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Métodos de hermenêutica constitucional:

uma pesquisa bibliográfica

12/09/2023 às 18:14
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A Constituição, em razão de suas especificidades, que destoam das demais normas do ordenamento jurídico, exige uma hermenêutica própria.

Resumo: Interpretação consiste em extrair um sentido do texto, enquanto hermenêutica é ciência da interpretação, cujos objetos são interpretação, integração, aplicação e concretização. Assim, interpretação e hermenêutica não se confundem. A Constituição, em razão de sua natureza política e supremacia hierárquica, necessita de uma hermenêutica própria: a hermenêutica constitucional. Os métodos da hermenêutica constitucional são fórmulas que o intérprete deve dispor na condução do processo interpretativo das normas constitucionais, as quais não são excludentes entre si. O método jurídico clássico trata da utilização dos cânones clássicos de interpretação no Direito Constitucional. O método tópico problemático preceitua que se deve partir do problema concreto para a norma, buscando resolver a questão controvertida. O método científico-espiritual propõe que a interpretação deve ocorrer a partir de uma combinação entre os valores presentes na Constituição e a realidade social. O método hermenêutico-concretizador informa que cabe ao intérprete, a partir da sua pré-compreensão, concretizar a norma em um contexto histórico. Já o método normativo-estruturante defende a ruptura entre o texto da Constituição e a norma, já que esta deve considerar as suas próprias finalidades e os fatos sociais a serem regulados. A compreensão dos referidos métodos mostra-se relevante, em razão da força normativa da Constituição, cujas normas têm plena efetividade e orientam as relações sociais e a própria organização do Estado.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Constituição. Hermenêutica Constitucional.

Sumário: Introdução. 1. Métodos da Hermenêutica Constitucional. 1.1 O Método Jurídico Clássico ou Hermenêutico Clássico. 1.2 O Método Tópico Problemático ou Método da Tópica. 1.3 O Método Científico-Espiritual. 1.4 O Método Hermenêutico-Concretizador. 1.5 O Método Normativo-Estruturante. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Introdução

De início, necessário esclarecer a diferença entre hermenêutica e interpretação, uma vez que aquela está relacionada à intermediação do conhecimento entre o emissor da mensagem e o seu receptor, enquanto esta consiste em buscar extrair um sentido do texto. Segundo Nascimento (2022, p. 421), hermenêutica é a ciência da interpretação, que não se equivale aos seus objetos: interpretação, integração, aplicação e concretização.

A hermenêutica, nesse sentido, é ciência que apresenta os métodos e os processos que devem ser observados pelo intérprete no momento da atividade de interpretação do texto. A interpretação ocorre no caso concreto, pois busca extrair do texto o seu real alcance, o seu significado.

A Constituição, em razão de suas especificidades, que destoam das demais normas do ordenamento jurídico, exige uma hermenêutica própria: a hermenêutica constitucional.

Bonavides (2004, p. 459-464) apresenta dois aspectos que diferenciam as normas constitucionais das demais normas jurídicas. As normas constitucionais são de superior categoria em relação às normas da legislação ordinária, seja em razão da natureza que as revestem (constitucionalidade material), seja em razão do instrumento a que se vinculam (constitucionalidade formal). O segundo aspecto refere-se à natureza política das normas constitucionais, porquanto regem a estrutura fundamental do Estado, atribui competências e prevê direitos fundamentais básicos.

Assim, em razão das peculiaridades das normas constitucionais no sistema jurídico, são exigidos métodos igualmente próprios, complementares e adequados à complexidade constitucional.

Os métodos da hermenêutica constitucional são como fórmulas que o intérprete deve dispor na condução do processo interpretativo. Nas palavras de Nascimento (2022, p. 471): “[...] seriam modelos pré-estabelecidos de como refletir sobre os problemas hermenêuticos constitucionais, orientando o intérprete sobre como conduzir o ‘passo a passo’ da construção das soluções almejadas.”

Diversos são os métodos propostos pela doutrina para esclarecer os detalhes de como o processo interpretativo das normas constitucionais deve ser conduzido pelo intérprete. O presente trabalho abordará, a partir de uma pesquisa bibliográfica, os principais métodos trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência: método jurídico clássico, método tópico problemático, método científico-espiritual, método hermenêutico-concretizador e método normativo-estruturante.

Este trabalho revela-se de fundamental importância para o meio científico, uma vez que a interpretação da Constituição, norma de superior hierarquia no ordenamento jurídico, pressupõe a utilização de métodos que considerem as especificidades de suas normas. Imprescindível o estudo de uma metodologia apropriada à hermenêutica constitucional, notadamente em face da força normativa da Constituição, cujas normas orientam as relações sociais e a própria organização do Estado.

1. Métodos da Hermenêutica Constitucional

1.1 O Método Jurídico Clássico ou Hermenêutico Clássico

Este método considera que a Constituição é uma lei, por isso interpretar a Constituição equivale a interpretar uma lei. Neste método, o papel do intérprete se restringe a buscar o verdadeiro sentido da norma constitucional, atribuindo especial importância ao seu texto.

Para se compreender o sentido e o significado da norma constitucional, devem ser utilizadas as regras tradicionais da hermenêutica ou cânones clássicos de interpretação de Savigny, quais sejam: gramatical, lógico, histórico e sistemático.

O cânone gramatical ou literal preceitua a análise do texto constitucional consoante o sentido estrito das palavras nele contidas, propiciando, não raras vezes, interpretações restritivas.

A interpretação lógica visa harmonizar as proposições de linguagem de forma congruente, coesa e coerente. Com efeito, busca a subsunção do fato à norma de acordo com o que é coerente dentro do sistema jurídico.

O cânone histórico analisa o contexto de criação da norma e as razões que motivaram a edição do texto normativo. Nascimento (2022, p. 436) destaca a importância deste cânone, na medida em que é natural que o Direito, uma ciência cultural, sofra influências da história e da formação social do povo.

Já o cânone sistemático trata as normas em sua integralidade, razão pela qual a norma jurídica não deve ser interpretada de forma isolada, mas sim considerando todo o conjunto normativo.

Tais fatores hermenêuticos garantem a força normativa da Constituição, dada a dupla relevância atribuída ao texto constitucional, que serve de ponto de partida da interpretação e como limite da atuação do intérprete. Conforme ensina Canotilho (1993, p. 213):

“A articulação destes vários factores hermenêuticos conduzir-nos-á a uma interpretação jurídica (= método-jurídico) da constituição em que o princípio da legalidade (= normatividade) constitucional é fundamentalmente salvaguardado pela dupla relevância atribuída ao texto: (1) ponto de partida para a tarefa de mediação ou captação de sentido por parte dos concretizadores das normas constitucionais; (2) limite da tarefa de interpretação, pois a função do intérprete será a de desvendar o sentido do texto sem ir para além, e muito menos contra, o teor literal do preceito.”

1.2 O Método Tópico Problemático ou Método da Tópica

Trata-se de método cujo grande expoente foi Theodor Viehweg (1907-1988) e que se baseia no problema a ser resolvido e na argumentação em torno do problema para se alcançar o resultado. Segundo Nascimento (2022, p. 471):

“A tópica consiste em uma técnica aristotélica de investigação de premissas, uma teoria da natureza de tais premissas bem como de seu emprego na fundamentação do Direito, além de ser uma teoria de argumentação focada em resolver os problemas jurídicos partindo do caso concreto, com o objetivo de criar ‘compreensões prévias’ (Vorverstândnis) para solver as questões controvertidas.”

De acordo com o método tópico-problemático, somente a partir da análise do problema concreto será possível encontrar o sentido da norma predominante. Consiste em um movimento de partir do problema concreto para se alcançar a norma, o que faz com que a interpretação tenha um caráter prático, haja vista a busca de solução para os problemas. Nascimento (2022, p. 471) entende que, ao partir do caso concreto, a tópica abre margem para um Direito que surge na realidade, daí a noção de teoria material da Constituição.

Conforme ensina Bonavides (2004, p. 491): “Trata-se de uma técnica de chegar ao problema ‘onde ele se encontra’, elegendo o critério ou os critérios recomendáveis a uma solução adequada.”

O texto constitucional apresenta um caráter aberto, e os diversos pontos de vista dos intérpretes servem de ponto de partida para a obtenção da solução mais adequada ao problema.

Segundo Canotilho (1993, p. 214), a grande deficiência deste método é que pode conduzir a um casuísmo sem limites, que sacrifica a primazia da norma constitucional em prol da busca da solução de um problema.

1.3 O Método Científico-Espiritual

Possui como grande expoente Rudolf Smend (1882-1975) que parte da premissa de que a Constituição, que rege a organização do Estado, deve ser interpretada como um conjunto, uma unidade de sentido.

Segundo Smend, a Constituição é um ordenamento cujo seio transcorre a realidade vivencial do Estado, o seu processo de integração, que compõe um conjunto de fatores integrativos distintos com diversos graus de legitimidade. Tais fatores integrativos têm destaque nos valores materiais e sociais constantes na Constituição, sendo ela o principal elemento de integração da comunidade.

O autor Canotilho (1993, p. 215) preceitua que as premissas básicas do método científico-espiritual:

“[...] baseiam-se na necessidade de interpretação da constituição dever de ter em conta: (i) as bases de valoração (= ordem de valores, sistema de valores) subjacentes ao texto constitucional; (ii) o sentido e a realidade da constituição como elemento do processo de integração. O recurso à ordem de valores obriga a uma «captação espiritual» do conteúdo axiológico último da ordem constitucional. A ideia de que a interpretação visa não tanto dar resposta ao sentido dos conceitos do texto constitucional, mas fundamentalmente compreender o sentido e realidade de uma lei constitucional, conduz à articulação desta lei com a integração espiritual real da comunidade (com os seus valores, com a realidade existencial do Estado).”

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No método científico-espiritual, a apreciação da norma constitucional não se pauta pela literalidade da norma, mas sim pela realidade social e pelos valores presentes no texto constitucional. A interpretação da Constituição tem por objetivo compreender o sentido e a realidade da norma constitucional, de forma a articular a norma com os valores e a realidade existencial da comunidade.

De acordo com Lenza (2019, p. 260):

“A análise da norma constitucional não se fixa na literalidade da norma, mas parte da realidade social e dos valores subjacentes do texto da Constituição.

Assim, a Constituição deve ser interpretada como algo dinâmico e que se renova constantemente, no compasso das modificações da vida em sociedade.”

A Constituição, segundo o método científico-espiritual, é apreciada em sua integralidade, em seus aspectos materiais, que servem de fundamento para a interpretação. Nenhum instituto de Direito Constitucional deve ser compreendido em si mesmo, mas sim dentro do conjunto e da universalidade expressos pela Constituição.

Nota-se, dessa forma, que a Constituição deve ser interpretada de forma dinâmica, acompanhando as modificações do cotidiano, daí a importância dos valores e da realidade social.

1.4 O Método Hermenêutico-Concretizador

Este método foi desenvolvido por Konrad Hesse (1975-1987) e preceitua que a leitura de um texto tem início a partir da pré-compreensão do intérprete do seu sentido. Com efeito, o intérprete capta o sentido do texto normativo por meio de sua existência histórica e pré-compreensão, o que faz com que ele, em interação da realidade, construa o sentido da norma constitucional.

O método hermenêutico-concretizador, diferentemente do método tópico-problemático, parte da norma constitucional para o problema e, segundo Lenza (2019, p. 260), merecem ser destacados os seus pressupostos interpretativos:

“■ pressupostos subjetivos: o intérprete vale-se de suas pré-compreensões sobre o tema para obter o sentido da norma;

■ pressupostos objetivos: o intérprete atua como mediador entre a norma e a situação concreta, tendo como “pano de fundo” a realidade social;

■ círculo hermenêutico: é o “movimento de ir e vir” do subjetivo para o objetivo, até que o intérprete chegue a uma compreensão da norma.”

Nascimento (2022, p. 473) assim explica os pressupostos do método hermenêutico-concretizador:

“i) o intérprete é pautado por seus pré-conceitos e pré-juizos (pré-compreensões); ii) o texto normativo constitucional carrega uma contextualização histórica e é influenciado pela atual realidade constitucional de modo inescapável, o que faz como que esses elementos sejam considerados diante do caso concreto apreciado (contexto); iii) a partir desse caldeirão de fatos e sentidos (contextuais e subjetivos), em um ‘ir e vir dialético’ (círculo hermenêutico), a norma ser construída.”

Nesse sentido, Konrad Hesse propõe que a interpretação da norma constitucional ocorra a partir da pré-compreensão do intérprete, a quem compete o papel criativo de obter o sentido e concretizar a norma em uma situação histórica. O intérprete, assim, atua como intermediador entre o texto e a situação em que se aplica (contexto), construindo o sentido normativo e transformando a interpretação em um “movimento de ir e vir”.

1.5 O Método Normativo-Estruturante

O método normativo estruturante foi desenvolvido por Friedrich Müller (1938) e preceitua que a concretização da norma extrapola a interpretação do seu texto. Este método reconhece a inexistência de identidade entre a norma jurídica e o texto normativo, pois o conteúdo literal da norma deve ser apreciado à luz da realidade social.

Canotilho (1993, p. 215) define da seguinte forma os postulados do método normativo estruturante:

“(1) a metódica jurídica tem como tarefa investigar as várias funções de realização do direito constitucional (legislação, administração, jurisdição) (2) e para captar a transformação das normas a concretizar numa «decisão prática» (a metódica pretende-se ligada a resolução de problemas práticos) (3) a metódica deve preocupar-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido de normatividade e de processo de concretização, com a conexão da concretização normativa e com as funções jurídico-práticas; (4) elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; (5) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. MÚLLER), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); (6) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um «domínio normativo», isto é, um «pedaço de realidade social» que o programa normativo só parcialmente contempla; (7) consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: com os elementos resultantes da interpretação do texto da norma (= elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa).”

Nesse sentido, não é possível interpretar o texto constitucional somente a partir do seu conteúdo literal, uma vez que o texto não produz sozinho a norma. O sentido da norma é obtido por meio da interação entre o texto e a realidade fática, os fatores sociais.

O texto é apenas a “ponta do iceberg” da norma, uma das etapas de sua concretização, correspondendo ao programa normativo (comando jurídico), porém a norma contempla o domínio normativo, ou seja, a realidade social. A concretização da norma, portanto, envolve a interação entre a interpretação do texto normativo (elemento literal) e o domínio normativo, que seria a forma pela a norma incide sobre a realidade social.

Conclusão

As normas constitucionais são de superior hierarquia no ordenamento jurídico e possuem reflexos nos diversos ramos do Direito. Os métodos da hermenêutica constitucional, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência, são diferentes, todavia, em geral, reciprocamente complementares, conforme ensina Canotilho (1993, p. 213). O objetivo de tais métodos é dar maior concretude e eficácia social à Constituição, a fim de conceder maior proteção aos direitos assegurados em seu texto.

Conclui-se que o presente trabalho contribuiu para o estudo e para a compreensão dos métodos de hermenêutica constitucional. Portanto, este artigo cientifico cumpriu o seu objetivo, qual seja, brevemente compreender e entender os métodos de hermenêutica constitucional a partir da coleta de elementos contidos nas obras de diversos autores do Direito Constitucional.

Referências Bibliográficas

BASTOS. Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 4ª edição. Revista e Atualizada. São Paulo: Malheiros, 2014.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª edição. Coimbra: Almedina, 1993.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional / Bernardo Gonçalves Fernandes - 9 ed. rev, ampl. e atual. - Salvador: Juspodivm, 2017.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1991.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. - 23. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

NASCIMENTO, Filippe Augusto dos Santos. Manual de Humanística - Introdução às Ciências Humanas e à Teoria do Direito para Carreiras Jurídicas / Filippe Augusto dos Santos Nascimento - São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15ª edição, São Paulo: Saraiva. 2020.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Clara Maciel Antunes. Métodos de hermenêutica constitucional:: uma pesquisa bibliográfica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7377, 12 set. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105499. Acesso em: 28 abr. 2024.

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