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Teoria da perda de uma chance probatória justifica a adoção da interceptação telefônica

23/01/2024 às 18:27
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A teoria da perda de uma chance probatória destaca a importância da imparcialidade na investigação criminal, que deve explorar todas as linhas defensivas para evitar conclusões equivocadas.

INTRODUÇÃO

A “teoria da perda de uma chance probatória” foi recentemente adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 828.723, resultando na absolvição de um acusado pela prática do crime de roubo. No caso em questão o réu negava qualquer participação no crime e uma das vítimas afirmou em suas declarações que a ação dos marginais teria sido registrada por uma câmera de segurança.

Ocorre que esta fonte de prova que, vale dizer, poderia comprovar a participação do acusado no crime ou, eventualmente, demonstrar a sua inocência, não foi apurada pela polícia. Do mesmo modo, outra vítima indicou a participação de um veículo no roubo, informando o modelo, a cor e a sua placa, mas esta “linha investigativa” também não foi seguida pelos órgãos de persecução penal.

Daí por que o Min. Teodoro da Silva Santos, relator do caso, utilizou a teoria em estudo para absolver o acusado, destacando a perda de uma chance probatória na sua fundamentação, pois as mencionadas fontes de prova poderiam excluir a responsabilidade penal do suspeito. Sobre o tema, são valiosas as lições de Alexandre Morais da Rosa:

Compete ao autor da ação penal a obrigação de produzir todas as provas necessárias à formação da convicção do julgador, no círculo hermenêutico prova/fato (cuja aceitação aqui é meramente circunstancial). Como se estabelece uma tensão entre a liberdade (presunção de inocência) e a prova suficiente para condenação, pode-se invocar a teoria da “perda de uma chance”, própria do Direito Civil, justamente para se analisar os modos de absolvição em face da possibilidade e não produção de provas pelo Estado.1

Sob tais premissas, vale destacar que a investigação criminal é uma ciência voltada à reconstrução de um evento possivelmente criminoso, buscando chegar o mais próximo possível da verdade dos fatos, viabilizando, com base nas provas identificadas e demais elementos informativos, a formação de um juízo de probabilidade sobre autoria e materialidade delituosa.

Se, eventualmente, o standard probatório coligido nas investigações não permitir a formação de um juízo de culpabilidade suficiente para se concluir pela probabilidade de autoria, o delegado de polícia, em respeito ao estado constitucional de inocência, não deverá indiciar o investigado e o Ministério Público não deverá oferecer a denúncia.

Por outro lado, se restarem suficientemente caracterizados os indícios de autoria e materialidade, a deflagração do processo penal, com todos os seus ônus, estará plenamente justificada. A partir daí caberá ao Ministério Público (nos crimes de ação penal pública) demonstrar a plausibilidade de sua tese acusatória à luz do contraditório pleno e de tal forma que se permita concluir pela culpabilidade do réu para além de uma dúvida razoável (Beyond a Reasonable Doubt).

Nesse cenário, é fundamental que ao longo da persecução penal e, sobretudo, na fase investigativa (pela sua proximidade dos fatos), sejam identificadas e verificadas todas as fontes de prova possíveis, ampliando, consequentemente, o acervo probatório e permitindo uma análise muito mais justa sobre o evento criminoso.

Daí a importância do que nós denominamos de “investigação criminal constitucional”, que é aquela que se desenvolve de forma imparcial e observando os direitos e garantias do investigado, buscando produzir provas que podem demonstrar sua responsabilidade penal, mas também aquelas que podem auxiliar na sua defesa.

Justamente por isso, nos parece imprescindível que a investigação criminal seja conduzida por uma autoridade estatal que não tenha qualquer interesse subjetivo no caso (imparcialidade), mas que também não seja parte em um eventual processo posterior (impartialidade). Isso porque com a conclusão das investigações e análise do conjunto probatório, o Ministério Público, ao formar sua opinio delicti e decidir pela acusação, já externa seu convencimento sobre o caso e a partir daí passa a atuar unicamente com a finalidade de confirmar a sua tese acusatória, se contrapondo à defesa.

O delegado de polícia, por outro lado, por não ser parte no processo e não vislumbrar uma futura “batalha processual”, conduz a investigação de maneira muito mais isenta e imparcial, produzindo todas as provas com aptidão para auxiliar no esclarecimento constitucional dos fatos, seja a favor do investigado ou em seu prejuízo.

E é à luz deste modelo de investigação criminal constitucionalizado que ganha relevo a teoria da perda de uma chance probatória, pois uma apuração unidirecional, que não explore as teses defensivas e outras linhas investigativas eventualmente identificadas pode comprometer o conjunto probatório, limitando a sua extensão e até resultar em conclusões equivocadas sobre os fatos.

Ao exaurir as teorias hipotéticas sobre o evento criminoso, demonstrando a improcedência de cada uma delas, a investigação, naturalmente, tenderá a seguir a linha mais verossímil e, epistemologicamente, poderá respaldar as conclusões do delegado de polícia, seja no sentido de responsabilizar o investigado ou isentá-lo.

Note-se que a verificação de cada fonte de prova identificada é fundamental para o controle epistêmico da investigação, reforçando seu caráter científico e, o que é muito relevante, trazendo uma maior confiabilidade ao conjunto probatório. Destacamos, contudo, que o simples fato de uma linha investigativa não ser verificada pelas autoridades responsáveis não significa, necessariamente, que a hipótese acolhida seja falsa ou inverossímil.

Dizendo de outro modo, entendemos que a adoção da teoria da perda de uma chance probatória para fins de absolvição no processo penal dependeria dos seguintes requisitos: a-) ausência de justificativa razoável para a não verificação da fonte de prova; b-) potencial probatório da fonte de prova não verificada; e c-) sua aptidão para, à luz do caso concreto, contradizer as provas incriminatórias.

De maneira ilustrativa, imagine-se um caso de roubo de celular em que o acusado nega a autoria e afirma que no dia e horário do crime ele estava trabalhando em um estabelecimento comercial com sistema de câmeras, ao lado de outros colegas. Suponha-se que a condenação tenha se pautado no fato de ele ter sido surpreendido na posse do aparelho e, posteriormente, reconhecido pela vítima, mas sem a observância dos requisitos legais mínimos.

Ora, me parece claro que nesse exemplo a versão apresentada pelo investigado deveria ter sido verificada, não havendo justificativa razoável para tal omissão. Do mesmo modo, é inegável que as fontes de prova em questão (vídeo e testemunhas de que o acusado estava em outro local no momento do crime) tinham enorme potencial para demonstrar a sua inocência e contradizer as provas incriminatórias.

Com efeito, aplica-se a teoria da perda de uma chance probatória e o réu deve ser absolvido pelo crime de roubo, pois, no “frigir dos ovos”, a ineficiência da persecução penal em não exaurir todas as linhas investigativas dá margens para dúvidas, o que, como é sabido, impede o rompimento do estado constitucional de inocência, resultando na absolvição do acusado (in dubio pro reo).


SUBSIDIARIEDADE DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA

Depois de analisarmos a teoria da perda de uma chance probatória sob uma perspectiva que favorece a defesa, agora voltamos a nossa atenção para o estudo da teoria com a finalidade de viabilizar a adoção da interceptação telefônica como meio de obtenção de prova.

Por se tratar de uma técnica extremamente invasiva, a Lei de Interceptação Telefônica (Lei 9.296/96) determina que esta medida tenha natureza subsidiária, só podendo ser adotada quando não houver outro meio de obtenção de prova disponível. Havendo outras técnicas disponíveis, procura-se evitar a aplicação desse meio altamente invasor da privacidade, preferindo-se outras formas de investigação. Busca-se um equilíbrio de modo a conseguir-se um máximo de eficácia com um mínimo possível de interferência nos direitos individuais garantidos constitucionalmente.

Ocorre que a verificação da existência desses outros meios deve basear-se na efetividade de sua presença no caso concreto e não somente de maneira hipotética. Deverá aquele que pleiteia a interceptação (delegado de polícia ou Ministério Público) explicitar a impossibilidade e a ineficácia da obtenção da prova pretendida por outros caminhos, inclusive relatando os esforços até então empreendidos.

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Deverá ser perquirido se há uma razoabilidade entre a potencialidade desses outros meios e a interceptação. É claro que qualquer crime pode ser provado por testemunhas e muitos podem ser comprovados por prova pericial. O que entra em jogo no caso não é essa possibilidade hipotética, mas o equilíbrio, ou seja, a condição no caso concreto de obter-se os mesmos ou similares efeitos probatórios através de outros caminhos tirante a interceptação.

Em resumo, tem-se que a prudência deve pautar a utilização desse meio de obtenção de prova, impondo-se uma análise anterior ao seu deferimento quanto à eventual possibilidade de obtenção dos mesmos resultados desejados, enveredando-se por caminhos menos danosos à privacidade, ou seja: as interceptações telefônicas devem ser tidas na busca das provas como "ultima ratio" e não como a "prima ratio".

Advirta-se, contudo, que isso não significa que a interceptação telefônica jamais possa ser a primeira técnica de investigação adotada pelo Estado, pois em certos casos ela se destaca como o único meio para se obter uma prova sobre o crime. Em algumas situações pode até haver uma alternativa probatória, mas se o caso concreto demonstrar que esse meio seria improdutivo, vale dizer, ineficaz, a interceptação telefônica poderia ser adotada de imediato, inclusive por se tratar de uma tutela de urgência (“periculum in mora”) que visa assegurar a produção da prova.

Defender o entendimento contrário poderia acarretar na ineficiência da investigação criminal e, consequentemente, da própria Justiça, não sendo exagerado se falar na “perda de uma chance probatória”, mas, nessas circunstâncias, em prejuízo da sociedade, representada pelos órgãos de persecução penal.

Como bem apreendido por MASSON e MARÇAL, “o princípio da subsidiariedade contemplado pelo art.2º, II, da Lei 9.296/1996 não exige sempre a produção prévia de outros meios de prova como requisito para a decretação da interceptação telefônica”2. No mesmo sentido arremata a jurisprudência: “O dispositivo refere-se à inexistência de outros meios de prova, evidentemente, de outros meios eficazes de produção de prova sobre os fatos investigados no caso concreto.”3

Sob esta ótica, portanto, a teoria da perda de uma chance probatória é invocada para justificar a adoção da interceptação telefônica ou outra técnica similar de investigação, ampliando a capacidade probatória do Estado ao viabilizar uma correta interpretação sobre a regra da subsidiariedade de alguns meios de obtenção de prova.


Notas

  1. DA ROSA, Alexandre Morais. Teoria da Perda de uma Chance probatória pode ser aplicada ao Processo Penal. Disponível: Perda de uma Chance probatória se aplica ao Processo Penal (conjur.com.br) . Acesso em 19.01.2024.

  2. MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinicius. op. cit., p.287.

  3. Apelação 2005.51.01.5157140/RJ, 1ª Turma Especializada do TRF da 2ª Região, e-DJF2R 06.05.2014,

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Sobre o autor
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Teoria da perda de uma chance probatória justifica a adoção da interceptação telefônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7510, 23 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108135. Acesso em: 2 mai. 2024.

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