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As Forças Armadas como um órgão moderador implícito

17/11/2022 às 15:55
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho nos lembra da "tentação militar" de intervir para pôr fim às agitações políticas, mediante intervenções que podem ser bem-vindas em caso de severas falhas e robusta corrupção nos Governos civis.

“Quando os homens são éticos, as leis são desnecessárias; quando os homens são corruptos, as leis são inúteis.” Thomas Jefferson


É verdade que no Brasil já existiu um Poder Moderador. Ele estava previsto na Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824, nos seguintes termos, verbis:

Art. 10. Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos. (g. n.)

É bem verdade que a atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não prevê o Poder Moderador, conforme seu artigo 2º, verbis:

São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Contudo, ao analisarmos o artigo 142 da Constituição da República, veremos que seu texto não difere muito daquele previsto na Constituição Imperial, verbis:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (g. n.)

Ora, de uma breve leitura podemos verificar, que pela Constituição do Império, o Poder Moderador se destinava a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos, enquanto que na atual Constituição Federal as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Portanto, é inegável que os textos possuem conteúdos se não idênticos, bastante similares, no qual poderíamos concluir que, apesar de subordinadas ao Presidente da República, as Forças Armadas constituiriam espécie de Órgão Moderador, ao menos implicitamente.

Segundo o professor Uadi Lammêgo Bulos1,

As Forças Armadas constituem o elemento fundamental da organização coercitiva do Estado. Postas a serviço do direito e da paz social, têm o objetivo de afirmar a ordem interna da Nação (…) Como instituições nacionais, permanentes e regulares, as Forças Armadas não podem ser dissolvidas, eliminadas, castradas, porquanto elas se ligam à própria existência do Estado. Apenas uma Assembleia Nacional Constituinte poderia dar novos contornos à instituição. (g. n.)

Outrossim, segundo o texto constitucional, o braço armado do Estado pode atuar quando solicitado por qualquer dos poderes constitucionais, quando um estiver invadindo a competência e a independência do outro.

Entretanto, tal conclusão é fonte de infindáveis digressões na doutrina.

Com efeito, segundo Lênio Luiz Streck2,

Portanto, há dois aspectos a serem ressaltados: o primeiro diz respeito à hermenêutica que os militares fazem da Lei de Defesa do Estado Democrático, equiparando manifestações (golpistas) que pedem intervenção deles — militares — a "manifestações democráticas". Ora, não é disso que trata a lei. Hermes, aqui, furtou todo o rebanho. O segundo aspecto que exsurge da nota dá um "recado" (elíptico) ao legislativo e reforça, como efeito colateral, manifestações contra o TSE e STF, o que se pode ver inclusive nos eventos de Nova York e a cotidiana catilinária contra os ministros da Suprema Corte. Rádios e TVs Brasil afora ainda estão em campanha, por assim dizer.

Nada obstante, o insigne jurista olvida o clarividente texto constitucional, segundo o qual os militares devem garantir os poderes constitucionais, e não só o STF e o TSE.

Além disso, quando usa o termo “golpistas”, está a evidenciar uma retórica usada pelos militantes da esquerda brasileira, tornando seu discurso suspeito de parcialidade.

De seu turno, segundo o advogado Lucas Gabriel Pereira3,

Acaso seria possível defender a democracia apenas com redação de notas à imprensa enquanto às ruas são infetadas de fungos e bactérias fascistas que regurgitam nas redes sociais todo tipo de palavrório criminoso, chauvinista, xenofóbico, aporofóbico etc.? O profeta da semiologia Umberto Eco alertou: As redes sociais darão voz a todo tipo de imbecis, nós é que não demos conta de controlar democraticamente a forma como esses grupos transnacionais da mídia (twitter, facebook, Instagram, TikTok, etc.) poderiam atuar respeitando a soberania e os interesses nacionais. (g. n.)

Deixando de lado o discurso de ódio proferido pelo causídico, assiste razão apenas quando aduz serem ilícitos os atos de obstrução de rodovias e vicinais Brasil afora, assim como sempre foram aqueles praticados pelo Movimento Sem Teto (MST)4, conforme o artigo 5º, inciso XV, da Lei Maior.

De outro vértice, o Supremo Tribunal Federal, no MI nº 7.311-DF, deixou clara a posição das Forças Armadas no cenário institucional brasileiro, conforme a ementa que segue:

PROCESSO CONSTITUCIONAL. MANDADO DE INJUNÇÃO. SEPARAÇÃO DE PODERES. FORÇAS ARMADAS E PODER MODERADOR. ART. 142, CF. 4. O Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores. 5. Sob o regime da Constituição de 1988 vigora o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), no qual os Poderes são independentes, harmônicos e se controlam reciprocamente. Não se deve esquecer, tampouco, a importância do controle social, de grande relevância nas sociedades abertas e democráticas. 6. Nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao art. 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Embora o comandante em chefe seja o Presidente da República, não são elas órgãos de governo. São instituições de Estado, neutras e imparciais, a serviço da Pátria, da democracia, da Constituição, de todos os Poderes e do povo brasileiro.

Ora, para o Ministro Luís Roberto Barroso, as Forças Armadas não teriam uma posição moderadora hegemônica, além de servirem, dentre outros, ao povo brasileiro, do qual emana todo poder, nos termos do artigo 1º, parágrafo único, da Lex Mater.

Destarte, a Suprema Corte, no julgado acima, não descartou a posição moderadora das Forças Armadas, ressaltando que ela funcionaria dentro do sistema de checks and balances.

Portanto, caso houver uma ruptura do sistema de controle recíproco, caberia as Forças Armadas intervir para restaurar “a lei e a ordem”, pois estão a serviço da Pátria, da democracia, da Constituição, de todos os Poderes e do povo brasileiro.

Nada obstante, conforme ensina Pedro Lenza5,

Excepcionalmente, contudo, de forma subsidiária e eventual, a Constituição admite o emprego das Forças Armadas para atuar também em segurança pública, conforme se observa na parte final do art. 142, caput, regulamentado pela LC n. 97/99 e de acordo com o Decreto n. 3.897/2001,20 mas jamais para a sua atuação como poder moderador na hipótese de conflito entre os poderes (MI 7.311, j. 10.06.2020). (g. n.)

No mesmo sentido escreve Eduardo dos Santos sobre o papel das Forças Armadas6:

Por fim, perceba que não há no art. 142, da CF/88, fundamento para intervenções militares no governo, isto é, não existe intervenção militar constitucional. Isso é um mito e, como todo mito, é falso, ilusório, ignorante (fruto da falta de conhecimento), tendo origem, sobretudo, em inverdades e sensacionalismos espalhados na era da naturalização da mentira e das fakenews. Assim, quaisquer intervenções, na verdade, configuram-se como golpes de Estado e suplantação do regime constitucional democrático pela via do totalitarismo, vez que nossa Constituição estabeleceu um sistema de freios e contrapesos políticos entre os Poderes e não um “Poder Moderador” às forças armadas, sendo ilegítima qualquer intervenção delas no exercício dos Poderes. (g. n.)

Por outro lado, a Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, em 4/6/2020, emitiu um parecer acerca do papel das Forças Armadas, verbis7:

Em síntese: eventuais conflitos entre os poderes devem ser resolvidos pelos mecanismos de freios e contrapesos existentes no texto constitucional, ao estabelecer controles recíprocos entre os poderes. São eles que fornecem os instrumentos necessários à resolução de conflitos, tanto em tempos de normalidade como em situações extremadas, que ameacem a própria sobrevivência do regime democrático e da ordem constitucional (…) naturalmente o artigo 142 da Constituição Federal não permite “intervenção militar constitucional”, seja em caráter permanente ou pontual. Interpretar esse dispositivo no sentido de conferir às Forças Armadas o poder de sobrepor-se a decisões de representantes eleitos pelo Povo ou de quaisquer outras autoridades constitucionais a pretexto de “restaurar a ordem” consiste em perpetrar verdadeira fraude ao texto constitucional. Implica em tentativa de instrumentalizar a Carta da República e de capturar uma instituição de Estado de envergadura das Forças Armadas por interesses governamentais passageiros. (g. n.)

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Em relação ao parecer da Casa dos representantes do povo, soa extremamente restritivo quanto ao papel das Forças Armadas, e evidentemente não poderia ser usado pelos governantes do momento para perpetrar um golpe mascarado contra a Constituição e ainda evitarem a intervenção militar “restauradora”.

Oportunamente, invocamos a observação feita por Nathalia Masson sobre esse papel moderador do braço armado da República8:

Manoel Gonçalves Ferreira Filho nos lembra, todavia, da "tentação militar" de intervir para pôr fim às agitações políticas, mediante intervenções que podem ser bem-vindas em caso de severas falhas e robusta corrupção nos Governos civis, mas que podem ser arriscadas pois "sempre há, por exemplo, o perigo de que a ambição de chefes veja necessidade onde não existe"; (g. n.)

Num tom mais equilibrado, Vera Chemim obtempera que “em ultima ratio, as Forças Armadas só poderiam intervir na possibilidade concreta e iminente de ameaça ao regime democrático brasileiro, o que se considera uma hipótese remota, diante do progressivo amadurecimento das suas instituições. Nessa direção e igualmente distante da realidade, as Forças Armadas teriam de garantir a lei e a ordem quando um poder público estivesse usurpando o exercício dos demais poderes (tomando como pressuposto o esgotamento de outras alternativas de diálogo institucional), mediante grave ameaça ou violência, o que se considera fora de qualquer cogitação”.9

Por sua vez, a nosso ver com muito mais razão, Ives Gandra da Silva Martins assinala que “NO CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante”.10

Portanto, caso existam graves falhas e robusta decadência nos governos eleitos, como sói ocorrer na época da operação Lava Jato, onde, a despeito da parcialidade do julgador do caso, foram efetivamente comprovados os atos de corrupção generalizada, poderiam as Forças Armadas intervir para restabelecer a forma republicana de governo, gravemente comprometida pela cleptocracia11.

Finalmente, ousamos concluir que, a despeito da posição do Tribunal Constitucional e da Câmara dos Comuns, não poderiam nenhum dos poderes intentar golpe de Estado, e com base em suas posições institucionais e ruptura do sistema constitucional de freios e contrapesos, defender que as Forças Armadas nada poderiam fazer, devendo assistir de camarote sua pátria ruir, a qual são constitucionalmente obrigadas a proteger.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2017.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 26ª ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022.

MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 8ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2020.

PEREIRA, Lucas Gabriel. A democracia e as Forças Armadas à luz do art. 142, cabeça, da Constituição Federal de 1988 - Poderes desarmados versus poder armado: As Forças Armadas e o pseudo poder moderador.Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7074, 13 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100970. Acesso em: 17 nov. 2022.

SANTOS, Eduardo dos. Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba: Foco, 2021.
 


1 Curso de direito constitucional. 10ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2017, pág. 1475/1476.

2 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-16/lenio-streck-hermes-forcas-armadas Acesso em: 16/11/2022.

3 A democracia e as Forças Armadas à luz do art. 142, cabeça, da Constituição Federal de 1988 - Poderes desarmados versus poder armado: As Forças Armadas e o pseudo poder moderador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7074, 13 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100970. Acesso em: 16 nov. 2022.

4 Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/mst-faz-protesto-e-bloqueia-rodovia-no-triangulo-mineiro/amp/ Acesso em: 16/11/2022.

5 Direito Constitucional. 26ª ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022, pág. 1846.

6 Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba: Foco, 2021, pág. 1525.

7 Disponível em: https://www.camara.leg.br/midias/file/2020/06/parecer.pdf Acesso em: 16/11/2022.

8 Manual de direito constitucional. 8ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2020, pág. 1637.

9 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-18/vera-chemim-forcas-armadas-poder-moderador Acesso em: 17/11/2022.

10 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira?fbclid=IwAR1-yGljIaCzDtaoLrMXzEHAU7Q0kOkkQrYpNuorVJmSSRA5hL7v30FLhpw Acesso em: 17/11/2022.

11 Disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2022/06/10/ministro-fux-diz-que-decisoes-sobre-casos-de-corrupcao-foram-anuladas-na-lava-jato-mas-dinheiro-desviado-era-real.ghtml Acesso em: 17/11/2022.

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Sobre o autor
Celso Bruno Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. As Forças Armadas como um órgão moderador implícito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7078, 17 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101175. Acesso em: 27 abr. 2024.

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