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Benjamin Constant: um nome em comum, duas trajetórias distintas

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Talvez, no debate, o liberal-monarquista francês e o positivista-republicano brasileiro teriam sido inimigos mortais. Por outro lado, na importância histórica, há total semelhança entre os dois.

Figura 1: Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891).

Dois homens com o mesmo nome viveram separados pelo idioma, pelas águas do Atlântico e por poucas décadas de diferença nos séculos XVIII e XIX. A simples menção ao nome “Benjamin Constant”, não acompanhada de maiores informações, pode causar confusão. Estaria o interlocutor se referindo ao pensador, escritor e político francês ou ao “fundador da república” no Brasil? Curiosamente, os dois benjamins defenderam modelos politicamente antagônicos: monarquia e república; liberalismo e positivismo. Para além da coincidência de nomes, os homônimos citados acima e suas respectivas trajetórias ajudam a lançar luz sobre a política e o direito do Brasil oitocentista.

A disputa entre diferentes formas de governo, formas de estado, sistemas de governo e ideologias oficiais perpassou os processos constituintes brasileiros de 1823 e 1890-1891. No embate entre influências característico desses momentos de ruptura - especificamente a Independência de Portugal e a Proclamação da República - o nome destes dois homens esteve presente com frequência nas discussões e nas mentes da intelectualidade brasileira.

O primeiro deles, Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), ou simplesmente, Benjamin Constant, foi um pensador franco-suíço inserido na tradição liberal clássica, pós-revolução francesa. Suas ideias extrapolaram as fronteiras da França, influenciando revoltas e revoluções em vários países do mundo, como a Espanha, Portugal, Bélgica, Polônia e Grécia. No Brasil, seu pensamento contribuiu para “a formação do Estado Imperial Brasileiro, no início do século XIX” (ALVES, 2008, p. 66).

Em termos mundiais, aquele era um período de efervescência política e ideológica tanto no “velho mundo” quanto nas colônias do “novo mundo”, recém-independentes ou em processo de independência em relação a suas respectivas metrópoles. Marx e Engels ainda não haviam publicado seu manifesto como contraponto ao então celebrado Estado Liberal Burguês.

No início dos 1800, o campo das ideologias era povoado pelos socialistas utópicos (Fourier, Blanc e Owen), o industrialismo de Saint-Simon e o Sansimonismo que se estabeleceu após a sua morte, o utilitarismo de Bentham e Stuart Mill, bem como os variados matizes de liberalismo de Smith, Ricardo, Locke e Tocqueville, por exemplo2. Benjamin Constant se situava neste último polo do espectro político3. Todavia, Freller (2020, p. 26) faz a seguinte ressalva: “Constant pode sim ser considerado como um dos primeiros grandes pensadores da democracia liberal, porém, apenas se entendermos por isso um autor que refletiu profundamente sobre as antinomias fundamentais desse regime político então em estado embrionário, não um simples defensor ou apologista desse regime” (FRELLER, 2020, p. 26)4.

Naquela mesma época, especificamente no campo do nascente “constitucionalismo”, destacava-se o opúsculo do Abade Sieyès (Qu'est-ce que le tiers état?), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), e, principalmente, a Constituição Americana (1787), considerada um modelo a ser seguido em vários países. No Brasil estava se estabelecendo um novo governo monárquico que pretendia trazer uma novidade para o país: a Monarquia Constitucional. Foi justamente no campo do Direito Constitucional Brasileiro que se deu a maior importância de Benjamin Constant de Rebecque, possuidor de prestígio intelectual entre os membros da Assembleia Constituinte de 1823 manifesto “em diversas páginas dos “Anais” daquelas reuniões” (ALVES, 2008, p. 70)5.

Podemos salientar diversas contribuições do intelectual francês para o documento que viria a se tornar o nosso primeiro texto constitucional, mas a contribuição de maior relevância foi, certamente, “a teoria constantiana do poder neutro, a principal inspiração do Poder Moderador inscrito na Constituição brasileira de 1824” (FRELLER, 2020, p. 33). Alves (2008) ainda acrescenta que “a instituição do Poder Moderador6, o caráter híbrido de rigidez e flexibilidade, a questão da responsabilidade dos ministros, entre outras, são características peculiares da Constituição de 1824, que refletem toda essa contribuição teórica de Benjamin Constant na positivação jurídica da organização estatal do Brasil recém-emancipado de Portugal” (ALVES, 2008, p. 66)7.

Em 1836, doze anos após a outorga da Constituição Imperial, Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães – um militar português que havia lutado a favor do Brasil nas Guerras de Independência8 – quis homenagear Benjamin Constant batizando seu filho com o mesmo nome. Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) - o filho de Leopoldo - viria a realizar grandes feitos9: foi professor, engenheiro, matemático e militar, lutou na Guerra do Paraguai na década de 186010 e na década seguinte foi o grande responsável por difundir o positivismo comteano entre os jovens oficias do Exército no Rio de Janeiro, então capital do Império. Ferrenho defensor do republicanismo e personagem decisivo da proclamação, tornou-se Ministro da Guerra no governo do Marechal Deodoro da Fonseca após o bem sucedido golpe de estado. Faleceu em 22 de janeiro de 1891, ainda no início da “República da Espada” que ajudou a estabelecer.

Por tudo o que defendeu e conquistou em vida, a Assembleia Constituinte [de 1890-1891] aprovou salvas e moções em homenagem ao professor. Um dos deputados, Demétrio Ribeiro, lançou uma proposta audaciosa: que a casa de Benjamin fosse transformada em um “museu de documentos de toda sorte” em memória do “ínclito cidadão”. Registrou-se, assim, a primeira iniciativa museológica da era republicana, o que nos leva a chamar sua residência, carinhosamente, de “a primeira casa da República” (MUSEU CASA DE BENJAMIN CONSTANT, 2023)11. Assim, o art. 8º das disposições transitórias da Constituição de 1891 estabeleceu que o Governo iria adquirir “para a Nação a casa em que faleceu o Dr. Benjamin Constant Botelho de Magalhães e nela [...] [mandaria] colocar uma lápide em homenagem à memória do grande patriota - o Fundador da República” (BRASIL, 1891)12. Para Bandeira de Mello (2010, p. 9)13, tal honraria “denota que esse positivista militar era um ideólogo respeitado no meio intelectual”.

De forma sucinta, viu-se que a Constituição Imperial de 1824 foi influenciada em diversos aspectos pelas ideias defendidas por Benjamin Constant (o francês). Por outro lado, a Constituição Republicana de 1891 foi influenciada em diversos aspectos pelas ideias defendidas pelo outro Benjamin Constant (o brasileiro). O primeiro morreu em 1830, o segundo nasceu em 1836.

Ao invés de aderir e difundir o pensamento de seu homônimo, Benjamin Constant Botelho de Magalhães preferiu aderir ao positivismo de Auguste Comte (outro francês!). A ideia de poder moderador, desenvolvida por Benjamin Constant de Rebecque foi, quiçá, a mais marcante característica da Constituição de 1824. Não obstante, a doutrina positivista – que foi amplamente difundida pelo Benjamin nascido em terras brasileiras no seio do exército - tanto em sua vertente filosófica quanto religiosa – teve grande influência no processo constituinte e no próprio texto da Constituição de 1891, sendo somente equiparada em termos de importância ao liberalismo de inspiração norte-americana, cujo maior representante na constituinte foi Rui Barbosa.

A bem da verdade é inegável a marca indelével deixada pelos dois ilustres na História Político-Constitucional Brasileira, cada um em seu respectivo tempo. Talvez, no debate, o liberal-monarquista francês e o positivista-republicano brasileiro teriam sido inimigos mortais. Por outro lado, na importância histórica, há total semelhança entre os dois.


Notas

  1. Vale relembrar o quão igualmente fértil foi à disputa ideológica na segunda metade do século XIX com a ascensão do socialismo, o lassalismo, o anarquismo de Proudhon, o darwinismo social de Spencer e o positivismo de Auguste Comte.

  2. Para aprofundar-se nos estudos sobre o pensador francês, vide: “FARIA, Marco Antonio Barroso. Benjamin Constant de Rebecque entre o Iluminismo e o Romantismo: uma Teoria Crítica para a compreensão do Sentimento Religioso. 2010. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013” e “RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Benjamin Constant de Rebecque e a sua influência no Brasil. In: RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. O liberalismo francês–A tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2002.

  3. FRELLER, Felipe. Benjamin Constant e o problema do arbítrio: um decisionismo moderado. 2020. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/T.8.2020.tde-28052021-210821. Acesso em: 02 fev. 2023.

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  4. ALVES, Cleber Francisco. A influência do pensamento liberal de Benjamin Constant na formação do Estado Imperial Brasileiro.  Revista de informação legislativa, Brasília, v. 45, n. 180 (out./dez. 2008). Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/176563. Acesso em: 18 jan. 2023.

  5. Apesar de Constant de Rebecque ser considerado o “pai” da democracia liberal contemporânea, Carl Schmitt, já no início do século XX, recorreria à teoria constantiana em sua defesa do autoritarismo representado pelo soberano que decide sobre o estado de exceção. Segundo Freller (2020, p. 26), “em sua crítica do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis defendido por Hans Kelsen, Schmitt invoca a autoridade intelectual de Constant, um autor que teria percebido que o guardião da Constituição deve ser uma autoridade discricionária, não sujeita à limitação das formas legais. O jurista alemão mobiliza a doutrina do poder neutro formulada pelo autor franco-suíço para fundamentar a faculdade de ação discricionária atribuída ao presidente do Reich em um estado de emergência, no quadro da Constituição de Weimar (SCHMITT, 2015, p. 150- 160)”.

  6. Ibidem

  7. https://museucasabenjaminconstant.museus.gov.br/benjamin-constant/

  8. Vide: LEMOS, Renato. Benjamin Constant — vida e história. Rio de Janeiro, Topbooks, 1999. 572p.

  9. “A Guerra do Paraguai (1865-1870), que opôs a Tríplice Aliança – formada por Argentina, Brasil e Uruguai – ao Paraguai de Solano López, foi o maior conflito internacional na América do Sul. Evento de dimensões dramáticas em termos de destruição humana e material, marcou em definitivo, ainda que de maneira desigual, os povos quatro países. Entre centenas de milhares de combatentes que dela participaram, um capitão viria a tornar-se importante personagem da história do Brasil: Benjamin Constant Botelho de Magalhães [...]” (LEMOS, Renato. Cartas da guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: IPHAN, 1999).

  10. MUSEU CASA DE BENJAMIN CONSTANT. Benjamin Constant. Disponível em: https://museucasabenjaminconstant.museus.gov.br/benjamin-constant/. Acesso em: 18 jan. 2023.

  11. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro de 1891. Brasília, DF: Presidência da República [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 18 jan. 2023.

  12. BANDEIRA DE MELLO, Rafael Reis Pereira. A influência do positivismo nos primeiros anos da república. In: VI Simpósio Nacional Estado e Poder, 6., 2010, São Cristovão, SE. Anais [...]. Niterói: UFF, 2010.

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Sobre o autor
Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

Advogado e Consultor Previdenciário. Mestrando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Associado efetivo da Sociedade Numismática Brasileira (SNB). Membro do Studium Iuris - Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFMG). Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) - Subseção Contagem. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) - Subseção Contagem. Possui artigos publicados em jornais e revistas jurídicas. Perfil no academia.edu: https://pucminas.academia.edu/LucasVandenBoomen.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOOMEN, Lucas Hendricus Andrade Van den. Benjamin Constant: um nome em comum, duas trajetórias distintas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7220, 8 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102644. Acesso em: 27 abr. 2024.

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