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Presunção de inocência frente à execução provisória da pena privativa de liberdade

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Analisa-se o julgamento do Habeas Corpus de n° 126.292 pelo STF. A decisão autorizou prisão após sentença condenatória em segunda instância, mesmo sem trânsito em julgado do processo e com possibilidade de interposição de recurso, possibilitando a execução provisória da pena.

Resumo: O presente artigo científico tem como objetivo principal analisar o acórdão proferido pelo STF - Supremo Tribunal Federal – no julgamento do Habeas Corpus de n° 126.292 no dia 17 de fevereiro de 2017. A decisão em questão autoriza a expedição do mandado de prisão em desfavor do acusado após sentença condenatória em segunda instância, mesmo que ainda não tenha ocorrido o trânsito em julgado do processo e ainda exista a possibilidade de interposição de recurso, possibilitando a execução provisória da pena. O presente trabalho tem como objetivo analisar o acórdão frente à Constituição Federal/88, com base no do princípio da não culpabilidade/presunção da inocência, previsto no art. 5°, LVII, CF/88, analisando as consequências práticas dessa decisão no ordenamento jurídico bem como realizando uma análise crítica do julgamento mencionado. Insta salientar que após a decisão n° 126.292 o Conselho Federal da ordem dos advogados do Brasil (OAB) e o Partido Ecológico Nacional (PEN) ingressam com ações declaratórias de inconstitucionalidade com pedido de liminar junto ao STF, exigindo efeitos “ex tunc” das execuções provisória já determinadas, entretanto, as duas ações foram indeferidas, o que ratificou o entendimento anterior que causou tanta discussão.

Palavras-chave: Execução provisória da pena. Não culpabilidade. Constituição Federal. Ordenamento jurídico.

Sumário: Introdução. 1. Presunção da inocência. 1.1. Evolução histórica da presunção da inocência. 1.2. O que é presunção da inocência?. 1.3. Execução provisória da pena. 2. Análise crítica do julgamento do HC 126.262. pelo STF. 2.1. Naturezas jurídicas da prisão decorrente do acórdão. 2.2. Fundamento e função dos recursos nós tribunais superiores. 2.3. A incompatibilidade com os artigos do CPP e LEP. 3. Consequências do cumprimento provisório da pena. 3.1. A supremacia das normas constitucionais. 3.2. A problemática da prescrição. 3.3. As adc's 43 e 44 de 2016 e sua relativização diante dos recentes julgados. Considerações finais. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

No ano de 2017 ocorreu no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Habeas Corpus n° 126.292 que abordava a execução provisória da pena, o relator era o Ministro Teori Zavascki. O Habeas Corpus foi impetrado contra decisão do Ministro Francisco Falcão, presidente do Superior Tribunal de Justiça.

Através dos autos é possível verificar que o acusado foi condenado à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão, em regime inicial fechado por prática do crime de roubo qualificado cuja previsão está expressa no art. 157, 2°, I e II do Código Penal.

Diante da sentença condenatória que havia sido proferida em primeira instância a defesa interpôs recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que negou provimento ao recurso, bem como determinou a expedição de mandado de prisão.

A defesa impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça tendo o seu pedido de liminar indeferido, conforme decisão fundamentada da seguinte forma:

“As Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça firmaram o entendimento majoritário de que é inadequado o manejo de habeas corpus contra decisório do Tribunal a quo atacável pela via de recurso especial (v.g.: (HC 287.657/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe 04/12/2014; HC 289.508/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 03/12/2014; HC 293.916/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 11/12/2014; HC 297.410/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe 02/12/2014). Diante dessa nova orientação, não são mais cabíveis habeas corpus utilizados como substitutivos de recursos ordinários e de outros recursos no processo penal. Essa limitação, todavia, não impede que seja reconhecida, mesmo em sede de apreciação do pedido liminar, eventual flagrante ilegalidade passível de ser sanada pelo writ (HC 248757/SP, Sexta Turma, Relª. Minª. Assusete Magalhães, DJe de 26/09/12). Na hipótese em apreço, no entanto, não se evidencia a aventada excepcionalidade. Ante o exposto, INDEFIRO o pedido liminar, sem prejuízo de uma análise mais detida quando do julgamento do mérito pelo Ministro Relator”.

O acordão do STF decidiu que caso a condenação de primeiro grau fosse confirmada em segundo grau, o cumprimento da pena poderia ser iniciado de forma imediata, independente dos recursos disponíveis. Vejamos adiante a ementa do acórdão:

“CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.” (HC 126292, Relator: Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100, Divulgado em: 16/05/2016, Publicação em: 17-05-2016).

Subsequente, as medidas cautelares nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44 foram indeferidas. Os ministros reconheceram por maioria dos votos que o art. 283 do Código de Processo Penal não impede o início da execução da pena privativa de liberdade após decisão em segunda instância.

Tal decisão foi muito repercutida por contradizer os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Diante disso, o presente artigo irá analisar a colisão do princípio constitucional da não culpabilidade e o julgamento do HC n° 126.292.


1. Presunçâo Da Inocência

Para que se compreendam os argumentos levantados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de execução provisória da pena, é preciso ter bem claros a evolução histórica e o conceito do princípio da presunção de inocência, bem como sua dimensão no ordenamento pátrio.

1.1. Evolução Histórica Da Presunção Da Inocência

Desde antes do Império Romano, é possível notar elementos da presunção de inocência, sem, contudo, ser possível falar em um sistema fundado nesse princípio.

Ao final do século I a.C., e início da era cristã, há registros de que foi conferido ao Imperador Augusto o poder de, em caso de maioria condenatória por apenas um voto, votar pela absolvição do réu. Com o empate da votação, haveria a absolvição. (SANTALUCIA, 2010, p. 16).

Percebe-se que, em que pese o sistema funcionasse com a presunção de culpa, havia a noção do in dubio pro reo, o que contribui para demonstrar que é possível um sistema ser fundado na presunção de culpa, mas admitir o princípio do favor rei. Ambos os conceitos não se confundem e não se identificam, visto que a presunção de inocência vai muito além do que a mera aplicação do in dubio pro reo; do contrário, poder-se-ia admitir que a presunção de inocência remonta à época do Direito Romano, o que certamente não corresponde com a verdade.

Também no Império Romano, surgiu a prisão provisória, a qual, contudo, não possuía finalidade cautelar e processual, mas era empregada como forma de antecipação de pena, pois, com o fundamento de garantir a “credibilidade” de sua instituição pública – no caso, o próprio modelo político que se apresentava – e evitar o sentimento de impunidade, procedia-se ao encarceramento. (MORAES, 2010, p. 24-25)

Já durante a Idade Média, foram praticamente inexistentes elementos relacionados à presunção de inocência.

Inicialmente, tendo como maior influência a cultura bárbara, adotaram-se os julgamentos por meio das ordálias, chamados também de juízos de Deus. Nesses julgamentos, presumia-se a culpa do acusado, culpa essa que poderia ser desconstruída por ordálias. Acreditava-se que elas, provocariam a proteção divina de quem tivesse razão. Haviam também os duelos judiciários, bem como as provas de água quente e do ferro em brasa. Praticamente seria considerado inocente quem sobrevivesse às violências, pois, acreditavam fielmente que Deus havia protegido o acusado da morte.

Consequentemente, com o crescimento da Igreja Católica, as ordálias foram abandonas e posteriormente surgiu o período da Inquisição, este período se baseava em um direito penal do inimigo, que firmemente combatia a heresia. Nesse período, a dúvida do julgador não iria se resolver através da absolvição, mas sim, através da redução da pena. Já a prisão provisória funcionava como pena antecipada, não havendo qualquer cunho processual. De modo citam os autores Baigent, Leigh e Gonzaga:

“As prisões da Inquisição viviam abarrotadas de presos, grande número dos quais ainda não tivera nenhuma acusação feita contra eles. Podiam ficar encarcerados durante anos, sem ao menos saber a transgressão de que se dizia que eram culpados. Enquanto isso, eles e suas famílias eram privados de toda a propriedade, pois a prisão invariavelmente era seguida do imediato confisco de todos os pertences do acusado – tido, desde a casa até os pratos e panelas. E enquanto o homem definhava na prisão, ainda sem nenhuma acusação feita, suas posses eram vendidas para pagar sua manutenção no cativeiro.”

É possível verificar que na época da inquisição católica não existiam quaisquer sinais de presunção de inocência. Zanóide de Moraes inclusive afirmou que: “talvez seja a Inquisição o mais perfeito antípoda do que se deva entender por um sistema fundado na presunção de inocência”. (MORAES, 2010, p; 69)

Somente após a vinda do Movimento Iluminista, entre os séculos XVI e XVII, que o tema da presunção de inocência começou a ser falado efetivamente. O motivo principal foi o fato do ser humano deixar de ser visto como inimigo do Estado e passar a ser fonte e destino de seu poder. Essa corrente político-filosófica estabeleceu a racionalidade como alicerce para a construção de um novo sistema político, social, econômico e jurídico. (MORAES, 2010, p.74)

No ano de 1764, o italiano Cesare Beccaria advertia que:

“um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode tirar-lhe a pública proteção, a menos que ele tenha violado os pactos estabelecidos”.

Posteriormente a isso, mais precisamente no ano de 1789 durante a Revolução Francesa foi redigida a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Pela primeira vez na história, a concepção do princípio da presunção de inocência foi inserido formalmente, através da seguinte redação:

“Art. 9° Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.”

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Entretanto, a presunção de inocência inserida na declaração não se trata de um direito absoluto, da mesma forma que os princípios constitucionais também não são. A condição de inocente do imputado não irá impedir a sua prisão provisória.

Mesmo após os avanços que foram trazidos pelas ideias iluministas e revoluções liberais, a tomada do poder por Napoleão Bonaparte impediu o avanço do princípio da presunção de inocência. Consequentemente, a Constituição Francesa de 1795 e o seu Código de Instrução Criminal de 1808 ignoraram esse princípio e passou a adotar um modelo misto, esse modelo fundiu os modelos acusatório e inquisitivo e os tornou um único procedimento.

Mais tarde, com a ascensão de governos totalitários por todo o mundo, especialmente na Itália e Alemanha, o processo penal foi utilizado, mais uma vez, como instrumento institucionalizador dos desígnios dos ocupantes do poder. (MORAES, 2010, P. 120)

O Código de Processo Penal de 1913 e posteriormente o código de 1930, cuja produção ocorreu no auge do fascismo de Benito Mussolini, sob o manto de um tecnicismo neutro, abandonou a presunção de inocência. Zanóide de Moraes explica o momento histórico que justificou esse retrocesso através da seguinte redação:

“Presunção de culpa” (de periculosidade, de temibilidade, de heresia ou de insurgência política ou militar) advinda de uma postura embebida e fomentada por uma visão estatal autoritária (fascista e violenta) e pela qual todos, que não estivessem a seu lado (seguidores, adeptos, correligionários, familiares, companheiros de fé ou de partido), são maus (doentes, criminosos, hereges, rebeldes ou um perigo social), pela própria e simples condição de não lhe serem afins.”

Foi no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), no auge dos movimentos totalitários fascista e nazista, aos quais em muito se assemelhava o Estado Novo de Getúlio Vargas, que foi editado o atual Código de Processo Penal brasileiro. É certo que, desde 1941, o código sofreu diversas alterações, mas o momento de sua promulgação explica as bases e os princípios que norteiam seus dispositivos. As ideias positivistas e o código de processo penal italiano de 1930 foram tidos como inspiração para a construção da cultura jurídico-criminal brasileira do século XX, o que justifica sua estrutura que rejeita toda a dimensão juspolítica da presunção de inocência. (MORAES, 2010, p. 155)

Não restam dúvidas de que o Código de Processo Penal de 1941, cuja promulgação ocorreu no auge do Estado Novo, na epóca ainda estava vigente a Constituição Polaca, foi estruturado com base na presunção de culpa. Mesmo após as reformas que o código recebeu, ainda estão restam vários dispositivos que estão em desacordo com o princípio da presunção de inocência, tendo em vista que, a cultura autoritária foi base para a elaboração do diploma processual.

Como exemplo pode-se citar a prisão provisória obrigatória, presente no Código de Processo Penal até a sua reforma, no ano de 1967. Não obstante a mudança redacional, e o advento da Constituição Federal que finalmente positivou o princípio da presunção de inocência, atualmente, ainda são proferidas diversas decisões com fundamentação na gravidade da infração investigada ou imputada ou mesmo na presunção de culpa, forjada em ideias positivistas do delinquente atávico, mas, não descoberto. (MORAES, 2010, p. 164).

Com o término da Segunda Grande Guerra, o mundo viu o poder de destruição criado pelo ser humano e os riscos para a humanidade no caso de uma nova Guerra. (SCHIMIDT, 2005, p. 84).

Era evidente a necessidade de evitar que fossem instauradas novas guerras. Diante disso, após o final da Segunda Guerra Mundial no dia 10 de dezembro de 1948, a III Assembleia Geral da ONU, promulgou a Declaração Universal de Direitos da Pessoa Humana, em seu art. 11, consagrou a presunção de inocência através do seguinte texto:

“Art. XI, 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

Após a promulgação da DUDH outros tratados e convenções internacionais foram assinados, com a finalidade de assegurar a paz mundial e as instituições democráticas de direito.

Os principais foram a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948, art. XXVI), Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 1950, art. 6º, §2º), Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Nice, 2000, art. 48, §1º), Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povo/Carta de Banjul (Nairóbi, 1981, art. 7º, § 1º, b), Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (Cairo, 1990, art. 19, e), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14, §2º) e Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969.

O princípio da presunção da inocência somente foi positivado no sistema jurídico brasileiro com a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LVII através da seguinte redação:

“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”

Entretanto, utilizou-se a nomenclatura “não culpado”, o que foi justificado, tendo como causa principal a tentative de melhor apuro técnico da linguagem, em conformidade com o rigor da Escola técnico-jurídica italiana.

Posteriormente, através do Decreto de nº 678, do dia 06 de novembro de 1992, foi devidamente incluso ao ordenamento jurídico brasileiro a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu art. 8º, 2, trouxe seguinte redação:

“Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.” Vê-se, pois, que foi adotado expressamente a expressão “presunção de inocência”.

O Pacto de São José da Costa Rica só teve a sua posição hieráquica pacificada no RE 466.343-1/SP e posteriormente reafirmada através da súmula vinculante 25. Foi entendido que o Pacto tem caráter supralegal na medida em que se trata de convenção internacional acerca dos direitos humanos e foi devidamente ratificado e internalizado na ordem jurídica brasileira, todavia, sem submissão ao processo legislative que está estipulado no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal.

Importante frisar que mesmo que o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido acerca posição hierárquica do Pacto de São José da Costa Rica (e demais tratados internacionais sobre direitos humanos), grande parte do setor doutrinário defende que a convenção não tem status apenas supralegal, mas sim, constitucional. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes afirmam que:

“Todas as garantias processuais penais da Convenção Americana integram, hoje, o sistema constitucional brasileiro, tendo o mesmo nível hierárquico das normas inscritas na Lei Maior. Isso quer dizer que as garantias constitucionais e as da Convenção Americana se integram e se complementam; e, na hipótese de ser uma mais ampla que a outra, prevalecerá a que melhor assegure os direitos fundamentais.”

1.2. Presunçâo De Inocência:

O princípio da presunção da inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade é considerado um dos mais importantes dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Tal princípio está expresso no art. 5°, LVII, CF/88 que preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Diante disso, entende-se que qualquer pessoa acusada e devidamente processada deverá ser considerada inocente até que haja a conclusão do processo através do trânsito em julgado – cuja decisão condenatória não caiba recursos. Somente após isso, o Estado poderá realizar a aplicação de pena ao indivíduo que fora condenado. A principal finalidade do princípio em questão é proteger o direito de liberdade.

Fábio Ramazzini Becharia entende que para o Estado, este princípio gera uma “obrigação de abstenção ou omissiva, de caráter limitador, um verdadeiro não abuso, traduzido na impossibilidade de satisfação do direito penal objetivo senão após o regular trânsito em julgado da decisão condenatória” (2005, p. 157-158).

Assim, entende-se que no processo penal, como regra, o réu deverá ser investigado e processado em liberdade, sendo que “o encarceramento, antes de transitar em julgado a sentença condenatória, deve figurar como medida de estrita exceção”, como afirmam Távora e Alencar (2014, p. 61).

Se tratando de termo jurídicos, o princípio da presunção da inocência se desdobra em duas diferentes vertentes. A primeira se trata da regra de tratamento, pois o acusado deverá ser tratado como inocente ao decorrer do processo. A segunda vertente se trata de regra comprobatória, pois o dever de provar as acusações é do acusador, sendo vedado ao acusado o ônus da prova.

1.3. Execução Provisória Da Pena

É importante diferenciar a prisão processual da prisão pena. A prisão processual é medida cautelar pessoal sendo subdividida em cinco modalidades, são elas: prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de pronúncia.

Entretanto, após a reforma do Código de Processo Penal ocorrida 2008, que corretamente revogou os art. 408, §1º e 594, não mais existe, teoricamente falando, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e a prisão decorrente de pronúncia. Todavia, o Poder Judiciário persiste em aplicar a prisão como execução provisória. (BADARÓ, 2010, p. 714)

A natureza cautelar da prisão decorre das características que a definem, quais sejam: instrumentalidade, para assegurar a utilidade e eficácia do processo penal (aplicação do direito material no caso de eventual condenação); acessoriedade, na medida em que não é um fim em si mesmo, mas um mecanismo de um provimento final principal; preventividade, pois sua finalidade é prevenir a ocorrência de um dano irreparável ou de difícil reparação (periculum libertatis); provisoriedade, por ter prazo de duração (até a ocorrência de uma situação processual que não mais justifique a prisão, no caso da provisória; ou até o transcurso do lapso de 5 ou 30 dias, no caso da temporária); cognição sumária, eis que se exige apenas fumus commissi delicti, e não um juízo de certeza sobre o crime praticado; referibilidade, devendo a tutela cautelar estar vinculada ou conectada diretamente a uma determinada situação concreta de direito material; e proporcionalidade, pois a aplicação, duração, extensão e execução devem ser proporcionais ao delito praticado e ao que se pretende proteger, nunca podendo a medida cautelar ser mais gravosa que o próprio provimento final que se busca assegurar. (BADARÓ, 2012, p. 174)

Já a prisão pena, fudamenta- se no preceito secundário (sanctio iuris) da norma penal e materializa o fim principal do processo penal: a sanção punitiva estatal.

Através das definições de prisão processual e prisão pena é possível perceber que ambas constituem - do ponto de vista prático - pena privativa de liberdade. Trazendo a falsa ideia de que não há diferença para o réu estar preso como medida assecuratória do processo ou como punição pelo crime que foi supostamente praticado, pois, nas duas situações ele estaria com sua liberdade restringida. A única diferença para o preso seria de fato o local de encarceramento. Nesse sentido, Maurício Kuehne afirma que:

“Quanto à possibilidade de absolvição, em grau de apelação, durante a execução provisória da sentença, é preciso lembrar que não existe diferença essencial entre aquele que está preso cautelarmente e é absolvido, e o que se submete a uma execução provisória e obtém a reforma da sentença em segunda instância.”

Mesmo que o réu fique preso tanto na prisão cautelar quanto na execução provisória da pena, existe uma diferença significative entre os dois institutos, tendo em vista que, seus fundamentos e hipóteses de aplicação são totalmente diferentes. Enquanto a prisão cautelar exige fundamentação expressa quanto à presença do fumus boni iuris e do periculum libertatis; a execução provisória da pena pode ser decretada sem qualquer demonstração de sua necessidade para o processo.

É imporante que façamos uma obsevação quanto a isso. A prisão provisória tem natureza cautelar e em teste deveria ser aplicada como medida excepcional a fim assegurar o regular prosseguimento do processo e evitar danos decorrentes de sua demora. Todavia, dados estatísticos demonstram que, na prática, a própria prisão processual tem natureza de execução de pena.

Segundo dados da InfoPen do Ministério da Justiça de junho de 2013, o Brasil contava com mais de 581 mil presos. 41% deles estavam em prisão provisória. No Estado do Amazonas, acima de 70% dos encarcerados eram presos provisórios. No Estado de São Paulo, 36% deles eram presos provisórios. Bruno Shimizu afirma que o número real é ainda maior, uma vez que os dados informados acima consideram apenas os presos sem julgamento e não incluem os que ainda aguardam o julgamento de apelação.

Dessa forma, caso seja utilizado argumento estatístico com intuit de aproximar a prisão pena provisória da prisão cautelar, seria mais correto considerar a prisão cautelar como uma execução antecipada da pena.

O entendimento de que a prisão acautelatória é perfeitamente constitucional, pois, num juízo de ponderação e proporcionalidade, naquele momento da prisão preventiva, era necessária a restrição à liberdade para proteger desenvolvimento do processo. Como toda e qualquer garantia constitucional, a presunção de inocência pode ser restringida, devendo ser sempre preservado seu núcleo fundamental. Nesse sentido, Zanóide de Moraes entende que:

“Pode-se afirmar que a presunção de inocência é direito fundamental que pode ser restringido, desde que de maneira excepcional, prevista em lei justificada constitucionalmente e aplicada de modo proporcional por decisão judicial motivada em seus desígnios juspolíticos.”

A discordância maior é a respeito da possibilidade da prisão como execução provisória da pena, pois existiam vários dispositivos infraconstitucionais a justificá-la.

O artigo 393 do Código de Processo Penal trás dois efeitos da sentença penal condenatória recorrível, são eles: ser o réu preso ou conservado na prisão, nos casos das infrações inafiançáveis bem como nas infrações nas afiançáveis enquanto a fiança não seja prestada e o seu nome não seja lançado no rol dos culpados.

Alexandre de Moraes entendia que o lançamento do nome no rol de culpados seria o único efeito que deveria ser suspenso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória por violar o princípio constitucional da presunção de inocência. O STF, inclusive, no julgamento do HC nº 72.171/SP, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, decidiu que o art. 5º, LVII da Constituição Federal “é obstáculo, apenas, a que se lance o nome do rol dos culpados, enquanto não estiver definitivamente condenado, mas não a prisão imediata após o julgamento do recurso ordinário, como previsto no art. 637 do Código de Processo Penal”.

A Lei nº 12.403/2011 revogou o art. 393 do Código de Processo Penal, fazendo cair por terra esse argumento.

O art. 594 do Código de Processo Penal, cuja revogação foi realizada, exigia a prisão como requisito para apelar. O art. 595 completava ao considerar deserta a apelação do réu que fugisse. Os dois artigos mencionados foram revogados pela Lei nº 11.719/2008 e alguns dias antes de sua promulgação, o STJ editou a súmula 347 que estabelecia o seguinte: “o conhecimento do recurso de apelação do réu independe de sua prisão.”

Sustentando a possibilidade de execução provisória no ordenamento jurídico brasileiro, há ainda o art. 669, I do Código de Processo Penal e art. 637 do mesmo diploma legal, o art. 27, § 2º da Lei nº 8.038/90 e as súmulas 716 e 717 do Supremo Tribunal Federal e súmula 267 do Superior Tribunal de Justiça.

Embora não tenha sido expressamente revogada, a súmula 9 do Superior Tribunal de Justiça perdeu sua razão com a revogação expressa pelo legislador infraconstitucional do art. 594 do Decreto-Lei nº 3.689/1941.

O art. 669, I, do Código de Processo Penal é claro quando autoriza a execução da sentença condenatória antes mesmo do trânsito em julgado. Entretanto, quando exige a prestação de fiança (que tem natureza cautelar), nos crimes afiançáveis, trás a ideia de que a prisão do réu condenado poderia ser uma medida cautelar e não uma prisão processual. Entretanto, na doutrina é predominante o entendimento de que o art. 669, I, CPP trás a ideia de execução provisória da pena. Afrânio Silva Jardim é enfático ao explicar esse posicionamento:

“É lógico que a fiança referida nos arts. 393, I, 594 e 669, I, não tem a natureza de contracautela. Se a prisão não é cautelar, a caução aí não funciona como substitutivo de algo que não existe. In casu, o legislador permitiu que o réu, mediante determinada quantia, pudesse adiar o começo de sua execução penal, aguardando desfecho do seu recurso. Parece lógico afirmar que a natureza cautelar de uma determinada medida não pode ser depreendida de uma suposta contracautela, mas, inversamente, a caução somente terá natureza de contracautela se funcionar como sucedâneo de uma medida cautelar. É intuitive.”

Temos redação semelhante no art. 637 do Código de Processo Penal e o art. 27, §2º da Lei nº 8.038/90, ao dar aos recursos extraordinário e especial apenas efeito devolutivo. Vejamos:

“Art. 637. O recuses extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do translado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentenção.”

“Art. 27. Recebida pela Secretaria do Tribunal e aí protocolada, será intimado o recorrido, abrindo-se lhe vista pelo prazo de quinte dias para apresentar contrarrazões. § Os recursos especial e extraordinário serão recebidos no efeito devolutivo.”

Entretanto, o art. 27, § 2º da Lei 8.038/90 foi revogado pelo Código de Processo Civil de 2015, mantendo o afastamento do efeito suspensivo como regra no processo civil na medida em que seu art. 995 dispõe que:

“os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso”

Já o art. 1.029, § 5º estabelece que:

“o pedido de concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário ou a recurso especial poderá ser formulado por requerimento”.

Sendo assim, se o efeito suspensivo deve ser requerido, como regra ele não é um dos efeitos da interposição dos recursos extraordinários.

Uma vez que os recursos aos tribunais superiores não tem efeito suspensivo, em regra, poder-se-ia dar início ao cumprimento de sentença quando pendente apenas o julgamento desses recursos. O efeito suspensivo é medida especial atribuído apenas quando presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora. O dano irreparável ou de difícil reparação no caso da execução provisória da pena privativa de liberdade é notório, por outro lado, a probabilidade do provimento do recurso decorre da análise do caso concreto.

Por fim, as súmulas 716 e 717 do Supremo Tribunal Federal dão a possibilidade de progressão de regime de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. A leitura desses enunciados nos leva a conclusão que, se há progressão de regime, antes do trânsito em julgado, é porque se pode executar a pena aplicada mesmo que ainda estejam pendentes recursos. Vejamos:

“Admite-se a progresso de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.”

“Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de que o réu se encontrar em prisão especial.”

Essa interpretação é rechaçada por Zanoide de Moraes pois o texto é claro e não utiliza a expressão “execução provisória” e as súmulas apenas atendem à exigência constitucional da proporcionalidade. Estando o réu preso cautelarmente, a medida coativa deve ser revista para conceder ao preso a possibilidade de mudar de regime ou progredir par estágios menos severos de encarceramento, seja em face da pena atribuída na decisão condenatória recorrível seja na pena prevista em abstrato. O que a aplicação da proporcionalidade traz é evitar que a medida restritiva provisória seja pior que a medida eventualmente definitiva.

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SANTOS, Roberta Daniele Borba. Presunção de inocência frente à execução provisória da pena privativa de liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7441, 15 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107020. Acesso em: 28 abr. 2024.

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