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Existe vida além da CLT:

prestação de serviços versus vínculo de emprego de profissionais com diploma universitário (hiperssuficientes intelectuais)

31/03/2023 às 17:10
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Por mais parecida com a relação empregatícia que uma relação de prestação de serviços possa parecer, há um ponto crucial que deve ser levado em consideração: o livre-arbítrio das partes contratantes.

RESUMO: O presente trabalho pretende abordar a escolha pela contratação, como prestador de serviços por intermédio de pessoa jurídica da qual são sócios, de profissionais que possuem diploma universitário (aqui chamados de “hiperssuficientes intelectuais”) e que são absolutamente capazes na esfera civil, presumindo-se que tais profissionais possuem condições suficientes de fazer as suas próprias escolhas e de arcar com as consequências, ou seja, se escolherem e pactuarem a contratação como prestadores de serviços, então tal escolha deve ser privilegiada quando o caso vier a ser analisado pela Justiça do Trabalho. Ademais, em nome da segurança jurídica e da vedação a comportamentos contraditórios e oportunistas, sugere-se a adoção de requisitos objetivos para a análise de casos semelhantes.

 

1. INTRODUÇÃO

Existe um tema que, muito embora seja enfrentado há muitos anos pela Justiça do Trabalho, permanece sempre atual. Diz respeito à análise e possível reconhecimento de vínculo empregatício de trabalhadores que são contratados como prestadores de serviços – muitas vezes, contratados por meio de pessoas jurídicas cujos quadros societários são compostos por estes mesmos trabalhadores.

Seguramente se faz necessário que a Justiça do Trabalho analise tais casos sempre que necessário e, sobretudo, que reconheça o vínculo de emprego sempre que entender ter havido fraude na contratação (o famigerado comportamento de “mascarar” o vínculo de emprego), principalmente nos casos em que se estiver diante de trabalhadores hipossuficientes que não tinham condições de entender plenamente as diferenças das formas de contratação. No entanto, tão necessário quanto é a observação de tais contratações a partir de um olhar contemporâneo, alinhado à realidade laboral que existe atualmente.

E o objetivo do presente texto é abordar exatamente a observação, por meio desse olhar contemporâneo, de alguns casos bastante específicos: trabalhadores – absolutamente capazes na esfera civil – que possuem ensino superior completo (ou seja, formados em cursos universitários) e que optam pela contratação como prestadores de serviços por meio de pessoa jurídica (em detrimento da contratação como empregados) mas que, posteriormente, ingressam na Justiça do Trabalho pleiteando o reconhecimento do vínculo de emprego.

Sabe-se que a grande força motriz da geração de vagas de trabalho reside na iniciativa privada – apenas a título ilustrativo, dados[1] apontam que, no final de 2020, o setor privado contava com mais de 70 milhões de trabalhadores, enquanto o setor público contava com mais de 11 milhões (número este que ultrapassou os 12 milhões de pessoas no terceiro trimestre de 2022, recorde na série histórica do setor público[2], mas que continua muito inferior ao número de trabalhadores na iniciativa privada). Ou seja, é natural pensar que, para que se tenha um país com o menor número de desocupados possível (considerando as pessoas que procuram trabalho mas não encontram), faz-se necessário prover condições para que a iniciativa privada se desenvolva economicamente, gerando renda, crescimento e, consequentemente, novas vagas de trabalho.

Ocorre que um dos entraves ao crescimento e ao desenvolvimento da economia no setor privado tem nome e sobrenome: insegurança jurídica. Ao mesmo tempo em que grandes investidores refutam a possibilidade de aportar valores em ambientes inseguros, pequenos e médios empresários também sentem na pele os prejuízos oriundos de tal incerteza.

E além da insegurança causada por decisões judiciais conflitantes, outro aspecto também pode ser abordado: a insegurança do empresário que contrata um trabalhador como prestador de serviços (sabendo que essa é uma possibilidade juridicamente prevista) – e mais, o faz em comum acordo com o próprio prestador de serviços – mas que vive sob a sombra do receio de que a Justiça do Trabalho venha a reconhecer o vínculo de emprego em tal relação no futuro.

Sendo assim, o que se propõe, com o presente estudo, é trazer argumentos para a consolidação de um entendimento que tenha o condão de observar as relações de trabalho a partir de um olhar contemporâneo, trazendo segurança jurídica às partes que desejam realizar a contratação da prestação de serviços a ponto de não serem surpreendidos com o reconhecimento do vínculo empregatício no futuro, sendo que este texto abordará, como visto, especificamente a contratação de trabalhadores absolutamente capazes, que são prestadores de serviços (por meio de pessoa jurídica) e que detenham diploma de curso superior (aqui chamados de “hiperssuficientes intelectuais”).

2. OS TRABALHADORES “HIPERSUFICIENTES INTELECTUAIS

Um dos pilares basilares para a constituição e o desenvolvimento do Direito do Trabalho, e sob o qual se funda boa parte da atuação da Justiça do Trabalho, é o Princípio da Proteção. Em linhas gerais, tal princípio reconhece uma significante desigualdade na relação entre empregado e empregador, acarretando a necessidade de reequilíbrio de tal relação por meio da proteção da parte mais vulnerável – o trabalhador, considerado o hipossuficiente.

A partir de tal concepção, o Estado passou, historicamente, a intervir nas relações entre particulares de modo a tentar impedir que o trabalhador seja despido de condições laborais mínimas já reconhecidas, tais quais os direitos previstos na Constituição Federal de 1988, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em legislação esparsa, dentre outras.

Ocorre que o mundo se modernizou e, com ele, foram também modernizadas as relações de trabalho. Os trabalhadores passaram a ter cada vez mais acesso à informação e ao conhecimento. Assim, em muitas relações de trabalho contemporâneas, aquela significante desigualdade que antigamente existia, de maneira geral, entre empregado e empregador foi minorada (em alguns casos até mesmo abolida), de tal maneira que muitos trabalhadores passaram a ter plena consciência das consequências dos seus atos e de suas escolhas, não podendo – da forma abrangente como era feito pela legislação trabalhista – ser simplesmente considerados como hipossuficientes para todos os fins. Fazia-se, portanto, necessário lançar um novo olhar sobre tais trabalhadores.

Nesse contexto, a Reforma Trabalhista (Lei Federal n.º 13.467/2017) introduziu na CLT o parágrafo único do art. 444[3], estabelecendo a figura do empregado hipersuficiente, que é aquele “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”. Com isso, a legislação obreira passou a determinar que tais trabalhadores hiperssuficientes tem maior amplitude de negociação das regras contratuais com os empregadores/tomadores de serviços – é reduzida, portanto, a intervenção (e, logo, a proteção) por parte do Estado porquanto admite-se que tais trabalhadores tem maiores possibilidades de negociação conhecendo as consequências sobrevindas das próprias condições negociadas.

E note-se que a CLT estabelece essa hiperssuficiência com dois requisitos bastante específicos: um deles econômico (perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social) e outro intelectual (ser portador de diploma de nível superior).

E é no aspecto desse segundo requisito que se centra o presente o estudo – focado naqueles que, doravante, serão denominados (para as finalidades propostas ao presente estudo) como “hiperssuficientes intelectuais”, ou seja, trabalhadores portadores de diploma de nível superior de tal forma que se pode presumir que tais trabalhadores possuem condições necessárias de entender perfeitamente as consequências de cada termo que for por eles negociado com o empregador e/ou com o tomador de serviços.

É certo que a CLT estabelece que a liberdade de negociação de tais trabalhadores com os empregadores/tomadores de serviços esbarra na seguinte delimitação: a negociação é válida desde que “não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes”. No entanto, aqui se está abordando o momento anterior à contratação, ou seja, justamente aquele momento em que trabalhador e empregador/tomador de serviços definem se a relação entre ambos estará subsumida à legislação trabalhista (no caso da contratação como empregado) ou à legislação civil (no caso da contratação como prestador de serviços).

Neste cenário, há de se responder à seguinte questão: se o trabalhador, dotado de inegável conhecimento intelectual porquanto portador de diploma de nível superior, entende e concorda com a contratação como prestador de serviços, até que ponto essa autonomia da vontade deve ser respeitada e até que ponto a Justiça do Trabalho deverá intervir para descaracterizar a relação civil e configurar a relação trabalhista? É o que se pretende fazer a partir de agora.   

3. OS BENEFÍCIOS, PARA O TRABALHADOR, DA CONTRATAÇÃO COMO PESSOA JURÍDICA

Conforme já visto, historicamente o Princípio da Proteção ao trabalhador hipossuficiente é um dos princípios basilares do Direito do Trabalho. E isso se mostra, inclusive, no que diz respeito aos casos em que empregadores contratavam trabalhadores como prestadores de serviços com o intuito de “mascarar” o vínculo de emprego.

Isso porquanto o empregador passa a gozar de diversos benefícios, sobretudo no que diz respeito à redução de custos com a folha de pagamento. O empregador não precisa arcar com despesas relativas ao FGTS, ao INSS, dentre outras, além de toda a burocracia referente à contratação e ao registro dos empregados – isso sem contar nos custos com férias, 13º salário, horas extras, adicionais (insalubridade, periculosidade, noturno) e até mesmo com os custos advindos da eventual rescisão do vínculo empregatício. Justamente por conta disso, muitas vezes os salários oferecidos a empregados, quando comparados aos valores pagos aos prestadores de serviços das mesmas atividades, são menores, justamente para compensar o alto custo que os empregadores têm com diversas outras rubricas.            

Ou seja, em muitos casos, a contratação de trabalhadores sem o registro da carteira de trabalho acaba sendo mais atrativa aos empregadores uma vez que reduz diversos custos. E é justamente por isso que muitos empregadores, durante muito tempo, contratavam trabalhadores como prestadores de serviços para tentar não caracterizar o vínculo de emprego, o que fez com que a Justiça do Trabalho tenha historicamente atuado para tentar coibir a prática.

Por outro lado, há de se ter em mente que o próprio trabalhador pode gozar de diversos benefícios a partir do momento em que opta por ser contratado como prestador de serviços por meio de pessoa jurídica. E, no caso dos trabalhadores que possuem diploma de nível superior, presume-se que detenham conhecimento intelectual o suficiente para entender quais são esses benefícios e para optar por gozar deles ou, por outro lado, por recusar a contratação como prestadores de serviços, exigindo a contratação como empregados.

E note-se que o presente estudo traz ainda um ingrediente especial: não se está tratando simplesmente de simples trabalhadores que são contratados como prestadores de serviços, basicamente obrigados a aceitar tal condição ou não alcançam a vaga de trabalho; longe disso, está-se tratando de profissionais, formados na Universidade e que constituem empresa para a prestação dos serviços. Ou seja, há um ato deliberado de vontade do trabalhador que, gozando de sua autonomia, abre a sua própria empresa para trabalhar e receber por intermédio de pessoa jurídica.

Alguns dos benefícios da prestação de serviços que podem ser citados (não tendo esse trabalho o intuito de esgotar a abordagem sobre eles) são:

- possibilidade de negociar o pagamento, pelo tomador de serviços, de um valor maior do que seria pago a título de salário, justamente porquanto o tomador de serviços não terá que suportar diversos encargos pertinentes à relação de emprego (tais quais, como visto, férias, 13º, horas extras, FGTS, etc.);

- redução dos descontos (inclusive impostos) no valor recebido quando se comparado ao que sofreria mediante recebimento de salário na folha de pagamento, o que novamente possibilita o aumento de seus ganhos;

- redução do valor pago referente ao Imposto de Renda, uma vez que, regra geral, a alíquota referente a pessoas jurídicas chega a até 15%, enquanto a de pessoas físicas chega a 27,5%;

- possibilidade de pagamentos (a seu critério) de valores ao INSS para gozar de diversos benefícios, tais quais auxílio-maternidade, auxílio-doença, pensão por morte para dependentes, aposentadoria por idade ou invalidez e tempo de contribuição. E diz-se isso porquanto o prestador de serviços pode optar por, ao invés da obrigação de vinculação ao INSS, realizar a contratação de planos privados que possam lhe dar cobertura diferenciada (inclusive com relação à aposentadoria), tendo maior flexibilidade em suas escolhas;

- possibilidade de ter maior liberdade de atuação, inclusive no que diz respeito a horários, a formas de executar os serviços, à possibilidade de prestar serviços a diversos tomadores, dentre outros.

Portanto, percebe-se que não apenas os empregadores/tomadores de serviços gozam de benefícios com a contratação por meio de pessoa jurídica; longe disso, os benefícios são mútuos, tendo em vista que o prestador de serviços também percebe vantagens na contratação a partir dessa perspectiva.

4. O LIVRE ARBÍTRIO DE TRABALHADORES ABSOLUTAMENTE CAPAZES NA ESFERA CIVIL

De acordo com o que está estabelecido no Código Civil, especialmente em seus artigos[4] 1º, 3º, 4º e 5º, as pessoas são absolutamente capazes a praticar todos os atos da vida civil a partir dos 18 anos de idade (ressalvadas as hipóteses de incapacidade absoluta e relativa previstas na legislação civil).

É importante, para o presente estudo, partir de uma premissa básica: ninguém (salvo raríssimas hipóteses) consegue colar grau em Universidade e, portanto, obter diploma de curso superior antes dos 18 anos; neste trabalho, portanto, consideram-se as pessoas absoltamente capazes, maiores de 18 anos de idade, e que são portadoras de diploma universitário.

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Sabe-se, também, que em certa medida, algumas pessoas relativamente incapazes também são portadoras de diploma de nível superior – esta é uma realidade encontrada no mercado de trabalho, porém, não é o objetivo deste estudo focar em tal perfil. Inclusive, para os casos de contratos firmados por absolutamente e relativamente incapazes, o Código Civil traz a disciplina própria abordando nulidades e anulabilidades, de tal maneira que tal realidade deve ser enfrentada com o rigor necessário na prática. Ocorre que, para o desenvolvimento que aqui se pretende, deseja-se abordar apenas os contratos firmados por trabalhadores que são absoltamente capazes, conforme já mencionado anteriormente.

Oportuno, portanto, aglutinar alguns pensamentos cujo teor foi abordado até aqui.

Como visto, a CLT traz a presunção de que trabalhadores portadores de diploma de curso superior são hiperssuficientes – o que se passou a chamar, neste estudo, de “hiperssuficientes intelectuais.” Tais “hiperssuficientes intelectuais” são, também, e para fins do presente trabalho, absolutamente capazes, posto que já ultrapassaram os 18 anos de idade e não se encaixam em nenhuma das condições de incapacidade absoluta ou relativa listadas no Código Civil.

Ou seja, têm-se aqui trabalhadores com elevado nível intelectual e que, além disso, ainda são absolutamente capazes de praticar quaisquer atos na vida civil. Neste contexto, destaque-se que o artigo 104 do Código Civil determina que:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Desta feita, pode-se observar que a assinatura de um contrato de prestação de serviços por uma pessoa absolutamente capaz, dotada de diploma de ensino superior, a princípio preencheria todos os requisitos. Que o agente é capaz, não se discute; que o objeto da prestação de serviços deve ser lícito, possível e determinado, também; o único ponto de dúvida que poderia haver seria no que tange à forma prescrita ou não defesa em lei.

Isso porquanto se pode levantar a hipótese de haver quem defenda que existe lei (no caso, a legislação trabalhista) que vedaria a possibilidade da assinatura de um contrato de prestação de serviços sempre que a realidade fática mostrasse a existência de vínculo de emprego. Regra geral, tal hipótese faz sentido, mas não quando aplicada ao objeto de estudo aqui abordado.

Diz-se isso, pois, muitas vezes há apenas uma linha muito tênue separando a prestação de serviços do vínculo de emprego[5]. Por exemplo, imagine-se o caso de um engenheiro que constituiu uma pessoa jurídica na forma de MEI (Microempreendedor Individual) – portanto, regra geral, é ele próprio que vai prestar o serviço (o que se confunde com a pessoalidade presente na relação de emprego); além disso, vai receber o preço ajustado, que pode ser inclusive pago de forma fixa mensal (o que se confundiria com o salário do empregado); tal engenheiro pode ser contratado para acompanhar uma obra que inicia às 07h e termina às 17h (podendo se confundir com a exigência de cumprimento de horário, mas, nesse caso, o próprio objeto do contrato de prestação de serviços requer o acompanhamento da obra pelo profissional enquanto a obra estiver funcionando). Ou seja, são várias características que, na prática, não poderiam, por si só, diferenciar a prestação de serviços e o vínculo de emprego.

Daí é que, normalmente, a jurisprudência pode buscar guarida na subordinação jurídica, concluindo que se o engenheiro obedecia diretrizes do tomador de serviços, então era subordinado a ele – logo, a conclusão equivocada seria a da existência da relação de emprego. Ocorre que, na realidade prática, isso não pode ser levado ao pé da letra.

Afirma-se isso, pois, todo tomador de serviços pode estabelecer diretrizes para a atuação do prestador de serviços, o que, novamente, faz parte do próprio objeto da prestação de serviços contratada. O tomador de serviços pode, no momento da contratação – e como condição para que ela aconteça –, estabelecer que o prestador de serviços deve estar presente sempre que a obra estiver em funcionamento (muito por conta de eventuais fiscalizações), que deve utilizar determinados equipamentos e vestimentas, que deve participar de reuniões para passar aos demais responsáveis o andamento da obra, que deve repassar relatórios periódicos comentando o desenvolvimento da obra, dentre outros.

Note-se que tudo isso pode ser negociado já no momento da contratação, sendo uma condição para que a contratação da prestação dos serviços seja efetivada. Ora, se o tomador de serviços necessita de um engenheiro que esteja na obra durante o seu horário de funcionamento para evitar sofrer multas em eventual fiscalização, é seu direito não querer contratar um engenheiro prestador de serviços que se negue a cumprir tal cláusula contratual. Não se trata de subordinação, mas sim do objeto do contrato, de condições pactuadas pelas partes, ambas absolutamente capazes.

Exatamente nesse contexto, muito ilustrativa é a ementa do Acórdão proferido pela 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, no processo nº 0101271-71.2017.5.01.0012 (ROT), de Relatoria do Exmo. Des. Roque Lucarelli Dattoli – o processo analisava o caso de um engenheiro que prestava serviços por meio de pessoa jurídica, mas que pleiteava o reconhecimento do vínculo de emprego (inclusive, fazendo a necessária e merecida referência, tal Acórdão cunhou a expressão “existe vida fora da CLT” que serviu de inspiração para o título do presente artigo):

Mesmo um trabalhador "autônomo" se submete ao comando de quem o contrate. "Autonomia" - e assim também a contratação "como pessoa jurídica" - não significa "soberania" na execução dos serviços contratados - de maneira que o profissional sempre deverá prestar contas ao seguir a orientação do contratante (a quem compete definir, segundo o que lhe for conveniente, como o serviço será executado).

Ademais, no corpo do Acórdão, o Exmo. Desembargador abordou não apenas a questão da subordinação jurídica inexistente, mas também dos benefícios obtidos pelo prestador de serviços por meio de pessoa jurídica:

Apenas pela constituição da pessoa jurídica, não seria correto presumir a "fraude", pois, em alguns casos, pelos mais diversos motivos, até mesmo para se valer de benefícios tributários, o profissional (trabalhador) se propõe a prestar serviços a quem deles necessite sem se submeter a um contrato de trabalho "tradicional".

[...]

Não impressiona que "o autor estava subordinado ao diretor comercial Luiz Henrique".

Mesmo um trabalhador "autônomo" se submete ao comando de quem o contrate.

"Autonomia" - e assim também a contratação "como pessoa jurídica" - não significa "soberania" na execução dos serviços contratados - de maneira que o profissional sempre deverá prestar contas ao seguir a orientação do contratante (a quem compete definir, segundo o que lhe for conveniente, como o serviço será executado).

Não se ignora que a proteção ao trabalhador, no âmbito da relação de emprego, se insere na presunção de que ele, por depender de sua força de trabalho para manter-se e à sua família (isso, o que ordinariamente acontece), muitas vezes se submete a situações flagrantemente contrárias aos seus interesses, justamente para garantir a sua sobrevivência.

Envolvido em situação dessa natureza, qualquer manifestação de vontade do trabalhador deve ser analisada com acentuada cautela.

[...]

Não se pode ignorar que prestar serviços à reclamada, na condição de "titular" de uma empresa, favorecia o reclamante em outros aspectos (além da retribuição de valores bem acima do que corresponderia ao salário de um empregado, com a função de "Gerente de Engenharia" [v. fls. 04]), especificamente pelos reduzidos encargos - à Previdência Social e ao Fisco (I.R.) - que dele seriam cobrados.

Sim, porque percebendo a quantia mensal de R$ 27.950,00, fosse o reclamante "empregado" da reclamada, e dele seria deduzida contribuição à Previdência Social.

De igual sorte, o reclamante, com "salário" daquela ordem, encontrar-se-ia na mais elevada "faixa" das "tabelas" divulgadas pela Secretaria da Receita Federal para o cálculo do Imposto de Renda, recolhendo "27,5%" desses mesmos valores (mês a mês) ao Fisco.

Sendo remunerado por sua condição de titular da empresa "DFM Serviços Administrativos Ltda.", o reclamante não respondia por essas obrigações - mas tão-somente pelo recolhimento do "ISS - Imposto Sobre Serviços".

A partir daí, forçoso concluir que o reclamante, como "titular" de uma empresa, obtinha vantagens econômicas não compatíveis com as de um "empregado", auferindo valores bem superiores aos que seriam devidos a outro profissional "pessoa física", que se ocupasse do "cargo" de "Gerente de Engenharia".

[...]

Ao contrário do que imaginam algumas pessoas, "existe vida" fora da Consolidação das Leis do Trabalho.

Não se trata de "renunciar" a direitos que, por princípio, seriam "irrenunciáveis.

Trata-se, isto sim, de admitir válida uma alternativa ao contrato de trabalho, prevista no ordenamento jurídico, desde que aceita pelas partes envolvidas no ajuste.

Nosso ordenamento jurídico admite que alguém preste serviços a outrem sob diversos títulos, sem que isso configure fraude à lei. (grifos não originais)

Veja-se, portanto, que não se está firmando um contrato com a finalidade de ludibriar a legislação trabalhista; em sentido diametralmente oposto, são duas partes absolutamente capazes, uma delas dotada de inegável nível intelectual (porquanto é, inclusive, portadora de diploma de curso superior), e que optam pela contratação como prestação de serviços.  

E assim, diante de tudo o que foi exposto, chega-se ao que se considera o ponto mais importante para este trabalho: o livre-arbítrio de pessoas absolutamente capazes e que, como visto, possuem inegável nível intelectual.

O prestador de serviços, absolutamente capaz e dotado de diploma de nível superior, possui totais condições técnicas e intelectuais de negociar livremente as cláusulas de seu contrato, sendo natural concluir que entende, de fato, as consequências das escolhas que vier a fazer (ou que, ao menos, possui conhecimento suficiente para buscar informações antes de firmar a contratação).

Sabendo, como visto, que muitas vezes existe uma linha tênue separando a prestação de serviços e o vínculo de emprego, esse prestador de serviços acima mencionado pode, muito bem, optar pela contratação a partir da sistemática pertinente à legislação civil, uma vez que, como já visto anteriormente, isso pode lhe trazer benefícios de diversas ordens, inclusive econômicos e fiscais. Tal profissional pode escolher entre se submeter a um contrato de prestação de serviços no qual o tomador faz diversas exigências (o que não se confundiria com a subordinação) ou, pelo contrário, fazer as suas próprias exigências para a contratação – ou até mesmo optar por não contratar.

É nítido, portanto, que tais trabalhadores prestadores de serviços possuem o livre-arbítrio de poderem ou não contratar – e, contratando, de fazer suas próprias exigências e também escolher a forma de contratação. É justamente por isso que muitos desses trabalhadores acabam por constituir pessoas jurídicas, uma vez que sabem que há procura no mercado por essa forma de trabalho e, ainda, sabem quais as vantagens que tal forma de trabalho tem a lhes oferecer.

E se tais prestadores de serviços conhecem as vantagens da prestação de serviços (e mais, conhecem também as consequências dos seus atos e as desvantagens de tal forma de contratação), há de se observar a aplicação do artigo 421, parágrafo único, do Código Civil[6], que determina a prevalência do princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Se os prestadores de serviços têm plena consciência das consequências de seus atos, não há razão para que haja a intervenção judicial reconhecendo o vínculo de emprego.

Configura, inclusive, violação à probidade e à boa-fé objetiva, previstas no Código Civil[7], por parte do contratante que acordou uma forma de contratação e, depois (não raras vezes, anos depois), recorre ao judiciário pleiteando a descaracterização da forma de contratação pactuada e o reconhecimento do liame empregatício. É preciso, portanto, respeitar a vontade dos contratantes e entender o que fora por eles escolhido no momento do início do pacto, dando solidez à segurança jurídica na relação estabelecida.

5. EXAME DE DECISÕES EM CASOS SEMELHANTES

No tópico anterior, foi exposto o conteúdo de um Acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no qual o Desembargador Relator adotou entendimento equivalente ao que é defendido no presente estudo – qual seja, o reconhecimento do vínculo de prestação de serviços quando esta tiver sido uma escolha feita pelas partes no momento da contratação, considerando os benefícios que o prestador de serviços experimentou durante o período no qual o contrato perdurou, além da observação dos requisitos caracterizadores do vínculo de emprego a partir de um olhar mais atento à realidade atual, considerando a livre escolha do prestador de serviços em adotar tal forma de trabalho.

Como o presente trabalho pretende abordar um perfil específico de prestadores de serviços, este tópico irá se debruçar sobre casos de engenheiros e médicos, uma vez que pessoas que obtêm diplomas universitários em tais áreas são comumente reconhecidas como tendo considerável nível intelectual – tanto pela dificuldade na aprovação no vestibular, quanto pela dificuldade para aprovação em todas as matérias do curso, dentre outras.

Ou seja, tais profissionais, de maneira geral, não podem simplesmente ser considerados hipossuficientes a ponto de a Justiça do Trabalho simplesmente desconsiderar as suas escolhas no momento em que firmaram a contratação com o tomador de serviços – devem ser tratados como pessoas absolutamente capazes na esfera civil, tendo plenas possibilidades de fazer escolhas e de arcar com as consequências.   

Mas, antes de adentrar na análise de casos específicos desses profissionais, vale fazer menção ao julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Arguição de Descumprimento De Preceito Fundamental n. 324 do Distrito Federal, de Relatoria do Min. Luis Roberto Barroso. Em tal julgado, foi firmada a seguinte tese:

1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993. (grifos não originais)

Note-se que o julgado estabeleceu o entendimento de que é lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, sendo ela meio ou fim. Isso abre o campo de possibilidades de contratação da prestação de serviços, posto que os contratantes passam a poder operar, por intermédio de prestadores de serviços, inclusive para o cumprimento do objetivo final de sua empresa.

O mesmo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 958.252 de Minas Gerais, de Relatoria do Min. Luiz Fux, proferiu julgamento no mesmo sentido fixando a seguinte tese:

"É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante"

Pois bem, resta evidente, portanto, a plena possibilidade de pessoas jurídicas distintas contratarem a prestação de serviços inclusive de atividades-fim da empresa contratante. Daí é que se extrai a conclusão que inexistem óbices para que hospitais contratem médicos como prestadores de serviços para atendimento aos pacientes, ou ainda que construtoras ou empresas de engenharia contratem engenheiros como prestadores de serviços para a execução de suas obras, por exemplo.

Ocorre que, apesar de já existir entendimento consolidado no sentido de ser possível a terceirização até mesmo da atividade principal de uma empresa, e apesar de já se observar julgados afastando o vínculo de emprego nos casos de engenheiros e médicos – como é o exemplo do Acórdão proferido no processo nº 0101271-71.2017.5.01.0012 (ROT) do TRT1, visto no tópico anterior -, ainda há diversas decisões, Brasil afora, considerando caracterizado o vínculo de emprego em situações semelhantes.

Veja-se, exemplificativamente e no caso específico de profissional médico, a ementa do Acórdão proferido no processo n. 0000096-90.2017.5.17.0011, do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, julgado em Sessão Ordinária realizada no dia 15/10/2018:

MÉDICO. VÍNCULO DE EMPREGO. Se a prova carreada aos autos demonstra a presença dos elementos caracterizadores da relação empregatícia, especialmente pelo fato de que a função exercida pelo autor era essencial à atividade desenvolvida pela ré, que necessitava, obrigatoriamente, dos serviços médicos, impõe-se deduzir que a constituição de empresa pelo trabalhador teve por fim único mascarar a relação de emprego, visando impedir a aplicação de normas celetárias, atraindo, desse modo, a incidência do art. 9º da CLT.

E do corpo do Acórdão:

Extrai-se, pois, do exame da prova oral e documental produzida que a situação presente não autoriza o reconhecimento de relação jurídica que não seja a de emprego, especialmente pelo fato de que a função exercida pelo reclamante (médico) era essencial à atividade desenvolvida pelo recorrido (Hospital), que necessitava, obrigatoriamente, de médicos para realizar sua função finalística.

Ora, tais aspectos, dentre outros, não deixam dúvidas quanto à prevalência do poder de comando do empregador, entre outras exigências que configuram a relação empregatícia.

Todas essas condicionantes afastam o reclamante da situação de autônomo, enquadrando-a na relação empregatícia.

Naturalmente que a decisão aborda diversos outros pontos além daqueles que foram mencionados acima. No entanto, o que se destaca para a finalidade proposta para o presente trabalho é: o profissional em questão era médico, o que leva à conclusão natural que era uma pessoa absolutamente capaz e totalmente consciente das consequências de suas escolhas; o profissional prestou serviços ao hospital por mais de um ano – ou seja, por mais de um ano silenciou e compactuou com a prestação de serviços daquele modo; tal profissional, portanto, deveria arcar com as consequências da escolha que fez e com a qual compactuou por mais de um ano.

No caso, profissional (por intermédio de uma pessoa jurídica) e empresa (hospital) pactuaram, de comum acordo, que a relação entre eles estaria abrangida pela legislação civil, afastando as normas trabalhistas. Se tal forma não fosse boa para o prestador de serviços, teria ele firmado o contrato? Teria ele se submetido às regras por mais de um ano, para só então rebelar-se? A Justiça do Trabalho deveria privilegiar as escolhas feitas por pessoas absolutamente capazes e de considerável conhecimento intelectual. Além disso, veja-se que, salvo melhor juízo, a decisão considerou que o vínculo de emprego estava caracterizado porquanto o profissional desempenhava atividade essencial ao funcionamento da empresa, o que sequer seria óbice para a prestação de serviços nos termos do entendimento do STF já esposado no início deste tópico.  

Indo adiante, o Acórdão proferido no processo n. 0101247-52.2019.5.01.0342 (ROT), do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, julgado em 17 de novembro de 2021, caminha no mesmo sentido. No entanto, nesse caso o médico prestou serviços, por intermédio de pessoa jurídica, por nada menos do que 17 anos (!):

VÍNCULO DE EMPREGO. MÉDICO. HIPÓTESE DE RECONHECIMENTO. Demonstrada a prestação da atividade laborativa obreira de forma pessoal, habitual, subordinada e remunerada, há de se declarar a relação de emprego, eis que revestida dos requisitos legais. Apelo patronal desprovido.

Novamente, o profissional, absolutamente capaz, com considerável conhecimento intelectual, optou por, em comum acordo, prestar serviços para a empresa – e o que chama a atenção é que isso se deu por mais de 17 anos (frisa-se: 17 anos!) sem que houvesse insurgência por parte do profissional.

Tal profissional, portanto, tinha plenas condições de fazer as suas escolhas e arcar com as consequências, podendo-se aventar inclusive a hipótese de configuração de violação à boa-fé objetiva e comportamento contraditório (vedados pelo Código Civil) o fato de ter prestado serviços nos mesmos moldes por quase duas décadas para, só então, insurgir-se e pleitear o reconhecimento do vínculo de emprego.

Adentrando agora nos exemplos de engenheiros, traz-se à baila o Acórdão proferido no processo n. 0011690-87.2015.5.01.0053, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, julgado em 07 de julho de 2017:

RECURSO ORDINÁRIO. VÍNCULO DE EMPREGO. ENGENHEIRO. ATIVIDADE FIM. Admitida a prestação de serviços por conta alheia, com subordinação, em atividade necessária e permanente ao empreendimento econômico da empresa, com a presença dos elementos contidos nos arts. 2º e 3º da CLT, e não evidenciada a hipótese de trabalho autônomo, impõe-se o reconhecimento do vínculo de emprego com a empresa.   MULTA DO ART. 467 DA CLT. A multa prevista no art. 467 da CLT é devida apenas quando a reclamada, à data da primeira audiência, não paga as parcelas rescisórias incontroversas. No caso de a ré negar aS existência de vínculo de emprego e consequentemente insurgir-se contra as verbas rescisórias postuladas, não cabe o deferimento da multa em questão.

No caso em específico, a prestação de serviços se deu por nada menos do que 11 anos (!). Além disso, novamente o trabalhador, engenheiro, era sócio de pessoa jurídica que firmou contrato com outras pessoas jurídicas para realizar a prestação de serviços. Ou seja, o profissional, absolutamente capaz, se beneficiou de determinada forma de contratação, com a qual compactuou, por mais de uma década, para só então rebelar-se e pleitear o reconhecimento do vínculo de emprego.

O que se quis demonstrar com o presente tópico é a existência de decisões divergentes, o que pode atrair insegurança jurídica para a realidade empresarial brasileira. Há Tribunais que já entendem que os profissionais, absolutamente capazes, possuem plenas possibilidades de fazer suas escolhas e arcar com as consequências; no entanto, há vasta jurisprudência no sentido de reconhecer a necessidade de uma proteção que, ao ver do presente estudo, é desnecessária para tais profissionais que aqui são chamados de hiperssuficientes intelectuais, a ponto de descaracterizar relações de prestações de serviços que, por vezes, perduraram por uma ou mais décadas.

Daí é que se extrai a necessidade de consolidação de um posicionamento que possa ser aplicado em casos análogos com a finalidade de trazer segurança jurídica aos que optarem por determinada forma de contratação, em especial para os tomadores de serviços que, dessa forma, deixariam de ser surpreendidos com o reconhecimento do vínculo de emprego mesmo após anos da relação laboral com o prestador de serviços. 

6. CONCLUSÕES – A NECESSIDADE DE FIXAÇÃO DE PARÂMETROS OBJETIVOS PARA RESOLVER CASOS ANÁLOGOS

Conforme conclusão obtida no tópico anterior, a insegurança jurídica causada por decisões conflitantes – e que em muitos casos contrariam, inclusive, posicionamento adotado pelo STF – acaba por trazer consequências prejudiciais às relações de trabalho (civis e/ou celetistas), posto que uma das partes pode ser surpreendida com o reconhecimento do vínculo de emprego ainda que uma pretensa relação civil de prestação de serviços tivesse se dado por anos a fio.

Geralmente, empresários não aportam seus recursos em ambientes hostis, que tragam insegurança e que não mostrem previsibilidade e calmaria na obtenção de retorno financeiro. E é exatamente este ambiente que passa a restar caracterizado quando (i) decisões conflitantes são proferidas em casos semelhantes e (ii) relações que, por anos (e em comum acordo) desenvolveram-se de determinada forma (sob o prisma civil), acabam por ser descaracterizadas para a configuração do vínculo de emprego, ainda que as partes envolvidas fossem absolutamente capazes, plenamente possível, portanto, que fizessem suas próprias escolhas e arcassem com as consequências.

E é neste contexto que se analisam os hiperssuficientes intelectuais mencionados anteriormente.

Primeiro, deve-se considerar que profissionais que obtêm diploma de ensino universitário geralmente são pessoas dotadas de considerável conhecimento intelectual. Sendo assim, tais profissionais possuem condições de entender a forma de contratação à qual estão se submetendo e pactuando, de comum acordo, com o empregador ou tomador de serviços (a depender a forma de contratação adotada). E se optarem por um ou outro caminho (contratação como empregado ou como prestador de serviços), eles também têm plenas condições de entender as consequências da escolha que foi feita.

Adiante, deve-se também considerar que tais profissionais são, geralmente, absolutamente capazes na esfera civil. Sendo assim, são totalmente responsáveis pelos seus próprios atos e também possuem plenas condições de arcar com as consequências da forma de contratação pactuada junto ao contratante.

Desta feita, percebe-se que não se está falando, aqui, de profissionais com baixo ou nenhum grau de escolaridade, que demandam uma tutela mais ostensiva por parte do Estado a fim de proteger os seus interesses. Em sentido diametralmente oposto a esse, abordam-se as escolhas feitas por profissionais totalmente conscientes de seus atos, que sabem quais os riscos e quais os benefícios da contratação de uma ou outra forma.

Por mais parecida com a relação empregatícia que uma relação de prestação de serviços possa parecer, há um ponto crucial que deve ser levado em consideração: o livre-arbítrio das partes contratantes, ou seja, a vontade manifestada pelas partes no momento da contratação – e muitas vezes referendadas por anos durante os quais a relação perdurou. A proteção pela Justiça do Trabalho deveria limitar-se aos casos em que os trabalhadores são, de fato, hipossuficientes, possuindo dificuldades de compreender eventuais riscos (e de desconhecer os benefícios) que a escolha pela prestação de serviços pode atrair. No entanto, tal quadro fático distancia-se muito de um contexto dentro do qual os profissionais possuem conhecimento intelectual suficiente, como visto anteriormente.

É preciso privilegiar, em nome da segurança jurídica e da manutenção da boa-fé nas relações contratuais, as escolhas feitas por pessoas absolutamente capazes e de considerável nível intelectual. O prestador de serviços não pode se manifestar em determinado sentido no momento da contratação, submeter-se a tal forma de contratação por meses/anos, para só então se rebelar pleiteando a descaracterização de uma relação duradoura. É preciso que tais profissionais, pessoas absolutamente capazes, arquem com as consequências de seus atos e de suas escolhas – do contrário, abre-se a possibilidade de sua atuação de má-fé, aceitando um comportamento oportunista daquele que faz uma escolha e, enquanto ela é boa para si, submete-se a ela; mas assim que a relação termina, adota um comportamento contraditório para alegar a existência do vínculo de emprego.

Quando as empresas abrem um posto de trabalho, cabe a elas elencar uma série de requisitos que desejam observar no profissional que preencherá a vaga. Nada impede, portanto, que um de tais requisitos seja a contratação de empresa prestadora de serviços, de tal forma que aqueles que se candidatarem à vaga já saberão, de antemão, a forma pela qual se dará a contratação, não podendo alegar, no futuro, o desconhecimento do fato ou mesmo alegar que foi “enganado” pelo tomador de serviços.

Ante o que foi exposto até aqui, defende-se a adoção de requisitos básicos para o reconhecimento daqueles que são “hiperssuficientes intelectuais”, tendo plenas condições de entender a forma pela qual estão sendo contratados para a prestação de serviços. Podem-se elencar os seguintes requisitos:

(a) profissional portador de diploma universitário, uma vez que presume-se que tenha conhecimento intelectual suficiente para entender (ou ainda intelecto suficiente para pesquisar e se informar antes de firmar contratos) as diferenças (entenda-se: riscos e benefícios) da contratação como prestador de serviços ou empregado;

(b) tal profissional deve ser pessoa absolutamente capaz conforme disciplinado pelo código civil, tendo em vista que, assim, possui condições suficientes de fazer suas próprias escolhas e de arcar com as consequências;

(c) deve ficar comprovado que as condições sob as quais o contrato de prestação de serviços se desenvolveu eram conhecidas pelo prestador de serviços já no momento da contratação, tendo ele compreendido-as e aceitado-as. Ou seja, o profissional entendia que a relação seria de prestação de serviços (inclusive havendo a presunção de tal compreensão quando o prestador de serviços trabalha por meio de pessoa jurídica da qual é sócio) e entendia de que forma a prestação de serviços se daria (formas de pagamento, modo de labor, local e horário de prestação de serviços, enfim). Dessa forma, não poderia o profissional, com elevado intelecto e pessoa absolutamente capaz, alegar, no futuro, que fora enganado, pois sempre conheceu e aceitou as condições da prestação de serviços;

(d) quanto maior o período de prestação de serviços, mais consolidada estará a relação de prestação de serviços e a presunção de que as partes conheciam e aceitavam os seus termos.

Com a adoção de tais requisitos, traz-se segurança jurídica para as relações no mercado de trabalho, privilegiando as escolhas feitas por pessoas absolutamente capazes. Evitam-se surpresas desagradáveis muitas vezes anos depois de a contratação ter ocorrido, e ainda reduz-se a possibilidade de atuação de comportamento contraditório e que viola a boa-fé por parte de profissionais que fazem determinada escolha e, anos depois, de maneira oportunista, pleiteiam a sua descaracterização.


[1] Disponível em <https://fdr.com.br/2021/01/28/setor-privado-fecha-11-milhoes-de-vagas-de-emprego-enquanto-publico-contrata/>. Acesso em 22 dez. 2022.

[2] Disponível em <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/10/27/trabalhadores-no-setor-publico-batem-recorde-puxado-por-contratacao-sem-carteira-assinada.ghtml>. Acesso em 22 dez. 2022. 

[3] Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

[4] Art. 1 o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

[...]

Art. 3 o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

Art. 4 o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: 

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; 

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

IV - os pródigos.

Parágrafo único.  A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. 

 Art. 5 o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:

I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;

II - pelo casamento;

III - pelo exercício de emprego público efetivo;

IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;

V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

[5] Os requisitos caracterizadores do vínculo de emprego – pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade/habitualidade, subordinação jurídica - podem ser extraídos do art. 3º da CLT:

Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

[6] Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 

 Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. 

[7] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Calegari

Advogado, OAB/SC 49886, sócio do escritório Fontes, Philippi, Calegari Advogados, graduado em Direito (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC), Especialista em Direito Civil (Rede LFG) e em Compliance Contratual (LFG), Mestrando em Direito (UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALEGARI, Luiz Fernando. Existe vida além da CLT:: prestação de serviços versus vínculo de emprego de profissionais com diploma universitário (hiperssuficientes intelectuais). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7212, 31 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103301. Acesso em: 29 abr. 2024.

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