Capa da publicação Covid-19: responsabilidade do Estado por falha 
na gestão de leitos
Capa: DepositPhotos
Artigo Destaque dos editores

A responsabilidade civil por má condução estatal no gerenciamento de respiradores e leitos de UTI.

Omissão frente à crise sanitária provocada pela Covid-19 no Brasil

Exibindo página 1 de 3
21/08/2023 às 17:15
Leia nesta página:

Análise da responsabilidade civil do Estado diante das omissões e mau gerenciamento na condução da crise de saúde pública da Covid-19 no Brasil.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo a análise do instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, diante das suas omissões e o mau gerenciamento na condução da crise de saúde pública, ocasionada pela Covid-19 no Brasil. De inicio compreende-se acerca dos aspectos da responsabilidade civil do estado, disposto no artigo 37, § 6º, partindo sobre o estudo da evolução histórica e doutrinária da responsabilidade civil do estado, e em seguida seus pressupostos e excludentes de responsabilidade. Ao final demonstra-se, os acontecimentos e as circunstâncias que configuraram as omissões por parte do Estado durante a pandemia, sendo analisado por meio das jurisprudências ADPF n° 709, ADPF nº 756 e ACO nº 3490, e leis infraconstitucionais. Por último, em sua problemática, aplica-se a responsabilidade objetiva do Estado, auferindo os seus pressupostos, diante das situações de omissão e insuficiência do Estado perante a falta de leitos e respiradores a pacientes com Covid-19, sobre à análise do REsp nº 1.299.900, AC nº 1.198.231 e REsp nº 1.133.257.

Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado. Omissão. Covid-19. Leitos UTI. Respiradores.


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo a análise sobre o instituto da responsabilidade civil do Estado diante da grave crise sanitária que ocorreu no Brasil em decorrência da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2, conhecido também como Covid-19.

Logo quando se instalou a pandemia tanto a OMS quanto a OPAS orientou sobre como se prevenir para não contrair o vírus, ou pelo menos diminuir as contaminações, evitando assim a alta taxa de transmissibilidade, e a sobrecarga dos hospitais. As principais recomendações são o uso de mascará, distanciamento social e isolamento dos casos confirmados. Mas, devido a rapidez do vírus logo ele se espalhou por todo o país, a vista disso, surge o questionamento se caberia ou não ao Estado implementar medidas de contenção ou de controle para evitar a propagação do vírus, como também investigar sobre a sua responsabilidade diante da sua condução e atuação frente à pandemia, averiguando se causou danos aos administrados e se teve omissão de sua parte, ferindo assim a vida, a saúde, e a dignidade do cidadão.

Portanto, a presente pesquisa pretende demonstrar a responsabilização estatal perante a sua má administração na condução pandemia, visto que, o Estado foi insuficiente e omisso, questionando o seu dever legal quanto Estado acerca das suas responsabilidades.

De inicio, buscará compreender o surgimento e a evolução histórica e doutrinária da responsabilidade civil do Estado no ordenamento jurídico brasileiro, considerando suas teorias, pressupostos e excludentes de responsabilidade.

Seguidamente, será apresentado o descuido e desinteresse por parte do Estado com seus administrados diante do contexto pandêmico no país, sua má administração e seu mau gerenciamento na condução da pandemia fez com que o número de óbitos no país fossem expressivos, por inúmeras circunstâncias, como incitação contra as recomendações de saúde pública, a falta de medidas para o enfretamento da crise sanitária, a falta de respiradores e leitos, e de insumos, fazendo com que o poder judiciário agisse a fim de concretizar direitos tidos como fundamentais e essenciais à vida de todo cidadão.

Por fim, será aplicado a teoria objetiva do Estado diante da falta de leitos de UTI e respiradores a pacientes com Covid-19, apresentando e preenchendo seus pressupostos de responsabilidade, sob análises jurisprudenciais, a fim de demonstrar a responsabilização estatal perante as suas omissões frente à grave crise sanitária que ocorreu no país.


1. OS ASPECTOS GERAIS QUANTO A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Antes de tratar especificadamente sobre o objeto dessa pesquisa, é de grande valia, esclarecer alguns pontos a respeito desse instituto jurídico, que é o da responsabilidade extracontratual do Estado, para que assim, não cause confusão ou estranhamento diante do objeto de estudo desse trabalho.

Portanto, torna-se relevante fazer a diferenciação entre responsabilidade contratual e extracontratual, que se dá perante o seu condão de violação. Então, a “responsabilidade civil contratual surge em face do descumprimento obrigacional, pela desobediência de uma regra estabelecida em um contrato”. A responsabilidade extracontratual (também chamada de aquiliana), por sua vez, é proveniente de um preceito geral do direito, ou seja, não decorre de uma violação de cláusula contratual. (TARTUCE, 2019. p. 105).

Esse instituto é essencial, considerando que tem por finalidade restabelecer o equilíbrio violado pelo dano que foi causado ou deixado de minorá-lo. Nesse viés, o ordenamento jurídico possui o entendimento de que não só por ato ilícito será configurada a responsabilização do Estado, mas também por prejuízos ocasionados por ações comissivas lícitas.


2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

A responsabilidade extracontratual do Estado passou por algumas transformações ao longo dos anos, que são divididas em três fases: a de irresponsabilidade do Estado, a civilista e a publicista, a qual nos encontramos atualmente.

Diante disso, é relevante fazer breves considerações acerca das fases da responsabilidade civil do estado no ordenamento jurídico brasileiro, sua conceituação e as evoluções desse instituto.

A fase de irresponsabilidade do Estado possuía a premissa de que “o rei não erra” (“the king can do not wrong”), ou seja, por meio do discurso das grandes monarquias absolutistas se fundava a ideia de soberania. Os súditos do rei, nesse caso, não tinham a possibilidade de contestar, pois o Estado não respondia por sua atuação, sendo isento de responsabilidade.

Contudo, este período começou a ser superado por influência do direito francês na década de 1870, através do caso Agnés-Blanco, que:

[...] brincando nas ruas da cidade de Bordeaux, foi atingida por um pequeno vagão da Companhia Nacional de Manufatura de Fumo. Seu pai entrou com ação de indenização fundada na ideia de que o Estado é civilmente responsável pelos prejuízos causados a terceiros na prestação de serviços públicos. (MAZZA, 2019. P. 463).

O Tribunal de Conflitos na França (Tribunal de Conflitos é o órgão da estrutura francesa que decide se uma causa vai ser julgada pelo Conselho de Estado ou pelo Poder Judiciário) assentou o entendimento de que haveria a possibilidade de responsabilizar o Estado pelos danos cometidos através de seus agentes na prestação de serviços públicos. Mazza destaca que: “Aresto Blanco foi o primeiro posicionamento definitivo favorável à condenação do Estado por danos decorrentes do exercício das atividades administrativas” (MAZZA, 2019. p. 463).

Quanto a fase da responsabilidade subjetiva; portanto, como foi visto, superada a teoria da irresponsabilidade do Estado levou à adoção das teorias que preveem a responsabilização do Estado com base em princípios do Direito Civil, apoiada na ideia de culpa. Assim, surge a teoria de responsabilidade com culpa, teoria intermediária, mista, ou civilista, como também é chamada. Aqui, tem-se em perspectiva a noção de culpa do agente. Contudo, cabe à vítima demonstrar as circunstâncias dos atos ilícitos praticados pelo agente, que assim o leva ao dever de indenizar. Desse modo, para que se caracterize essa teoria, deveriam estar presentes os seguintes elementos: conduta, dano, nexo causal, e a culpa ou dolo do agente. “Assim, para a teoria subjetiva é sempre necessário demonstrar que o agente público atuou com intenção de lesar (dolo), com culpa, erro, falta do agente, falha, atraso, negligência, imprudência, imperícia”. [...] (MAZZA, 2019, p. 464).

Por fim, quanto a teoria da responsabilidade objetiva (publicista ou da responsabilidade sem culpa) afasta a necessidade de comprovação de culpa ou dolo do agente público para a efetiva responsabilização do Estado. Ela incide em decorrência de fatos lícitos ou ilícitos, basta o interessado comprovar a relação causal entre o fato e o dano.

Portanto, para a efetiva comprovação dessa teoria, deve estar presente os três elementos: conduta, dano e nexo de causalidade.


3. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO

O instituto da responsabilidade extracontratual do Estado tem como principal objetivo garantir a proteção daqueles que vivem em seu território. A responsabilidade civil do Estado está disposta no art. 37, § 6º, da Constituição (1988) c/c art. 43 do Código Civil (2002).

Conforme expresso no art. 37, § 6º, da CF:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.2

E no art. 43, do Código Civil: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”.3

A responsabilidade do Estado por omissão é um dos temas mais polêmicos e de grande divergência na matéria de responsabilidade civil do Estado. Há diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do assunto, sem um consenso ou uma decisão sólida que assente o entendimento.

Entretanto, as vertentes doutrinárias e jurisprudenciais – sejam as que acreditam na aplicabilidade da responsabilidade objetiva, quanto as que são adeptas da responsabilidade subjetiva – geram para o ente público o dever de indenizar. Por isso, perde-se um pouco o interesse de discussão sobre essa matéria.

Meirelles, entende que ocorre a responsabilização objetiva, sem culpa da Administração, tanto por meio de ações quanto omissão do Poder Público: “O autor defende que há responsabilidade objetiva quando a Administração Pública assume o compromisso de velar pela integridade física da pessoa e esta vem a sofrer dano decorrente da omissão do agente público naquela vigilância” (NOHARA, 2019, p. 367).

Já Mello e Di Pietro, doutrinares clássicos do Direito Administrativo, entendem que em casos de omissão do Poder Público, deverá ser aplicada a responsabilidade subjetiva face ao Estado, pois não houve conduta comissiva. Ou seja, fica incoerente afirmar que a omissão por parte do Poder Público causa o prejuízo, sendo que a omissão estatal não produz materialmente nenhum resultado. Eles entendem e lecionam que deve ser aplicada a teoria da responsabilidade subjetiva consoante a modalidade da teoria da culpa anônima do serviço público, dado que é irrelevante saber quem é o agente público responsável, vez que o Estado desde que o serviço público não funcione quando deveria funcionar, funcione tardiamente, ou funcione mal.

Em complemento, Marinella ensina: “apresenta-se mais uma exigência da responsabilidade por omissão a questão do dano evitável, quando era possível para o ente público impedir o prejuízo, mas ele não o fez” (CARVALHO, 2020, p. 364). Então, a omissão é caracterizada quando se tem uma obrigação de agir por parte do Estado, mas este não o faz. Isto é, ao invés de se fazer presente e vigilante sobre as possíveis causas de dano, para contê-lo, evitá-lo ou diminuí-lo, o Estado se omite quanto ao cumprimento de seus deveres legalmente estabelecidos.

Entretanto, atualmente se entende ser objetiva nas omissões juridicamente relevantes, conforme consagram os artigos 37, § 6º, da CF, e 43, do CC, que adotam a teoria do risco administrativo, não fazendo a distinção entre ação e omissão do Estado.

Quanto a teoria do risco administrativo, entende-se que a atividade administrativa tem como objetivo o bem-comum e, através desses benefícios gerados à coletividade, essas atividades ficam potencialmente danosas. Com isso, surge a obrigação econômica de reparação do Estado acerca do dano que ele venha causar a terceiros, pelo simples fato de o Poder Público assumir o risco de exercer essas atividades. Portanto, essa teoria, é baseada na ideia de que “aquele que, no exercício de suas atividades, naturalmente gera riscos para terceiros tem o dever de indenizá-los quando lhes causar concretos prejuízos, independentemente de a atuação ter se dado em conformidade ou desconformidade com o direito.” (ALEXANDRE; DEUS, 2018, p. 1.078).

Diante desta teoria, para excluir a responsabilidade objetiva do Estado, deverá estar ausente pelo menos um dos elementos – conduta, dano ou nexo de causalidade. Além disso, a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior também podem ser excludentes de responsabilidade do Estado, pois interrompem o nexo de causalidade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

4. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE E SUAS EXCLUDENTES

Para que se configure a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, deverão ser preenchidos, necessariamente, três elementos: conduta (comissiva ou omissiva), dano e nexo de causalidade.

A conduta é o primeiro elemento necessário e indispensável para que se configure a responsabilidade do Estado. Ela deve ser de determinado agente público, que está na qualidade dessa função, ou seja, em pleno exercício de sua função, representando o Estado, ou que se aproveite dessa qualidade de agente público para causar algum dano. Nas palavras de Oliveira, “É preciso, portanto, demonstrar que o dano tem relação direta com o exercício da função pública ou a omissão relevante dos agentes públicos” (OLIVEIRA, 2021, p. 1.368).

O segundo elemento indispensável para a aplicação da responsabilidade objetiva é o dano, “Pois, para que se reconheça o dever de indenizar é imprescindível que haja dano” (CARVALHO, 2020, p. 359). Ou seja, que acarrete prejuízo a terceiros que ostente ou não a qualidade de usuário do serviço, violando algum bem jurídico tutelado da vítima, devendo esse demonstrar a ocorrência do dano jurídico, para que, assim, ocorra a responsabilização do Estado.

Finalmente, o nexo causal é a relação causa efeito entre o fato administrativo e o dano. Em outras palavras, “é o vínculo existente entre a conduta de determinado agente e o dano efetivamente gerado” (ALEXANDRE; DEUS, 2018, p. 1.095). Atualmente é adotada a teoria da causalidade direta e imediata sobre o nexo de causalidade, “esta teoria entende que causa é aquele fato que se liga ao resultado danoso, sendo esta sua consequência direta e imediata. Assim, não haverá relação de causalidade quando o comportamento do agente público não ocasionar de forma direta e imediata o dano” (ALEXANDRE; DEUS, 2018, p. 1.096-1.097).

Quanto às excludentes de responsabilidade do Estado, estão associadas à teoria do risco administrativo, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro no art. 37, § 6º, da CF. Segundo Alexandre e Deus, “Existem algumas circunstâncias que excluem ou atenuam a responsabilidade civil do Estado”, (ALEXANDRE; DEUS, 2018, p. 1.098), devido a inexistência do nexo de causalidade entre ente estatal com o dano gerado a vítima. Desta forma, o Estado se exime da responsabilização, pois se constata que não foi por meio de suas atividades administrativas que ocorreu o dano.

São três excludentes de responsabilidade do Estado, sendo elas a culpa exclusiva da vítima, a culpa de terceiros, e o caso fortuito ou força maior, conforme se vê a seguir.

Com relação a primeira hipótese de excludente de responsabilidade, essa se dá através do dano causado por fato exclusivo do próprio prejudicado, não ocorrendo a relação entre a conduta estatal e o dano. Assim, desobriga-se o Estado de sua responsabilidade, por não terem sido seus atos e atividades administrativas que ocasionaram o dano e, sim, a própria vítima por culpa exclusiva.

Esses casos geralmente acontecem quando a própria vítima se prejudica através de alguma prestação do serviço público, por exemplo: suicídio em estação do metrô; ou a vítima se atira sobre as rodas do caminhão de lixo pertencente ao Estado.

Contudo, há casos em que tanto a vítima, quanto o Poder Público (por meio de seu agente) provocam dano reciprocamente. Aqui, ocorre a chamada “culpa concorrente”, não havendo a exclusão de responsabilidade do Estado, mas, sim, uma mitigação ou atenuação desta responsabilidade, que será dividida entre aqueles que geraram o dano. Mazza exemplifica: “acidente de trânsito causado porque a viatura e o carro do particular invadem ao mesmo tempo a pista alheia” (MAZZA, 2019, p. 477).

Quanto a culpa exclusiva de terceiros, “é a circunstância que rompe totalmente o nexo de causalidade. Ela ocorre quando se verifica que o comportamento do Estado não foi a causa do dano à vítima, mas unicamente a ação de outras pessoas, que não os seus agentes.” (NOHARA, 2019, p. 366).

Não há um consenso doutrinário acerca da terminologia das expressões “caso fortuito” e “força maior”, mas entende-se como sendo eventos imprevisíveis da natureza, sendo algo irresistível, que não tem como conter, pois, a “ocorrência estava fora do âmbito da normal prevenção que podem ter as pessoas” (CARVALHO FILHO, 2019. p. 921). Além disso, pode decorrer de eventos imprevisíveis revestidos por atos humanos.

Mas, não é de grande pertinência a discussão dessa matéria quanto a diferenciação das expressões; o que realmente importa é a análise sobre a presença ou não dessa excludente de responsabilidade em cada caso concreto.


5. A OMISSÃO DO ESTADO NO PERÍODO PANDÊMICO DA COVID-19 NO PAÍS

Sabe-se que o Brasil e o mundo vêm enfrentando uma grave crise sanitária desde o ano de 2020, situação essa causada pelo novo coronavírus (Covid-19), um vírus considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de alto contágio. Diante disso, a OMS declarou que estávamos enfrentando uma pandemia.

No Brasil, a primeira infecção do vírus foi oficialmente detectada e registrada em São Paulo, na data de 26 de fevereiro de 2020, em um homem de 61 anos, que retornava da Itália, país que, na época, era considerado o epicentro da doença4. A partir de então, os casos começaram a subir consideravelmente.

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) informou:

A COVID-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e tem como principais sintomas febre, cansaço e tosse seca. Alguns pacientes podem apresentar dores, congestão nasal, dor de cabeça, conjuntivite, dor de garganta, diarreia, perda de paladar ou olfato, erupção cutânea na pele ou descoloração dos dedos das mãos ou dos pés. Esses sintomas geralmente são leves e começam gradualmente. Algumas pessoas são infectadas, mas apresentam apenas sintomas muito leves. A maioria das pessoas (cerca de 80%) se recupera da doença sem precisar de tratamento hospitalar. Uma em cada seis pessoas infectadas por COVID-19 fica gravemente doente e desenvolve dificuldade de respirar. As pessoas idosas e as que têm outras condições de saúde como pressão alta, problemas cardíacos e do pulmão, diabetes ou câncer, têm maior risco de ficarem gravemente doentes. No entanto, qualquer pessoa pode pegar a COVID-19 e ficar gravemente doente.5

Quanto a transmissão do SARS-CoV-2, vírus responsável pela Covid-19, pode ocorrer através do contato direto, indireto ou próximo com pessoas infectadas através de secreções como saliva e secreções respiratórias ou de suas gotículas respiratórias, que são expelidas quando uma pessoa infectada tosse, espirra, fala ou canta, por exemplo6. Além disso, pode ser transmitido pelo ar, por meio das gotículas suspensas no ambiente.

A OMS e a OPAS orientam sobre como prevenir a transmissão do vírus, ou ao menos minorar as contaminações, assim evitando a sobrecarga de hospitais. Dentre as principais recomendações estão: o uso de máscaras; distanciamento físico/social; identificação de casos suspeitos; testagem em massa; e isolamento dos casos confirmados, colocando-os em local apropriado7.

Mas, dada a celeridade da disseminação do vírus, logo ele se espalhou pelo mundo e em todo o território nacional. Neste contexto, surgiu a motivação para esta pesquisa: refletir sobre a natureza jurídica e o dever legal do Estado quanto à responsabilidade extracontratual. Além disso, levantou-se a seguinte questão: caberia ou não ao Poder Público implementar medidas eficientes para conter a propagação do vírus, ou que fossem capazes de controlar sua disseminação?

Exposto isso, é mais do que necessário averiguar acerca da possibilidade da responsabilização do Poder Público diante da sua atuação perante a pandemia, se causou lesão a terceiros ou se teve omissão de sua parte, atentando assim contra a vida, saúde e dignidade da população.

Sabe-se que a Covid-19 é um fenômeno natural e inevitável e que, devido a isso, poderia haver o entendimento de que se trata de um caso fortuito ou força maior. Nesse caso, o coronavírus não seria responsabilidade do Estado. Porém, já se adianta, que este trabalho não é simpatizante com esse entendimento, pois, a pandemia não tem condão de isentar o Estado ou seus agentes públicos diante da grave crise sanitária que assola o país, uma vez que, se o ente público tem como evitar ou diminuir o risco de contaminação da doença e não o faz, se mostra em omissão ao direito fundamental à saúde.

Paulo e Alexandrino entende que:

[...] quando pessoas ou coisas estão sob a guarda, a proteção direta ou a custódia do Estado (o poder público encontra-se na posição de garante), quando o poder público tem o dever legal de assegurar a integridade de pessoas ou coisas que estejam a ele vinculadas por alguma condição específica -, a responsabilidade civil estatal por eventuais danos é, incontroversamente, do tipo objetiva, na modalidade risco administrativo. Não é demasiado repetir; quando o Estado tem o dever jurídico específico de garantir a integridade de pessoas ou coisas que estejam sob sua proteção direta, ele responderá com base no art. 37, § 6. °, por danos a elas ocasionados, mesmo que a lesão não tenha sido concretamente causada por atuação de seus agentes. Nessas situações, o só fato de haver possibilitado a ocorrência do dano levará o Estado a responder por uma omissão específica (deixou de cumprir um dever específico, legal ou constitucional, a ele atribuído) - e, para efeito de responsabilidade extracontratual do poder público, tal omissão equipara-se a uma conduta comissiva, a uma atuação estatal. (PAULO; ALEXANDRINO, 2021. p. 912-912)

Logo no começo da pandemia no Brasil, o Governo Federal se manifestou através da Medida Provisória n° 966/2020, tratando da responsabilização dos agentes públicos com relação a emergência pública8. Esta MP recebeu inúmeras críticas, pois, em certa medida, protegia os gestores públicos, declarando que ficaram isentos de responsabilidade por suas ações e omissões conexas à pandemia. Além disso, a Medida contrariava a Teoria da Responsabilidade Objetiva do Estado e a Teoria do Risco Administrativo, ambas adotadas pelo ordenamento jurídico pátrio.

O texto causou uma grande inquietação entre os juristas, pois atribuía a responsabilização administrativa ou civil dos servidores somente quando agirem ou omitirem por meio de dolo ou “erro grosseiro”, expressão essa que foi objeto de grandes discussões9. Com isso, inevitavelmente, surgiram diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s), como: ADI nº 6.421/DF (Rede Sustentabilidade); ADI nº 6.424/DF (Partido Socialismo e Liberdade); ADI nº 6.425/DF (Partido Comunista do Brasil); ADI nº 6.428/DF (Partido Democrático Trabalhista); ADI nº 6.431/DF (Partido Verde); e ADI nº 6.427 (Associação Brasileira de Imprensa) (SANTOS; 2020. p. 154).

Barroso, Ministro do STF e relator das inúmeras ações, proferiu acórdão em Medida Cautelar, fixando a tese:

I - Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção; II - A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.10

Desta maneira, tratando-se de precaução, é indispensável que as medidas a serem tomadas por parte do Poder Público deve ser através de critérios científicos, pesquisas e dados epidemiológicos de entidades médicas sanitárias reconhecidas tanto a nível nacional quanto internacional, adotando os princípios constitucionais da precaução e prevenção.

Para se compreender melhor o objeto de pesquisa, conceitua-se os princípios da prevenção e precaução:

O princípio da prevenção, aplica-se aos casos em que se formou certeza, ou pelo menos forte consenso científico, acerca dos danos e da relação de causalidade com determinada conduta. Assim, impõe-se uma ação para prevenir esses danos ou impedi-los, nos casos inevitáveis. [...] Por sua vez, o princípio da precaução lida com os casos em que a causalidade do dano apresenta um grau acentuado de incerteza. Nesses casos, a ausência de certeza científica ou de um consenso científico firme quanto à causalidade ou ao resultado não deve ser tomada como razão para que não sejam adotadas medidas que visam a afastar ou mitigar os danos possíveis de empreendimentos ou a comercialização de produtos potencialmente perigosos, exigindo-se do interessado submissão a análises de risco, adoção de medidas de precaução ou mesmo, em casos extremos, em que há riscos intoleráveis, impedimento da ação. (FARENA; 2020. p. 138).

Mas, isso não parece ter sido levado a sério, pelo menos não por parte do governo federal. Essas medidas técnicas que deveriam ser implementadas para conter, ou ao menos tentar controlar, a crise de saúde pública no país, foram ignoradas por parte da União.

Deve-se deixar claro que essa MP perdeu vigência em 10 de setembro do ano de 2020, sem ter sido votada pelo Congresso Nacional. Mas, de todo modo, é válido discorrer sobre ela aqui, a fim de demonstrar que, desde o início da crise de saúde pública no país, houve desinteresse por parte do Governo sobre as medidas de enfrentamento do vírus.

Além disso, deve-se mencionar três decisões do Supremo Tribunal, cujo principal objeto foi a responsabilidade civil do Estado frente ao coronavírus.

O primeiro julgado trata-se da ADPF n° 709, tendo como relator o Min. Roberto Barroso, e interposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e alguns partidos políticos, contra a União Federal. Os autores alegaram uma série de atos por parte do Poder Público, tanto em caráter comissivo, quanto omissivo, apontando para uma possibilidade casuística de extermínio de povos indígenas, que são ainda mais vulneráveis perante as condições imunológicas e socioculturais. Também, aludiram que estavam sendo violados os direitos da dignidade humana, o direito à vida e, em especial, o direito à saúde11.

Diante disso, requereram as medidas necessárias para o controle e contenção do vírus, para evitar que se espalhasse de forma descontrolada nas aldeias, tais como: a criação de barreiras sanitárias, impedindo o ingresso de terceiros nas comunidades indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente contato; e a criação de uma “sala de situação”, para servir de gestão e controle daqueles com a doença confirmada ou que tiveram contato recente com infectados, em atendimento ao art. 12 da Portaria Conjunta nº 4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Funai.

Ainda, solicitaram à União que tomasse as medidas necessárias para que fossem retirados os invasores das terras indígenas; a determinação para que o Subsistema de Saúde Indígena do SUS prestasse serviços a todos os indígenas do país; a elaboração de um plano de enfrentamento da Covid-19 para os povos indígenas, com medidas concretas; e, após a homologação do plano, o seu cumprimento integral pelos órgãos competentes12.

O Supremo, por sua vez, mostrou-se preocupado com os riscos destas comunidades, e, através dos princípios de precaução e prevenção, reconheceu os pedidos pleiteados, proferindo ser assegurado a todos o direito a proteção à vida e à saúde. Desta forma, firmou o entendimento com base no perigo da demora (periculum in mora) devido ao risco de contágio iminente, visando impedir a extinção destas etnias13.

Em Referendo na Medida Cautelar, o Min. Gilmar Mendes salientou:

[...] os primeiros contágios ocorridos nas comunidades indígenas foram provenientes de agentes de saúde do Governo Federal, que entraram no território sem a adoção das medidas de proteção necessárias. Assim, apontam que tais atos representariam afronta a diversos preceitos fundamentais, tais como: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88), os direitos à vida (art. 5º, caput) e à saúde (art. 6º e art. 196), e o direito dos povos indígenas a viverem em seu território, de acordo com sua cultura e tradições (art. 231).14

Desta forma, fica evidente o descompromisso e o descaso por parte do Governo Federal com a situação dos povos originários no país. No mesmo sentido, o Min. Luiz Fux declarou em seu voto no Referendo da Medida Cautelar:

[...] As inúmeras denúncias feitas por representantes das comunidades e os dados alarmantes a respeito da população contaminada comprovam que as medidas estatais tomadas até o momento têm sido insuficientes para o acolhimento real dessa população vulnerável. A omissão governamental, inclusive, foi recentemente exposta em reportagem jornalística denunciando que “a precariedade do atendimento governamental e o medo do novo coronavírus têm forçado os povos indígenas do Brasil a pensar em soluções autônomas [...]”.15

Verificada essas omissões do Poder Público, fez-se necessária a intervenção judicial para que fosse assegurado e garantido o cumprimento desses direitos a proteção as comunidades indígenas.

Não obstante, houve também descaso em relação aos cidadãos amazonenses em especial manauaras. Este caso ganhou grande repercussão nacional e internacional, devido à ausência de ajuda de diferentes níveis governamentais durante o pico de casos na região. Diante disso, foi proposta a ADPF nº 756, possuindo como relator o Min. Ricardo Lewandowski16.

Essa ADPF foi ajuizada com o objetivo de que fossem implementadas medidas de caráter imediato em face da população manauara, que se encontrava desamparada, sem recursos necessários para controlar a situação caótica da crise sanitária instalada no sistema de saúde de Manaus. Não havia leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) suficiente para toda a população, nem cilindros de oxigênio para os que já estavam na UTI. Além disso, devido ao alto contágio da população exposta ao vírus, logo os insumos se tornaram escassos, fazendo com que entrasse em colapso todo o sistema de saúde do Estado do Amazonas.

Em seu voto, Lewandowski mencionou matérias jornalísticas discorrendo sobre o caso. A título de exemplo:

As imagens do desespero nos hospitais da capital do Amazonas correram o mundo pelas redes sociais. Médicos e enfermeiros tentavam salvar os pacientes da morte por asfixia: faltava ar para os internados. Não havia cilindros de oxigênio suficientes para os que estavam em UTI’s. Com o aumento do número de casos da doença e escassez de insumos, o colapso do sistema era uma “tragédia anunciada” [...] “os profissionais ficaram por horas comprimindo aquele ambu (bomba de ar) para manter os pacientes respirando. É um cenário de guerra”.17

Ainda, expressou que:

Não se deve perder de vista, no entanto, sobretudo neste momento de arrebatador sofrimento coletivo, em meio a uma pandemia que vitimou centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo, que não é dado aos agentes públicos tergiversar sobre as medidas cabíveis para debelá-la, as quais devem guiar-se pelos parâmetros expressos na Constituição e na legislação em vigor, sob pena de responsabilidade. 18

Em que pese, tratando-se da matéria de competência sobre a área da saúde entre os entes federados, o direito-dever de legislar é compartilhado entre União, estados e municípios. Ou seja, a competência administrativa é comum a todos os entes federativos, que devem desenvolver políticas públicas destinadas à promoção, proteção e recuperação da saúde. Portanto, embora a competência não seja privativa da União, ela não está imune às responsabilidades, levando-se em conta a cooperação. Devido ao Brasil estar em uma calamidade pública19, reforça-se ainda mais o dever do Governo Federal em combater a crise sanitária contra o novo coronavírus (art. 21, inc. XVIII, CF).

Finalmente, o terceiro julgado que merece destaque é a ACO nº 3.490/DF, em que o Estado da Bahia requereu que a União Federal fosse obrigada a fornecer medicamentos que complementam o “kit intubação”20.

Rosa Weber, relatora da ação, dispôs em acórdão do Referendo em Tutela Provisória:

EMENTA TUTELA DE URGÊNCIA EM AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. DIREITO SOCIAL À SAÚDE (CF, ARTS. 6º E 196). PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS. COVID-19. INSUMOS DESTINADOS A PACIENTES GRAVES (INTUBAÇÃO OROTRAQUEAL): KIT INTUBAÇÃO. RISCO DE DESABASTECIMENTO NA REDE DE SAÚDE PÚBLICA. O PLANEJAMENTO SANITÁRIO COMO VERTENTE DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: O GERENCIAMENTO COLETIVO DE RISCOS. ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA CONCRETIZAR DIREITOS CONSTITUCIONAIS SOCIAIS. LIMITES À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA NO IMPLEMENTO DE POLÍTICAS DE SAÚDE PÚBLICA. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 300 DO CPC. PROBABILIDADE DE DIREITO EVIDENCIADA. RISCO DE DANO CARACTERIZADO: NÃO HÁ NADA MAIS URGENTE DO QUE O DESEJO DE VIVER. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA DEFERIDA. REFERENDO. 1. As incertezas sobre a progressão da pandemia e a imprevisibilidade da conjuntura de saúde pública causada pela COVID-19 autorizam a fração genérica do pedido, no que diz ao quantitativo dos insumos do kit intubação, porquanto inviável ‘determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato’. Inépcia da petição inicial não configurada (art. 322, § 2º, c/c art. 324, § 1º, II, do CPC/15). 2. O princípio da precaução orienta as políticas públicas sanitárias a gerenciar de forma imediata os riscos coletivos, com o olhar voltado para o futuro: in dubio pro salute. Dever estatal de enfrentamento da emergência sanitária com estratégia multilateral e planejamento estratégico, mediante definição de critérios preventivos de aquisição, disponibilidade e distribuição dos insumos. Precedentes. 3. Comprovado o gerenciamento errático em situação de emergência sanitária, é viável a interferência judicial para a concretização do direito social à saúde, cujas ações e serviços são marcados constitucionalmente pelo acesso igualitário e universal (CF, arts. 6º e 196). 4. Tutela de urgência deferida para determinar que a União Federal apresente um planejamento detalhado das ações em prática, e das que pretende adotar, com vista a garantir o suprimento dos insumos do kit intubação. O plano deverá contemplar, no mínimo: (i) o nível atual dos estoques de medicamentos, bem como a forma e periodicidade de monitoramento dos estoques; (ii) a previsão de aquisição de novos medicamentos, esclarecendo os cronogramas de execução; (iii) os recursos financeiros para fazer frente às necessidades de aquisição e distribuição dos insumos, considerando o prognóstico da pandemia no território nacional; (iv) os critérios que adotará para distribuir os insumos aos entes subnacionais e às unidades hospitalares; e (v) a forma pela qual dará ampla publicidade ao planejamento e à execução das ações. 5. Medida liminar referendada.21

A Ministra enfatizou, ainda, que a própria União reconheceu dificuldades para evitar o risco de desabastecimento de insumos, em que pese tenha iniciativas para esse fim:

Contudo, a própria União reconhece as dificuldades em evitar o risco de desabastecimento de insumos. Admite ‘(....) a ocorrência de problemas relacionados ao abastecimento, em diversos hospitais, de medicamentos como anestésicos, sedativos, bloqueadores neuromusculares e agentes adjuvantes, dentre outros, em decorrência do aumento da disseminação do Coronavírus no país e do crescente aumento da necessidade de intubação ortotraqueal (IOT) (evento 17). Na mesma linha, o Ministro da Saúde, em entrevista datada de 21.4.2021, esclarece que o Governo Federal ‘[está] unindo forças para que não haja desabastecimento no mercado e que possamos vencer esta fase mais crítica (evento 26). (grifo no original)22

Esses relatos, para Weber, dão força a alegação de ameaça de lesão à saúde pública, bem como demonstram a necessidade de ajustar o gerenciamento dos insumos, para que se possa dar segurança à população e previsibilidade aos demais entes federados sobre o enfrentamento da pandemia. Ela destacou, ainda, que só nos primeiros meses de 2021, os números de óbitos decorrentes do coronavírus superaram todo o ano de 2020 e, por isso, ressaltou a necessidade de um planejamento estratégico e estratégia multilateral para o enfrentamento da emergência pública. Isso implica, consequentemente, em uma definição dos critérios preventivos para a aquisição, disponibilidade e distribuição de insumos.

Além disso, rechaçou as medidas de improviso e sem comprovação científica para o combate da pandemia, as quais considera ineficazes:

De fato, ao Governo Federal se impõe a adoção de medidas com respaldo técnico e científico, e que sejam implantadas, as políticas públicas, a partir de atos administrativos lógicos e coerentes. Juridicamente repelidas por esta Suprema Corte, por inócuas, medidas de improviso e sem comprovação científica para combater a pandemia do Coronavírus. Firmado em recentes precedentes que o caminho para combater uma pandemia dessa natureza passa, prioritariamente, à luz da Constituição Federal, pelo estado da arte das evidenciais científicas. O discurso negacionista é um desserviço para a tutela da saúde pública nacional. (grifo nosso)23

Diante disso, Weber destacou o princípio da precaução, voltado para o in dubio pro salute, que deve orientar as políticas públicas sanitárias. Também, conforme o art. 21, XVIII, da CF, compete à União o planejamento e a promoção permanente da defesa contra as calamidades públicas. Em menção à ADPF nº 672, de relatoria do Min. Alexandre de Moraes, destaca:

[...] o elã do federalismo de cooperação impõe ao Governo Federal ‘atuar como ente central no planejamento e coordenação de ações integradas [...], em especial de segurança sanitária e epidemiológica no enfrentamento à pandemia da COVID-19, inclusive no tocante ao financiamento e apoio logístico aos órgãos regionais e locais de saúde pública’ [...]. (grifos nossos)24

E, quanto a interferência do Judiciário nas ações do Executivo para o combate à crise, seguindo os mesmos preceitos na ADPF nº 756, explanou:

Em absoluto se trata, a determinação de apresentação de planejamento sanitário, de interferência indevida do Judiciário nas ações executivas de combate à crise. Uma vez identificada omissão estatal ou gerenciamento deficiente em situação de emergência sanitária, como aparentemente ora se apresenta, é viável a atuação do Judiciário para a concretização do direito social à saúde, cujas ações e serviços são marcadas constitucionalmente pelo acesso igualitário e universal (CF, arts. 6º e 196). [...]. Especificamente ao ensejo da pandemia, ‘[e]m situações como esta sob análise, marcada por incertezas quanto às medidas mais apropriadas para o enfrentamento da pandemia, incumbe ao Supremo Tribunal Federal exercer o seu poder contramajoritário, oferecendo a necessária resistência às ações e omissões de outros Poderes da República de maneira a garantir a integral observância dos ditames constitucionais, na espécie, daqueles dizem respeito à proteção da vida e da saúde’ (ADPF 756, Rel. Min. Ricardo Lewandowski) (grifos nossos)25

Assim, diante da probabilidade do direito e do perigo da demora, Weber optou em deferir a tutela provisória: “O não endereçamento ágil e racional do problema pode multiplicar esse número de óbitos e potencializar a tragédia humanitária. Não há nada mais urgente do que o desejo de viver [...]”26.

Então, assim como a Suprema Corte determinou nos casos anteriores, para a apresentação de planos compreensíveis e detalhados, aqui não seria diferente. Portanto, a relatora impôs: “Igual providência de planejamento deve ser endereçada ao abastecimento dos insumos do kit intubação” 27.

Apresentado isso, é notório que o planejamento sanitário do Governo Federal e seu gerenciamento no enfrentamento da pandemia no país estava deficiente, insuficiente e escasso para atender toda população. Logo, viu-se necessário a atuação do Judiciário para a efetiva e concretização do direito social à saúde.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Silvio de Jesus Barbiot Neto

Especializando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Advogado inscrito na OAB/PR 119.728.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBIOT NETO, Silvio Jesus. A responsabilidade civil por má condução estatal no gerenciamento de respiradores e leitos de UTI.: Omissão frente à crise sanitária provocada pela Covid-19 no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7355, 21 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105700. Acesso em: 27 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos