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O agronegócio e a responsabilidade administrativa ambiental

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Os temas ambientais passaram a interferir no agronegócio e o futuro do agronegócio passou a depender da preservação do meio ambiente.

I Intervenção do direito ambiental.

A intervenção do direito ambiental em todas as áreas da atividade humana é uma realidade cada vez mais frequente e intensa.

Dispõe a Constituição que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.[1] Em decorrência, pela prática de um único fato, a responsabilidade ambiental de pessoa física ou jurídica,[2] pode alcançar três esferas jurídicas: a) administrativa; b) civil; e c) criminal.  

Nem poderia ser diferente, devido à essencialidade da qualidade ambiental para as presentes e futuras gerações[3] e da irrecusável constatação de que o uso humano, apesar da sua indispensabilidade à subsistência de todos nós, modifica as características originais e pode esgotar os recursos ambientais finitos.[4]


II Agronegócio e o direito ambiental.

O agronegócio não está à margem desta intervenção normativa ambiental nem do desafio que se impõe a todas as atividades de equilíbrio entre  o desenvolvimento, a preservação ambiental e a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

Tanto quanto qualquer outra atividade econômica, está adstrito às regras protetivas de recursos naturais, a licenciamentos e à vigilância pelos órgãos de controle. Apesar da relevante condição de fonte produtora de alimentos e da forte participação no PIB brasileiro, a agricultura e a pecuária são atividades com intensa interação e influência no ambiente e consumo de recursos hídricos.[5]

No Rio Grande do Sul, por exemplo, a quase totalidade da área de cultivo do arroz é irrigada com água captada principalmente de rios, açudes e lagoas, com consideráveis impactos sobre áreas úmidas, de contaminação de recursos hídricos, das comunidades aquáticas e da saúde da população com agrotóxicos e outros insumos químicos, além de elevada captação de água concorrendo com a sua disponibilidade para outros usos, e a salinização do solo,[6] em que pese o enorme papel nutricional e a importância socioeconômica no Estado e no país da cultura de arroz por irrigação superficial.

No Brasil, possuidor do maior rebanho comercial do mundo, imensas áreas foram desmatadas para a criação e o plantio de grãos destinados à alimentação dos animais. A pecuária, ao desmatar florestas para plantio de grãos e pastagens aos animais, destrói habitats e extingue espécies, com expressivo volume de recursos hídricos nestas atividades além do consumo direto pelos rebanhos. O gado emite metano e gera resíduos em índices 86 vezes maiores do que os dos humanos. A utilização de elementos químicos na produção dos alimentos prejudica o sistema reprodutivo dos animais e se reflete na saúde dos consumidores finais.

Bem verdade que nos últimos tempos o agronegócio tem adotado novas práticas e avançado no rumo da sustentabilidade, de conservação dos recursos naturais e redução da degradação ambiental, com o auxílio da ciência, biotecnologia, tecnologia da informação, mecatrônica, genética, química, biologia etc. A agricultura de precisão diminui custos e aumenta ganhos pela maior produtividade por unidade de terra, sem a necessidade de ampliar as áreas de cultivo. Colabora para a maior eficiência é menor agressividade ambiental do manejo de pragas, plantas daninhas e doenças. Permite que a produção do campo cresça e atenda às exigências alimentares, num modelo econômico, social e ambientalmente equilibrado, de sustentabilidade e promoção da qualidade de vida, a ensejar a compatibilização necessária entre a produção com menos solo, água e insumos.


III Agronegócio e responsabilidade administrativa ambiental.

Considera-se infração administrativa ambiental, toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente,[7]  previamente prevista em norma legal, apurada e sancionada pelo órgão da administração ambiental competente.

Diferentemente da infração penal e do ilícito civil, a infração administrativa é autuada e o sancionamento aplicado pela autoridade administrativa, não judicial. Sua configuração pressupõe uma conduta voluntária, por ação ou omissão, dolosa ou culposa,[8] violadora de um comando emergente de norma jurídica, que não necessariamente precisa causar dano ou prejuízo. Diz a doutrina que o direito administrativo sancionador, por ser um direito de risco, tem a missão de prevenir eventos potencialmente danosos, não a de evitar a ocorrência de resultados danosos.[9]

Assim, a essência da ilicitude da infração está na relação de contrariedade da conduta à norma, com ou sem resultado material. Exemplificando, constitui infração ambiental, sancionada com multa de R$ 500,00 a R$ 10.000.000,00, a utilização de recursos ambientais em atividade considerada efetiva ou potencialmente poluidora, sem licença do órgão ambiental competente,[10] ainda que não resulte em qualquer dano ambiental, enquanto, também configura infração administrativa ambiental, a causação de poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade, cuja exigência de resultado dano é da essência. 

Apurada através do devido processo administrativo, com plena vigência do contraditório e absoluto respeito à ampla defesa, o reconhecimento da prática de ilícito administrativo ambiental pressupõe tipicidade do fato, prévia previsão legal,  tal qual o direito penal exige,[11] e pode resultar na aplicação das penalidades de advertência, nas infrações de menor lesividade, assim consideradas aquelas em que a multa máxima cominada não ultrapassa o valor de R$ 1.000,00, ou que, no caso de multa por unidade de medida, a multa aplicável não exceda a este valor; multa simples, no valor mínimo de R$ 50,00 e máximo de R$ 50.000.000,00; multa diária, incidente sempre que a infração se prolongar no tempo, que não será inferior ao mínimo nem superior a 10% do máximo;[12] apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora e demais produtos e subprodutos objeto da infração, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; destruição ou inutilização do produto; suspensão de venda e fabricação do produto; embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas; demolição de obra; suspensão parcial ou total das atividades; e restritiva de direitos.[13] 

As infrações ambientais administrativas mais comuns no meio rural decorrem da  falta de licenciamento ou de outorga prévia, utilização de agrotóxicos ou armazenagem em desacordo com a legislação específica, abertura de campo nativo sem licença, intervenção ou supressão de vegetação em áreas de preservação permanente, falta de averbação da reserva legal e lançamento irregular de efluentes.

Na aplicação das penalidades, que podem ser cumuladas, a autoridade administrativa, à luz do princípio da proporcionalidade, deve escolher a mais adequada às circunstâncias concretas do fato, aos antecedentes e à situação econômica do autor,[14] oferecendo fundamentação suficiente a respeito da escolha feita.

Todavia, ao invés de uma decisão condenatória no âmbito administrativo, no plano federal, o Decreto 9.760/2019 oportuniza, prevê e estimula a conciliação com vistas a encerrar os processos administrativos por infrações administrativas ambientais, estabelecendo que, por ocasião da lavratura do auto de infração, o autuado será notificado para, querendo, comparecer ao órgão ou à entidade da administração pública federal ambiental em data e horário agendados, a fim de participar de audiência de conciliação ambiental,[15] ou, e preferencialmente, conforme previsto no art. 47 da Instrução Normativa Conjunta 01/2021, do Ministério de Meio Ambiente, do IBAMA e do ICMBio, para participar de audiência por meio eletrônico.

A respeito do objeto do acordo federal, Maria Clara Gomes e Stella Kusano, em artigo publicado no sítio Migalhas,[16] ressaltam duas possíveis interpretações da legislação reitora da matéria. [17] Uma, exageradamente redutora do âmbito da negociação, pois limitada ao pagamento com desconto, parcelamento ou conversão da multa simples, sem qualquer oportunidade para discussão do mérito da autuada. Outra, mais ampla e  consentânea com a própria finalidade visada pela conciliação de economia processual e celeridade para o encerramento do processo administrativo, permissiva da abertura do escopo do debate instaurado pela audiência de conciliação para permitir a avaliação das circunstâncias específicas e do mérito de cada caso e, com isso, buscar uma composição que proteja de forma eficiente o meio ambiente, concluindo que a realização de conciliação ambiental nesses termos não significaria prejuízos ao meio ambiente, na medida em que sua obrigação de reparar o dano ambiental, caso aplicável, não poderia ser afastada. [18]

Da nossa parte, tais acordos, para efetivo atingimento da pretendida eficiência que os inseriu no texto normativo federal, devem ter uma feição de acordos integrativos, resultantes de negociações num verdadeiro ganha-ganha, tipo win-win, em que cada uma das partes tem o sentimento de haver atingido seus objetivos dentro de uma negociação criativa de valor para ambas. Pela interpretação restritiva das disposições legais concernentes, o objeto da negociação é praticamente irrisório e desatende, ao nosso ver, a finalidade que os inspirou, pois dá margem a uma negociação distributiva,  em que só uma das partes é privilegiada, tipo ganha-perde, uma delas sai perdendo ou ganhando menos, sem equilíbrio nos seus proveitos.

Profissionalmente, como promotor de Justiça, secretário estadual do meio ambiente e mais recente na advocacia, tenho experimentado diversos conflitos entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico.


IV Prevenção indispensável.

Dissemos que há um tripé de responsabilização jurídica pela prática de um mesmo fato infracional ao meio ambiente.

A responsabilização civil, por exemplo, é uma gravosa consequência de ordem patrimonial, pois importa na reparação integral do dano ambiental causado pela atividade rural, o que pode atingir elevadíssimas cifras, dependendo das circunstâncias do fato.

Todos nós somos garantidores da preservação ambiental, razão pela qual temos o dever de repararmos os danos ambientais que não tenham prevenido, ou de indenizarmos na impossibilidade de reparação. Dever objetivo e eventualmente solidário entre corresponsáveis,[19] pautado na teoria do risco integral.[20] Dispõe a Constituição, no art. 225, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, sem exigência de culpa para sua reparação, sendo suficientes a comprovação da conduta lesiva e do nexo de causalidade com o evento danoso.

Diferentemente da administrativa, a responsabilidade civil por dano ambiental é puramente objetiva.[21] Prescinde de dolo e culpa, de atividade licenciada ou não licenciada, perigosa ou não perigosa, da licitude ou ilicitude do fato determinante, porque o uso dos recursos ambientais não pode ser à custa da degradação. A perícia indicará a extensão territorial do fato e a indenização, diverso do que ocorre com a responsabilidade civil, não é em favor de uma determinada pessoa, mas de grupos indeterminados de pessoas, tendo em vista o sentido coletivo do bem jurídico do meio ambiente.

Responsabilidade que segue o bem imóvel e abrange o sucessor da área degradada.22] Os danos ambientais pré-existentes à aquisição são transferidos com a própria área ao adquirente, independentemente de qualquer indagação a respeito de boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal que não o que se estabelece pela titularidade do domínio.[23]A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consolidada na Súmula 623 e recentemente reafirmada por sua Primeira Turma no julgamento de Agravo de Instrumento no Recurso Especial 1869374, reconhece que a responsabilidade civil por danos ambientais adere à propriedade, como obrigação propter rem, sendo possível cobrar do atual proprietário do bem sua reparação, independentemente de ter sido ele o causador do dano.[24] Assim, o comprador, mesmo sem culpa, pode ser condenado ao pagamento da indenização por danos ambientais, isolada ou conjuntamente com o vendedor que causou o dano, com direito a regresso, mas em outro processo judicial.

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Outra séria consequência advém da responsabilização criminal, já que se traduz no risco de segregação da liberdade, pela prisão, envolvendo polícia, justiça penal e antecedentes. A Lei dos Crimes Ambientais considera como tais vários fatos que também são tipificados como ilícitos administrativos ambientais contra a flora, a fauna, poluição etc., com apenamentos rigorosos. Aliás, e excepcionalmente no sistema jurídico penal brasileiro, em que a responsabilidade recai sobre a pessoa física, na matéria criminal a responsabilidade por fato lesivo ao meio ambiente pode projetar-se também na pessoa jurídica.

Pelo exposto, tendo em vista a existência de leis ambientais protetivas em maior número e cada vez mais restritivas, a ampliação da gama de atuação dos órgãos de fiscalização, requintada pelo uso de tecnologias que permitem a constatação de intervenções ambientais irregulares por satélite, o futuro agronegócio exige cautela e prevenção, pois somente assim poderá atender à demanda crescente por alimentos sem o comprometimento das próprias atividades pelo peso de multas, indenizações ou até mesmo a prisão de seus gestores. Os temas ambientais passaram a interferir no agronegócio e o futuro do agronegócio passou a depender da preservação do meio ambiente. Se antes da Constituição de 1988 não havia uma cultura nem temas ambientais que servissem  de pauta ou se refletissem em ações da justiça, fosse pela falta de legislação ou de órgãos de controle, a realidade dos nossos dias, que não se pode deixar de reconhecer, é outra e bem diversa. Passou o tempo da teimosia que implica na revelia aos comandos normativos e na falta de defesa e enfrentamento às autuações, causas de passivos e de incômodos desnecessários. Posturas preventivas e defensivas diante dos eventos não prevenidos se impõem hoje.

Profissionalmente, como promotor de Justiça, secretário estadual do meio ambiente e na advocacia, vivenciamos situação variadas que nos recomendam tais aconselhamentos  como estratégias e condições para a sustentabilidade dos negócios no campo.

A gestão de riscos, quando bem orientada e seguida por atitudes efetivas de toda a cadeia do agro na busca de conformidade, conduz ao sucesso dos negócios, uma vez que a subordinação a medidas legais rigorosas, capazes de embaraçar a atividade econômica, evitam tais gravosas e evitáveis consequências. Embora o significativo crescimento da conscientização social sobre o licenciamento ambiental, ainda há muita irregularidade por falta de informação adequada, o que implica na geração de passivos geralmente não percebidos.

Por isso, reputamos essencial o conhecimento técnico das questões e dos conceitos ambientais, para o que decisivamente colaboram os experts, com a opinio técnica e jurídica, desde que adequada e sem disputas inglórias com os órgãos de controle que distanciam as partes e dificultam as interlocuções (IBAMA, FEPAM, secretarias estadual e municipais do meio ambiente etc.), agravando a situação pela qual só o ruralista sofre a consequência da responsabilização. Não foram poucas as vezes que vimos a possível atenuação de cenários decorrentes de fiscalização ambiental pela birra ou vaidade pessoal do técnico por pretenderem fazer valer a sua posição, independente do interesse do ruralista

Conclusivamente, verdade é que o agronegócio está em permanente desafio. Deve atender às necessidades presentes de produção de  bens essenciais à subsistência em um equilíbrio tal que não comprometa, pelo esgotamento dos recursos naturais, a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades alimentares, sem que disso resulte, todavia, escassez ou falta de alimentos para a população presente e futuras.

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Sobre o autor
Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999. Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG. Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito. Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS. Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos. Possui livros e artigos jurídicos publicados. À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas. Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Carlos Otaviano Brenner. O agronegócio e a responsabilidade administrativa ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6807, 19 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95543. Acesso em: 27 abr. 2024.

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