Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/95614
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Os crimes contra a organização do trabalho no Código Penal

Os crimes contra a organização do trabalho no Código Penal

Publicado em . Elaborado em .

Principais aspectos relacionados aos crimes contra a organização do trabalho à luz do Código Penal e dos tribunais superiores.

1. O artigo 197: atentado contra a liberdade de trabalho

Nesta seção, abordaremos o que a doutrina consultada aponta acerca do artigo 197 e seus incisos I e II do Código Penal, em um artigo em que trataremos dos crimes contra a organização no Código Penal. Tais dispositivos protegem a liberdade de trabalho, que é, segundo a doutrina consultada, a liberdade de escolher o trabalho, a profissão, arte, ofício ou indústria que o indivíduo deseja exercer e de decidir quando abrir ou fechar seu próprio estabelecimento de trabalho (BITENCOURT, 2012).

O sujeito ativo do crime previsto no art. 197 pode ser qualquer pessoa, pois é um crime comum. Em relação ao art. 197, I, o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa na condição de trabalhador, empregado ou patrão. Já em relação ao inciso II, primeira parte, o sujeito passivo só pode ser o proprietário do estabelecimento, como aponta Bitencourt (2012), podendo ser pessoa jurídica.

A doutrina indica que atentado contra a liberdade de trabalho é uma espécie do gênero constrangimento ilegal, com a diferença que o agente do crime previsto no art. 197 pretende constranger a vítima a praticar um dos comportamentos descritos no próprio art. 197, nas duas modalidades, a do art. 197, I (a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias) e a do art. 197, II (abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica).

Por isso, a doutrina entende que são quatro as hipóteses previstas:

Constranger alguém a: a) exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria (I, 1ª parte) compreende-se aqui o exercício de toda e qualquer atividade econômica laborativa; b) trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias (I, 2ª parte) a finalidade da ação aqui é forçar a vítima a trabalhar ou não trabalhar emdeterminados dias ou períodos, isto é, suprimir-lhe a liberdade de trabalho, de decisão sobre onde, como e quando trabalhar; c) abrir ou fechar seu estabelecimento econômico o estabelecimento pode ser relativo à exploração de qualquer atividade profissional, comercial, industrial ou agrícola; d) participar de parede ou paralisação de atividade econômica esta figura foi revogada pelo art. 29 da Lei n. 4.330/64. (BITENCOURT, 2012)

Além disso, é necessário haver emprego de violência, ficta ou real, e uma relação de causalidade entre o emprego da violência ou grave ameaça (ou qualquer outro meio), podendo ser violência moral, intimidação, vis compulsiva, e a submissão da vítima à vontade do coator, conforme apontam as referências consultadas.

Uma greve, por exemplo, precisa ser pacífica para não ser uma atividade delituosa, não sendo relevantes os motivos do constrangimento (por exemplo, uma reivindicação legítima). E não há previsão da modalidade culposa de atentado à liberdade de trabalho.

Segundo a doutrina, consuma-se o crime de atentado contra a liberdade de trabalho quando o ofendido faz ou deixa de fazer o que foi constrangido:

na primeira hipótese, com o efetivo exercício ou suspensão do exercício de arte, ofício, profissão ou indústria, em face da violência; na segunda, com o trabalho quando não deveria ou com a suspensão quando deveria trabalhar, e, na terceira hipótese, com a abertura ou fechamento do estabelecimento de trabalho. Assim, consuma-se o crime quando o constrangido, em razão da violência ou grave ameaça sofrida, começa a fazer ou não fazer a imposição do sujeito ativo (BITENCOURT, 2012).

Será mera tentativa, admitida, enquanto o coagido não ceder ao constrangimento.

Sobre o concurso com crimes praticados com violência, a doutrina consultada, inclusive divergindo de Nelson Hungria, entende que o que caracteriza o concurso material de crimes não é a soma ou cumulação de penas, mas a pluralidade de condutas, aplicando-se, no entanto, penas cumulativamente, embora podendo ocorrer concurso material do crime de atentado contra a liberdade de trabalho com outros crimes violentos.

Por fim, os crimes previstos no art. 197, incisos I e II, correspondem a crime comum, que qualquer pessoa pode praticar; crime material, porque se consuma com o resultado do sujeito passivo cumprir o que o sujeito ativo determinar e doloso, não havendo modalidade culposa.

No art. 197 inciso I, a pena é cumulativa: detenção, de um mês a um ano, e multa; no art. 197, II, as penas são as mesmas, mas o mínimo é de três meses. E, como vimos acima, em ambas as hipóteses, penas correspondentes a violência são acrescidas. A ação penal é pública incondicionada.


2. O artigo 198: atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta

Discutiremos, nesta seção, o artigo 198 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. Trata-se de um crime, para a doutrina consultada, pluriofensivo, com proteção a dois bens jurídicos distintos. Na primeira parte do artigo, se tutela a liberdade de se celebrar um contrato de trabalho. Na segunda parte do artigo, se tutela o que Bitencourt chama de normalidade das relações de trabalho, se proibindo a conduta que visa a que a vítima não possa fornecer ou adquirir matéria-prima ou produto industrial ou agrícola.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa que realize tal conduta. Já o sujeito passivo, uma pessoa que sofra a conduta. Para a doutrina consultada, no entanto, uma pessoa jurídica não pode ser sujeito passivo de boicotagem violenta, embora haja doutrinadores, segundo Bitencourt (2012) e Greco (2021) que defendem esse ponto de vista.

Trata-se de um tipo penal cuja conduta pode se apresentar em três modalidades: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, (1) a celebrar contrato de trabalho, (2) ou a não fornecer a outrem; ou, (3) não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola (BITENCOURT, 2012), prevendo duas modalidades de atentado: (1) atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e (2) boicotagem violenta na área do comércio-indústria, conforme as referidas doutrinas. Em ambas as hipóteses, há um constrangimento ilegal especificado: na primeira, o constrangimento visando a celebração de contrato de trabalho, que só se configura crime com esse objetivo (senão seria apenas constrangimento ilegal, previsto no art. 146, CP); e, na segunda, um constrangimento para não se fornecer ou se adquirir uma matéria-prima ou produto industrial ou agrícola, em boicote violento. Bitencourt nota que o tipo não admite o constrangimento contra uma celebração de um contrato de trabalho.

Ademais, a doutrina explica o que o tipo está chamando de contrato de trabalho, conforme o art. 442, CLT, além do que é matéria-prima, etc. Observações importantes diante do princípio da tipicidade taxativa. Por economia de espaço, não entraremos nesses detalhes no presente trabalho. Mas é importante destacar que, ao se referir a "mediante violência ou grave ameaça", o tipo se refere à violência física, real, vis corporalis, e à grave ameaça, correspondendo à violência moral, intimidação e vis compulsiva. Tal violência pode ainda ser imediata, contra a própria vítima, ou mediata, contra terceiro a que a vítima se vincule.

Por fim, a doutrina consultada reitera que é necessário haver o dolo, sem previsão de modalidade culposa de atentado à liberdade de contrato de trabalho ou boicotagem violenta. Em relação ao referido atentado, este se consuma com a assinatura do contrato ou com o início do trabalho e, em relação à boicotagem, consuma-se ao não se fazer a referida aquisição ou o referido fornecimento. Em resumo, consuma-se o crime quando o constrangido, em razão da violência ou grave ameaça sofrida, começa a fazer ou não fazer a imposição do sujeito ativo. (BITENCOURT, 2012)

Crime comum, material, doloso, instantâneo e, no caso da boicotagem, permanente, o crime previsto no art. 198 tem pena cominada, cumulativamente, de detenção de um mês a um ano e multa, além da pena correspondente à violência, com ação penal pública incondicionada e competência da Justiça Federal.


3. O artigo 199: atentado contra a liberdade de associação

Nesta seção, discutiremos o artigo 199 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. Conforme a doutrina consultada (BITENCOURT, 2012; GRECO, 2021), o bem jurídico tutelado é a liberdade de associação e filiação sindical ou profissional. Seu sujeito ativo pode ser qualquer pessoa e, caso seja funcionário público, esta conduta ainda poderá configurar o crime de abuso de autoridade. Já o sujeito passivo pode ser qualquer trabalhador ou profissional que possa integrar algum sindicato ou associação de classe, tendo de ser membro constrangido a abandonar tal sindicato ou associação de classe na modalidade de conduta deixar de participar.

Constrangimento mediante violência e grave ameaça, no art. 199, tem o mesmo sentido apontado nos crimes que já referimos neste trabalho. Pelo princípio da tipicidade taxativa, a doutrina aponta o que pode ser considerado uma entidade associativa, de acordo com o art. 1º do Decreto-Lei n. 1.402/39 e o art. 511, CLT, bem como o que é um sindicato, conforme o art. 50 do Decreto-Lei n. 1.402/39 e art. 561, CLT.

A doutrina consultada ainda aponta que, quando o título do Código Penal em que se encontra o art. 199 se refere a trabalho, ele se refere ao instituto de interesse coletivo, e não ao direito individual. Por isso, só será crime contra a organização do trabalho se ultrapassar interesses individuais, produzindo um perigo para a existência do sindicato ou da associação.

Necessário haver, para o crime do art. 199, dolo. Sem modalidade culposa. E o crime se consuma quando o ofendido, devido aos meios violentos empregados, participa ou deixa de participar de sindicato ou associação profissional, sendo ainda admitida a tentativa, quando não se consegue a adesão a sindicato ou associação profissional ou não se consegue impedir esta adesão.

Crime comum, material, doloso, instantâneo quando a consumação não se alonga no tempo, conforme aponta Bitencourt e, eventualmente, permanente caso a execução se alongue no tempo. A pena cominada, conforme a doutrina consultada, cumulativamente, é de detenção de um mês a um ano e multa, além da pena correspondente à violência (BITENCOURT, 2012; GRECO, 2021). A ação penal é de natureza pública incondicionada, com competência da Justiça Federal.


4. O artigo 200: paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem

Nesta seção, discutiremos o artigo 200, e o seu parágrafo único, do Código Penal, tendo como base as referências doutrinárias indicadas ao final deste trabalho. Bitencourt (2012) diverge da maioria da doutrina e Greco (2021) segue seu mesmo entendimento, no sentido de que o bem jurídico tutelado não é a liberdade do trabalho: para esses autores, o bem jurídico tutelado pelo art. 200 é a regularidade e moralidade das relações trabalhistas (BITENCOURT, 2012).

Greco declara expressamente seu apoio, ao se referir a esta controvérsia doutrinária e sua filiação às ideias de Bitencourt: Filiamo-nos a esta última posição, assumida pelo renomado professor gaúcho. (GRECO, 2021) O ponto em questão para ambos os autores é que greve e suspensão de trabalho não são trabalho, mas o não trabalho, e somente caracterizam o crime do art. 200 se forem executadas com violência contra a pessoa ou a coisa.

No caso do art. 200, o sujeito ativo deve ser o empregado que participe da greve violenta ou o empregador que tenha promovido a suspensão do trabalho (lockout) mediante violência, conforme nos ensina Bitencourt. Já o sujeito passivo, para Bitencourt, pode ser qualquer pessoa, inclusive empregado e empregador. Já para Greco (2021), o sujeito passivo é a coletividade.

No parágrafo único se exige pluralidade de pessoas, no mínimo 3 pessoas, para ser considerado abandono coletivo de trabalho, praticado com violência contra pessoa ou contra coisa. No caso do art. 200, não nos referimos à violência para se coagir alguém a participar da greve (isso está previsto no art. 197, II, que vimos acima), mas à violência praticada durante a suspensão ou abandono de trabalho coletivo.

Abandono coletivo do trabalho é a greve. Já a suspensão do trabalho é promovida pelos empregadores e chamada de lockout. Já a violência contra pessoa ou coisa mediante a qual se promova a greve ou suspensão do trabalho é que torna a greve ou esta suspensão tipificadas, pois a greve sem tal violência é direito e garantia constitucional (art. 9º, CF88).

Necessário haver dolo e não é prevista modalidade culposa. Consuma-se o crime com, assim que a greve ou lockout são instalados, a produção de violência contra pessoa ou coisa. As penas cominadas, cumulativamente, são detenção de um mês a um ano e multa, além da pena correspondente à violência, e a ação penal é de natureza pública incondicionada.


5. O artigo 201: paralisação de trabalho de interesse coletivo

Nesta sétima seção, discutiremos o artigo 201 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. Greco (2021) trata deste artigo lembrando que a CF88 assegura o direito de greve, motivo pelo qual, segundo o autor, grande parte de nossa doutrina posicionou-se pela revogação do art. 201 do Código Penal (GRECO, 2021), dando o exemplo do próprio Cezar Bitencourt como um autor que se põe contra este artigo, entendendo que este se encontra revogado.

Greco aponta quais são, entretanto, os serviços essenciais elencados pelo art. 10 da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, verbis, além de conjuga-lo aos arts. 11, 14 e 15 da Lei de Greve. Segundo Greco, o crime do art. 201, em que pesem as críticas, é crime próprio no que diz respeito ao sujeito ativo (GRECO, 2021) e comum quanto ao sujeito passivo (que é a coletividade como um todo) (idem, ibidem), além de ser doloso, comissivo (ou omissivo impróprio), material, instantâneo, plurissubjetivo, plurissubsistente e transeunte. Além disso, Greco considera que o bem jurídico tutelado é o mesmo do art. 200, mesmíssima posição de Bitencourt.

Como aponta Greco, em consonância com Bitencourt, na condição de crime próprio, o delito somente pode ser cometido pelos empregados (greve) e pelos empregadores (lockout), que teriam de levar a efeito a obra pública ou o serviço de interesse coletivo. Além disso, o sujeito passivo é a coletividade, que sofre os efeitos da paralisação.

O crime é consumado no momento que ocorre a suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo (GRECO, 2021), além de a doutrina consultada prever a possibilidade de tentativa. Também é necessário dolo, não havendo previsão para a modalidade culposa.

A pena cominada é de detenção de seis meses a dois anos e multa. A ação penal é de iniciativa pública incondicionada e compete, inicialmente, ao Juizado Especial Criminal, pois corresponde a uma infração penal de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/95), admitindo suspensão condicional do processo.


6. O artigo 202: invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola. Sabotagem

Na presente seção, discutiremos o artigo 202 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. A doutrina consultada aponta que os bens jurídicos protegidos por este artigo são a liberdade e a organização do trabalho, além do patrimônio do proprietário. Bitencourt (2012), aliás, crê que este crime deveria estar no título dos crimes contra o patrimônio, ideia que não foi manifestada por Greco (2021).

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, empregada ou não. Já sujeitos passivos são o proprietário do estabelecimento e a coletividade, conjuntamente. Além disso, conforme a doutrina, há duas figuras distintas: 1ª) invasão ou ocupação de estabelecimento; 2ª) sabotagem. As condutas alternativas tipificadas são invadir e ocupar com a finalidade de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho.

Greco aponta três elementos do delito de invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola: a) a conduta de invadir ou ocupar; b) estabelecimento industrial, comercial ou agrícola; c) especial fim de agir, consubstanciado na finalidade de impedir ou embaraçar curso normal do trabalho. (GRECO, 2021). Já a sabotagem, segundo Bitencourt, apresenta-se sob três modalidades de ação: a) danificar o estabelecimento; b) danificar as coisas existentes no estabelecimento; c) dispor das coisas existentes no estabelecimento (BITENCOURT, 2012).

É necessário haver dolo, sem modalidade culposa. E, conforme a doutrina, consuma-se com a invasão ou ocupação, com danificação ou disposição, nas formas descritas, independentemente da obtenção dos fins pretendidos (BITENCOURT, 2012), em relação à invasão e ocupação. Já no que diz respeito à sabotagem, esta se consuma quando o sujeito ativo danifica o estabelecimento ou as coisas nele existentes, ou no instante que delas dispõe. A tentativa é admissível em ambos os crimes.

Conforme a doutrina e o Código Penal, as penas cominadas, cumulativamente, são reclusão de um a três anos e multa, com ação penal de natureza pública incondicionada.


7. O artigo 203: frustração de direito assegurado por lei trabalhista

Nesta seção, discutiremos o artigo 203, e seus § 1º incisos I e II e § 2º do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. O bem jurídico tutelado nestes dispositivos é todo direito protegido pela legislação trabalhista, sendo uma norma penal em branco, pois cabe à legislação trabalhista a disciplina sobre direitos assegurados a empregadores e empregados.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (empregador, empregado, etc) com que uma relação de emprego se estabeleça com a vítima, sujeito passivo, que será a pessoa cujo direito trabalhista foi frustrado, violado ou sonegado, nas palavras dos doutrinadores. Além disso, a doutrina consultada admite mediatamente o Estado como sujeito passivo, salvo quando o Estado é o sujeito passivo direto, quando ocorre fraude que violem direitos assegurados por legislação trabalhista, de ordem pública.

Trata-se de tipo penal cuja ação consiste em frustrar, mediante violência ou fraude, direito assegurado pela legislação do trabalho. Violência (vis corporalis) ou fraude são seus meios, sem que ameaça seja meio para sua prática.

Necessário haver dolo, não existindo modalidade culposa para este crime, que se consuma no momento em que o titular de um direito trabalhista é impedido de exercê-lo. Ademais, admite-se tentativa.

A doutrina consultada (BITENCOURT, 2012; GRECO, 2021) reitera que os dois incisos do § 1º, acrescentados pela Lei n. 9.777/98, criam dois novos tipos penais. Vejamos, por exemplo, as palavras de Bitencourt (2012):

O inciso I exige o elemento subjetivo especial do injusto. Assim, a coação (obrigar também é coagir) para usar mercadorias de determinado estabelecimento só constituirá esse tipo penal se objetivar a impossibilidade de desligamento do serviço. No inciso II, mediante coação ou retenção dos documentos da vítima, objetiva-se impedir o desligamento do trabalho. (BITENCOURT, 2012)

As penas cominadas, cumulativamente, são a detenção de um a dois anos e multa, além da correspondente à violência, para o tipo básico e assemelhados (incisos I e II). Bitencourt faz uma crítica à política despenalizadora e descarcerizadora das leis 9.099/95 e 9.714/98, por terem exasperado cominações penais daquelas infrações que lhes aprouveram:

Na previsão do § 2º, a pena deverá, obrigatoriamente, ser majorada entre um sexto e um terço. Pela redação, que é taxativa, parece que houve aí uma preocupação com as minorias. Nesse sentido, esqueceram-se de arrolar, entre outros, homossexuais, prostitutas, negros, amarelos, asiáticos, dependentes de drogas etc. Convém recordar, no entanto, que é inadmissível analogia. (BITENCOURT, 2012)

Por fim, a ação penal é de natureza pública incondicionada. E a doutrina consultada ainda aponta uma questão especial: de que o pagamento de salário inferior ao mínimo legal tipifica esse crime, além de haver decisões jurisprudenciais entendendo que o pagamento dos salários dos empregados com cheque sem fundo não tipifica este crime, mas estelionato; além de outros exemplos interessantes, como o caso de ser prática deste crime o desconto de cheques sem fundos (recebidos por clientes) dos salários de frentistas de postos de gasolina. Mas não nos ateremos aos exemplos interessantes dos crimes do art. 203, por economia de espaço, apenas sinalizando aqui nosso interesse pelo tema.


8. O artigo 204: frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho

Nesta seção, discutiremos o artigo 204 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. Segundo Greco e Bitencourt, o bem jurídico tutelado é o interesse na nacionalização do trabalho, particularmente o interesse do Estado em garantir a reserva de mercado para os brasileiros, em seu próprio território.

Segundo Greco (2021), o sujeito ativo deste crime geralmente é o empregador, embora nada impeça que qualquer pessoa possa figurar nessa condição, pois é um crime comum. Para o autor, o sujeito passivo é o Estado, que vê frustradas suas medidas criadas em benefício dos trabalhadores nacionais. (GRECO, 2021).

O crime do art. 204 corresponde à frustração, mediante violência ou fraude, de direito assegurado pela legislação do trabalho. Ou seja, mais uma vez o meio deve ser violência (vis corporalis) ou fraude, sem ameaça sendo meio possível. Para Bitencourt, que reitera que se trata de norma penal em branco, a ação do agente visa frustrar obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho, isto é, as normas legais que determinam o emprego de mão de obra nacional, mais especificamente as leis trabalhistas (BITENCOURT, 2012).

Já Greco, inclusive citado por Bitencourt, assim como cita Bitencourt em várias passagens de sua obra (autores que convergem na maioria das vezes), afirma que a finalidade dessa norma é responsabilizar criminalmente o agente que dirigir sua conduta no sentido de frustrar, mediante fraude ou violência, obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho, quer dizer, à proteção que a lei confere aos trabalhadores nacionais, a exemplo do que ocorre com a regra da proporcionalidade, prevista nos arts. 352 e 354 da CLT

Necessário haver dolo, sem previsão de modalidade culposa. Ameaça não tipifica esse crime. Não há exigência do injusto. Crime consumado com frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho. E admite-se a tentativa. As penas cominadas são, cumulativamente, detenção de um mês a um ano e multa, além da correspondente à violência.

Por fim, a ação penal é de natureza pública incondicionada.


9. O artigo 205: exercício de atividade com infração de decisão administrativa

Nesta antepenúltima seção, discutiremos o artigo 205 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. O bem jurídico tutelado é, segundo a doutrina consultada, o interesse do Estado no cumprimento de suas decisões administrativas relativas a trabalho, ofício ou profissão, sem que infração a outras decisões administrativas correspondam a este tipo penal.

O sujeito ativo é quem está impedido de exercer alguma atividade administrativa. Por isso, a doutrina consultada, tanto Greco quanto Bitencourt, consideram crime próprio, mesmo sem exigir uma qualidade especial, com a ressalva de que somente quem está proibido de exercer uma atividade pode desobedecer a tal proibição. Já o sujeito passivo é o Estado, que é, nas palavras de Bitencourt, titular do interesse violado.

A doutrina aponta que este crime tem a natureza de habitualidade, não caracterizando essa infração à prática isolada de uma única ação, mesmo violando decisão administrativa. Daí a crítica, por exemplo, de Bitencourt a uma decisão do STF sobre a conduta do art. 205 em relação à conduta do art. 282. Não nos ateremos neste ponto, por economia de espaço, mas ressaltamos que há muitos aspectos do art. 205 que chamam a atenção, ao serem abordados pela doutrina consultada, como a referida decisão do ministro Sydney Sanches do STF, tratada por Bitencourt, e a necessidade do impedimento do exercício por decisão administrativa, e não judicial, para corresponder ao tipo penal deste artigo (e não ao art. 330 ou 359, CP), assim como a distinção do delito previsto no art. 205 e a figura delitiva do art. 324 (exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado).

Encaminhando para o final de uma análise sobre o art. 205, importante destacar que é necessário o dolo, sem ser admitida modalidade culposa e não sendo exigido o injusto. O crime é consumado com a prática reiterada dos atos próprios da atividade que se está impedido de exercer administrativamente, sendo um crime habitual, para o qual não se admite tentativa.

Por fim, as penas cominadas alternativamente são detenção de três meses a dois anos ou multa e a natureza da ação penal é pública incondicionada. Como não há previsão de uso de violência, não se comina cumulativamente pena correspondente à violência.


10. O artigo 206: aliciamento para o fim de emigração

Nesta seção, discutiremos o artigo 206 do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. Trata-se do penúltimo artigo do Código Penal tratado neste trabalho. Segundo a doutrina consultada, o bem jurídico protegido é o interesse do Estado em manter a mão de obra no território nacional.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, pois é um crime comum. Já o sujeito passivo mediato é o Estado e imediato pode ser qualquer pessoa na condição de trabalhador que seja recrutada mediante fraude, nas palavras de Bitencourt. O tipo penal cita trabalhadores no plural, portanto é necessário haver pluralidade, no mínimo três pessoas com qualificação profissional. E o tipo pune apenas emigração fraudulenta, mas não emigração espontânea. Um exemplo típico é trazido pela doutrina consultada:

Exemplo típico ocorre com o aliciamento de mulheres para trabalhar no exterior, exercendo atividades dignas, com altos salários, quando, na verdade, a finalidade é exercer a prostituição. O aliciamento para fim de emigração exige a elementar normativa da fraude no recrutamento. Simplesmente recrutar trabalhadores com o fim de levá-los para o exterior em si mesmo não é crime, ainda que possa caracterizar-se como ilícito em outras searas jurídicas. (BITENCOURT, 2012)

Necessário haver dolo e o injusto. Além disso, necessária a finalidade de levar os trabalhadores para exterior, pois para outro lugar do território nacional configurará o crime do art. 207. O crime do art. 206 se consuma com o aliciamento de trabalhadores, recrutados com emprego de fraude, visando levá-los para o exterior, independentemente se for bem-sucedida a emigração. Trata-se, portanto, de crime formal, em que a tentativa é admissível.

Por fim, as penas cominadas, cumulativamente, são detenção de um a três anos e multa e a natureza da ação penal é pública incondicionada.


11. O artigo 207: aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional

Finalmente, nesta seção, discutiremos o artigo 207, e seus §§1º e 2º, do Código Penal, tendo como base as referências indicadas ao final deste trabalho. Como a doutrina consultada aponta, apoiada, inclusive, na doutrina de terceiros, o bem jurídico protegido é o interesse do Estado em evitar o êxodo de trabalhadores no território nacional, evitando o êxodo de mão de obra barata, proveniente de zonas desfavorecidas do País, produzindo concentrações urbanas e desajustes socioeconômicos (BITENCOURT, 2012; GRECO, 2021).

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, pois se trata de crime comum. O sujeito passivo mediato é o Estado e imediato é qualquer pessoa na condição de trabalhador que seja aliciada (na hipótese do § 1º, mediante fraude, como reitera a doutrina). A grande diferença do art. 206 é que, aqui, neste crime, em vez da emigração, se objetiva, com o recrutamento, deslocar trabalhadores dentro do próprio território nacional. Também é necessária uma pluralidade (no mínimo 3) de trabalhadores, pois o artigo usa o plural. E a doutrina consultada aponta que há entendimento jurisprudencial que entende ser necessária uma demonstração de prejuízo efetivo para a região onde o aliciamento ocorre.

É necessário dolo. Crime consumado com o aliciamento de trabalhadores, mesmo que o êxodo não ocorra, sendo um crime formal: o crime se consuma com o convencimento do trabalhador se transferir para outra localidade do território nacional, acertadas as condições. Admite-se a tentativa.

Sobre os §§ 1º e 2º do art. 207, diz Bitencourt:

A Lei n. 9.777, de 29 de dezembro de 1998, acrescentou os §§ 1º e 2º ao art. 207; no primeiro, cria nova figura penal; no segundo, uma majorante, elevando a pena de um sexto a um terço. O tipo descrito no § 1º é um misto das infrações descritas nos arts. 206 e 207, ao menos em uma de suas modalidades, onde consta como meio executório mediante fraude. Daquele dispositivo contém a exigência de fraude, e, desse, o êxodo de trabalhadores limita-se ao território nacional. Apresenta três formas: (a) mediante fraude; (b) cobrança de valores do trabalhador; e (c) não assegurar condições de retorno ao local de origem. As duas primeiras modalidades são de fácil comprovação; a terceira apresenta uma dificuldade dogmática: prática condicional do crime. A ação típica nuclear será o recrutamento de trabalhadores ou a não facilitação do retorno à origem? E se o trabalho no local recrutado durar dez anos? Qual será o iter criminis? É de difícil configuração. Nesse dispositivo não se pune a transferência de trabalhadores dentro do território nacional; pune-se a transferência mediante aliciamento. (BITENCOURT, 2012)

Por fim, as penas cominadas são, cumulativamente, detenção de um a três anos e multa. E a doutrina aponta que mais uma vez, constata-se uma exasperação absurda, desproporcional e injustificada das penas cominadas. Na previsão do § 2º, a pena deverá, obrigatoriamente, ser majorada entre um sexto e um terço. (BITENCOURT, 2012) Bitencourt faz a mesma crítica do §2º do art. 203 ao sinalizar que, pela redação, que é taxativa, parece que houve aí uma preocupação com as minorias. (BITENCOURT, 2012). A ação penal é pública incondicionada.

Antes de encerrarmos o presente trabalho, cabe salientarmos que concordamos com a crítica de Bitencourt sobre o art. 207, do qual poderíamos dizer, como costuma falar em suas aulas sobre alguns artigos a professora Patrícia Glioche, que cheira a naftalina. Para não repetirmos o que diz o referido doutrinador em sua crítica, já apoiada em doutrina de terceiros (no caso Magalhães Noronha), com a qual Greco (2021) não sinaliza concordar ou discordar, transcreveremos o trecho da crítica abaixo:

Trata-se, na verdade, de um tipo penal esdrúxulo, desnecessário, superado e, na atualidade, absolutamente injustificado. Nos primórdios da nossa República, ou, vá lá, na primeira metade do século XX até se podia admitir que houvesse esse tipo de preocupação nacional. Contudo, na atualidade, num país absolutamente povoado, com tanta carência de emprego em todos os recantos, sobrando mão de obra em todos os segmentos sociais, essa criminalização perdeu sua razão de ser, pois, como destacava Magalhães Noronha, a lei tem em vista a regularidade, a normalidade do trabalho no país, evitando que regiões mais favorecidas corram o risco do chômage, enquanto outros, que não oferecem as mesmas vantagens, se despovoem e lutem com a falta de braços. Tal fato rompe a harmonia e o equilíbrio necessários à ordem econômica e social. (BITENCOURT, 2012)

E, assim, encerramos este artigo sobre os crimes contra a organização do trabalho (art. 197 ao art. 207) no Código Penal brasileiro segundo Cezar Bitencourt e Rogério Greco.


Referências bibliográficas

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, Vol. 3: parte especial dos crimes contra o patrimônio até dos crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos. São Paulo: Saraiva, 2012.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Vol. 2 artigos 121 a 212 do Código Penal. São Paulo: Atlas, 2021.


Autor

  • Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

    Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Carlos Eduardo Oliva de Carvalho. Os crimes contra a organização do trabalho no Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6756, 30 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95614. Acesso em: 15 maio 2024.