e garantias fundamentais, em sentido material, são, pois, pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 159).

7 Habermas adentra esta dissertação para ancorar a discussão teórica sobre o conceito de direitos fundamentais, construído a partir de uma abordagem sociológica.

8 "[...] articulada sob o domínio do capital e para seu benefício" (QUIJANO, 2007, p. 122, tradução livre)..

10 Ver autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239-DF. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 02 mai. 2018.

11 Ver autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239-DF. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 19 out. 2016.

12 Ver autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239-DF. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 19 out. 2016.

13 A colonialidade vai além do colonialismo, que é apenas uma parte dele. Não é simplesmente uma hierarquia política, mas também uma hierarquia sociocultural. Por esta razão, prevalece suavemente mesmo após as colônias terem conquistado sua independência formal. A colonialidade existe como parte do sistema mundial moderno, até hoje é o produto e a justificação das desigualdades entre as áreas centrais e as áreas periféricas do mundo econômico-capitalista. Manifesta-se política, econômica e culturalmente, em nosso modo de pensar, falar e proceder. A colonialidade se reproduz, mesmo que as pessoas que estão nos níveis mais baixos da hierarquia estejam obviamente tentando lutar contra ela (WALLERSTEIN, 1992, p. 3).

14 Mantém-se viva em manuais de aprendizagem, nos critérios para uma avaliação favorável de um trabalho acadêmico, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131, tradução livre).

15 Este modelo de poder está no cerne da experiência moderna. A modernidade, usualmente considerada como o produto, quer seja do Renascimento europeu ou do Iluminismo, tem um lado obscuro que lhe é constitutivo. A modernidade como discurso e prática não seria possível sem a colonialidade, e a colonialidade constitui uma dimensão inescapável de discurso modernos. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132, tradução livre).

16 “quanto mais clara a pele” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132, tradução livre).

17 A essência desse sistema [capitalista] consistia em reunir todos os tipos de processos de produção em uma área muito ampla (o "mundo da economia") em que a principal motivação dos proprietários era acumular capital. A busca incessante por essa acumulação é a característica concreta que define o capitalismo. A consolidação desse sistema econômico exigiu várias mudanças: uma mercantilização crescente de todas as atividades produtivas e uma divisão geográfica de trabalho marcante na qual as atividades mais lucrativas e monopolizadas se concentrariam em um centro e o menos lucrativo e mais competitivo na periferia. Como as atividades eram menos lucrativas na periferia, era necessário um esforço maior para reduzir os custos trabalhistas, usando um alto grau de coerção sobre os trabalhadores (WALLERSTEIN, 1992, p. 3-4).

18 Tal como conhecemos historicamente, o poder é um espaço e uma malha de relações sociais de exploração/dominação/conflito articuladas, basicamente, em função e em torno de uma disputa por o controle dos seguintes âmbitos da existência social: 1) o trabalho e seus produtos; 2) em dependência à anterior, a “natureza” e seus recursos de produção; 3) o sexo, seus produtos e a reprodução da espécie; 4) a subjetividade e seus produtos materiais e intersubjetivos, incluindo o conhecimento; 5) a autoridade e seus instrumentos, de coerção em particular, para assegurar a reprodução desse padrão de relações sociais e regular suas transformações (em livre tradução).

19 Reciprocidade consiste no intercâmbio de força de trabalho e de trabalho sem mercadoria (QUIJANO, 231).

20 A formulação cartesiana privilegia a epistemologia, que simultaneamente esconde, não somente a pergunta sobre o ser (eu “sou”), mas também a colonialidade do conhecimento (outros não pensam). Assim, o privilégio do conhecimento na modernidade e a negação de faculdades cognitivas nos sujeitos racializados oferecem a base para a negação ontológica (MALDONADO- TORRES, 2007, p. 144-145, tradução livre).

21 Dessa forma, descobrimos uma complexidade não reconhecida do pensamento cartesiano: do “eu penso, logo eu sou” somos levados a uma noção mais complexa, porém, muito mais precisa, histórica e filosoficamente falando: “Eu penso (outros não pensam ou não pensam adequadamente), logo sou (outros não são, estão desprovidos do ser, não devem existir ou são dispensáveis)” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 144, tradução livre).

22 Desembargador ou ministro responsável pela condução do processo e por proferir a primeira decisão sobre o mérito da causa. No caso, a relatoria coube ao ministro Cézar Peluso.

23 Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma lega ou ato normativo, citará, previamente, o advogado-geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. Art. 103, § 3º, da CF/88.

24 Ver autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 8 mai. 2018.

25 Aqui na acepção de pessoa jurídica de direito público. Tal qual como esse Estado se qualifica em seu pedido de ingresso na ADI 3239.

26 "A universidade é vista, não apenas como o lugar onde o conhecimento é produzido, que leva ao progresso moral ou material da sociedade, mas como o núcleo vigilante dessa legitimidade" (CÁSTRO-GÓMEZ, 2007, p. 81).

27 Ver autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239-DF. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 2 abr. 2018.

28 Desse modo, as estruturas de longa duração formadas nos séculos XVI e XVII continuam desempenhando um papel importante no presente. (CASTRO-GOMÉZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 14, tradução livre).

29 A primeira descolonização (iniciada no século XIX pelas colônias espanholas e seguidas no século XX pelas colônias inglesas e francesas) foi incompleta, já que se limitou a uma independência jurídico-política. Por outro lado, a segunda descolonização – a qual nos referirmos com a categoria decolonialidade – deverá dirigir-se a uma heterarquia de múltiplas relações raciais, étnicas, sexuais, epistêmicas, econômicas e de gênero que a primeira descolonização deixou intactas (CASTRO- GOMÉZ; GROFOSGUEL, 2007, p. 14, tradução livre).

30 A ideia de decolonialidade tende a demonstrar o caráter explicitamente colonial da modernidade. Ou seja, se queremos avançar para um projeto diferente da modernidade, o que se pode deduzir desta reflexão é que não podemos partir ingenuamente do quadro categorial do pensamento moderno, porque está contido explicitamente seu caráter colonial ou colonizador (SEGALÉS, 2014, p. 72, tradução livre).

31 As experiências geopolíticas e as memórias da colonialidade (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 20, tradução livre).

32 Com efeito, a ciência social contemporânea não encontrou ainda uma forma de incorporar o conhecimento subalternizado aos processos de produção de conhecimento. Sem isto não pode haver decolonização alguma do conhecimento nem utopia além do ocidentalismo. A cumplicidade das ciências sociais com a colonialidade do poder exige uma emergência de novos lugares institucionais de onde os subalternos possam falar e ser escutados (CASTRO-GOMES; GROSFOGUEL, 2007, p. 21, tradução livre).

33 A última característica, embora não menos importante do pacote da modernidade, foi o universalismo: acreditar que os valores que descobrimos, os valores que desejamos e os direitos que temos, pertencem a todas as pessoas sem exceção e sem que isto implique a necessidade de um rito de entrada (como pertencente a um determinado credo ou herança genética). Esta foi uma ideia muito libertadora que ofereceu a todos o acesso à vida em sociedade. Mas, por outro lado, era uma visão sufocante e imperialista, que dava aos detentores do poder a justificativa para impor aos fracos sua maneira de organizar a vida em nome dos valores universais (WALLERSTEIN, 1992, p. 5, tradução livre).

34 [...] quer dizer, descobrimos a autocontradição quando nos damos conta de que raciocinamos com ideias, conceitos, ideologias, teorias, lógicas e até teologias contrários a nossos projetos, e que, quando objetivamos sair desta autocontradição, entramos em contradição com o que éramos e que ainda somos e que já não queremos ser (SEGALÉS, 2014, p. 74, tradução livre).

35 Mas agora sabemos que tanto a ideia de desenvolvimento quanto a de economia, racionalidade e ciência que a modernidade produziu são irracionais, porque tende ao enfraquecimento das condições de possibilidade de si mesma e da vida como tal. É por isso que é irracional, porque tende à morte e não à vida (SEGALÉS, 2014, p. 277, tradução livre).

36 Pois bem, o que se segue, então, à descrição da colonialidade da modernidade é a sua descolonização, primeiro em termos cognitivos, a partir dela para encontrar não apenas outra forma de construir o conhecimento, mas também para definir outras políticas possíveis a partir desta, outro conhecimento. Assim, como em Zemelman, a relação entre o político e o epistemológico se torna fundamental aqui. Não perceber essa relação é um sintoma de que a colonialidade do conhecimento da modernidade continua a operar eficientemente em processos que supostamente têm uma intencionalidade explícita de descolonização (SEGALÉS, 2014, p. 72, tradução livre).

37 “Trata-se da articulação precisa da razão decolonial cuja finalidade fundamental não é apenas a mudança nos métodos de conhecimento, mas também a mudança social (tradução livre)."

38 Assim, a partir desse mesmo padrão [colonialidade] o eurocentrismo foi estabelecido como uma perspectiva única do conhecimento, justificou a escravidão e a desumanização e descartou como bárbaros, selvagens e não modernos (leia-se: filosofias, cosmologias, lógicas e sistemas subdesenvolvidos e "tradicionais") da vida da grande maioria: os povos indígenas e os povos de origem africana Esta matriz, ou padrão - que sempre serviu aos interesses e às necessidades do capitalismo - faz com que o olhar se fixe na Europa como modelo, perspectiva e modernidade ideal. E é a partir desse olhar - ainda presente - que formavam os estados nacionais e, claro, seus sistemas legais (WALSH, 2015, p. 347, tradução livre).

39 A mudança decolonial é, antes de tudo, o resultado da percepção de que as formas modernas de poder produziram e ocultaram a criação de tecnologias de morte que afetam diferentemente diferentes comunidades e sujeitos. Isso também aumenta o reconhecimento de que as formas de poder colonial são múltiplas, e que tanto o conhecimento quanto a experiência vivida dos sujeitos que foram mais marcados pelo projeto de morte e desumanização modernas são altamente relevantes para entender as formas modernas de poder e fornecer alternativas para eles (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66, tradução livre).

40 Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição [...] (Art. 102, da CF/88).

41 Son fines y funciones esenciales del Estado, además de los que establece la Constitución y la ley: 1. Constituir una sociedad justa y armoniosa, cimentada en la descolonización, sin discriminación ni explotación, con plena justicia social, para consolidar las identidades plurinacionales (Constituição Boliviana, Artículo 9, 1). São fins e funções essenciais do Estado, além daqueles estabelecidos pela Constituição e pela lei: 1. Estabelecer uma sociedade justa e harmoniosa, baseada na descolonização, sem discriminação ou exploração, com plena justiça social, para consolidar as identidades plurinacionais (Constituição Boliviana, artigo 9, 1, tradução livre).

42 O constitucionalismo é uma invenção americana ou, para ser mais precisamente, uma invenção euro-americana, de contingentes de emigrantes europeus para as Américas "(CLAVERO, 2017, p. 24, tradução livre).

43 A Constituição foi documento normativo superior das unidades e do conjunto deste novo sistema político de acordo com a compreensão dos pressupostos culturais que o inspiraram, os europeus. Passou a ser composto de duas seções, uma de direitos ou liberdades e outra de poderes ou instituições. O primeiro, os direitos, tendiam a ser formulados em termos universalistas, mas entendidos como atribuições do sujeito colonizador, isto é, do pai do proprietário da família, autônomo ou patrono da cultura européia. O sujeito constitucional não era nem o escravo nem o emancipado nem o trabalhador dependente nem o imigrante e a mulher nem o menor nem o indígena... (CLAVERO, 2017, p. 25, tradução livre).

44 "Ninguém é um homem bom, nem um bom cidadão, se ele não observa as leis fiel e religiosamente, se ele não é um bom filho, bom irmão, bom amigo, bom marido e bom pai de família” (tradução livre).

45 "Foi e é" (CLAVERO, 2017, p. 29, tradução livre).

46 "Entre ontem e hoje há uma longa história em que muitas coisas mudaram, a tal ponto que o colonialismo constitucional não é tão facilmente reconhecido neste ponto (CLAVERO, 2017, p. 29, tradução livre).

47 A constitucionalização do pluralismo jurídico e da jurisdição indígena coloca em questão o monismo jurídico, isto é, a identidade de direito estatal e o monoculturalismo estatal, isto é, a identidade do Estado-nação, ambos feridos do século XIX (FAJARDO 2015, p. 35, tradução livre).

48 Ao contrário das Constituições anteriores, que mal tinham um artigo sobre lei e justiça indígena, essas novas cartas, especialmente a da Bolívia, têm vários artigos específicos e muitas vezes mencionam a lei indígena que perpassa todo o texto constitucional (FAJARDO, 2015, p. 50, tradução livre).

49 “Os direitos e garantias fundamentais, em sentido material, são, pois, pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 159).

50 igualdade hierárquica (WALSH, 2015, p. 471, tradução livre)

51 Ocultação da colonialidade (tradução livre).

52 Minha tese é a seguinte: o pensamento decolonial emergiu no próprio fundamento da modernidade / colonialidade como sua contraparte. E isso aconteceu nas Américas, no pensamento e no pensamento indígenas afro-caribenhos; continuou mais tarde na Ásia e na África, não relacionada ao pensamento decolonial nas Américas, mas como contrapartida à reorganização da modernidade / colonialidade do império britânico e do colonialismo francês. (MIGNOLO, 2007, p. 27, tradução livre).

53 Ou, bem, a colonialidade poderia ser considerada como discurso e prática que [...] prega a inferioridade natural dos sujeitos, [...] o que caracteriza certos sujeitos como dispensáveis [...]" (tradução livre).

54 pontos de apoio [...] outros palenques [...] nas memórias e experiências da escravidão [...] "(MIGNOLO, 2007, p. 33, tradução livre).

55 Assim, cada nodo da rede desta genealogia é um ponto de partida e abertura que reintroduz idiomas, memórias, economias, organizações sociais, subjetividades, esplendores e misérias dos legados imperiais. A situação atual exige, afirma, um pensamento descolonial que articula genealogias espalhadas pelo planeta e oferece "outras" modalidades econômicas, políticas, sociais e subjetivas. (MIGNOLO, 2007, p. 45, grifo nosso).

56 [...] revolta intelectual contra essa perspectiva e contra esse modo eurocêntrico de produzir conhecimento [...] "(QUIJANO, 2007, p. 95, tradução livre).

57 Veja em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=369187. Acesso em: 02.12.2018.

58 Os grifos constam do original.

59 Os grifos constam do original.

60 Os grifos constam do original.

61 Os grifos constam do original.


Abstract: In the 1988 Constitution the word “quilombo” obtains a new dimension, changing its meaning commonly related to crime in exchange for something that guarantees rights. There is a scenario that discards the colonizer's view and consequently assuming the perspective of the colonized that are mainly formed by black men and black women for whom quilombo is resistance to the system with its structures inherited from slavery. The reinvention of quilombo’s concept by the quilombola community itself represents a decolonial spin (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007), initiated with the insertion of the term quilombo in the constitutional text. The experiences of black men and women, their processes of resistance to the project that sought their physical and cultural annihilation and their struggle against the dehumanization of Afrodescendants represent the confrontation of the coloniality of power. However, in June 2004 the Liberal Front Party (PFL), now Democrats (DEM), filed a lawsuit, ADI 3239, at the Federal Supreme Court (STF), in which they question the constitutionality of Decree 4.887 / 2003 that regulates quilombo lands conquered in CF/88 . In the lawsuit, among other things, DEM, in other words, intends to establish the concept of quilombo as "communities formed by escaped slaves, at the time of slavery in Brazil". Thus, DEM aims to reduce the concept of quilombo to an experience which is completely done with the Abolition of Slavery. It also refutes the possibility, expressed in the Decree, of a community to define itself as a quilombola. The main issue presented seeks to affirm that quilombo is something from the past, and only technical reports could define who really part of these communities is. The claim presented in the lawsuit corroborates the colonial narrative of preventing Afrodescendants from becoming landowners as a strategy to maintain the logic of wealth production, which resulted in a hard opposition to the racial blackening in Brazilian urban and rural lands. Moreover, the coloniality of power emerges from the manifestations of some STF ministers (QUIJANO, 2005), the coloniality of knowledge (LANDER, 2005) and the coloniality of being (MALDONADO-TORRES, 2007), adopt the same understanding of DEM: the quilombos were a concluded experience finished with the end of the slavery regime in Brazil. This research considers as an empirical issue the risk of maintaining colonial semantics to define quilombo, what could result in the loss of rights and guarantees conquered by black men and black women. Then, it asks: what are the meanings of a quilombo brought out by ADI 3239 conception? As assumption, part of the assertion that quilombo meanings express coloniality and decoloniality in dispute, with predominance of the colonial perspective, does not mean definitive solution, considering the permanence of the coloniality of power, of knowledge and of being in the legal and social constitution, which demands the permanence of the processes of resistance.

Keywords: Quilombo. Coloniality of poder. Coloniality of Knowledge. Coloniality of Being. Decoloniality. Decolonial Spin.



Informações sobre o texto

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí como requisito para obtenção do título de mestre em Sociologia. Linha de pesquisa: Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Joaquim José Ferreira dos. Disputa de sentidos do conceito de quilombo. Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7014, 14 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100146. Acesso em: 16 maio 2024.