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Piso nacional de enfermagem: a polêmica sobre a suspensão da lei

15/09/2022 às 13:45
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A presente situação mostra como questões importantes são tratadas com descaso e com extrema desorganização por parte do poder público.

Enfermeiros merecem valorização. Os contrapontos deveriam ter sido tratados em momento oportuno. Suspensão do piso é de extrema crueldade para os profissionais


Após intensos debates desde 2020, foi sancionada pela Presidência da República em 05/08/2022 a Lei 14.434/2022, que instituiu o piso salarial nacional do enfermeiro (e do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira). A medida foi comemorada pelos quase 2 milhões de profissionais que integram as classes, e vista pela sociedade como um justo reconhecimento a uma das categorias que mais se doou durante a pandemia do Covid-19, mas que até então só tinha recebido aplausos. 

Mesmo com a atual polarização política, a matéria teve aprovação unânime na Câmara e de 97,3% no Senado. De acordo com a Lei, a remuneração mínima dos enfermeiros deve ser de R$ 4.750,00 mensais. A dos técnicos foi fixada em 70% deste valor, e a dos demais profissionais em 50%. O único veto da presidência foi em relação à indexação ao INPC, que foi visto como inconstitucional. 

Se por um lado a classe beneficiada comemorou a aprovação da lei, muitas preocupações foram levantadas pelas entidades públicas e privadas que integram o setor. Segundo o Ministério da Saúde, o impacto do aumento seria de R$ 22,5 bilhões a partir de 2021, chegando a quase R$ 25 bilhões a partir de 2024. E isso não se limita somente ao setor público, pois o estudo realizado pela Câmara dos Deputados indicou um impacto de R$ 10,5 bilhões para o setor privado hospitalar. 

Um dos pontos mais criticados da Lei foi a ausência de previsão da origem dos recursos, criando custo adicional bilionário aos entes federados e instituições que atuam de forma complementar ao SUS.

No mesmo dia da sanção da lei foi publicada uma nota de agravo, assinada por diversas entidades interessadas no tema, como a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (ABRAMED), Associação Brasileira de Planos de Saúde (ABRAMGE), Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC), Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT), Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP), Confederação Nacional de Municípios (CNM), Confederação Nacional de Saúde (CNSAUDE), Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB), Federação Nacional de Saúde Suplementar (FENASAUDE) e a Federação Brasileira de Hospitais (FBH).

Se por um lado a crítica acerca da ausência de origem dos recursos é plausível, é preciso considerar que o Congresso Nacional e as entidades do setor tiveram a oportunidade de analisar e discutir a matéria durante os mais de 2 anos de tramitação do projeto. E segundo o COFEN (Conselho Federal de Enfermagem) isto ocorreu, com a apresentação de todos os estudos necessários e a ampla discussão dos impactos durante a tramitação do projeto. Até o próprio STF poderia ter se manifestado acerca do assunto em momento mais oportuno, visto que os ministros pop-stars não se furtam dos holofotes para opinar sobre algo, quando assim desejam.

Em meio às comemorações pela aprovação e as articulações para derrubar o veto da indexação ao INPC por um lado, e às e queixas pela ausência de previsão orçamentária de outro, a lei entrou em vigência com a publicação no Diário Oficial da União em agosto.

Com isso, passou a gerar efeitos em todos os contratos e acordos individuais, assim como nos acordos e convenções coletivas firmados pela iniciativa privada com os profissionais beneficiados pela lei. Já no caso dos entes públicos, o prazo para adequação seria até o final do atual exercício financeiro, nos termos da Emenda Constitucional n. 124. 

Contudo, a CNSAUDE (Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços) foi ao STF contra a lei, alegando alto risco de demissões em massa e impacto no sistema de saúde por conta da ausência de previsão da origem dos recursos.

E nesse domingo (04/9), em decisão monocrática, o ministro Roberto Barroso suspendeu a Lei até que seja esclarecido seu impacto financeiro. Na decisão, o ministro concedeu 60 dias para que os principais interessados se manifestem, e só então a corte analisará a matéria. 

Chama a atenção o fato de a decisão ocorrer em pleno domingo, faltando menos de 24h para a data do início dos pagamentos reajustados por parte do setor privado, e contrariando a recomendação do CNS (Conselho Nacional de Saúde).

Além de frustrar de forma abrupta toda a categoria, a medida afeta de forma negativa todo o planejamento administrativo das entidades do setor privado, que já estavam organizadas para o pagamento com o reajuste (muitas inclusive já pagaram). 

Outro ponto que chama a atenção é o fato de se tratar de uma decisão monocrática, visto que a medida tem sido muito criticada até mesmo pelos próprios ministros da corte. A matéria será, portanto, submetida ao plenário virtual (quando poderemos ter uma nova reviravolta), ainda sem data prevista. 

Os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, já declararam guerra contra a decisão do STF. Muito embora nenhum deles tenha se movimentado para criar a previsão da receita, como prometido quando da aprovação da lei, o que possivelmente evitaria todo o transtorno atual.

Embora as casas legislativas reforcem o interesse em valorizar a categoria, há dúvidas sobre as intenções dos representantes do povo, visto que o próprio PL 2295/00 (que fixa a jornada dos profissionais da enfermagem em 30 horas semanais) tramita há 22 longos anos, sem qualquer sinal de solução.  

Diante da decisão do ministro Barroso, as lideranças da categoria já falam em greve geral. E em meio a tudo isso, tanto os profissionais envolvidos quanto todo o setor da saúde vivem uma grande apreensão e angústia, assim como toda a população brasileira, diante da possibilidade de uma greve geral na saúde.

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O que mais chama a atenção no caso é que, independentemente de qualquer juízo de valor sobre o cabimento das críticas que levaram à decisão do STF, o atual quadro poderia ter sido evitado, caso o poder público tivesse tratado o caso da forma correta, e no tempo adequado.  

A presente situação mostra como questões importantes são tratadas com descaso e com extrema desorganização por parte do poder público, assim como no caso do rol da ANS, situação na qual o Poder Judiciário decidiu (equivocadamente, diga-se de passagem) e logo na sequência o Poder Legislativo desautorizou o Judiciário, aprovando lei em sentido contrário. Agora, poucos dias depois temos um caso inverso, em que o Poder Judiciário, por decisão monocrática, cassa uma Lei que foi objeto de regular tramitação legislativa. 

Poderíamos dizer que temos um quadro de falta de diálogo, entendimento e planejamento entre os poderes (o que por si só já seria de extrema gravidade). Mas há quem enxergue no quadro atual, uma guerra de vaidades. Talvez uma acirrada disputa por poder. Ou até mesmo um jogo de cartas marcadas entre os poderes. Um circo, em que todos nós (e sobretudo as categorias envolvidas) somos os palhaços.

Sobre falta de previsão da receita para custear o aumento, cumpre relembrar que as eleições de 2022 ocorrem com um fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, valor que contou com um aumento de 188% em relação às eleições anteriores. Sem qualquer interferência do STF acerca da origem dos recursos.

Coincidentemente, a corte aprovou em 17/08/2022 o aumento de 18% dos próprios salários, com impacto estimado em mais de R$ 6,3 bilhões a partir de 2025 só no próprio STF, mas com reflexos em todo o funcionalismo público (pois eleva o teto de todo o funcionalismo da União, afetando também os demais Poderes), e não houve qualquer questionamento por parte do Poder Legislativo. Notamos que quando há interesse próprio envolvido, o dinheiro aparece, e tendo ou não a previsão de origem, não há qualquer questionamento. 

Os enfermeiros e demais profissionais envolvidos merecem o reconhecimento e a valorização, sem sombra de dúvidas. Existem contra-argumentos relevantes, mas que poderiam ter sido tratados em momento oportuno, sem todo o transtorno atual, que afeta toda a população. O cenário que assistimos é uma tortura desnecessária a uma classe de grande importância para a nossa saúde. Pois independentemente da decisão final, o fato é que a forma e o tempo em que as decisões são tomadas são de extrema crueldade para com os envolvidos.

Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado, professor, escritor, palestrante, debatedor, conferencista; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Pós-graduado em Direito Processual pela PUC-MG; Pós-graduado em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; Pós-Graduando em MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Professor do curso de Direito Médico, Odontológico e Direito da Regulação da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Especialista em Terceiro Setor e Direito Médico;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, Renato. Piso nacional de enfermagem: a polêmica sobre a suspensão da lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7015, 15 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100115. Acesso em: 27 abr. 2024.

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