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Judicialização de políticas públicas e ativismo judicial

como os tribunais protegem os direitos sociais?

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Embora relevante para a concretização dos direitos sociais assegurados na Constituição, o ativismo judicial é alvo de indagações quanto a sua legitimidade.

Resumo: O presente artigo aborda o modo como os tribunais atuam na defesa dos direitos sociais, além de alguns conceitos necessários para a compreensão do tema, tais como Políticas Públicas e Ativismo Judicial. A partir da construção de uma base teórica, destaca-se que, porquanto a gestão de políticas públicas, ou seja, os métodos para efetivação desses direitos, têm caráter inerentemente político, portanto, teoricamente encontram-se no âmbito das atribuições dos Poderes Legislativo e Executivo. Observa-se, ainda, como a Suprema Corte atua nos casos envolvendo direitos sociais por meio da análise de sentença. A pesquisa foi realizada utilizando a metodologia do estudo de caso através de análise exploratória-descritiva, seguindo a Teoria Normativa e Positiva, presente tanto no Direito quanto na Ciência Política.

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Políticas públicas. Supremo Tribunal Federal. Direitos sociais.

Área do Direito: Direito Constitucional e Direito Administrativo

Sumário: Introdução. 1. Direitos Sociais. 2. Políticas Públicas. 3. Judicialização da Política. 4. Ativismo Judicial. 5. O direito à saúde e o Recurso Extraordinário 657.718/MG. Conclusão. Referências.


Introdução

A partir de uma análise do conceito de cidadania na teoria de T. H. Marshall (apud ARRUDA, BERTOLINI, CUNHA, 2016, p. 273), é possível compreendê-lo através de três dimensões: civil, política e social, as quais são concretizadas a partir da garantia dos direitos correspondentes. Os civis compreendem os direitos necessários à liberdade individual, os políticos se relacionam ao direito de participação do cidadão na vida pública e os sociais referem-se ao direito do cidadão a um mínimo de bem-estar econômico e segurança.

A fim de promover tais direitos, em especial os sociais, o Estado atua no desenvolvimento de políticas públicas, que direcionam recursos do orçamento para atender as necessidades da população. A omissão ou ineficiência estatal no cumprimento de seus deveres estimula a judicialização dessas demandas, o que implica na transformação do Poder Judiciário em outra esfera utilizada pela sociedade a fim de cobrar o que teoricamente lhe é garantido, visto que não foi possibilitada a realização no âmbito político.

A negligência do poder público em suprir as necessidades da população propicia um sistema excludente, visto que é necessário um mínimo de acesso à políticas públicas de saúde, moradia, educação, entre outras, a fim de viabilizar a participação do cidadão na vida pública, permitindo assim o seu usufruto de uma cidadania plena. É relevante pontuar que, conforme Arruda, Bertolini e Cunha (2016, p. 275), no Brasil o processo de exclusão “antes de ser social é econômico, político e cultural”, sendo esse um dos fatores determinantes para tal fato.

A atuação do judiciário ao decidir questões de caráter político, tais como matérias de políticas públicas, pode ser classificada como ativista, quando os tribunais excedem os limites de sua área de competência e “legislam”, decidindo questões in abstrato que condicionam a atuação do Estado quanto àquela matéria, ou auto contenciosa, quando agem de maneira comedida diante das demandas que lhes são apresentadas. Em ambos os casos ocorrem constantes questionamentos que esse estudo se propõe a analisar, além de investigar de que forma o Supremo Tribunal Federal atua na defesa desses direitos e quais são suas repercussões políticas. Busca-se, em geral, compreender o diálogo institucional entre o Judiciário e os demais poderes.

Esta pesquisa se justifica uma vez que seus resultados são prioritariamente importantes para que entes públicos e privados, especialmente a administração pública, desenvolvam projetos relacionados com as instituições judiciárias. Ademais, trata-se de matéria de interesse dos dirigentes e membros do Poder Judiciário e da comunidade acadêmica em geral, principalmente professores e estudantes de direito e de ciência política.

A abordagem metodológica utilizada para realizar o estudo desse fenômeno está presente nos campos do Direito e da Ciência Política, aqui identificadas, respectivamente, como Teoria Normativa e Positiva. O método definido para o desenvolvimento desta pesquisa são os de revisão bibliográfica e estudo de caso através de análise exploratória-descritiva. Neste contexto, o projeto realizou a busca de dados e sua apreciação a partir das construções empreendidas pela doutrina constitucional e administrativa como elemento do presente trabalho, a partir de uma base teórica composta por especialistas do Direito Público, com vistas a responder a seguinte pergunta de pesquisa: como os tribunais protegem os direitos sociais?

1. Direitos Sociais

O processo histórico de aquisição de direitos se iniciou, na maioria das sociedades, a partir da previsão do exercício dos direitos civis, cujo desdobramento natural, segundo Arruda, Bertolini e Cunha (2016, p. 275), é o surgimento dos direitos políticos, uma vez que estes derivam da aquisição da liberdade e cidadania. Inicialmente “não se tratava da criação de novos direitos, mas de alargamento do status já gozado por todos, uma vez que se resumia a doação de velhos direitos a novos setores da população” (MARSHALL, 1967), posto que a possibilidade de influir na vida pública já existia, porém de forma restrita a grupos específicos. A partir da difusão dos direitos políticos a todos, foi possível a participação da classe trabalhadora no governo, o que posteriormente possibilitou uma busca concreta pela garantia dos direitos sociais.

Em um contexto global, a demanda por direitos sociais se expandiu com a consolidação da sociedade industrial como uma tentativa de diminuir o mal causado pela pobreza e pela desigualdade. Impulsionada por um sistema em que a pouca interferência estatal não possibilitava o suprimento das necessidades da população na época, ocorreu então a transição do Estado Liberal para o Estado de Bem-Estar Social. Apesar presentes em alguns textos constitucionais desde a constituição francesa de 1793, os direitos sociais foram mais amplamente contemplados a partir do século XX, especialmente ao serem reconhecidos em 1948 pela Declaração Universal de Direitos Humanos elaborada pela Organização das Nações Unidas.

Tais direitos são tidos normalmente como aqueles que necessitam de prestações positivas realizadas pelo Estado para sua concretização, sendo eles descritos por Bedin (2002, p. 172), não como direitos estabelecidos “contra o Estado” ou de “participar no Estado”, mas direitos garantidos “através ou por meio do Estado”.

Embora essa seja uma clássica e difundida definição, é pertinente pontuar que, segundo a teoria de Alexy (apud SARLET, TIMM, 2008, p. 15), todos os direitos fundamentais apresentam uma dimensão prestacional e uma defensiva. Tal característica é observável a partir da análise do direito à moradia, cuja dimensão negativa obsta o Estado de lesar o direito do cidadão à moradia, com a vedação da penhora do bem de família por exemplo, e sua dimensão positiva implica no dever estatal de direcionamento de recursos para a promoção de políticas públicas que assegurem moradia à população.

Assim, é possível depreender que o status de um direito como social não advém unicamente do caráter prestacional da atuação do Estado, mas da intenção do Constituinte de cada país que os classificou. Logo, direitos que resguardam a liberdade e bens jurídicos de grupos vulneráveis frente a poderes tanto estatais como sociais e econômicos também podem ser tidos como direitos sociais, tais como são os direitos dos trabalhadores (SARLET, TIMM, 2008, p. 16).

Embora os direitos sociais sejam o cerne de discussões complexas quanto ao seu regime jurídico, bem como quanto a seu caráter de fundamentalidade, sua necessidade ou não de constitucionalização, dentre outros aspectos, atualmente a pauta de maior destaque a respeito dessa temática se refere a efetivação desses direitos, já consagrados em múltiplas constituições pelo mundo.

Os direitos civis de liberdade e políticos de participação democrática, os quais requerem via de regra apenas uma atuação negativa do Estado, em geral já tem sua proteção negligenciada. É evidente, portanto, que os sociais são os mais afetados pela limitação de recursos, uma vez que inerentemente apresentam um nível de exigência mais amplo e profundo, dado que requerem uma ação positiva do Poder Público para a sua garantia, e sua promoção é a primeira a sentir os efeitos das crises políticas e econômicas.

Posto que há usualmente a necessidade de uma ação positiva do Estado, a efetivação desses direitos se dá por meio da promoção de políticas de prestação de serviços públicos, as quais requerem um grande deslocamento de recursos. Embora o marco normativo seja de extrema relevância, a simples introdução dos direitos sociais nos textos constitucionais não é suficiente para garantir per si sua efetividade e anular os impedimentos de variada natureza para sua concretização. Com o intuito de promover de fato tais direitos fundamentais, é essencial que o próprio Estado disponibilize os meios para sua utilização por toda sociedade mediante políticas públicas proporcionadas pelos entes federativos.

2. Políticas Públicas

Uma das definições possíveis para o conceito de Políticas públicas é que são um conjunto de ações praticadas pelo Estado com o intuito de implementar o programa político proposto, tendo em vista as limitações impostas constitucionalmente e os recursos à disposição. Para Maria Paula Dallari Bucci (2002) são “programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.

Haja vista que existe um custo necessário para a proteção dos direitos fundamentais e que os fundos estatais são limitados, é perceptível que a concretização das previsões constitucionais requer o direcionamento de recursos para políticas específicas, o que significa o deslocamento desse capital de outras áreas possíveis. Nesse sentido, adota-se frequentemente o princípio da reserva do possível, que garante ao Estado a possibilidade de se reservar a cumprir apenas o que é factível dentro do orçamento. A escolha de quais projetos receberão esses fundos, e consequentemente de que pessoas terão suas necessidades atendidas, de que forma e a que tempo, cabe aos entes políticos, o que torna esse mecanismo um instrumento democrático importante para a geração de responsividade do governo.

A disponibilidade de recursos é inversamente proporcional à necessidade de deliberação quanto a sua destinação. Destarte, é fundamental que a população busque sempre meios de inclusão nas decisões, através do aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão participativa do orçamento público e do processo de administração de políticas públicas propriamente dito.

São numerosas as instituições importantes e responsáveis pela proteção de direitos, contudo o Poder Judiciário, pela sua própria natureza e finalidade, é a que detém o dever de assegurar juridicamente a proteção desses bens fundamentais dos cidadãos.

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3. Judicialização da Política

Com o propósito de assegurar a efetivação dos direitos previstos na Constituição, foram instituídos instrumentos jurídicos de modo a garantir sua implementação, tais como o mandado de segurança e a ação direta de inconstitucionalidade. Por conseguinte, o Poder Judiciário utiliza esses instrumentos em defesa dos direitos fundamentais, sociais em especial, da população. Esse contexto se torna propício para o fenômeno da Judicialização da Política, observado em diversos países, por meio do qual há um crescimento desproporcional do Judiciário frente aos demais poderes.

É relevante considerar, contudo, que esse comportamento do Poder Judiciário sofre múltiplos questionamentos, uma vez que tal sobreposição frente aos demais poderes desafia não apenas o princípio da separação dos poderes, mas também da legalidade e o da legitimidade democrática, quanto à possibilidade da instituição judicial para decidir questões propriamente políticas.

Contudo, segundo a linha teórica de Ana Paula Barcellos (2008) o controle judicial de políticas públicas pode ser justificado diante de suas principais críticas. Tais críticas são a teoria da constituição, a filosófica e a operacional, porém há argumentos de que existem formas de exigir a garantia dos direitos sociais pela via judicial e não obstante evitar a interferência nas esferas de competência dos poderes majoritários.

Políticas públicas são essencialmente matérias de caráter político. Assim, muitos teóricos da constituição criticam o controle judicial com base no desequilíbrio das competências do sistema de pesos e contrapesos, qual seja a crítica com base na teoria jurídico constitucional. Todavia, apesar de existir uma parte não nuclear dos princípios fundamentais que é o espaço de discricionariedade dos entes políticos, existe uma parte nuclear que não permite tal discricionariedade e portanto seu controle por outro poder não interfere na esfera política necessariamente.

Além disso, a ausência de controle inviabilizaria o próprio exercício da democracia, visto que o mínimo existencial dos direitos fundamentais deve ser garantido para que haja a possibilidade de qualquer tipo de controle social e político sobre os governantes. Barcellos (2008) afirma que “na ausência de controle social, a gestão das políticas públicas no ambiente das deliberações majoritárias tende a ser marcada pela corrupção, pela ineficácia e pelo clientelismo”.

A crítica filosófica questiona o que levaria os juristas a decidir melhor as questões de políticas públicas do que os agentes públicos eleitos. Inicialmente se tem que a crítica filosófica não é cabível no que tange a questões que já tem seus limites estabelecidos na Constituição. Assim, qualquer decisão acerca dessa matéria, ainda que majoritária, que atente contra normas constitucionais poderá ser objeto de controle jurisdicional, dado que a Constituição é o limite democrático à democracia e cabe ao jurista defendê-la.

Ainda sobre a crítica filosófica, ela parte de uma das ideologias mais seguidas na era pós-moderna, o relativismo. O pensamento predominante na sociedade é a ausência de consensos morais e distinções exatas entre o que é certo e errado, visto que tudo é relativo e variável de acordo como o intérprete. Tal corrente tende a causar um desconforto na população quando diante de julgamentos baseados em concepções morais definitivas.

“Se o relativismo moral generalizado não é consistente, é possível concluir que há espaços em que podem haver padrões ou consensos morais: decisões certas em oposição à erradas, boas em oposição a más. Nessa espécie de ambiente, o fundamento da posição de um indivíduo sobre determinada matéria não consistirá apenas de sua própria opinião pessoal e relativa, mas poderá ser confrontado com esses padrões. Não se trata, portanto, de conferir maior valor à opinião do juiz ou do jurista por razões subjetivas, isto é: porque se cuida de um juiz ou de um jurista. Trata-se de conferir maior valor a uma opinião porque em determinado contexto, e independentemente de seu emissor, nem todas as opiniões são equivalentes, indiferentes ou igualmente relativas; existem parâmetros morais aplicáveis que permitem afirmar que determinadas posições são certas e outras erradas e, como parece natural, as posições certas têm valor superior às erradas.” (BARCELLOS, 2008).

Além do campo dos consensos morais, também impassível de relativização é o campo técnico-científico, no qual é possível por meio de comprovações lógicas e empíricas chegar a conclusões definitivas, possibilitando assim a fixação de julgamentos como certos e errados.

“Se o juiz não pode recorrer a um fundamento normativo claro – que traz em si a legitimidade democrática própria associada a sua elaboração – e se sua decisão não se reconduz a um imperativo moral ou técnico, sua opinião, na realidade, é apenas isso: uma opinião, sem qualquer valor intrínseco especial. E entre opiniões equivalentes, terá maior valor aquela que conta com o apoio da maioria, ainda que indiretamente.” (BARCELLOS, 2008).

Na ausência desses três fundamentos – jurídico constitucional, moral ou técnico-científico – de fato não poderá o juiz ter sua opinião como superior à dos governantes democraticamente eleitos.

4. Ativismo Judicial

Embora seja legítima a atuação do poder judiciário na salvaguarda dos direitos sociais, uma vez que este é o guardião do ordenamento jurídico, os limites entre um ato meramente em defesa da constituição e um ativista, que se excede e invade a área de competência dos outros poderes, muitas vezes não são claros. Existem aspectos específicos que podem ou não ser submetidos ao controle jurisdicional a fim de evitar o fenômeno conhecido como ativismo judicial.

Devido à um contexto propício gerado, para Ernani Carvalho (2004), pela “conjunção entre democracia política, controle recíproco entre os poderes e a previsão de extenso catálogo de direitos fundamentais, com seus correspondentes instrumentos de garantia”, ocorre em diversos países um aumento na influência e nas atribuições do Poder Judiciário, o que desequilibra a estabilidade proposta pela tripartição dos poderes e abre margem para o desenvolvimento desse fenômeno.

O predomínio do Judiciário não corresponde apenas à ampliação objetiva de  suas funções, observável, segundo Maus, pelo aumento do poder de interpretação, pela crescente disposição para litigar da população e pela consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, sendo associado também a um desenvolvimento na própria percepção da sociedade quanto ao Poder Judiciário, chegando a ser descrita como detentora de contornos de veneração religiosa, com juízes considerados “profetas” ou “deuses do Olimpo do direito” (BARTH, 1974 apud MAUS, 2000, p. 185).

Autores como Kaufmann afirmam a teoria da Justiça como uma ordem superior que é revelada por meio do juiz, que seria um “receptáculo puro.” (KAUFMANN, 1927 apud MAUS, 2000, p. 186). Teoricamente, a excepcional personalidade de jurista criada por uma formação ética atua como indício da existência de uma ordem de valores justa: "uma decisão justa só pode ser tomada por uma personalidade justa" (KAUFMANN, 1927 apud MAUS, 2000, p. 186). Ocorre nesse caso uma valorização também social, e não apenas institucional, do Judiciário.

A judicialização da política se dá, segundo José María Maravall e Adam Przeworski, devido à relação entre a regra da maioria, inerente à democracia, e a rule of law, o que recai na relação entre os poderes legislativo e judiciário. O aumento da influência de uma dessas instituições é inversamente proporcional a do outro. Momentos em que o Judiciário tem preponderância quando nesses embates com o Legislativo, usurpando até certo ponto funções alheias às suas, são tidos como casos de judicialização da política. (MARAVALL, PRZEWORSKI, 2003).

Esse fenômeno se apresenta de diversas formas. Na teoria de Tate e Vallinder pode ocorrer tanto pelos controles que os tribunais exercem sobre as decisões dos poderes majoritários, ainda que no cumprimento das normas constitucionais, quanto pela influência que as formas e regras do processo judicial têm nos procedimentos dos poderes políticos, no parlamento e na administração pública.

Esse processo não deriva unicamente da intenção dos juristas de aumentar sua esfera de influência mas ocorre também por interferência dos próprios agentes eleitos, que têm na esfera judicial um novo campo para debater suas ideias que foram rechaçadas nas discussões políticas. Além disso, a transferência de determinadas temáticas para as cortes alivia esses agentes do risco que algumas decisões trariam a seu capital político, tendo em vista futuras eleições.

É relevante notar que o comportamento ativista ou autocontencioso de um tribunal em algum momento não é determinante para sua forma de solucionar todos os futuros casos. “Verifica-se, ainda, certa seletividade na atuação, com a eleição de temas e atos de instâncias de poder específicas – horizontais ou verticais - para interferência preferencial do tribunal” (LIMA, 2013, p. 146). As cortes podem interferir mais em certos períodos e agir de forma mais contida em outros, sendo essa a realidade da maioria delas, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

A Justiça no Brasil vem desempenhando um papel ativo na garantia de alguns direitos sociais, inclusive daqueles que necessitam de regulamentação para sua efetivação. Em diversos casos é possível perceber inconfundível teor político nas decisões da Suprema Corte, que solucionam não apenas o caso em questão, mas também suprem muitas vezes a inércia do Legislativo, decidindo essa matéria para todos os futuros casos, abstratamente. A partir da observação de alguns aspectos é possível aferir situações em que os tribunais praticam o ativismo ou a autocontenção.

5. O direito à saúde e o Recurso Extraordinário 657.718/MG

A saúde está prevista no rol dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal em seu artigo 6º. Segundo Paulo Branco e Gilmar Mendes (2015, p. 637), tais direitos, “implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material”. Assim como os demais, contudo, muitas vezes o direito à saúde não é concretizado de modo a atender as necessidades da população, quando, por falta de recursos ou negligência o governo, este é incapaz de prover para o cidadão o mínimo existencial necessário para garantir a dignidade da pessoa humana.

Em que pese o direito à saúde, é permitida a atuação conjunta do poder público e da iniciativa privada para fornecer os meios para seu acesso, seja pelo Sistema Único de Saúde ou pelos planos de saúde privados, contudo apesar disto as demandas não são atendidas de forma satisfatória. A fim de evitar a completa violação de seus direitos, os cidadãos recorrem ao ajuizamento em massa desses pleitos, sendo uma das temáticas polêmicas a obrigatoriedade da concessão, pelo poder público, de medicamentos indispensáveis que não sejam registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa.

A transferência do papel de garantir o acesso à saúde das políticas públicas para as sentenças judiciais, que ocorre devido a negligência do poder público, tem como consequências não apenas o aumento da onerosidade para o Estado, visto que passa a existir a necessidade de mover toda a máquina judicial para fornecer os serviços que poderiam ocorer com menores custos por via de uma política pública, e que inevitavelmente afetará a população pelo aumento da carga tributária, além de um aumento nos preços dos planos de saúde privados, que transferem para os clientes os possíveis gastos provenientes de decisões imprevisíveis pelas cláusulas contratuais, aumentando os custos de transação.

A partir da perspectiva que inclui todos os Poderes na garantia de direitos, conforme descrito por Rocha e Silva (2016),

“O Estado como um todo – incluindo-se os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário - tem o dever de interferir na realidade social, efetivando os comandos emergentes na Constituição e adotando uma postura proativa de efetivação de direitos e garantias fundamentais peculiares ao Estado Democrático de Direito”

a Justiça iniciou uma maior interferência nas questões relacionadas a não efetivação de políticas públicas referentes à saúde.

Apesar da inevitabilidade da judicialização de questões políticas no contexto constitucional brasileiro, a conduta ativista no judiciário é onde se encontra o verdadeiro risco à tripartição dos poderes e à democracia, visto que “um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados)” (STRECK, 2011, p. 123).

No âmbito do direito à saúde, esse fenômeno é muitas vezes notado quando os juízes utilizam dessa garantia constitucional para notoriamente ignorar os contratos de planos de saúde privados e os remédios e tratamentos estabelecidos pelas políticas públicas dos poderes majoritários por meio da concessão dos pedidos judiciais ainda que esses não se enquadrem nas prestações previstas nos orçamentos, impondo ao poder público e a entes privados obrigações a partir de seu próprio entendimento do que configura a defesa do direito à saúde.

Assim, além de prejudicar a administração pública com o aumento inesperado das despesas, prejudica também o cidadão que passa a arcar com os preços elevados dos planos de saúde, em um sistema que se assemelha a um seguro contra sentenças ativistas. Segundo Laís de Araújo Primo (2016), "algumas decisões judiciais referentes à efetivação dos direitos sociais são consideradas ativistas pois ignoram contratos particulares e diretrizes políticas pré-estabelecidas pelos demais Poderes, o que se verificou, principalmente, na década de 1990”. Tal tendência, contudo, ainda é observável nos tribunais atualmente.

No RE 657.718/MG, o pleito foi a fim de compelir o Estado a fornecer medicamentos que, embora sejam comprovadamente eficazes e seguros, não sejam registrados pela Anvisa, conforme se requer que aconteça para que alguma droga esteja incluída nas políticas públicas e seja fornecida pelo SUS. O Estado não pode ser compelido a fornecer medicamentos experimentais em nenhuma hipótese, uma vez que os riscos inerentes a isso iriam contra o próprio propósito de prover o direito à saúde. Contudo, existem remédios que, apesar de devidamente comprovados, tanto pela Anvisa quanto por outras agências reguladoras de renome, não são registrados por morosidade do sistema, o que obsta o acesso da população a tais drogas.

O ministro Luís Roberto Barroso manifestou em seu voto que, em geral, não é coerente impor a obrigação ao Estado de fornecer tais medicamentos uma vez que “o registro na Anvisa constitui proteção à saúde pública (...).” (STF, 2019) Aponta, contudo, para a possibilidade da concessão pelas vias judiciais, ainda que isto não tenha sido estabelecido pelos poderes políticos, quando a demora em apreciar o pedido de registro do medicameno é irrazoável, sendo esse casos com morosidade acima de um ano, e nos quais são cumpridos alguns requisitos: 1) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil; 2) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e 3) a inexistência de substituto com registro no Brasil.

O ministro Edson Facchin estabeleceu alguns parâmetros ao confirmar sua visão da possibilidade de concretização do direito à saúde a partir de uma decisão judicial. Para o ministro, tal controle deve ocorrer da seguinte forma:

“1) controle de legalidade (não deve haver erro manifesto na aplicação da lei, nem pode existir abuso de poder); 2) controle da motivação (aferir se as razões do ato regulatório foram claramente indicadas, estão corretas e conduzem à conclusão a que chegou a administração pública); 3) controle da instrução probatória da política pública regulatória (exigir que a produção de provas, no âmbito regulatório, seja exaustiva, a ponto de enfrentar uma situação complexa); e 4) controle da resposta em tempo razoável (que impõe à agência o dever de decidir sobre a demanda regulatória que lhe é apresentada, no prazo mais expedito possível)” (STF, 2019).

É perceptível que nessa decisão, bem como em diversas outras do STF, houve a desconsideração pelos ministros de questões que podem afetar a forma como os outro poderes podem atuar, tais como questões de plano orçamentário e de quais são os medicamentos e tratamentos oferecidos pelo SUS enquanto política pública de saúde decidida pelos representantes eleitos, o que pode ameaçar o balanço proposto no sistema de pesos e contrapesos. Tal fenômeno configura um risco à segurança jurídica, uma vez que tanto o cidadão quanto os poderes políticos ficam sujeitos a decisões específicas de acordo com o juiz e suas convicções próprias.

Conclusão

Tem-se, então, que dentro de um espectro variável de decisões ativistas a autontenciosas, o Judiciário, e em especial seu órgão máximo o Supremo Tribunal Federal, já optou anteriormente pela defesa ativista de direitos sociais, mais especificamente o direito à saúde, mediante uma intervenção mais direta em sua efetivação.

É relevante reafirmar que tal escolha dos juízes em alguns casos pode ter efeito contrário ao pretendido, dadas as limitações do Poder Judiciário, uma vez que este não é propriamente competente para decidir quanto à concretização de políticas públicas. Apesar de ser uma tentativa de proteção pelos tribunais, muitas vezes isto obsta a efetivação pretendida dos direitos pois eleva os custos para que os cidadãos tenham acesso a eles, tanto por aumento da carga tributária quanto dos custos dos planos de saúde privados.

Além da elevação dos custos para a efetivação das garantias constitucionais, tornar a via judicial como o meio comum de aquisição de direitos é um processo excludente, uma vez que apenas um seleto grupo de cidadãos pode verdadeiramente ter acesso à justiça, diversamente de como seria caso os recursos utilizados no cumprimento de sentenças fossem utilizados na realização de políticas públicas, as quais são propostas pelos entes que foram eleitos para tal função.

No que tange o RE 657.718/MG, enquanto decisão em que o tribunal visa proteger o direito social à saúde, há especialmente o aspecto ativista no sentido da promoção de políticas públicas mediante decisões judiciais.

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Sobre a autora
Maria Clara Soares Pereira de Carvalho

Advogada (OAB/PE 60670). Graduada em Direito pela Universidade de Pernambuco - UPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Maria Clara Soares Pereira. Judicialização de políticas públicas e ativismo judicial: como os tribunais protegem os direitos sociais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7275, 2 jun. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104411. Acesso em: 27 abr. 2024.

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