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Tráfico de drogas e associação para o tráfico por militares e a competência da Justiça Militar

Tráfico de drogas e associação para o tráfico por militares e a competência da Justiça Militar

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Pode o traficante comum ter pena superior ao policial militar condenado por tráfico de drogas?

I – O FATO

Segundo o site do Estadão, em 2 de fevereiro de 2021, a Polícia Federal deflagrou, na manhã daquele dia, a Operação Quinta Coluna para aprofundar as investigações sobre uma suposta associação criminosa que usou aeronaves da Força Aérea Brasileira para enviar drogas para a Espanha. As apurações miram, ainda, a lavagem de ativos obtidos em razão dos crimes. 

As investigações revelaram que outras pessoas se associaram ao sargento Manoel Silva Rodrigues, de forma estável e permanente, para a prática do crime de tráfico ilícito de drogas, tendo sido apresentado à Justiça elementos que indicam pelo menos mais uma remessa de entorpecente para Espanha’. O militar foi detido em 2019 na Espanha com 39 quilos de cocaína quando viajava como parte da tripulação de apoio do presidente Jair Bolsonaro 

Agentes cumprem 15 mandados de busca e apreensão e duas ordens de restrição de comunicação e saída do Distrito Federal contra 10 investigados. Entre os alvos da ação estão a esposa de Manoel, um tenente e um tenente-coronel. Militares da FAB também participam das atividades. 

A ministra Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), disse considerar “gravíssimo” o caso do sargento da Força Aérea Brasileira (FAB), Manoel Silva Rodrigues, preso na Espanha sob a acusação de transportar 39 quilos de cocaína, e que a sua punição deve ser “rigorosa”, se comprovada a culpa no episódio. Coordenadora de um grupo de trabalho que apresentou ao Congresso uma proposta de atualização do Código Penal Militar, a ministra defende penas mais duras para integrantes das Forças Armadas envolvidos no tráfico de drogas. Atualmente, a punição máxima é de cinco anos de prisão, enquanto a Lei das Drogas prevê pena de até 15 anos para casos envolvendo civis. 

Disse a ministra ao Estadão, em seu site, no dia 29 de junho de 2019:  

“Estou convicta sobre a necessidade de alteração do Código Penal Militar para apenar com rigor o tráfico de entorpecentes. É inconcebível que um militar trafique dentro de um quartel, um local onde se encontram homens armados, investidos do monopólio da força legítima pelo Estado”, afirmou Maria Elizabeth ao Estado. “De um militar se exige a defesa da Pátria, dos poderes constituídos e da lei e da ordem, por isso uma conduta tão grave deve ser apenada com rigor. Lamentavelmente, a lei vigente só autoriza ao magistrado uma condenação máxima de 5 anos.” 

No caso, há algo de mais grave, segundo foi publicado pelo site Metrópolis, que abaixo transcrevo:

“Os militares da Força Aérea Brasileira (FAB) investigados pela Polícia Federal por integrarem associação criminosa que usa aeronaves do governo para enviar drogas para a Europa possuem ligação com Michele Tocci, conhecido como o Barão do Ecstasy. Todos foram alvo da Operação Quinta Coluna, deflagrada nesta terça-feira (2/2). Além do tráfico, o grupo é suspeito de lavagem de dinheiro.” 


II – O ARTIGO 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR(CPM)

Vejamos o art 290, CPM, verbis: 

"Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: 

Tem-se no parágrafo 1° e incisos, in verbis: 

"Na mesma pena incorre, ainda que o fato incriminado ocorra em lugar não sujeito à administração militar. 

I – O militar que fornece, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a outro militar; 

III- quem fornece, ministra ou entrega, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a militar em serviço, ou em manobras ou exercício;" 

Pena – reclusão, até cinco anos." 

Trata-se de crime de ação múltipla, de natureza formal, permanente, que exige o dolo como elemento do tipo.  

A Lei 11.343, de 23 agosto de 2006, em seu artigo 33, estabelece pena de reclusão de cinco a quinze anos para o tráfico de drogas. 

"Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: 

Pena – reclusão 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa." 

Um agente, condenado pela prática de tráfico de drogas no interior de uma OM, pelo art 290 do CPM, pode vir a ser contemplado com a suspensão condicional da pena (sursis). Para tanto, basta que seja primário e de bons antecedentes e venha a ser apenado com até dois anos de reclusão. Basta que a mesma punição possa vir a ser sofrida por um simples usuário, reincidente, preso em flagrante, portando drogas (a pena em abstrato do crime do art 290 do CPM é de 01 a 05 anos de reclusão).  

Sobre isso, bem acentuou Luciano Moreira Gorrilhas (O artigo 290 do Código Penal Militar e a nova lei de drogas, publicação Jus Navigandi):  

“a) Um militar, fora de lugar sujeito à Administração Militar, ao fornecer substância entorpecente para outro militar, praticará, em tese, crime de natureza militar. Todavia, caso nosso protagonista venha a ministrar ou vender a aludida droga para um colega de caserna cometerá crime de natureza comum. Decerto, estas modalidades referidas (vender e ministrar) não foram previstas na norma penal em destaque (inciso I do § 1° do art 290 CPM). 

b) Um militar ou um civil, em lugar não sujeito à Administração Militar, vende substância entorpecente para militar de serviço, ou em manobra ou em exercício militar. 

Aplica-se, aqui, o mesmo raciocínio supra, ou seja, o crime é comum ante a inexistência de expressa tipicidade. Vale dizer, não figura o verbo "vender" dentre os mencionados núcleos do subtipo descrito no inciso III do § 1° do artigo 290 do CPM. 

Outro tópico que demanda reflexão é quanto a inserção topográfica do art 290 do CPM no capítulo dos crimes contra a saúde (Bem jurídico tutelado). Nos parece, salvo melhor entendimento, que o supracitado tipo penal estaria melhor encartado no capítulo destinado aos crimes contra à Administração Militar. De fato, sobressai-se dentre as elementares do delito em discussão a locução "em lugar sujeito à Administração Militar". Ou seja, os diversos comportamentos descritos nos tipos (onze verbos) somente serão reprimidos se executados em lugar sujeito à Administração Militar. De observar-se que esta é a nota marcante do artigo 290 do CPM. Assim, fica nítido que o legislador realçou com cores fortes o aspecto do locus delicti commissi, enquanto que a saúde pública ficou, ao que nos parece, relegada a plano secundário. 

Com efeito, fica difícil acolher a tese de perigo à saúde alheia, vale dizer, possibilidade de propagação da droga, nos casos, por exemplo, em que um militar ou civil (em lugar sujeito à administração militar) é surpreendido portando um cigarro de maconha com menos de um grama. Nesses casos, temos que o usuário estará apenas atentando contra sua própria saúde (autolesão), pois bastará acender a aludida "bagana" para que o conteúdo da substância tóxica em questão se pulverize em frações de segundo. Nestes casos, pergunta-se: houve perigo da difusão do aludido entorpecente? 

Nesse diapasão, caso, por suposição, estivesse o artigo 290 CPM inserto nos crimes contra à Administração Militar, resultariam eliminadas todas as discussões acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância nas apreensões envolvendo pequenas (ínfimas) quantidades de substâncias entorpecentes. Decerto, tornar-se-ia despiciendo o debate acerca do assunto em referência, notadamente, levando-se em linha de conta que tanto as grandes como as pequenas apreensões efetuadas em lugar sujeito à Administração Castrense atentariam, de igual modo, contra a ordem administrativa militar. Hoje, como sabemos, considerando o atual bem jurídico tutelado (saúde pública), existem jurisprudências nos dois sentidos: umas acolhendo o princípio da bagatela nos crimes envolvendo tóxico, outras repudiando este instituto de política criminal.” 

No Estado Democrático de Direito pode o traficante comum ter pena superior ao policial militar condenado por tráfico de drogas? Claro que não, pois o que se estaria a desafiar é o paradigma da razoabilidade. A desproporcionalidade parece mais que evidente.  

A proposta do grupo de trabalho coordenado pela ministra era adequar a legislação militar à Lei das Drogas de 2006: aumentaria a pena para tráfico de drogas (para até 15 anos) e abrandava a do consumo próprio (de seis meses a um ano para quem oferecesse droga para consumir com outra pessoa). “O uso de entorpecentes deve ser tratado como uma questão de saúde pública. O tráfico como uma questão de polícia e, posteriormente, de incriminação penal. A sanção deve ser rigorosa, pois está em jogo o bem estar social”, afirmou a ministra.  

Na época, a proposta do grupo de trabalho - de penas mais duras para militares envolvidos em tráfico de drogas - foi entregue ao deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP). O texto, no entanto, não avançou, a exemplo de outras propostas que tratam sobre o endurecimento de penas para os militares. “Isso tem de ser corrigido, mas até hoje não é uma prioridade, nem do Congresso, nem dos militares, nem do Executivo”, afirmou Zarattini ao Estado.  

Fala-se, aqui, por sinal, em uma efetividade social.  

A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela traduz a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. 

A efetividade das normas depende, em primeiro lugar, da sua eficácia jurídica, da aptidão formal para incidir e reger as situações da vida, operando os efeitos que lhe são inerentes. Não se trata apenas da vigência da regra, mas também, e, sobretudo, da “capacidade de o relato de uma norma dar-lhe condições de atuação”, isoladamente ou conjugada com outros normas. Se o efeito jurídico pretendido pela norma for irrealizável, não há efetividade possível, como explicou Ingo Wolfgang Sarlet(A eficácia dos direitos fundamentais, 2006, pág. 245).  

Nessa linha de entendimento, enquanto a eficácia jurídica representa a qualidade da norma produzir, em maior ou menor grau, determinados efeitos jurídicos ou a aptidão para produzir efeitos, dizendo respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, a eficácia social da norma se confunde com a ideia de efetividade e designa a concreta aplicação dos efeitos da norma juridicamente eficaz. A eficácia social ou a efetividade está intimamente ligada à função social da norma e à realização do Direito. 

Perde a norma em sua efetividade, na medida em que ela não representa, para a sociedade, a devida reprimenda, tendo-se o relato e o cometimento que ela representa para o aplicador da norma. 

A PF frisou que as investigações não se confundem com os processos por tráfico internacional de drogas que tramitam perante a Justiça Militar. Os investigados na operação podem responder pelos crimes de associação para o tráfico e lavagem de dinheiro, que têm penas que vão de 3 a 10 anos de prisão. 

Lembro com relação ao conflito das leis no tempo, a Lei de Introdução:

“Art. 2o  Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. 

§ 1o  A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior 

O § 1º prescreve o critério cronológico. Nesse caso, deverá prevalecer a lei posterior, que revogará a lei anterior quando expressamente o declare, quando não forem compatíveis, ou quando regular por inteiro a matéria de qual ela tratava. 

O STM, em sua súmula 14 dispõe que não há aplicabilidade da lei 11.343/06 em seara castrense.

O Código Penal Militar apresenta somente o art. 290, que versa sobre tráfico de drogas, e a lei especial, além de diferenciar usuário de drogas e traficante, ela traz em seu corpo, um procedimento próprio a reger esses tipos penais. Mediante exposto, averigua-se a possibilidade de revogação tácita do art. 290 do COM pela lei 11.343/06. 

O STM, em posição contrária, refuta a possibilidade acima declarando a inaplicabilidade da 11.343/06, com fundamento somente na primeira parte do art.º, §1° da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro que versa sobre a data da lei, vejamos: 

“EMBARGOS Nº 2006.01.049706-8 – MG – Relator Ministro FLÁVIO DE OLIVEIRA LENCASTRE. Revisor Ministro JOSÉ COÊLHO FERREIRA. (Sessão de 17/04/2007).EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES DO JULGADO. SOLDADO DO EXÉRCITO. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE “MACONHA” EM LUGAR SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR. PRINCÍPIO DA NSIGNIFICÂNCIA OU DA BAGATELA. LEI Nº 11.343/2006.INAPLICABILIDADE À JUSTIÇA MILITAR. REVOGAÇÃO DO ARTIGO 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR PELA “NOVATIO LEGIS”. INOCORRÊNCIA. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO EMBARGADO.

1. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. “In casu”, o fato de ser pequena a quantidade de “Maconha” apreendida em poder do agente não configura insignificância penal. Isto porque, a Jurisprudência do Superior Tribunal Militar e do Egrégio Supremo Tribunal Federal consagrou o entendimento de que o Princípio da Insignificância ou da Bagatela não se aplica no caso de posse de substância entorpecente em lugar sujeito à Administração Militar.

2. LEI Nº 11.343/2006. ALEGADA REVOGAÇÃO DO ARTIGO 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. Conforme prescreve o artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, opera-se a revogação de uma lei anterior por outra superveniente, quando a nova lei expressamente assim o declare ou quando for incompatível com a lei anterior e/ou quando regular integralmente a mesma matéria. No caso concreto, nenhuma dessas situações se verifica.Ao contrário, a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, não revogou expressamente o artigo 290 do CPM. Quisesse o legislador revogar qualquer dispositivo do Código Penal Militar, poderia tê-lo feito no artigo 75 da referida norma, quando determinou a revogação de outras leis. De igual modo, a “Nova Lei de Tóxicos” não é incompatível com a matéria disciplinada no precitado artigo 290 da Lei Substantiva Castrense, pois a primeira é norma geral e a segunda, norma especial. Assim, se o objetivo principal da Lei nº 11.343/2006 é prescrever MEDIDAS DE PREVENÇÃO AO USO INDEVIDO DE DROGAS no âmbito civil, recomendando tratamento terapêutico ao respectivo usuário, o Código Penal Militar, em seu dispositivo específico, preocupou-se com o tráfico, posse e uso de entorpecente ou de substância de efeito similar, EM LUGAR SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR, definindo essa hipótese como infração penal e estabelecendo uma pena “In Abstracto” a ser aplicada ao sujeito ativo de tal delito.

3. Restando comprovado nos autos que a substância encontrada em poder do ora Embargante, em lugar sujeito à Administração militar, era “CANNABIS SATIVA LINEU”, vulgarmente denominada “Maconha”, e inexistindo, em favor do Acusado, qualquer causa excludente de culpabilidade e/ou de ilicitude, não há que se falar em absolvição. Rejeitados os Embargos, mantendo-se integralmente o Acórdão hostilizado, por seus próprios e jurídicos fundamentos. Decisão majoritária. Brasília, 15 de maio de 2007”.

Esse o entendimento da Justiça Militar por seu órgão de cúpula. Sendo assim, o artigo 290 do Código Penal Militar não está revogado. A questão passará a ser de política legislativa no interesse de sua revogação.

De toda sorte, obedecido o princípio da territorialidade temperada, no Brasil, a competência para instruir e julgar tal crime é da Justiça Militar.


III – O CRIME DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA PARA O TRÁFICO

Do que foi descrito acima, tem-se que há um crime de associação para o tráfico de drogas que precisa ser apurado em todas as suas circunstâncias de autoria e materialidade.

A PF frisou que as investigações não se confundem com os processos por tráfico internacional de drogas que tramitam perante a Justiça Militar. Os investigados na operação podem responder pelos crimes de associação para o tráfico e lavagem de dinheiro, que têm penas que vão de 3 a 10 anos de prisão. 

Tem-se o crime de associação criminosa previsto na legislação especial, extravagante, e que não é crime militar.

A associação para o tráfico de drogas é uma associação para a prática das condutas tipificadas no artigo 33 (tanto no caput quanto no § 1º), bem como no artigo 34 da Lei de Drogas, que fala sobre maquinários, aparelhos, instrumentos e demais objetos destinados à fabricação de drogas, por exemplo. 

Tem-se o texto legal: 

Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: 

Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. 

Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei. 

Sobre o crime do art. 35 da Lei de Drogas, destaca-se trecho do voto do ministro Teori Zavascki, nos autos do HC 124.164: 

‘O crime previsto no art. 35 da Lei 11.343/2006 está assim descrito: ‘associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei’. O verbo núcleo do tipo aqui é associar-se. Portanto, a caracterização da associação para o tráfico de drogas depende da demonstração do vínculo de estabilidade entre duas ou mais pessoas, não sendo suficiente a união ocasional e episódica. Não se pode transformar o crime de associação, que é um delito contra a paz pública –capaz de expor a risco o bem jurídico tutelado –, em um concurso de agentes. É com propriedade que afirma Vicente Greco Filho: Para incidência do caput do delito agora comentado, em virtude da cláusula ‘reiteradamente ou não, poder-se-ia entender que também configuraria o crime o simples concursos de agentes, porque bastaria o entendimento de duas pessoas para a prática de uma conduta punível. Parece-nos, todavia, que não será toda vez que ocorrer concurso que ficará caracterizado o crime em tela. Haverá necessidade de um animus associativo, isto é, um ajuste prévio no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira societas sceleris, em que a vontade de associar seja separada da vontade necessária à prática do crime visado. Excluído, pois, está o crime, no caso de convergência ocasional de vontades para a prática de determinado delito, que estabeleceria a coautoria. O tipo é especial em relação ao art. 288 do Código Penal (...). O conteúdo do crime, porém, é igual ao do seu similar (Tóxicos: prevenção-repressão. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, página 209). 

Assim, estabeleceu-se, na jurisprudência, o entendimento de que a diferença entre o crime em questão e o concurso eventual de agentes está na estabilidade do vínculo. Nessa linha de compreensão: ‘Habeas corpus. Processual Penal. Crime de associação para o tráfico (Lei nº 11.343/06, art. 35, caput). Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia e ausência de justa causa. Não ocorrência. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (...) 3. Verifica-se, pela simples leitura da exordial acusatória, que não há ilegalidade a merecer reparo pela via eleita, uma vez que a denúncia contém descrição mínima dos fatos imputados à ora paciente, principalmente considerando tratar-se de crime de associação para o tráfico, relativamente ao qual a existência do liame subjetivo e da estabilidade associativa deve ser apurada no curso da instrução criminal. 4. Ordem denegada’. (HC 121188, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 03-04-2014). 

Trata-se de crime doloso, com especial fim de agir, qual seja, o de traficar drogas ou maquinários. Requer o agrupamento de pelo menos duas pessoas, com ajuste prévio e certa estabilidade de propósito. É um crime autônomo, pois, para que esteja caracterizada a associação para o tráfico, é dispensável o êxito nas práticas dos crimes dos artigos 33 e 34 da Lei de Drogas. 

A Convenção de Palermo (2000) arrola 4 (quatro) características das redes criminosas, a saber: “a) grupo estruturado, com atuação de três pessoas no mínimo; b) ação criminosa contra uma ordem legal; c) lavagem de dinheiro; d) corrupção de agentes estatais;” (Oliveira, Adriano. Tráfico de drogas e crime organizado: peças e mecanismos). 

Para a caracterização do crime de associação criminosa, é imprescindível a demonstração concreta do vínculo permanente e estável entre duas ou mais pessoas, com a finalidade de praticarem os delitos do art. 33, caput e § 1º e/ou do art. 34, da Lei de Drogas (HC 354.109/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 15/9/2016, DJe 22/9/2016; HC 391.325/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 18/5/2017, DJe 25/5/2017).


IV A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PARA INSTRUIR E JULGAR OS CRIMES CITADOS

Há evidente conexão entre o crime praticado e previsto no artigo 290 do CPM e o crime de associação para o tráfico, crime comum previsto na legislação extravagante que trata de drogas.

Tem-se o artigo 9, II, do Código de Processo Penal Militar:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

f) revogada. (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996) 

Em 13 de outubro de 2017 foi sancionada pelo Poder Executivo da União a Lei nº 13.491/2017, de vigência imediata (art.3º), a qual promoveu mudanças na redação do art.9º do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969). Em suma, as alterações redefiniram o conceito de certos crimes militares em tempos de paz, estabelecendo um aparente alargamento da matéria de competência da Justiça Militar dos Estados e da Justiça Militar da União. 

Vem a discussão: qual será a sorte da competência para instruir e julgar tais crimes, o militar e o comum. 

Veja-se a lição que se colhe do Ministério Público do Paraná, Centro de Promotorias(Competência da Justiça Militar e Lei nª 13.491/17):

“Enquanto a redação anterior alçava à condição de crime militar (impróprio ou de tipificação indireta) apenas os crimes previstos no CPM que possuíssem idêntica definição na lei penal comum, a alteração promovida pela Lei nº 13.491/2017 busca elastecer o conceito de crime militar para todas as figuras típicas delitivas previstas na legislação brasileira, independentemente de previsão correspondente na parte especial do CPM. 

Contudo, manteve-se a previsão de que somente haverá crime militar quanto presente uma das hipóteses das alíneas do inciso II do art.9º, as quais foram integralmente preservadas. Para além disso, a alteração no texto do inciso II impactou automaticamente a definição de crime militar do inciso III, na medida em que este define como sendo crime militar os delitos praticados por militares da reserva, ou reformados, ou civis, contra instituição militar, considerando-se como tais justamente os casos dos incisos I e II, sempre que presente uma das circunstâncias das alíneas do inciso III.” 

A competência da Justiça Militar se dará, a princípio, quando o crime, ainda que não esteja previsto na parte especial do Código Penal Militar, for praticado em uma das circunstâncias delineadas nas alíneas do inciso II do art.9º: a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado; b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar. 

Para Rodrigo Foureaux (A Lei 13.491/17 e a ampliação da competência da Justiça Militar), a Súmula 90 do STJ perdeu a razão de ser e a alteração legislativa põe fim à duplicidade de processos que os militares enfrentam na justiça militar e justiça comum, pelo mesmo fato. Os fatos devem ser julgados, exclusivamente, pela justiça militar. 

A Súmula 90 do STJ tem a seguinte redação:

Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele. Referências: CF/1988, art. 125, § 4º. CPP, art. 79, I. Procedentes: CC 762-MG (3ª S, 1º.03.1990 — DJ 19.03.1990) CC 1.077-SP (3ª S, 07.06.1990 — DJ 06.08.1990) CC 2.686-RS (3ª S, 05.03.1992 — DJ 16.03.1992) CC 3.532-SP (3ª S, 19.11.1992 — DJ 08.03.1993) CC 4.271-SP (3ª S, 05.08.1993 — DJ 06.09.1993) Terceira Seção, em 21.10.1993 DJ 26.10.1993, p. 22.629. 

Analisando a íntegra desses julgados, constata-se que o fundamento para a divisão de processos está no art. 79, inciso I, do CPP, que assim dispõe: Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento, salvo: I - no concurso entre a jurisdição comum e a militar. 

Fora desses limites a competência para instruir e julgar o caso seria da competência originária da Justiça Comum Federal a teor do artigo 109, IV e V, da Constituição Federal.

Entendo, pois, que esse é o entendimento que deve ser dado a essa questão jurídica.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Tráfico de drogas e associação para o tráfico por militares e a competência da Justiça Militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6432, 9 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88336. Acesso em: 9 maio 2024.