Aborto humanitário e colisão dos direitos fundamentais: análise de caso envolvendo estupro de menor.

Aspectos do princípio da proporcionalidade sob a ótica do Poder Legislativo

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3 Análise do caso concreto: abuso sexual de criança e violações aos direitos fundamentais na ótica da proporcionalidade

3.1 Introdução

Recentemente nos deparamos com o triste episódio onde uma criança de 10 anos engravidou depois de reiteradas práticas de abuso sexual, que implicariam, juridicamente em ato de estupro. O suposto crime teria ocorrido em São Mateus, no Norte do Espírito Santo, sendo o principal suspeito do crime, o tio da vítima, que foi preso após confessar informalmente o ato de abuso. 12

A menina foi atendida no Hospital Estadual Roberto Silvares acompanhada de um familiar, informando ter sido vítima de estupro e estar grávida. De acordo com a Polícia Militar, a menina contou que o abuso teria se perpetrado de forma permanente, desde os seus seis anos de idade e que não denunciou anteriormente por medo das ameaças. A gravidez, de aproximadamente três meses, foi confirmada por um exame de sangue. 13

Segundo previsto no Código Penal Brasileiro de 1940, o aborto é permitido em três situações específicas. É o teor do artigo 128 do Estatuto Penal:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (grifo e negrito nosso)

O direito pátrio admite o aborto numa terceira hipótese, qual seja, se houver anencefalia fetal, ou seja, em razão de feto anencéfalo, diante das evidentes circunstâncias da inviabilidade da vida.

Assim, no julgamento da ADPF 54, decidiu o Supremo Tribunal Federal14:

FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

Oportuno afirmar que, segundo Moraes (2008, p. 50) nos casos de gravidez decorrente de estupro, o procedimento deve ser feito até a 22ª semana de gravidez ou o feto pesando até 500 gramas. 15

Após decisão judicial que autorizou o aborto, a criança chegou a ser internada no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes - Hucam, em Vitória, mas a equipe médica do Programa de Atendimento as Vítimas de Violência Sexual, se recusou a realizar o procedimento alegando que o feto já estava pesando mais do que o aceitável para se realizar o procedimento e então haveria riscos à saúde da mãe. A equipe médica também afirmou que eles não eram dotados de capacidade técnica para fazer o procedimento. 16

Diante desta situação, a menina precisou se locomover para Recife, capital pernambucana, onde o procedimento de interrupção da gravidez foi realizado no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros - Cisam. 17

O caso ganhou bastante repercussão através da sua divulgação pela mídia e pelas redes sociais. A partir desta divulgação, terceiros, totalmente alheios ao caso, manifestaram sua opinião sobre a situação, protestando pela ofensa à criança, afirmando que se tratava de pessoa homicida, que estaria matando o seu filho, desconsiderando qualquer nuance sob o olhar da menina, ainda criança, vítima de aborto pelo próprio tio.

3.2 Nuances da proporcionalidade

Alguns episódios decorrentes das manifestações merecem destaque, diante da gravidade das violações aos direitos fundamentais. Vejamos.

3.2.1 Violação do domicílio

O Ministério Público do Espírito Santo iniciou uma ação civil pública contra Pedro Teodoro dos Santos, filiado ao PSL, que teria invadido a casa da menina de 10 anos e divulgado o nome da vítima nas redes sociais. Segundo o Ministério Público, Pedro Teodoro dos Santos teve acesso ilegal aos dados da menina, presentes no processo que corre em segredo de justiça.

Em conjunto com outras pessoas ele participou de uma manifestação em frente à casa da vítima e inclusive, invadiu a residência sem que tivesse permissão para tanto. Uma vez dentro da casa, promoveu o que se pode chamar de “terror psicológico”’ sobre a responsável pela criança de 10 anos, no intuito de fazer com que ela mudasse a decisão quanto à interrupção da gravidez.

Segundo previsto na Constituição Federal, Artigo 5º Inciso XI:

A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

Nesse entendimento, a violação de domicílio é ilegal, salvo as exceções específicas que não se aplicam a este caso. Para os que violam a norma da inviolabilidade, as sanções estão definidas no Código Penal.

Nesse diapasão entram em rota de colisão o direito à privacidade da criança (mãe) e a liberdade de expressão daqueles que são contrários ao aborto nessas circunstâncias, como seria o caso do senhor Pedro Teodoro dos Santos.

Entendemos que ocorreu violação à privacidade, passível inclusive de indenização por danos morais, nos termos da legislação civil. Assim, nesse caso, no sopesamento dos direitos em conflito, prevaleceria o direito à privacidade, decorrente da proteção ao domicílio.

3.2.2 Violação da intimidade e imagem

Ao ter os seus dados divulgados pela extremista Sara Fernanda Giromini, a criança teve o seu direito fundamental de preservação à integridade moral e a preservação de sua imagem, violados. 18

Segundo previsto na CF, Artigo 5º Inciso X:

são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Nesse sentido, também dispõe o Artigo 17 da Lei Nº 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências:

O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Nesse sentido, entraram em colisão os direitos de liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV – “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”) e a liberdade de expressão (artigo 5º, IX – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”) exercidos pela jornalista Sara Fernanda Giromini, em face ao direito a intimidade e privacidade da criança, mãe e vítima de abuso sexual reiterado, o que, diante das circunstancias do caso concreto, e no cotejo dos direitos envolvidos, entendemos pelo reconhecimento e prevalência do segundo direito em face do primeiro, ou seja, a jornalista teria abusado do seu direito, invadindo a esfera da vítima do abuso, o que também merece reparos na ótica civil indenizatória, podendo ter reflexos até mesmo na seara criminal, caso devidamente apurados os fatos em face dos tipos penais.

3.2.3 Aborto humanitário

Essa discussão, que constitui o cerne do presente trabalho, está centrada na Constituição Federal, que prevê no caput do seu artigo 5º o direito à vida a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil.

A Carta Magna consagra a inviolabilidade do direito à vida e, onde todo aquele que reside no país, tem o direito resguardado quando já considerado um ser com vida.

Art. 5º da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O ordenamento jurídico brasileiro previu no Código Penal, Decreto-Lei n. 2.848 de 07 de dezembro de 1940, do artigo 124 ao 128, as condutas típicas do crime de aborto que estão localizados na Parte Especial do código, no Capítulo que aborda sobre os Crimes Contra a Vida:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento:

Art. 124: Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque. Pena - detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro:

Art. 125: Provocar aborto, sem o consentimento da gestante. Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126: Provocar aborto com o consentimento da gestante. Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Forma qualificada

Art. 127: As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Da mesma maneira o Código Penal dispõe sobre as situações nas quais não se pune o aborto praticado pelo médico:

O aborto terapêutico, conhecido também como aborto necessário, é a interrupção da gravidez por meio de recomendação médica, empregado para salvar a vida da gestante ou para afastá-la de mal sério e iminente em decorrência de gravidez anormal, uma hipótese específica de estado de necessidade, conforme o artigo 128, inciso I do Código Penal Brasileiro, que dispõe:

I – Se não há outro meio de salvar a vida da gestante.

Aborto sentimental, conhecido também como aborto humanitário ou aborto ético, é a permissão legal para interromper a gravidez quando a mulher foi vítima de estupro, o legislador optou em proteger a vida da mãe, que foi vítima de um crime hediondo, conforme o artigo 128, inciso II do Código Penal Brasileiro, que dispõe:

II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal.

O aborto também assume permissão quando se constata anencefalia fetal. Nesse caso, não há perspectiva de vida pelo feto, razão pela qual não teria sentido obrigar a gestante a conduzir uma gestação que somente lhe causaria dor e tristeza, em detrimento à sua dignidade.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 54/DF, manifestou-se sobre a possibilidade de aborto nestes casos, não constituindo a interrupção dessa gravidez fato típico. A ação relatada pelo ministro Marco Aurélio Mello, proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, foi julgada apenas oito anos depois, numa votação que ocorreu durante os dias 11 e 12 de abril de 2012. A decisão do STF não descriminalizou o aborto e não criou nenhuma exceção ao ato criminoso previsto no Código Penal Brasileiro, a ADPF 54 decidiu, porém, que não deve ser considerado como aborto a interrupção terapêutica induzida da gravidez de um feto anencéfalo.

No nosso ordenamento jurídico, em se tratando de colisão de direitos fundamentais, é comum que o Poder Judiciário se faça protagonista e exerça o seu papel realizando as devidas ponderações no caso concreto. No caso em questão temos o olhar centralizado no Poder Legislativo, uma vez que, o princípio da proporcionalidade foi utilizado com as análises das características de: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito quando da elaboração do Código Penal de 1940.

No caso em questão temos a colisão de dois direitos fundamentais, o primeiro, o direito à dignidade sexual da criança de 10 anos que foi estuprada e optou por realizar um procedimento de aborto e o segundo diz respeito ao direito à vida do nascituro. Quando se fala em aborto, inevitavelmente se discute o direito à vida, este assunto exige muita sensibilidade crítica, uma vez que ao se discutir o direito à vida do nascituro outros direitos colidem diretamente com este.

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A violência sexual, em muitos casos silenciada, devasta infâncias, atentando ao direito de se viver uma vida livre de violências e outras violações de direitos fundamentais. Casos como este, geram consequências que impactam negativamente a vida destas crianças por muitos anos, impedindo o pleno desenvolvimento de seu potencial enquanto seres humanos.

No caso em questão, frente a esta colisão do direito à dignidade sexual da criança que foi estuprada e o direito à vida do nascituro, ao realizar-se o sopesamento e as devidas ponderações, prevalece o direito à dignidade sexual da mãe, que optou por realizar um procedimento permitido e amparado por lei e que, agora, mereceria um tratamento adequado de sua saúde pelo Estado.


4. Conclusão

A preocupação com a efetividade dos Direitos Fundamentais é tema incansável ao estudo e do operador do Direito. Entretanto, muitas vezes, na sua aplicabilidade surge o problema da colisão dos Direitos e nos encontramos diante de um dilema a ser solucionado pelo aplicador e intérprete da norma.

Ocorre que essa solução não se dá ao alvedrio do intérprete. É preciso que fundamente a interpretação em princípios ou balizas de conformação de interpretação. Nesse artigo, buscamos aproximar algumas hipóteses de conflitos que surgiram em decorrência de um fato certo e determinado, um acontecimento social, qual seja, a ocorrência de um suposto estupro de uma menina de 10 anos de idade, provavelmente praticado pelo seu tio, o que por si só gera muita repulsa na população em geral, mas também muita discussão acerca da análise das consequências jurídicas e as implicações das colisões dos direitos em choque.

Valemo-nos do princípio da proporcionalidade para adequar e contornar, de maneira simples, as diversas nuances decorrentes do caso em análise. A nossa perspectiva é protetiva dos direitos da mãe, menor e vítima do crime, considerando a quantidade de abusos em seus direitos até o presente momento.

A Constituição Federal não pode trazer em seu texto contradições que tragam insegurança jurídica. Em cada caso concreto caberá a devida ponderação e sopesamento, os direitos fundamentais não são absolutos. Assim, havendo conflitos, um direito sucumbirá em detrimento de outro de maior valor, cabendo ao intérprete dar a máxima efetividade às normas da Constituição Federal e aplicar o princípio da proporcionalidade a fim de que possa extrair o direito que se considere preponderante no caso.

Também fica evidenciado que o Poder Público mais atuante para dirimir as soluções casuísticas é o Judiciário, entretanto, entretanto, a solução também poderá acontecer de forma preventiva, através da via legislativa, como seria o caso da previsão de aborto autorizado quando a gravidez for decorrente de estupro, previsto no Código Penal, e que foi objeto de análise do presente estudo.

E que essas reflexões acalmem as mentes mais inquietas, principalmente oriundas dos cenários religiosos, em defesa da vida intrauterina, preconizando pelo cometimento de crime pela mãe. Embora os argumentos em favor da vida sejam sedutores, não podemos deixar que a sedução supere o Estado Democrático de Direito. E que sempre prevaleça a Lei e a Constituição.

Oxalá os Tribunais pátrios, quando instados a decidirem pelos conflitos supracitados, caminhem pelos trilhos do que aqui expusemos. E que sempre prevaleça a razoabilidade e a proporcionalidade.

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Sobre os autores
César Augusto Artusi Babler

Advogado, professor de cursos para OAB e Concursos Públicos e Coordenador da pós graduação em Direito Público na E.S.D. (Escola Superior de Direito).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho realizado como incentivo aos alunos da Faculdade de Direito Unitá em Campinas, no sentido de iniciarem seus estudos e publicações de artigos. Desenvolvimento do projeto pelo professor César Babler, de Direito Constituciional.

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