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Exercício arbitrário das próprias razões

29/08/2019 às 17:44
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A profissional do sexo, ao subtrair um cordão de ouro do cliente que não realizou o pagamento dos serviços, praticou roubo ou exercício arbitrário das próprias razões?

O crime de exercício arbitrário das próprias razões está previsto no artigo 345 do Código Penal, que além da pena correspondente à violência, prevê pena de detenção (de 15 dias a 1 mês) ou multa, para aquele que fizer justiça pelas próprias mãos para satisfazer pretensão sua, ainda que legítima, salvo quando a lei permita.

Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único. Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

A tipificação do crime de exercício arbitrário das próprias razões ocorreu em vista da proibição da autotutela. Antigamente, a tutela para solução de conflitos era dos próprios envolvidos ou de espécies de chefes de tribos, tratando-se de algo similar a uma justiça privada, que se denominava “autotutela”.

Com o evoluir da sociedade, a tutela para solução dos conflitos foi transmitida para o Estado, que passou a ter o monopólio da jurisdição. Posto isto, visando a organização social, foi tipificado o exercício arbitrário das próprias razões, vedando a prática da “justiça pelas próprias mãos” que ocorria nas sociedades regressas. Segundo Rogério Greco, “fazer justiça pelas próprias mãos tem o significado de agir por si mesmo, de acordo com a sua própria vontade, não solicitando a intervenção do Estado, responsável pela aplicação da justiça ao caso concreto”.

Desta forma, o Estado apropria-se do conflito social ao retirar a possibilidade de resolução de conflitos das mãos do cidadão, entregando-a ao poder judiciário, que passa a deter o monopólio da jurisdição e da força. Sendo assim, em via de regra, a autotulela passou a ser proibida, cabendo tão somente ao Estado o uso legítimo da força. A pretensão a ser satisfeita pode ser do próprio agente ou mesmo de terceira pessoa, desde que legítima.

A conduta será considerada atípica e não haverá a infração penal em estudo, quando a própria lei admite a possibilidade de atuação pessoal do agente, como, por exemplo, nos casos de legítima defesa e exercício regular de direito. Nesses casos, o estudo da causa de justificação é antecipado para o próprio tipo penal, conforme explicita a última parte do art. 345 doCódigo Penal.

Posto isto, as situações excepcionais, autorizadas por lei, em que se admite a autotulela, são as seguintes: a legítima defesa, o estado de necessidade e o exercício regular do direito (previstos no artigo 23 do CP); direito de greve (art. 9º da Constituição Federal); direito à retenção de bagagem ou bens móveis nos casos do artigo 1.467 e de outros artigos do Código Civil); poda de galhos de árvore dos vizinhos (artigo 1.283 do Código Civil); e a proteção possessória (artigo 1.210 do Código Civil).

A doutrina classifica o crime como crime comum em relação aos sujeitos ativo e passivo; doloso; comissivo, podendo ser praticado via omissão imprópria, nos termos do artigo 13, § 2º,do Código Penal; instantâneo; de forma livre; monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte.

No tocante aos sujeitos, qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo, haja vista que o tipo do artigo 345 do Código Penal não exige qualidade ou condiçãoespecial. O sujeito passivo é o Estado, bem como aquele prejudicado com a conduta praticada pelo sujeito ativo.

A Administração Pública é o bem juridicamente protegido pelo tipo penal que prevê o delito do artigo 345 ou, mais especificamente, monopólio da jurisdição. O objeto material é a pessoa ou a coisa contra a qual é dirigida a conduta praticada pelo agente.

O delito se consuma quando o agente, efetivamente, fazendo justiça com as próprias mãos, consegue satisfazer sua pretensão. Haja vista tratar-se de crime plurissubsistente. será possível o reconhecimento da tentativa. O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo penal em estudo, não havendo previsão para amodalidade culposa.

A conduta do artigo 345 do Código Penal pressupõe um comportamento comissivo por parte do agente. No entanto, o delito poderá ser praticado via omissão, quando o agente, garantidor, podendo, nada fizer para evitar a prática da infração penal em exame, devendo, portanto, também responder pelo delito de exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do artigo 13, § 2º, do Código Penal.

Há presença do concurso formal impróprio, tendo em vista o disposto na parte final do 345. Tal concurso está previsto na segunda parte do artigo 70 do Código Penal, aplicando-se a regra do cúmulo material entre os crimes de exercício arbitrário das próprias razões e aquele resultante da violência.

A pena cominada ao delito de exercício arbitrário das próprias razões é de detenção, de 15(quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. A ação penal será de privada, passando a ser de natureza pública incondicionada se houver o emprego de violência contra a pessoa.

Durante os estudos deste tema, suscitou-se uma questão curiosa: a profissional do sexo, ao subtrair um cordão de ouro do cliente que não realizou o pagamento dos serviços, praticou roubo ou exercício arbitrário das próprias razões?

No julgado analisado, o juiz de primeira instância entendeu que a profissional do sexo praticou o crime de exercício arbitrário das próprias razões. O Ministério Público, no entanto, recorreu e o Tribunal de Justiça de Tocantins deu provimento parcial à apelação e a condenou pelo crime de roubo, por entender que serviços prestados por profissional do sexo não seriam passíveis de cobrança judicial.

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O Superior Tribunal de Justiça por meio do Habeas Corpus (HC) 211.888-TO, de relatoria do Ministro Rogério Schietti, foi convocado para solucionar tal impasse. O relator Rogério Schietti argumentou que, de acordo com o Código Brasileiro de Ocupações de 2002 (regulamentado pela Portaria do Ministério do Trabalho 397, de 9 de outubro de 2002) os(as) profissionais do sexo são expressamente citados no item 5198 como uma categoria de profissionais, a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e, portanto, trata-se de atividade passível de proteção jurídica.

Com base em tal fundamentação, o relator assegurou que a profissional do sexo, pôde-se valer da Justiça para exigir o pagamento de seus serviços e que, portanto, incorreu no delito de exercício arbitrário das próprias razões e não no crime de roubo.

Por fim, é importante delimitar a competência do julgamento do delito em tela. Compete, inicialmente, ao Juizado Especial Criminal o processo e julgamento do exercício arbitrário das próprias razões, em virtude da pena máxima cominada em abstrato, que não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos, imposto pelo art. 61 da Lei nº 9.099/95. Será possível, também, a confecção de proposta de suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRECO, Rogério.Curso de Direito Penal: parte especial, volume III / Rogério Greco. – 14a ed. Niterói, RJ: Impetus,2017.

GUIMARÃES, André Santos. Exercício arbitrário das próprias razões. Disponível em: http://www.direitopenalemcontexto.com.br/exercicio-arbitrario-das-proprias-razoes/. Acesso em: 16 de jul. 2018.

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 4, p. 392.

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LEITE, Ingrid. Exercício arbitrário das próprias razões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5902, 29 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68623. Acesso em: 28 abr. 2024.

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