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Direito, Soberania e Efetividade Jurídica

Direito, Soberania e Efetividade Jurídica

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Analisa-se o Estado como principal elemento de concreção do Direito, por meio da efetivação da Soberania Nacional.

Resumo: O presente ensaio tem como propósito analisar o Direito como uma realidade ficcional, desprovido do atributo da efetividade, concluindo que o Direito somente se transforma em uma realidade efetiva na presença de elementos de concreção que são estranhos à realidade jurídica. Neste sentido, o texto tece considerações sobre o Estado como principal elemento de concreção do Direito, através da efetivação da Soberania Nacional.

Palavras-chave: DIREITO. EFETIVIDADE. REALIDADE JURÍDICA e SOBERANIA.


1. Introdução

Sobre o Direito, transcendendo sua noção, conceituação e finalidade social, deve ser assinalado que o mesmo, isoladamente considerado, se constitui em uma inexorável e singela realidade ficcional, desprovido, por sua vez, de qualquer efetividade (originária) inerente ao mundo fático.

Por outro lado, se o Direito não se cumpre, a percepção social e o próprio papel da legalidade se ressentem; vice-versa, a presença do conjunto de valores e atitudes que caracterizam a cultura da legalidade é uma das condições que dão efetividade ao Direito.

Por efeito, o Direito somente se transforma em uma realidade efetiva, cumprindo plenamente a sua finalidade social e o seu objetivo precípuo de disciplinar condutas individuais em sociedade , na presença de indispensáveis elementos de concreção que, em princípio, são completamente estranhos (posto que externos e extrínsecos) à própria realidade jurídica.

Tais elementos, de nítido caráter instrumental, revelam-se como autênticos mecanismos de conversão, permitindo que o Direito, a partir de sua inerente percepção abstrata originária, possa se exteriorizar através de uma consequente percepção concreta derivada que forneça, em última análise, a imprescindível sinergia à sua própria previsão teórica de sanção, provendo-lhe o inafastável fator de concretude e, consequentemente, credibilidade política [1].

Neste norte, para dar conta da complexidade do fenômeno jurídico, que comporta múltiplas facetas, o Direito não é apenas um dispositivo de restrição, mas antes de tudo um vetor de coordenação e um instrumento de regulação das atividades sociais, e esta dimensão tende a assumir uma importância crescente nas sociedades contemporâneas. A partir do momento em que um grupo social se institui, ele é levado a utilizar o vetor jurídico para manter a sua coesão, consolidar sua identidade e assegurar a sua sobrevivência.

Nesse particular, é forçoso concluir ser o Estado o principal elemento de materialidade do Direito, mormente quando o mesmo é incorporado através de sua forma derradeira, dotado, pois, de recursos reais e tangíveis, atribuídos pelo terceiro elemento de sua formação; ou seja, a soberania, e seu correspondente e derivado poder nacional em suas quatro diferentes acepções: militar, econômica, política e psicossocial , e da correspondente disposição política de fazer valê-los; ou seja, através da tradução conceitual do que convencionalmente definimos por Estados Fortes.

Em outras palavras, a ligação entre soberania e direito foi historicamente estabelecida através da mediação de um terceiro termo que os subsumia: o Estado. Colocada como atributo do Estado e indissociável de sua essência, a soberania traduz-se pelo privilégio de exclusividade que é suposto deter sobre a produção da norma jurídica. Assim se edifica o sistema simbólico no qual se apoiou a construção dos Estados-nação, novo modelo de organização política imanente da formação das sociedades modernas.


2. Estado como Principal Elemento de Concreção do Direito

O Estado permanece no princípio da formação das identidades coletivas e constitui sempre o lugar privilegiado de enquadramento e de regulação das relações sociais.

Muito embora o Estado não possa ser reputado como o único elemento de concreção do Direito, considerando que, em princípio, toda forma de exteriorização de poder efetivo é capaz de fazer valer previsões abstratas de ordenação , é, sem dúvida, o Estado (e, em particular, o Estado forte [2]) o principal polo de produção e efetivação do Direito, sendo certo que a forma pela qual tal processo se realiza é (necessariamente) através da soberania, na qualidade de virtual instrumento de vinculação político-jurídica e elemento, por excelência, de formação e irradiação de poder político, além de, neste específico sentido, responsável última pela necessária concreção do próprio Estado [3].

2.1. Soberania como Pressuposto de Existência do Estado e do Direito

Para compreender o que vem a ser o Estado, é aconselhável passar pela análise de um outro conceito, o da soberania.

A soberania é, sem dúvida, o conceito-chave que presidiu a construção do direito moderno, em estreita relação com a edificação do Estado. Assim concebida, ela é colocada como um atributo substancial do Estado, indissociável de sua essência, sendo a norma jurídica uma expressão tangível desse poder soberano. Por assim dizer, a relação entre soberania e direito é mediada pelo Estado, colocado como sujeito exterior e superior ao corpo social.

Cumpre ressaltar que a soberania guarda um sentido complexo, que se traduz pela sua própria polivalência e ambiguidade. Se, por um lado, o termo em questão traduz-se tradicionalmente pelas acepções fundamentais de poder de império (poder do Estado sobre as coisas em seu território) e de poder de dominação (poder do Estado sobre as pessoas em seu território), também é possível entender o alcance do referido vocábulo apenas como a qualidade suprema inerente a este mesmo poder.

Significa dizer, então, que o termo soberania possui, entre outros, um sentido básico substantivo de poder , ao mesmo tempo em que encerra a qualidade suprema inerente ao próprio poder. Portanto, é um termo sui generis que, entre outras acepções usuais, pertence a duas classes gramaticais distintas: substantiva e adjetiva.

No sentido material (substantivo) é o poder que tem a coletividade humana (povo) de se organizar jurídica e politicamente (forjando, em última análise, o próprio Estado), e de fazer valer, no seu território, a universalidade de suas decisões. No aspecto adjetivo, por sua vez, a soberania se exterioriza conceitualmente como a qualidade suprema do poder, inerente ao Estado, como Nação política e juridicamente organizada [4].

O primeiro aspecto importante a considerar é o que se refere ao conceito de soberania. Entre os autores há quem se refira a ela como um poder do Estado, enquanto outros preferem concebê-la como qualidade do poder do Estado, sendo diferente a posição de KELSEN, que, segundo sua concepção normativista, entende a soberania como expressão da unidade de uma ordem. Para HELLER e REALE ela é uma qualidade essencial do Estado, enquanto JELLINEK prefere qualificá-la como nota essencial do poder do Estado. RANELLETTI faz uma distinção entre a soberania, com o significado de poder de império, hipótese em que é elemento essencial do Estado, e soberania com o sentido de qualidade do Estado, admitindo que esta última possa faltar sem que se desnature o Estado, o que, aliás, coincide com a observação de JELLINEK de que o Estado Medieval não apresentava essa qualidade. (DALMO DE ABREU DALLARI; Elementos de Teoria Geral do Estado, 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 67)

No sentido substantivo (que alguns autores salientam como o principal), a soberania é também concebida, em termos políticos, como o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar competências (soberania como elemento de expressão última da plena eficácia do poder); em termos jurídicos, como o poder de decidir, em última instância, sobre a eficácia da normatividade jurídica; e, em termos culturais (que alguns autores, como MIGUEL REALE, preferem denominar concepção política, mas que, em essência, é uma tradução mista político-jurídica), como o poder de organizar-se política e juridicamente e de fazer valer, no âmbito de seu território (princípio da aderência territorial), a universalidade de suas decisões no limite dos fins éticos de convivência (MIGUEL REALE; Teoria do Direito e do Estado, 2ª ed., São Paulo, Ed. Martins, 1960, p. 127) ou, como preferimos, no limite da legitimidade (consensus) imposta pela coletividade humana originária (povo).

Na expressão básica, de caráter material, a soberania pode ser ainda considerada como o pressuposto fundamental do Estado: é o poder de império (poder sobre todas as coisas no território nacional) e o poder de dominação (poder sobre todas as pessoas no território naional), geradores, por sua vez, de um autêntico corolário de direitos e obrigações. É, por fim, o poder máximo do Estado, efetivando-se na organização política, social e jurídica de um Estado [5].

Cumpre dizer que, como conceito ou símbolo dominante em nossos dias, a soberania, do ponto de vista político, pode ser entendida como elemento central do nacionalismo em sua virtual reação contra qualquer forma de dominação exterior e, opostamente, até mesmo como justificativa de posições de domínio internacional.

Para alguns autores em particular (como PEDRO CALMON; Curso de Direito Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1942, p. 177 e SAHID MALUF; Teoria Geral do Estado, 23ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, ps. 29-30), o conceito de soberania está intrinsecamente relacionado ao conceito de Estado perfeito, como qualidade inerente ao mesmo (Estado soberano). Todavia, o mais correto é entender o fenômeno em questão como inconteste elemento de formação (ou caracterização) do Estado, que possui, desta feita, dois âmbitos distintos de atuação: o interno (de caracterização institucional) e o externo (de projeção no cenário internacional). Internamente, é o direito de criar o governo, as instituições e a própria Constituição (por intermédio do denominado Poder Constituinte). Externamente, é o poder absoluto aderente ao território que propiciou forjar; no direito internacional público, o conceito basilar de não-intervenção entre os Estados (soberanos) no contexto mundial [6].

Diagrama 1: Soberania (Concepções Política, Jurídica e Cultural)

Soberania: Na qualidade de caracterização substantiva do poder

Concepção Política

Poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar competências (soberania como elemento de expressão última de plena eficácia do poder)

Concepção Jurídica

Poder de decidir em última instância sobre a eficácia da normatividade jurídica

Concepção Cultural (Político-jurídica)

Poder de organizar-se política e juridicamente e de fazer valer, no âmbito de seu território, a universalidade de suas decisões no limite da legitimidade imposta pela coletividade humana originária (povo)

Diagrama 2: Concepção Substantiva e Adjetiva de Soberania

Elementar Básica

  • A soberania é entendida, conceitualmente, unicamente como elemento substantivo (poder) ou unicamente como elemento adjetivo (qualidade inerente ao poder)

Substantiva (BODIN, GERBER, SINAGRA, MARCELLO CAETANO, entre outros): Poder do Estado

Adjetiva (HELLER, MIGUEL REALE, MACHADO PAUPÉRIO, SAHID MALUF, entre outros): Qualidade do poder estatal

Binária (Unitarista)

  • A soberania é entendida, conceitualmente, como uma unidade binária onde coexistem dois aspectos: o substantivo (poder) e o adjetivo (qualidade suprema do poder) (RANELLETTI, JELLINEK, entre outros)

Substantiva: Poder que tem a coletividade humana (povo) de se organizar política e juridicamente e de fazer valer, em seu território, a universalidade de suas decisões sobre as coisas (aspecto físico) e sobre as próprias pessoas (aspecto humano)

Poder de Império: Poder sobre as coisas no território nacional (aspecto físico)

Poder de Dominação: Poder sobre as pessoas no território nacional (aspecto humano)

Adjetiva: Qualidade suprema do poder inerente ao Estado

2.2. Significado do Termo

Soberania, do latim super omnia ou de superanus ou supremitas (caráter dos domínios que não dependem senão de Deus), significa, vulgarmente, o poder supremo e, neste aspecto, incontestável do Estado, acima do qual nenhum outro poder se encontra, ou mesmo tangencia.

2.3. Os Variáveis Conceitos de Soberania

A palavra soberania apresenta uma plasticidade extraordinária, sendo também carregada de ideologia. Alguns autores atribuem a ela um papel central; outros, pelo contrário, tendem a limitar a sua importância ou mesmo a negar a sua existência. No entanto, se parece difícil abstrair-se da ideia de soberania, cumpre revisitar alguns conceitos de renomados escritores.

A soberania, como bem observa PAUPÉRIO (MACHADO PAUPÉRIO; Teoria Democrática da Soberania; Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, ps. 3-4), é a causa formal do Estado; o que não impede, no entanto, que existam outras formas menores de associações humanas, como, por exemplo, a que se observa na família, com sua potestas dominativa ou econômica. É preciso convir, porém, que a potestas dominativa do pai de família é fundamentalmente privada, enquanto a potestas política do Estado é, por sua essência, pública.

A soberania constitui, assim, para muitos, verdadeira diferença específica do Estado, a característica histórica e racional que distingue o poder político (MACHADO PAUPÉRIO; Teoria Democrática da Soberania; Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, p. 3).

GERBER definiu-a como um poder de dominação (GERBER apud ADOLF POSADA; Tratado de Derecho Político, 2ª ed., revisada, Madri, 1915, tomo 1º, vol. 2º, ps. 76 e 213). Já ORBAN define-a como a plenitude do poder público, a suprema potestas (apud VIVEIROS DE CASTRO; Estudos de Direito Público, Rio de Janeiro, 1924, p. 47). SANTI ROMANO diz ser o caráter que distingue o Estado de todas as pessoas territoriais que constituem o seu gênero próximo (SANTI ROMANO; Corso di Diritto Costituzionale, 3ª ed., Padova, 1931, p. 53), e CALMON conceitua a soberania como caracterização do Estado perfeito (PEDRO CALMON; Curso de Direito Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, p. 177).

No sistema da técnica jurídica, diz CHIMIENTI que a soberania é qualificada como fonte da capacidade jurídica do Estado (CHIMIENTI; Droit Constitutionnel Italien, Paris, 1932, p. 27). Já MALUF conceitua soberania como uma autoridade superior, que não pode ser limitada por nenhum outro poder (SAHID MALUF; Teoria Geral do Estado, 23ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 29).

SINAGRA afirma: Concebido o Estado como pessoa jurídica, a soberania pertence-lhe como um direito subjetivo, mas a soberania, antes de ser um direito, é um poder de fato, força material constringente (apud MACHADO PAUPÉRIO; Teoria Democrática da Soberania; Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, p. 5).

Segundo HAURIOU, o conceito de soberania, sob o ângulo da concepção política, consiste na ideia da independência fundamental do poder do Estado. A soberania-independência é o conceito negativo, pois limita-se a afastar do poder toda e qualquer ideia de limites, sem atender ao conteúdo positivo do poder (HAURIOU; Précis Élémentaires de Droit Constitutionne, 3ª ed., 1993, ps. 16-17).

Outro, porém, é o conceito quando uma lei básica estabelece, por exemplo, que a soberania reside na Nação, pois, neste caso, impõe-se a concepção política, uma vez que se atende não só ao poder organizado como à fonte, à maneira de constituir-se o poder. Soberania, então, é soberania política, exprimindo o fenômeno do poder desde o seu desdobramento como força social, até a sua caracterização como direito subjetivo do Estado constituído [7].

A soberania (majestas, summum imperium) significa, portanto, um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna; e por poder independente aquele que na sociedade internacional não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos.

Do que ficou exposto, resulta que poder político e soberania não são a mesma coisa. A soberania é uma forma do poder político, correspondendo à sua plenitude: é um poder político supremo e independente. Se uma coletividade tem liberdade plena de escolher a sua Constituição e pode orientar-se no sentido que bem lhe parecer, elaborando as leis que julgue convenientes, essa coletividade forma um Estado soberano. (MARCELLO CAETANO; Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6ª ed., Lisboa, Coimbra Ed., 1972, p. 132)

Hodiernamente, novos autores surgem com outras ideias, outros valores, outros conceitos, em face de um processo normal de desenvolvimento, sob todos os aspectos. Porém, sob qualquer ângulo analítico, não há como deixar de se reconhecer a soberania como o instrumento fundamental de concreção do direito, atribuindo-lhe, - através do poder estatal -, a necessária efetividade.

Ainda, para além de quaisquer diferenças importantes e de afinidades não menos gritantes, o conceito de soberania foi, com efeito, forjado para resumir este poder singular que é colocado como o sinal distintivo do Estado, entidade abstrata erigida em depositário da identidade social e fonte de qualquer autoridade. Significa dizer que o Estado dispõe de um poder supremo de dominação, isto é, de um poder irresistível e incondicional que não só se impõe aos sujeitos passivos, sem que eles possam subtrair-se a ele, mas também escapa a qualquer vínculo de subordinação, a qualquer relação de dependência.

Diagrama 3: Os Variáveis Conceitos de Soberania

Sob a Ótica Jurídica

  • PINTO FERREIRA (ótica ético-jurídica: soberania é a capacidade de imposição da vontade própria para a realização do direito justo)

  • KELSEN (ótica normativista: soberania é a expressão da unidade de uma ordem jurídica)

  • CLÓVIS BEVILÁCQUA (ótica coativista: soberania é a autoridade superior que sintetiza politicamente os preceitos do direito e a energia coativa do agregado nacional)

  • CHIMIENTI (ótica substantiva: soberania é a fonte da capacidade jurídica do Estado)

Sob a Ótica Política (e político-jurídica)

  • DALMO DE ABREU DALLARI (ótica adjetiva: soberania é uma concepção de poder unificador)

  • MIGUEL REALE (ótica adjetiva: soberania é um fenômeno genérico do poder)

  • SAHID MALUF (ótica adjetiva: soberania é o elemento qualificador do governo)

  • MACHADO PAUPÉRIO (ótica adjetiva: soberania é a característica histórica e racional que distingue o poder político)

  • ORBAN (ótica adjetiva: soberania é a plenitude de poder público (a suprema potestas))

  • SANTI ROMANO (ótica adjetiva: soberania é o caráter que distingue o Estado das demais pessoas territoriais)

  • PEDRO CALMON (ótica adjetiva: soberania é a própria caracterização do Estado perfeito)

  • MARCELLO CAETANO (ótica substantiva positiva: soberania é o poder político supremo e independente)

  • GERBER (ótica substantiva positiva: soberania é o poder de dominação)

  • SINAGRA (ótica substantiva positiva: soberania é um poder de fato)

  • HAURIOU (ótica substantiva negativa: soberania consiste na ideia de independência que, por sua vez, restringe a noção de limites ao poder)

Observação: As óticas intrínsecas referem-se à síntese do pensamento do autor, não correspondendo, necessariamente, a uma concepção restritiva única do fenômeno conceitual de soberania.

2.4. Titularidade (e Justificação) da Soberania

No que concerne à titularidade da soberania e sua consequente justificação, basicamente duas diferentes teorias se apresentam buscando impor a explicação do fenômeno em sua origem: as chamadas teorias teocráticas (de direito divino sobrenatural e providencial) e as denominadas teorias democráticas (soberania do povo, soberania da Nação e soberania do Estado).

Além dessas, alguns autores, como MALUF e PAUPÉRIO, elencam a teoria das escolas alemã e austríaca (JELLINEK e KELSEN que, em certa medida, se confundem com a teoria da soberania do Estado), a teoria negativista da soberania (DUGUIT), a teoria realista e a teoria institucionalista da soberania.

As teorias teocráticas, de modo geral, partem do pressuposto de que, direta (direito divino sobrenatural) ou indiretamente (direito divino providencial), a titularidade da soberania pertence ao monarca, como uma autêntica concessão divina.

As teorias democráticas, por sua vez, reconhecem a inconteste titularidade do povo, ainda que adstrito a um contexto evolutivo que pode ser concebido desde a ideia primitiva de população (teoria da soberania do povo), passando pela noção de agrupamento com efetivo vínculo de nacionalidade (teoria da soberania da Nação), até chegar à concepção contemporânea (inau- gurada no século XX) de povo como conjunto de nacionais, institutivamente considerado (teoria da soberania do Estado).

Diagrama 4: Teorias sobre a Titularidade e a Justificação da Soberania

titularidade da soberania

justificação da soberania

TEORIAS BÁSICAS

Teorias Teocráticas (carismáticas):

  • Fim da Idade Média e Período Absolutista do Estado Moderno.

  • Baseada no princípio cristão, externado por SÃO PAULO, de que todo poder vem de Deus

Do Direito Divino Sobrenatural (teoria da soberania absoluta do rei na concepção de SAHID MALUF e MACHADO PAUPÉRIO)

pertence ao monarca

Deus concedeu diretamente o poder ao monarca

Do Direito Divino Providencial (teoria da soberania popular na concepção de SAHID MALUF e MACHADO PAUPÉRIO)

pertence ao monarca

Deus concedeu indiretamente o poder ao monarca através do povo

Teorias Democráticas:

  • Revolução Francesa até os dias atuais.

  • Baseada na concepção de que o elemento humano (povo) é o único, por sua própria acepção originária, a permitir a caracterização da soberania

Da Soberania do Povo (teoria da soberania popular na concepção de DALMO DE ABREU DALLARI)

pertence ao povo (num contexto amplo de população)

o povo, como massa amorfa e exterior ao Estado, concebe a soberania

Da Soberania da Nação (teoria da soberania nacional na concepção de SAHID MALUF)

pertence ao povo (num contexto restrito de nacionais)

o povo, como coletividade nacional, concebe a soberania

Da Soberania do Estado

pertence ao povo (num contexto despersonalizado (como pessoa jurídica))

o povo, como elemento de legitimação, concebe a soberania

OUTRAS TEORIAS

Teoria das Escolas Alemã e Austríaca

pertence ao Estado em sua concepção puramente jurídica

estatalidade integral do direito

Teoria Negativista da Soberania

pertence indiretamente ao povo como Nação ou Estado por simples ficção, posto que a própria soberania é uma ideia abstrata que não tem existência concreta

organização da força a serviço do direito

Teoria Realista e Teoria Institucionalista (teoria realista ou institucionalista na concepção de SAHID MALUF)

pertence à Nação (quanto à fonte de poder) e ao Estado (quanto ao exercício do poder)

a soberania é um poder relativo

2.5. Características (Atributos) da Soberania

No que concerne às características basilares da soberania (que alguns autores denominam atributos), cumpre asseverar que a quase unanimidade dos autores reconhece que a soberania é sempre una (posta a impossibilidade de coexistência, no mesmo espaço territorial-estatal, de duas soberanias distintas), indivisível (considerando que se aplica à universalidade dos fatos político-jurídicos), inalienável (tendo em vista que uma vez concebida não pode ser desconstituída), imprescritível (no sentido de que não se encontra condicionada a termo temporal) e aderente ao território estatal e ao vínculo nacional (posto que concebida a partir da existência do elemento humano (povo) e do elemento físico (território)). Ademais, a soberania corresponde, sob a ótica substantiva, a um poder que é necessariamente supremo (na acepção de sua inconteste superioridade), originário (tendo em vista que nasce concomitantemente com o próprio Estado, como elemento fundamental deste), ilimitado (posto que não encontra restrições objetivas), incondicionado (considerando que não se encontra adstrito a nenhuma regra ou limitação anterior), intangível (no sentido de que não é alcançado por outro poder, independentemente de sua natureza) e coativo (tendo em vista que o poder da soberania é exercido por ordem imperativa e através de instrumentos de coação).

DUGUIT (DUGUIT; Léçons de Droit Public Général, Paris, Ed. de Boccard, 1926, p. 116), acrescendo à relação de atributos formalizada por ZANZUCCHI (ZANZUCCHI; Istituzioni di Diritto Pubblico, Milão, Ed. Giuffrè, 1948, p. 21), também assinala que a soberania se traduz em um poder de vontade subordinante (à medida que o poder soberano se relaciona com outros poderes através de uma relação entre subordinantes e subordinados) e em um poder de vontade independente (que, em essência, amplia a concepção clássica do poder incondicionado para a esfera internacional, impedindo que qualquer convenção seja automaticamente obrigatória para o Estado não signatário).

Diagrama 5: Características (Atributos) da Soberania

CARACTERÍSTICAS (ATRIBUTOS) DA SOBERANIA

Características (ou Atributos) Gerais

  • A soberania, independentemente de sua acepção substantiva própria (particular), sempre possui atributos gerais de caracterização: unidade, indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade

  • Unidade (a soberania é única no espaço territorial-estatal estabelecido)

  • Indivisibilidade (a soberania se aplica, de forma unitária, à universalidade dos fatos político-jurídicos no território estatal)

  • Inalienabilidade (a soberania, uma vez concebida, não pode ser desconstituída)

  • Imprescritibilidade (a soberania não se encontra condicionada a termo temporal)

  • Aderência ao Território Estatal e ao Vínculo Nacional (a soberania origina-se do vínculo nacional (povo) e geográfico (território), estando, pois, aderente aos mesmos)

Características (ou Atributos) Associados à Concepção Substantiva do Poder Soberano

  • A soberania, em termos substantivos (acepção de poder de império e de dominação), possuiria, em tese (posto que há controvérsias), seis características básicas: poder supremo, originário, ilimitado, incondicionado, intangível e coativo

  • Poder Supremo (a soberania se constitui em um poder superior a todos os outros)

  • Poder Originário (a soberania nasce com o Estado, na qualidade de elemento fundamental caracterizador do mesmo)

  • Poder Ilimitado (a soberania não encontra restrições objetivas)

  • Poder Incondicionado (a soberania não se encontra, como poder, adstrita a nenhum outro)

  • Poder Intangível (a soberania não é alcançada por nenhum outro poder)

  • Poder Coativo (a soberania é exercida por ordem imperativa)

Características (ou Atributos) Associados à Concepção Particular de DUGUIT

  • A soberania, sendo concebida como um direito subjetivo, é um poder de vontade que possui, além das características amplamente listadas, duas vertentes particulares: a vontade subordinante e a vontade independente

  • Poder de Vontade Subordinante (a soberania se relaciona com poderes subordinados através de uma relação de preponderância)

  • Poder de Vontade Independente (a soberania não se vincula automaticamente a nenhuma convenção imposta por outras soberanias)


3. Efetivação da Soberania e Concretização Objetiva do Direito e da Realidade Jurídica

A soberania constitui-se, por excelência, no elemento abstrato (fundamental) de formação do Estado, que se cristaliza, em última instância, através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto de nacionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde a vontade individual ceda (necessária e obrigatoriamente) espaço para a imposição da vontade coletiva, por intermédio da caracterização de um sinérgico poder criativo chamado de Poder Constituinte (em essência, uma acepção teórica originária) e de sua normatização consequente, ou seja, o Direito em sua concepção efetiva.

Não é por outra razão, portanto, que o conceito próprio e específico de Poder Constituinte, na qualidade de poder originário e institucionalizante, é comumente sintetizado como a expressão máxima da soberania nacional, em uma evidente (e correta) alusão ao objetivo último desta modalidade suprema de exteriorização teórica do poder político que reside exatamente em transformar a Nação dotando-a de uma organização político-jurídica fundamental (Constituição) em um efetivo Estado8, dotado de Poderes Constitucionais (em uma acepção teórica desdobrada) com respectivas competências complementares legislativa, executiva e judiciária, que são garantidas, no plano concreto e efetivo, pelas Forças Armadas (na qualidade de garantidoras derradeiras da Soberania Nacional).

A soberania, por efeito consequente, caracteriza (sinérgica e derradeiramente) o Estado, atribuindo-lhe um Direito interno ou, em outras palavras, dotando-o de instrumentos de regulação inerentes à vida de seus diversos integrantes, em princípio de forma legítima (consensual), ainda que, em sua ação prática, de modo compulsório [9].

Todavia, como a soberania também se constitui, em última análise, em uma abstração, o Direito estatal que dela deriva, para realmente valer, de maneira genérica e obrigatória, necessita de algum tipo de elemento concreto que tenha a capacidade de viabilizar, sob o ponto de vista efetivo, a indispensável concreção do chamado poder de império (poder sobre todas as coisas no território estatal) e do denominado poder de dominação (poder sobre todas as pessoas no território estatal), inerentes ao poder político-jurídico (acepção teórica) derivado da soberania (acepção abstrata). Este elemento de efetivação traduz-se pela sinérgica existência de uma força coercitiva (de imposição) que, quando necessária, se transmuda em uma força coativa (de obediência) , de natureza múltipla (política, econômica, militar e/ou psicossocial), uma vez que traduz as expressões exteriorizantes do Poder Nacional , mas que, de modo derradeiro, perfaz-se por meio de uma inexorável existência de capacidade política em seu sentido amplo, incluindo a acepção concreta correspondente à Força Nacional.

Desta feita, forçoso concluir que a soberania (e o Direito dela decorrente), embora inicial e presumivelmente estabelecida por consenso, somente se efetiva, de modo amplo e pleno, com o necessário respaldo em uma capacidade de força efetiva, nas mãos do Estado, que seja facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunidade social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção concreta e, consequentemente, a percepção ficcional do Direito em uma realidade universal, visível e reconhecível perceptível [10].

A lei deve ter autoridade sobre os homens e não os homens sobre a lei. (PAUSÂNIAS, Geógrafo grego - 4 a.C./65 d.C.)

Assim, de modo objetivo, é possível analisar didaticamente a anatomia da soberania, desvendando os seus variados graus de exteriorização (desde o sentido mais abstrato até o mais concreto) e, sobretudo, caracterizando conceitualmente os vocábulos poder (como elemento teórico de exteriorização da soberania abstrata, em que a mesma é revestida de autoridade, faculdade e possibilidade de ação, forjando a sua concepção teórica) e força (na qualidade de elemento efetivo de concreção do poder, em que o mesmo é dotado de vigor e robustez em termos práticos, forjando a concepção da soberania em termos efetivos).

Destarte, é exatamente neste contexto que se enquadra a concepção clássica de que o Estado é o verdadeiro e principal (senão único) detentor do monopólio do uso (legítimo) da violência, permitindo dotar a positividade de seus regramentos de plena e necessária efetividade, ou, em outras palavras, transformando o direito positivo (legislado) em direito efetivo (aplicado).


4. Estados Fortes e Estados Fracos

Se o Estado é forte, esmaga-nos. Se ele é fraco, nós perecemos. (PAUL VALÉRY)

Muito embora a doutrina tradicional não comente, pelo menos de modo mais detalhado, a questão da força imperativa do Estado, optando, muitas vezes, por simplesmente ignorar a moderna tendência política de se classificarem os Estados contemporâneos em Estados Fortes e em Estados Fracos, é cediço reconhecer a extrema importância quanto ao enfrentamento desta questão que, de um modo muito especial, também se encontra associada à formação da concepção técnico-jurídica da democracia material.

Nesse diapasão, vale registrar, inicialmente, que a noção mais elementar de Estado Forte encontra-se irremediavelmente associada ao conceito amplo de Estado de legalidade, no exato sentido não só da efetiva constatação da presença de um sólido poder político, mas também da sinérgica disposição de utilizá-lo, de acordo com os ditames da ordem jurídico-política estabelecidos e, particularmente, em favor de sua completa concretização.

Como toda democracia material (substantiva) necessariamente caracteriza-se pelo binômio associativo da legitimidade/legalidade, incluindo, através deste último atributo, a ideia da força imperativa estatal , é lícito (e razoável) concluir que todo verdadeiro Estado Democrático de Direito constitui-se inexoravelmente em um Estado Forte, não obstante nem todo Estado reputado forte traduzir, necessariamente, um regime político genuinamente democrático, considerando a ausência de insuperável compromisso deste tipo de Estado com a questão ampla da legitimidade.

Diagrama 9: Democracia Formal e Material

Sob o Aspecto das Amplas Liberdades

Sob o Aspecto do Respeito à Participação Popular

Sob o Aspecto do Respeito ao Direito das Minorias

Democracia Formal (Aparente)

  • Estado de Legitimidade (Pleno ou Mitigado) ou Estado de Legalidade (Pleno ou Mitigado)

Regime de Aparentes Liberdades (há apenas a eventual garantia dos direitos individuais e coletivos no que concerne ao próprio Estado (abstratamente considerado) e não em relação aos seus agentes e particulares)

Regime de Aparente Participação (o poder econômico é elemento vital de manipulação em face da inexistência ou do não-funcionamento dos elementos de controle)

Regime de Aparente Proteção (os direitos das minorias são apenas formalmente assegurados no texto constitucional)

Democracia Material (Efetiva ou Substantiva)

  • Estado de Legitimidade (Pleno) e Estado de Legalidade (Pleno)

Regime de Efetivas Liberdades (há plena e sinérgica garantia do respeito aos direitos individuais e coletivos, inexistindo qualquer forma de inação ou omissão, neste particular, por parte do Estado)

Regime de Efetiva Participação (o poder econômico não é elemento vital de manipulação, em face da efetividade dos elementos de controle)

Regime de Efetiva Proteção (os direitos das minorias são assegurados pelo texto constitucional e garantidos pela ação comissiva (e permanente) dos órgãos estatais)

Diagrama 10: Estados Fortes e Estados Fracos

Estados Fortes

  • Definidos pela capacidade e determinaçãoquanto à imposição da ordem jurídico-política estabelecida (legitimamente (consensualmente) ou não)

  • Projeção intrínseca e efetiva do binômio poder-dever

Democracias Materiais (Substantivas) (acepção do binômio poder-dever sob a ótica nitidamente vinculativa)

  • A ordem jurídico-política é garantida pelo Estado como resultado natural do consenso (legitimidade originária).

Democracias Formais (Aparentes) (caracterizadas única ou preponderantemente pela legalidade) (acepção do binômio poder-dever sob a ótica nitidamente vinculativa/discricionária)

  • A ordem jurídico-política é garantida pelo Estado sem um compromisso maior com a legitimidade originária, mas com uma razoável preocupação com a legitimidade posterior.

Estados Autoritários (acepção do binômio poder-dever sob a ótica nitidamente discricionária)

  • A ordem jurídico-política é garantida pelo Estado por imposição, ainda que com alguma preocupação com a legitimidade da mesma.

Estados Totalitários (acepção do binômio poder-dever sob a ótica nitidamente arbitrária)

  • A ordem jurídico-política é garantida pelo Estado através da imposição absoluta, sem qualquer preocupação com a legitimidade.

Estados Fracos

  • Definidos pela ausência de capacidade e/ou de determinação quanto à imposição da ordem jurídico-política estabelecida (legitimamente (consensualmente) ou não)

  • Projeção extrínseca e aparente do binômio poder-dever

Democracias Formais (Aparentes) (caracterizadas única e preponderantemente pela legitimidade)

Estados Autoritários Protegidos Instáveis (ou em vias de decomposição)

Estados Totalitários Protegidos Instáveis (ou em vias de decomposição)

4.1. Princípio da Autoridade, Autoritarismo e Ausência de Autoridade

Para um melhor entendimento dos conceitos de Estado forte e Estado fraco, resta obrigatório deduzir que o princípio da autoridade não possui qualquer correspondência com a noção conceitual de autoritarismo e, muito menos, com a simples ideia de ausência de autoridade.

Em essência, o denominado princípio da autoridade é consequência natural da plena legitimidade do regime político democrático na construção de uma ordem jurídico-política, bem como de sua sinérgica aplicação rigorosamente de acordo com as regras previamente estabelecidas, forjando, em última análise, a própria concepção do Estado Democrático Material, que associa, dentre outros, no princípio da autoridade, a natureza nitidamente vinculativa do binômio poder-dever.

O autoritarismo, neste contexto analítico, corresponde apenas a um viés estritamente legalista do Estado, caracterizando, em sua tradução ampla, o que comumente ocorre, em diferentes graus, nos Estados Fortes rotulados como democracias formais legalistas, Estados autoritários e Estados totalitários.

Finalmente, a acepção técnico-jurídica da ausência (parcial ou total) de autoridade, por sua vez, traduz-se pela falta de capacidade e/ou determinação política para impor a ordem jurídico-política estabelecida legitimamente (como no caso das democracias formais fundadas na legitimidade) ou imposta pela força (como na hipótese dos Estados autoritários e totalitários instáveis ou protegidos), caracterizando os chamados Estados Fracos.

Diagrama 11: Princípio da Autoridade, Autoritarismo e Ausência de Autoridade

Estados Fortes

1. Princípio da Autoridade

  • Natureza nitidamente vinculativa do binômio poder-dever

  • Democracias Materiais (Substantivas)

  • Democracias Formais Legalistas

Binômio poder-dever efetivo

2. Autoritarismo

  • Natureza vinculativa/discricionária ou puramente discricionária ou arbitrária do binômio poder-dever

  • Estados Autoritários

  • Estados Totalitários

Estados Fracos

3. Ausência de Autoridade

  • Ausência efetiva de compromisso (capacidade e/ou determinação política) com a ordem jurídico-política estabelecida.

  • Ausência de efetividade no binômio poder-dever

  • Democracias Formais fundadas na Legitimidade

  • Estados Autoritários Protegidos e Instáveis

  • Estados Totalitários Protegidos e Instáveis

Binômio poder-dever meramente ficcional


5. Conclusões

Conforme expressamente registrado, o Direito, transcendendo sua noção, conceituação e finalidade social, constitui-se em uma inexorável e singela realidade ficcional, posto que, reconhecidamente, é desprovido de qualquer efetividade inerente ao mundo fático, sendo certo afirmar que o Direito somente se transmuda em uma realidade efetiva na presença de indispensáveis elementos de concreção.

Neste sentido, embora o Estado não seja o único elemento de concreção do Direito é, sem dúvida, a sua principal geratriz de produção e efetivação, o que é realizado através de seu elemento componente (fundamental) chamado soberania.

A soberania, por sua vez, constitui-se no elemento abstrato de formação do Estado, que se cristaliza através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto de nacionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde a vontade individual necessariamente acabe por ceder espaço para a imposição da vontade coletiva, por intermédio da caracterização última de um sinérgico Poder Constituinte, criador do próprio Estado e, particularmente, normatizador de um direito dotado do necessário atributo de efetividade.

Por efeito, a soberania não exprime apenas um valor jurídico, mas, igualmente, um valor político e, mais do que isto, um verdadeiro valor político-patrimonial. A necessidade de ordem nas sociedades, por si só, justifica a existência da soberania, como fator abstrato de concreção do denominado Estado-Nação. E se por um lado ela designa o poder que é exercido no seio da comunidade política, de modo a garantir a sua integridade e a dos indivíduos que a compõem, por outro, designa o caráter desta comunidade política entendida como instituição jurídica, porque se faz sentir a necessidade de atribuir a este corpo político prerrogativas e obrigações.

Desta feita, forçoso concluir que a soberania (e o Direito dela decorrente), embora inicial e presumivelmente estabelecida por consenso, somente se efetiva, de modo amplo e pleno, com o necessário respaldo em uma capacidade de força efetiva, nas mãos do Estado, que seja facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunidade social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção concreta e, consequentemente, a percepção ficcional do Direito em uma realidade universal, visível e reconhecível (perceptível).


Notas Complementares

1. Efetividade Jurídica

Cumpre refletir a respeito da situação clássica de um garoto, que na inerente fragilidade física de seus 10 anos de idade, após comprar (com seu dinheiro) um sorvete sendo, portanto, titular do direito de propriedade e de posse sobre o mesmo , é violentamente abordado por um adolescente de 16 anos (necessariamente provido de maior robustez atlética) que, através do simples uso da ameaça ou da própria força, exige-lhe que entregue o sorvete, tomando-o, por fim, independentemente da insistente alegação (por parte daquele primeiro menor), de que o mesmo é titular de indiscutível direito sobre o objeto jurídico, de cuja posse, aliás, deixou de ser detentor.

Nessa situação, o Direito revela-se, de forma insofismável, como uma simplória realidade ficcional (desprovido de qualquer efetividade), posto que, não obstante a sua inerente previsão de sanção para a exata hipótese narrada, a mesma, por si só, não possui as condicionantes operativas que a tornam efetiva, dotando, em último grau, o Direito de necessária concretude.

Todavia, o resultado final do caso descrito pode ser completamente diferente, na hipótese de o garoto de 10 anos possuir um irmão de 22 anos que, chamado em seu socorro no exato momento da abordagem ameaçadora do adolescente de 16 anos, comparece imediatamente para fazer valer o direito titularizado por aquele, e de cuja simples alegação de existência não foi suficiente para inibir a ação antijurídica do agente.

Ainda assim, é importante consignar que, de forma diversa da relação direta entre o garoto de 10 anos e o adolescente de 16 anos, em que necessariamente este é maior e mais forte que aquele (em decorrência das faixas etárias consideradas) , o irmão de 22 anos não será obrigatoriamente capaz de impor o direito ao adolescente de 16 anos, considerando que, na situação real, ainda que em caráter excepcional, o rapaz de 22 anos intelectualizado e avesso a atividades físicas pode, eventualmente, não ser páreo para um adolescente de 16 anos que seja praticante de fisiculturismo e iniciado em técnicas de lutas marciais.

Neste caso particular, não obstante a presença de um presumível elemento de concreção, mais uma vez o Direito continuará em seu âmbito ficcional, deixando de se projetar, no mundo real, de forma efetiva. No exemplo ilustrativo, que nada mais é do que uma parábola (ou uma analogia metafórica), cumpre assinalar que o irmão mais velho representa, sobretudo (ainda que não exclusivamente), o Estado, como instrumento por excelência de efetivação jurídica, sendo certo, neste prisma analítico, que a simples presença do Estado, por outro lado, não é por si só suficiente para prover a necessária concretude ao Direito, sendo indispensável a existência do Estado forte, ou seja, o Estado dotado de recursos (poder real) e de disposição política para fazer valê-los, através, sobretudo, do poder inerente ao seu terceiro elemento de caracterização, ou seja, a soberania.

2. Estado Forte

Estado Forte, por definição, como veremos mais detalhadamente, em capítulo próprio, é, em última análise, o Estado que edita e faz valer o direito positivo, assegurando não somente a plena realização prática de sua normatização, como bem assim a universalidade de suas decisões.

O conceito técnico de Estado Forte, portanto, não guarda qualquer relação com a concepção estrutural de Estado Autoritário ou Totalitário, como igualmente não traduz qualquer necessária simetria com a noção básica de Estado Democrático, sendo certo que o autoritarismo, o totalitarismo e mesmo a democracia, - na qualidade de regimes políticos -, são apenas formas diferentes de exteriorização do poder estatal, inerentes ao Estado Forte.

Não é por outra razão que é sempre lícito concluir inexistir verdadeira democracia, - ou seja, democracia material (dotada de conteúdo substancial) -, em Estados Fracos (ou seja, naqueles desprovidos de capacidade de realizar, em termos práticos e efetivos, o direito democrático legislado), caracterizando o que convencionalmente designamos por democracia formal (ou aparente).

3. Soberania como Instrumento de Efetividade do Direito

Através de uma autêntica espiral de derivação, revela-se a soberania (na específica qualidade de elemento de maior gradação para o objetivo finalístico de caracterização do Estado) como instrumento da viabilização última da projeção do poder político e, em consequência, da própria efetividade do Direito, transformando-o em uma realidade perceptível, capaz de prover, em sua plenitude (e em última instância), a sua função precípua de ordenação político-jurídica.

4. Soberania e seu Aspecto Binário

Deve ser observado que, pelo menos inicialmente, a maioria dos estudiosos do tema não conseguiam perceber o inconteste aspecto binário da caracterização conceitual da soberania, optando, por efeito, por traduzi-la ora por seu aspecto substantivo (acepção de poder efetivo), ora por seu aspecto adjetivo (como qualidade inerente (e essencial) do poder estatal). RANELLETTI parece ter sido, neste particular, o primeiro autor a arranhar a concepção contemporânea de soberania, permitindo a dupla tradução do vocábulo como poder (elemento essencial de caracterização do Estado) e como qualidade inerente ao Estado (embora, em termos mais corretos, a soberania deva ser percebida, em seu aspecto adjetivo, como qualidade do próprio poder e não do Estado, posto que todo Estado é, em tese, soberano).

5. Soberania como Pressuposto Fundamental do Estado

Deve ser consignado, por oportuno, que os conceitos de coisa e pessoa são excludentes no direito. Para o mundo jurídico, coisa é tudo aquilo que não é pessoa, ao passo que pessoa é tudo aquilo que não é coisa. Como a soberania, em seu aspecto substantivo, engloba o poder de império (sobre as coisas) e o poder de dominação (sobre as pessoas), abrange, por definição conclusiva, o poder sobre todos os aspectos físicos e humanos no território pátrio.

6. Soberania como Expressão-Origem

Vale assinalar que alguns autores elencam a soberania como virtual expressão-origem, afirmando que a mesma não pode ser, neste sentido, precisamente conceituada, posto que, em sua essência, o termo soberania representa a explicação inicial de diversos outros conceitos jurídicos (e, para certos estudiosos, também políticos) que encontram, desta feita, o seu inerente fundamento, em última análise, na própria soberania.

Analogicamente, segundo esta doutrina, soberania representaria para o direito o mesmo que a expressão Deus (como entidade abstrata originária) para a vida (e a consequente explicação de sua origem, seu fundamento, seu objetivo, etc.), o que, por si só, invalidaria qualquer tentativa de maiores explicações. Ainda neste contexto, estes estudiosos chegam a comparar as diversas teorias justificativas da soberania com as várias religiões existentes no planeta.

7. Significado Político da Soberania

A maioria das Constituições limita-se a declarar que a soberania é do povo ou da Nação, ou que o poder político emana do povo e em seu nome é exercido, sem maior preocupação técnica. Digno de especial menção é o art. 1º da Constituição da Irlanda que frisa bem o significado político da soberania: La nation Irlandaise proclame par la présente Constitution son droit inalénable, imprescriptible et souverain de choisir la forme de gouvernement qui lui agréera, de determiner ses rapports avec les autres nations, de développer sa vie politique, économique et culturelle, conformément à son génie propre et à ses traditions (Trad. adotada por MIRKINE GUETZÉVITCH; Les Constitutions de lEurope Nouvelle, Paris, 1938, vol. II, p. 337).

8. Elementos Essenciais do Estado Moderno

Cumpre não olvidar que o Estado constitui-se na (clássica) soma de três elementos básicos: o povo (elemento humano), o território fixo (elemento físico ou geográfico) e a soberania (elemento abstrato), sendo certo que, de forma simples, o Estado representa a Nação dotada de uma Constituição, ou seja, de uma organização político-jurídica fundamental, em que é estabelecido o direito nacional em sua dimensão maior. Não é por outra razão que GIORIGIO DEL VECCHIO entende que, além do povo e do território, o que caracteriza o Estado é precipuamente a existência do que se convencionou chamar de vínculo jurídico.

“Quanto às notas características do Estado Moderno, que muitos autores preferem denominar elementos essenciais por serem todos indispensáveis para a existência do Estado, existe uma grande diversidade de opiniões, tanto a respeito da identificação quanto a do número.

[...]

Para DEL VECCHIO, em especial, além do povo e do territórioo que existe é o vínculo jurídico, que seria, na realidade, um sistema de vínculos, pelo qual uma multidão de pessoas encontra a própria unidade na forma do direito” (DALMO DE ABREU DALLARI; Elementos de Teoria Geral do Estado, 18a ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 60-61)

Por outro lado, o Estado também se apresenta como uma entidade com fins precisos e determinados, razão pela qual alguns autores incluem, como uma espécie de quarto elemento de caracterização do Estado, a finalidade (ALESSANDRO GROPPALLI), considerando, sobretudo, a função estatal precípua de regular globalmente, em todos os seus aspectos, a vida social da comunidade, visando à realização do bem comum (cf. GIORGIO BALLADORE PALLIERI; Diritto Costituzionale, 4a ed., Milão, Giuffrè, 1955, p. 10).

9. Direito Consensual e Obrigatório

Muito embora o Direito, forjado pela função legislativa do Estado, seja consensual, em outras palavras, resultado da vontade geral manifestada através dos representantes do povo em assembleia, ele também é obrigatório (uma vez concebido), independentemente da vontade de cada indivíduo, em face da prevalência, que passa a existir, da comunidade estatal sobre os seus componentes, individualmente considerados.

10. Estados Desprovidos de Força Coativa Real

Nos Estados desprovidos de instrumentos de força coativa real, onde inexiste a garantia derradeira da imposição do Direito estatal interno, é sempre possível (embora indesejável) que grupos de indivíduos se estabeleçam de forma marginal (e paralela ao Estado), tornando refém de sua vontade (não legítima) toda a sociedade organizada, independentemente da natural contrariedade que tal fato necessariamente possa acarretar.


Referências Bibliográficas

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ZANZUCCHI. Istituzioni di Diritto Pubblico. Milão, Ed. Giuffrè, 1948


Abstract: This article examines the law as a fictional reality devoid of any own effectiveness. The law only becomes an effective reality in the presence of concretion elements that are foreign to the legal reality. In this sense, the article reflects on the state as Key Element of concretion of the law, through the Enforcement of National Sovereignty.

Keywords: LAW. EFFECTIVENESS. LEGAL REALITY AND SOVEREIGNTY.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Direito, Soberania e Efetividade Jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7124, 2 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99752. Acesso em: 10 maio 2024.