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Liberdade religiosa, evangelização e proselitismo:

um ensaio sobre o entendimento do STF no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 146.303/RJ em confronto com o caso Arhuaco

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Reflete-se sobre o transconstitucionalismo aplicado a povos indígenas que contam com ordenamento próprio e que se configuram de forma diferente de um estilo de organização influenciado pelos dogmas cristãos.

RESUMO: As religiões universais, em regra, possuem um elemento em comum, qual seja a busca pela divulgação de seus dogmas e a conversão de adeptos. O presente ensaio busca apresentar dois diferentes julgados em que se analisam as atividades proselitistas e evangelizadoras, sendo um deles proferido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e outro pela Corte Colombiana. Por meio de uma pesquisa documental e bibliográfica será possível concluir por uma inclinação do STF à permissão de atividades evangelizadoras, diferenciando-se do caso Arhuaco.

Palavras-chave: Evangelização; proselitismo; STF; Caso Arhuaco.


1 INTRODUÇÃO

A liberdade religiosa, associada aos direitos fundamentais de primeira geração, é definida por José Afonso da Silva (2014) como sendo aquela responsável por garantir liberdade de crença, de culto e de organização religiosa. A proteção conferida a essa liberdade foi expressamente prevista pela Constituição Federal de 1988. Logo no art. 5º, inciso VI, foi determinada a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, dando ênfase ao livre exercício dos cultos religiosos, bem como à proteção aos locais de culto e a suas liturgias. A prestação de assistência religiosa também foi garantida aos que estivessem situados em entidades civis e militares de internação coletiva (BRASIL, 1988).

A Constituição de 1988 também permitiu a possibilidade de prestação de serviço alternativo para aqueles que, em tempo de paz, alegarem motivo de consciência como o decorrente de crença religiosa para a não prestação do referido serviço (BRASIL, 1988). Ainda no texto constitucional, o art. 19 estabeleceu uma relevante vedação aos entes federativos. Ficou proibido promover, subvencionar ou obstar cultos religiosos, assim como manter aliança ou relações de dependência, ressalvada a existência de interesse público. Do dispositivo, observa-se a intenção de promover o distanciamento entre religião e atuação Estatal, vislumbrando-se a consolidação normativa de um Estado laico ao adotar, como regra, um caráter negativo de atuação estatal.

A busca por um Estado neutro, no entanto, não foi uma novidade introduzida pela Constituição de 1988. As relações diretas entre o Estado brasileiro e a igreja foram formal e parcialmente obstadas com o Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, quando se pôs fim ao regime de padroado, proibindo a intervenção federal e dos estados federados em matéria religiosa, consagrando a liberdade de culto.

A ruptura das relações entre Estado e religião, todavia, nunca aconteceu efetivamente. Muitas ainda são as relações entre ambos, como os feriados religiosos, predominantemente católicos, vigentes em todo o país até os dias de hoje. Todavia, continuar a expressar esse tipo de limitação no texto constitucional é reconhecer que a busca por esse ideal não pode ser deixado de lado.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 também deu atenção à liberdade religiosa ao prever que todos os seres humanos poderiam invocar os direitos e as liberdades proclamados naquela Declaração, independentemente de sua religião, cor, sexo, etc. O art. 18, por sua vez, inovou ao proteger não só a liberdade de pensamento, consciência e de religião, mas a discricionariedade de mudar de convicção, inclusive a religiosa. Além disso, protegeu o direito de qualquer pessoa manifestar sua religião ou convicção, seja sozinho ou em público, em ambiente privado ou não. Esse ponto, como se verá adiante, é um importante argumento utilizado pelos Ministros do STF ao julgar os limites da evangelização (ONU, 1948).

Além disso, a Declaração estabeleceu que todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que significa a proteção ao direito de não ser calado em razão de suas crenças ou opiniões. Foi responsável, ainda, por abordar a necessidade de buscar, por meio da educação, a expansão da ideia de pluralidade, reforçando os direitos do homem e das liberdades fundamentais como uma forma de compreender e tolerar os grupos raciais ou religiosos pela manutenção da paz (ONU, 1948).

A Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais determinou a proteção aos valores e às práticas sociais, culturais religiosas e espirituais dos povos indígenas. Observa-se, nesse dispositivo, a referência à religião como sendo intrínseca ao elemento cultural indígena, o que é um aspecto valioso, especialmente ao se falar em proteção aos direitos culturais e à liberdade religiosa (BRASIL, 2019).

No Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, determinou a punição dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, fixando penalidades para aqueles que cometerem as condutas enumeradas no texto legal, dentre elas, a descrita no art. 20, qual seja a de Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a ser punida com reclusão de um a três anos e multa (BRASIL, 1989).

Este ensaio busca, no contexto apresentado, abordar, de forma prática, dois julgados que tratam sobre o proselitismo e a propagação de religiões universalistas, sendo um dos julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o outro pela Corte Colombiana. Será possível analisar os argumentos utilizados de forma a apontar as dificuldades em cada um, concluindo-se pela fragilidade da temática ante a constatação de um impasse entre direitos fundamentais.

2 OS JULGADOS

Ao tratar da dimensão multicultural dos direitos humanos, Boaventura de Sousa Santos (1997) apresentou a chamada hermenêutica diatópica. Segundo tal teoria, cada cultura possui um topoi diferente. Topoi, que significa lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura (SANTOS, 1997, p. 23), atuaria como o núcleo duro de uma crença, ou seja, premissas que não se discutem, pois já foram fortemente internalizadas por um povo. A hermenêutica diatópica, nesse contexto, consiste em entender que os topoi, por mais fortes e completos que pareçam, não são perfeitos, mas incompletos.

Sua incompletude só é percebida por aquele que se afasta um pouco de determinada cultura e a observa com certo distanciamento. O objetivo da hermenêutica diatópica, portanto, não é atingir a completude, mas ampliar a consciência da incompletude mútua por meio do diálogo, promovendo a pluralidade cultural (SANTOS, 1987).

Significa dizer que, na prática, cada indivíduo crê que está professando sua fé dentro da religião correta e que aquela é a melhor para ele, sendo que esse movimento de certeza de sua crença já contém uma intrínseca hierarquização (BRASIL, 2018, p. 3, apud FUZIGER, 2012). O trecho, em consonância com a teoria anteriormente abordada, foi citado no voto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, durante a discussão do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 146.303 do Rio de Janeiro, de 06 de março de 2018.

O Supremo Tribunal Federal passou a discutir os limites da liberdade religiosa ao decidir sobre a possibilidade de aplicação ou não das leis penais a um pastor da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo acusado e condenado em primeiro grau pela prática do crime previsto no art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/1989. O crime teria se consumado quando o réu proferiu duras críticas a certas religiões, afirmando que determinadas crenças seriam prostitutas espirituais. Em síntese, o discurso do réu era marcado por expressões que transpareciam a convicção de superioridade da sua fé em relação a religiões consideradas pagãs.

Durante o julgado, foi proposta a intenção de investigar quais seriam as circunstâncias nas quais o proselitismo religioso estaria ou não de acordo com os ditames constitucionais, analisando os limites das liberdades religiosa e de expressão para que não sejam configuradas como condutas discriminadoras e preconceituosas (BRASIL, 2018).

Enfatizou-se que não se deve concluir, automaticamente, por preconceito ou discriminação ao se deparar com discursos que apontem diferenças ou até mesmo certo tom de superioridade entre religiões. Isso significaria tolher as liberdades individuais daqueles que desejam professar sua fé. O que se defendeu no voto compreende a ideia combatida pela hermenêutica diatópica, segundo a qual cada religião se vê como a única verdadeira, uma característica intrínseca às crenças religiosas.

Sendo assim, Fachin opinou no sentido de que a ideia de superioridade não é, de forma isolada, uma conduta criminosa. Afinal, defendeu que, para configurar discriminação, não basta que um grupo se afirme superior a outro sem extrair qualquer consequência dessa opinião. Essa ideia só poderia ser reprovável, por exemplo, caso buscasse explorar, dissolver ou atingir o outro em razão de sua crença. Dessa forma, concluiu o ministro, o discurso que, para alcançar fiéis, utiliza-se de argumentos próprios da fé, não se qualifica intrinsecamente como discriminatório.

O voto do Relator foi, portanto, no sentido de não criminalizar a conduta do réu, que estaria amparado por sua liberdade religiosa. Dias Toffoli, apesar de ter votado em sentido oposto na resolução do caso, concordou com o Relator ao afirmar que o direito à liberdade de crença está vinculado ao direito à livre manifestação do pensamento, seja qual for o pensamento religioso. Para ele, configuraria verdadeira contradição tolher a exteriorização do pensamento de alguns para proteger a liberdade de crença de outros (BRASIL, 2018).

Toffoli reforçou que a liberdade de crença prevista no art. 5º, VI, da Constituição Federal não estaria limitada ao direito de possuir um pensamento religioso, pois a possibilidade de o destinatário da evangelização se autodeterminar de acordo com suas convicções também estaria protegida. O ministro defendeu, ainda, a necessidade de distinguir o discurso religioso que tem como base sua própria crença e as razões que levaram o indivíduo a crer em determinada vertente espiritual e o discurso sobre a crença alheia buscando inferiorizá-la. O primeiro, classifica Toffoli, é a conduta protegida pela liberdade de crença religiosa. A outra conduta, por sua vez, ultrapassaria os limites de proteção, pois estaria violando um direito alheio ao atacar uma outra crença.

Dessa maneira, defendeu a existência de limites nas atividades evangelizadoras devido à frágil correspondência entre a propagação de sua religião e o deliberado propósito de aniquilamento de outra, relacionando, inclusive, com os acontecimentos que marcaram a história.

Ainda na discussão sobre o caso, o ministro Gilmar Mendes, em seu voto, afirmou que a proteção às liberdades individuais não significa indiferença estatal. Argumentou que, em alguns casos, é necessário que haja comportamento positivo de entes públicos, com a finalidade de proteger certas crenças porventura ameaçadas ou em estado de vulnerabilidade (BRASIL, 2018).

Sendo assim, a conduta que tenha por objetivo incentivar o ódio público contra qualquer indivíduo, povo ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. O caso teve como desfecho a aplicação das leis penais ao réu, pois, apesar do entendimento esposado pela Corte da não limitação das condutas evangelizadoras, a maioria dos Ministros entendeu que a conduta da parte ultrapassou os limites da proteção dada às suas convicções religiosas.

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Nesse contexto, ainda que a Corte não tenha analisado um caso especificamente voltado para a evangelização indígena, o acórdão em comento trouxe uma valiosa conclusão para o tema tratado na presente dissertação. Isso porque passou a analisar a evangelização segundo parâmetros jurídicos, transparecendo haver uma forte inclinação do Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade de limitar as atividades evangelizadoras em razão das proteções conferidas à liberdade religiosa, a qual, segundo entendimento esposado, abrange também as condutas comissivas provenientes da fé.

Também é possível vislumbrar uma breve introdução à temática no voto do ministro Gilmar Mendes ao mencionar a necessidade de proteção a crenças vulnerabilizadas. Ainda assim, o acórdão não menciona essas possibilidades, dando ênfase à impossibilidade de limitar práticas evangelizatórias. Outra crítica que pode ser feita ao acórdão analisado é que ele só faz referência à aplicação de limites à evangelização quando essa atividade extrapole a esfera da licitude, como ocorreu no caso concreto em que o réu acabou por ofender gravemente outras religiões. A questão é que as atividades evangelizadoras, mesmo que exercidas de forma regular e sem ofensas diretas e explícitas a outras crenças, também podem atingir de forma negativa a cultura de outros povos. Por isso, o acórdão do STF acabou por deixar uma lacuna ao não abordar os limites passíveis de aplicação ainda quando a evangelização, como forma de expressão das religiões universalistas, não ultrapassar a barreira da licitude.

A prática regular da busca por conversão de fiéis também pode ter caráter nocivo a outras culturas se praticada sem parâmetros ou limites, especialmente em relação aos povos indígenas, que já demonstram certa vulnerabilidade cultural e, sobretudo, religiosa, desde o Brasil colonial. Exemplo da limitação à evangelização sem indícios de ilicitude e em razão da proteção de direitos culturais foi o entendimento adotado pela Corte Constitucional Colombiana no caso Arhuaco. Convém, agora, conhecer um dos casos mais emblemáticos que envolveu a evangelização indígena naquele país.

O desfecho do caso apreciado pelo Supremo Tribunal Federal foi pela aplicação da Lei Penal ao réu por esse ter ultrapassado os limites da liberdade religiosa e ter adentrado na esfera da inferiorização e agressão a outras religiões. O caso não envolvia a evangelização indígena em si, mas trouxe uma análise bastante robusta acerca do proselitismo e da evangelização sob a ótica do STF, o que pode ser aplicado em casos semelhantes em uma possível judicialização. Conforme entendimento dos ministros, as mencionadas práticas são comuns às religiões universalistas e estão protegidas pela liberdade religiosa, que envolve não só a liberdade de consciência, mas também a exteriorização da fé.

Outro caso que merece menção é o denominado caso Arhuaco. Apesar de não ter ocorrido no Brasil, envolveu variantes muito peculiares e merecedoras de atenção. O caso ocorreu na Colômbia e chegou à Corte Constitucional do país em 1998, quando teve seu desfecho. Naquele ano, vale ressaltar, já havia sido promulgada a Constituição Colombiana de 1991, na qual foi reconhecido o caráter multiétnico e plural do país. Esse foi um importante marco normativo para os povos indígenas colombianos, que sempre buscaram ter reconhecidos direitos culturais de forma mais efetiva, bem como a liberdade de consciência.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer, conforme explica Fajardo (2009), a existência de 3 grandes ciclos de reformas constitucionais em matéria indígena nas últimas décadas na América Latina. O primeiro ciclo, denominado ciclo multicultural, ocorreu a partir dos anos oitenta e é caracterizado pela introdução de direitos individuais e coletivos na seara indígena, como a identidade cultural. O Brasil fez parte desse primeiro ciclo ao trazer elementos protetivos na Constituição de 1988.

O segundo ciclo, denominado ciclo pluricultural, ocorreu nos anos 90 e foi responsável pela incorporação dos direitos enumerados pela Convenção 169 da OIT nas legislações nacionais. O objetivo era fortalecer direitos à identidade e à diversidade cultural, desenvolvendo o conceito de nação multiétnica e de estado pluricultural. O ciclo, responsável por introduzir a noção de diversidade, expandiu-se pela América Central e do Sul em países como Colômbia (1991) e Venezuela (1999) (FAJARDO, 2009).

O terceiro ciclo, denominado ciclo plurinacional, teve início durante a primeira década dos anos 2000 e trouxe à tona uma importante demanda indígena, qual seja, a do reconhecimento de seus povos como nações originárias e não apenas como detentoras de culturas diversas. O terceiro ciclo representa, portanto, a busca por verdadeiros Estados Plurinacionais, visando à atribuição de maior autonomia aos povos indígenas, com vistas a serem reconhecidos não só como uma cultura distinta, mas como povos que seguem suas próprias decisões, pois dotados de autonomia (FAJARDO, 2009).

Segundo Lozano (2009), o cenário colombiano tem sido muito discutido em razão do reconhecimento de alguns direitos indígenas na Constituição promulgada em 1991, especialmente no que se refere à autonomia. Outro fator tem sido a abordagem desses direitos por meio da jurisprudência da Corte Constitucional do país, que vem proferindo decisões de forma progressista, chamando a atenção de estudiosos. A decisão do caso Arhuaco certamente foi uma delas.

Os Arhuacos ou Ikas são descendentes dos antigos tayronas, uma das mais importantes civilizações pré-colombianas do país. Estima-se que, atualmente, a comunidade soma aproximadamente 12.000 membros. Para os Arhuacos, vale esclarecer, a religião está diretamente ligada a todos os elementos sociais, desde a organização elementar, até a política e a economia, seja na vida pública ou na vida privada. Essa sociedade também tem um dos seus pilares a vida em comunidade, primando-se sempre a coletividade em detrimento do individual (COLÔMBIA, 1998).

Nesse contexto, sentindo uma ameaça às suas organizações sociais e religiosas, as autoridades indígenas arhuacas ordenaram a expulsão da Igreja Pentecostal Unida da Colômbia IPUC de seu território. Como justificativa, alegaram que a mencionada igreja influenciava negativamente os hábitos e costumes da comunidade, pois julgavam abertamente como satânicos os ritos que os arhuacos praticavam. Além disso, realizavam atividades evangelizadoras na região, difundindo a informação de que os ritos tradicionais indígenas não passavam de farsas, desafiando os líderes espirituais da comunidade (COLÔMBIA, 1998).

O problema é que alguns indígenas já tinham se convertido à fé cristã, motivo pelo qual passaram a exigir do Estado a proteção de sua liberdade de culto. Inconformados com a situação, o representante legal da Igreja Pentecostal Unida da Colômbia (IPUC) e 31 indígenas arhuacos, em 28 de maio de 1997, propuseram demanda judicial contra autoridades da comunidade indígena Arhuaca por considerar que essas teriam violado diversos direitos fundamentais dos requerentes, como a integridade pessoal, o livre desenvolvimentos da personalidade, a liberdade de consciência, as liberdades religiosa e de culto, a liberdade de expressão, a honra e a liberdade pessoal (COLÔMBIA, 1998).

Os requerentes argumentaram, ainda, que fechar a igreja e expulsar o pastor responsável violaria o princípio da tolerância, o que iria de encontro ao pressuposto pluralista instituído no país. O objetivo da ação, portanto, era reverter a ordem de expulsão dos líderes indígenas locais, de forma que a atuação da IPUC voltasse a ser como antes. A lide chegou ao judiciário colombiano e gerou grandes discussões até alcançar a Corte Constitucional do país (COLÔMBIA, 1998).

O Pleno da Corte Constitucional colombiana decidiu confirmar, em 18 de setembro de 1998, a sentença proferida em 31 de julho de 1997 pelo tribunal de origem para reafirmar a possibilidade de as autoridades indígenas promoverem a expulsão da IPUC. A Corte Constitucional acabou por atender ao clamor das autoridades arhuacas, que argumentaram que o mesmo Estado que teria permitido durante mias de 67 anos a missão capuchina não poderia impor agora a Igreja Pentecostal (COLÔMBIA, 1998).

O Pleno esclareceu que diversas práticas tradicionais dos Ika contrariam o evangelho cristão, citando como exemplo o uso da coca e da ingestão de bebidas alcoólicas. Além disso, citou as cerimônias batismais e matrimoniais, que seriam consideradas como atos de feitiçaria pelos cristãos em razão da invocação de espíritos, assim como o uso de amuletos, a adivinhação etc (COLÔMBIA, 1998).

Mesmo assim, o representante da igreja pentecostal afirmou, em manifestação processual, que não proibiria os fiéis indígenas de praticar rituais tradicionais, deixando essa decisão a critério da consciência de cada indivíduo. Isso porque os dogmas do proselitismo religioso da IPUC estariam baseados em três princípios: a) o cumprimento do versículo bíblico que diz ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura, consistindo na afirmação de dogmas da bíblia que buscam promover a estruturação de uma relação pessoal entre indivíduo e Deus por meio da adoração e oração; b) o ensinamento de princípios de caráter moral e valores pessoais e familiares e c) o ensinamento de princípios de ordem destinados à paz comunitária, à vivência pacífica, ao trabalho e à prosperidade da comunidade (COLÔMBIA, 1998).

Ainda assim, o Pleno da Corte Constitucional Colombiana argumentou no sentido de que os dogmas e as práticas religiosas dos indígenas pertencentes à IPUC contradizem elementos centrais da cosmovisão Ika. A Corte destacou os principais elementos dessa contradição ao citar a organização político-religiosa da comunidade, a obediência e o respeito às autoridades tradicionais, o acatamento de normas tradicionais que estabelecem como obrigação as oferendas às entidades religiosas, dentre outras. Por esse motivo, a Corte defendeu que o exercício da liberdade religiosa pela IPUC ameaçava gravemente o direito fundamental à integridade cultural da população Ika (COLÔMBIA, 1998).

A Corte continuou a destacar que as particularidades da cultura Arhuaca, caso fossem confrontadas com uma mudança no pensamento religioso, passariam por um processo profundo e radical de substituição cultural. Explicadas as diferenças culturais, a Corte colombiana concluiu pela patente incompatibilidade entre a cosmovisão Ika e a doutrina evangélica, frisando o caráter individualista dos dogmas e credos evangélicos, que se chocam frontalmente com a concepção de sujeito dos dogmas Ikas (COLÔMBIA, 1998).

Esclareceu que os princípios trazidos pela Constituição do país conferem às comunidades indígenas formas de governo e de controle social que as diferenciam de outras comunidades. Seria, em suma, um status especial que se manifestaria no exercício de faculdades normativas e jurisdicionais com valores culturais próprios no âmbito de seu território (COLOMBIA, 1998).

Destacou a ideia de que se o juiz constitucional não der a devida importância ao ponto de vista interno daquele povo, acabaria por cercear as decisões da comunidade e de seus membros, violando o direito à diversidade étnica e cultural. Afirmou, ainda, que mesmo que se taxasse de intolerante a expulsão da igreja, esse argumento perderia relevância quando se considerasse a prática cultural do povo arhuaco.

Uma consideração que merece destaque no acórdão é a que faz um contraponto entre a neutralidade estatal e a neutralidade das autoridades arhuacas. A Corte frisou que a Constituição daquele país exige que as autoridades públicas atuem com neutralidade em relação a todo e qualquer culto e religião, manifestando a existência de um Estado laico. No entanto, frisou que, em uma comunidade religiosa, seus órgãos não estão obrigados a tanto (COLÔMBIA, 1998).

Nessa linha de pensamento, a Corte defendeu a possibilidade de as comunidades escolherem, de forma autônoma, o grau de abertura às intervenções externas, baseado no próprio princípio da diversidade cultural. Por fim, concluiu que a comunidade Arhuaca, como a principal interessada na proteção de seus interesses, estaria apta a deliberar, de maneira autônoma, quem poderia ou não entrar em seu território, sendo a ela facultada a decisão de haver a instalação de grupos estranhos à sua cultura. Isso tudo com base no texto da norma contida no art. 669, do Código Civil colombiano.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme entendimento da Corte Constitucional Colombiana, a limitação imposta pela comunidade Arhuaca não configurou uma conduta arbitrária, pois fundou-se na proteção da integridade cultural de seu povo, encontrando respaldo normativo no art. 7º da Constituição daquele país. Definiu, ainda, que as liberdades de religião e de culto da IPUC estariam garantidas, pois ficou comprovado que a igreja pentecostal estava desenvolvendo suas atividades em localidades próximas à região. Sendo assim, os índios que desejassem participar de cultos e outras manifestações de fé poderiam facilmente deslocar-se até lá.

Se, por um lado, é arriscado promover intervenções coercitivas ao rejeitar influências externas a uma comunidade por ser a interação entre os povos uma consequência natural da existência comum, por outro, garantir a liberdade religiosa permitindo o proselitismo seria deslegitimar as autoridades e desprezar a cosmovisão daquele povo, configurando uma intervenção em relações políticas tradicionais (SANTANA, 2016).

É dizer: qualquer solução apresentada pela Corte Colombiana ao caso concreto geraria discussão, polêmica e discordâncias. Isso porque a questão põe em rota de colisão direitos fundamentais: a liberdade religiosa, os direitos culturais e a autodeterminação, tornando inviável que se despreze um em detrimento do outro de maneira absoluta. Todavia, da análise do teor das decisões das Cortes brasileira e colombiana, percebe-se uma diferença marcante entre ambas: a posição de neutralidade do Supremo Tribunal Federal face às práticas evangelizadoras. Apesar de o caso analisado pelo STF não ter abordado o tema indígena, não passando por discussões e questionamentos especificamente tratados na decisão colombiana como a proteção aos direitos culturais , ainda assim é possível constatar a formação introdutória de um precedente, qual seja o da impossibilidade de limitar as atividades evangelizadoras pelo Estado em razão das implicações do direito fundamental à liberdade religiosa.

Em sentido oposto, a Corte Colombiana decidiu por apoiar a decisão local que limitou a atuação evangelizadora em território habitado por uma comunidade tradicional, defendendo a intervenção do poder público a fim de estabelecer limitações à liberdade religiosa cristã em razão da proteção cultural destinada a um povo que enfrentou dificuldades em manter suas crenças religiosas durante séculos. Essa decisão, inclusive, muito se aproxima do que Neves (2014) denomina de transconstitucionalismo. Segundo o teórico, os conflitos não podem e não devem ser solucionados unicamente pelas normas estatais. Ele explica haver pontos cegos que justificam a necessidade de se pensar em um movimento transconstitucional, de forma que, se o ordenamento de certo Estado não for suficiente para enxergar o conflito de forma global e resolvê-lo de maneira eficiente, deve-se aplicar outros ordenamentos.

Ao aplicar a ideia do transconstitucionalismo a povos indígenas que contam com ordenamento próprio e que se configuram de forma diferente de um estilo de organização influenciado pelos dogmas cristãos, a imposição unilateral de direitos universalistas da sociedade não-indígena significaria o encolhimento de uma etnia. Nas palavras de Neves (2014, p. 223), seria como se não estivéssemos na mesma sociedade mundial, com colisões e conflitos entre domínios de comunicação e jogos de linguagem.

O transconstitucionalismo significa, nesse aspecto, reconhecer a coexistência de ordenamentos secundários dentro do ordenamento jurídico majoritário, devendo-se proceder à sua análise sempre que necessário e a fim de preencher os pontos cegos presentes em ambos os ordenamentos, sem que haja imposições unilaterais em razão da aplicação de pontos de vista dominantes.

Por fim, convém destacar, mais uma vez, que as situações analisadas pelas Cortes Constitucionais desses países foram distintas. É plenamente possível que o STF, caso se depare com circunstâncias semelhantes às analisadas pela Corte Colombiana, possa decidir de maneira correspondente. Entretanto, toda Corte apresenta uma linha de pensamento que embasa e confere coerência aos seus julgados. Sobre a evangelização, foi visualizado um entendimento favorável, o que pode sim ser aproveitado para solucionar casos futuros, inclusive os que envolvam evangelização indígena.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentença SU-510/98, 18 de setembro de 1998. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos Culturais como Direitos Fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília. Brasília Jurídica, 2000.

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SANTANA, Aline Oliveira de. O direito ao próprio direito: modelos latino-americanos de autonomia política indígena. Dissertação apresentada à Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. São Paulo, 2016.

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 37 ed., São Paulo: Malheiros, 2014.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Vitória Larissa Dantas. Liberdade religiosa, evangelização e proselitismo:: um ensaio sobre o entendimento do STF no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 146.303/RJ em confronto com o caso Arhuaco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6961, 23 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99006. Acesso em: 27 abr. 2024.

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