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Reflexões sobre a segurança pública nas cidades brasileiras

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Cidades inclusivas são uma necessidade inadiável na realidade brasileira, pois representam a efetiva redução da violência.

Certo dia estava eu no aeroporto, esperando a minha vez de embarcar, quando um senhor puxou conversa comigo sobre a sua alegria de passar alguns dias na Europa. Falou que o que mais o atraía não era outra coisa senão o sentimento de liberdade ao poder desfrutar das cidades europeias, percorrendo seus recantos e encantos a pé, descartando o uso de automóveis. Continuou a dizer que a geração atual no Brasil é a geração que não tem fotos nas ruas e nas praças. “Nossos registros são feitos em ambientes como shoppings centers, restaurantes ou em outros ambientes controlados”, disse. Aquelas palavras me fizeram meditar na realidade dos fatos, que às vezes não enxergamos ou não queremos enxergar. Realmente, não temos a liberdade para ganhar as ruas e circularmos livremente, pois estamos, constantemente, assustados com a criminalidade que parece crescer a cada dia. Um dos objetos que portamos e que é muito visado por ladrões são os aparelhos de celular, que mais do que instrumentos de comunicação, são também a nossa câmera fotográfica e uma janela para diversos entretenimentos. Tal objeto é um dos principais alvos da criminalidade nessa escalada da violência urbana. É muito duro dizer, mas a verdade é que estamos cada vez mais dependentes (reféns) desse aparelho que de tão poderoso tem substituído os aparelhos de televisão, a mídia impressa, os livros impressos e diversos outros equipamentos, que hoje se tornaram peças de museu: a) cd player; b) dvd player; c) GPS; etc., para não falar dos mais antigos (e nem tão antigos assim).

Que realidade cruel é essa que se apresenta no Brasil e, em especial, nas grandes cidades brasileiras! Não se pode mais fazer uma simples caminhada sem se preocupar com o risco de ser assaltado a qualquer momento. Algumas pessoas entram em pânico ao andar à noite pelas ruas e se deparar com uma moto com dois passageiros, por exemplo. Tal fato nos faz refletir se temos, efetivamente, o direito de ir e vir declarado pelo nosso Texto Constitucional. Que liberdade é essa que nos torna dependentes de veículos automotores em nossos deslocamentos, mesmo que curtos? Que realidade é essa que nos impede de usufruir dos espaços de recreação e de convivência públicos? Como posso eu me considerar cidadão se não me sinto parte da cidade?; se não sinto o seu pulsar, pois ando apressado através de veículos motorizados? Eis uma breve reflexão que se impõe face o quadro de violência que se apropriou do cenário urbano brasileiro. Que cidades queremos? Uma cidade que sirva apenas como local de habitação ou uma cidade que tenha uma vida social, econômica e cultural ativa? Conceitos geográficos apontam para os shoppings centers como sendo não-lugares, ou seja, espaços desconectados de quaisquer traços culturais locais ou até mesmo regionais. Já percebeu que os shoppings center são quase todos iguais em qualquer lugar do mundo? Nada contra os shoppings centers. Particularmente considero que são espaços agradáveis para circular, para se alimentar e para comprar. O problema não são os shoppings. O problema é não dispor de outros espaços, públicos, onde possamos usufruir, com liberdade e segurança, de seus produtos, serviços e outras utilidades, especialmente os de natureza cultural.

A maior questão que se coloca é: como foi que chegamos ao quadro atual? Quem são os culpados? Onde erramos, enquanto sociedade e onde errou ou ainda erra o Estado? Há alternativas viáveis que permitam mudar essa realidade? Não existe uma resposta direta e pronta para uma problemática tão complexa quanto essa. Muitos fatores estão envolvidos e precisam ser considerados em conjunto. O quadro de violência urbana está associado a fatores como: a) ineficiência nas políticas de emprego e renda; b) alto índice de desemprego; c) ausência do Estado no que diz respeito a infraestruturas e políticas públicas inclusivas; d) falhas no sistema educacional público; e) famílias desestruturadas e violência doméstica; f) ausência de políticas e de investimentos em inteligência nos âmbitos das polícias de segurança pública nos Estados, especialmente para combater o tráfico de drogas; g) ausência de planejamentos urbanos inclusivos e que elevem a competitividade territorial de áreas periféricas; h) ausência de políticas de segurança alimentar baseadas na produção sustentável em cinturões verdes nas adjacências dos grandes centros; i) ausência de uma efetiva política de mobilidade urbana que incluam as áreas com populações mais vulneráveis, ampliando-se o acesso aos transportes públicos; j) ausência de saneamento básico e de ações de combate à poluição, em quaisquer de suas formas; l) deficiências no acesso ao sistema público de saúde; e m) promoção de uma cultura de ostentação associada ao crime. Podemos considerar ainda inúmeros outros fatores.

Percebe-se, diante do que fora exposto acima (ainda que de forma breve) como o quadro urbano na realidade brasileira é complexo. Para se combater a violência urbana no Brasil se faz necessária uma atuação coordenada entre estado e sociedade e, na perspectiva estatal, se faz necessária uma atuação interfederativa que permita a integração das políticas acima destacadas (políticas sociais, econômicas, culturais e ambientais). Em outras palavras, apresenta-se como necessária uma política de inteligência especifica para a segurança pública, onde a colaboração e parceria dos órgãos da segurança pública com a sociedade seja permanente. Só assim, poderemos pensar em lograr algum tipo de êxito.

Estamos certos de que o isolamento social e econômico contribui para a violência e para o estabelecimento de poderes paralelos à realidade estatal. Em outras palavras, a ausência estatal abre vácuos que são preenchidos por outras formas de poder, não necessariamente lícitas. O resultado é que diante dessa disfunção e de omissões estatais cria-se um cenário de caos, onde a lógica do “salve-se quem puder” fala mais alto. Tal lógica impõe uma nova necessidade: a de escapar da falência do Estado. Se o Estado falha na segurança pública, o que pretendemos fazer? Contratar segurança particular ou então deixar de morar em residências nos bairros tradicionais da cidade para residir em condomínios fechados, livre do risco de furtos, roubos ou outros tipos de violências. Se o Estado falha na saúde pública, o que pretendemos fazer? Contratar um plano de saúde privado que garanta o nosso atendimento. E a lógica se espalha: se o Estado falhar na educação pública, o que pretendemos fazer? Contratar escolas particulares para garantir a qualidade e regularidade no ensino; se o Estado falha na oferta de transporte público regular e seguro, o que pretendemos fazer? Adquirir veículo particular que atenda nossas necessidades de deslocamentos. Mas, claro, há um agravante desumano que não podemos olvidar: nem todos terão condições financeiras de escapar da falência do Estado. Esse quadro de desigualdades não pode ser ignorado e o Estado precisar agir no sentido de melhorar a qualidade dos serviços públicos como um todo, de modo que a opção privada seja apenas mais uma opção. Somente assim, um mínimo existencial pode ser concebido na realidade urbana brasileira, apto a ser a melhor política de combate às desigualdades e violências nas cidades.

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Como se percebe, a simples impossibilidade de sair às ruas com segurança e de circular com liberdade tem como causa um acúmulo histórico de omissões, ineficiências, desordens e disfunções estatais, as quais precisam ser superadas de modo que a cidade possa ser devolvida aos seus habitantes. O direito à cidade, defendido por Henri Lefebvre é mais do que uma tese política ou até mesmo uma filosofia urbana. O verdadeiro direito à cidade sugere uma cidade de todos, dos menos e dos mais vulneráveis (economicamente), onde as pessoas ou grupos de pessoas sejam tratadas de forma diferente, na medida de suas diferenças. Esta é, inclusive, a essência do princípio da igualdade, essencial em qualquer Estado de Direito democrático.

Nesse sentido, cidades inclusivas são uma necessidade inadiável na realidade brasileira, o que não quer dizer que seu sucesso significa garantir a ausência de violência urbana, mas representa a efetiva mitigação e redução da mesma, já que as principais causas da violência urbana estariam sendo combatidas. Restariam apenas a violência endêmica, ínsita ao ser humano, quando este decide não se afastar da mesma. A violência em uma perspectiva sistemática e estrutural, essa sim, sofreria o maior abalo. Ai, quem sabe, podem voltar a aparecer as fotos nas ruas, mesmo que isso não seja o mais importante. 

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. Reflexões sobre a segurança pública nas cidades brasileiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6666, 1 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93435. Acesso em: 27 abr. 2024.

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