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As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista

As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista

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A partir dos atentados terroristas de 2015 na França, observa-se como as promessas não cumpridas de direitos humanos podem minar a legitimação desses direitos e desestabilizar os sistemas jurídicos ocidentais pós-guerra

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar, a partir dos atentados terroristas ocorridos no início de 2015 na França, como um sistema jurídico sedimentado em declarações com poucos reflexos no cotidiano de uma elevada parcela da população excluída do usufruto de direitos sociais, pode não ser capaz de se perpetuar. Tem-se como problema de pesquisa investigar qual a relação entre os atentados terroristas praticados na França no início de 2015 e o quadro de crise de legitimação do discurso de direitos humanos universais que não são concretizados para uma grande parcela da população. Como hipótese, considera-se que um quadro de direitos prometidos e nunca concretizados integralmente, pode representar o combustível capaz de implodir os sistemas jurídicos ocidentais do pós-guerra, se um cenário de concessões similares ao verificado durante o apogeu do Estado de Bem Estar Social na Europa, não for sinalizado pelas classes dominantes à crescente massa de excluídos. O método de abordagem adotado foi o indutivo e a documentação indireta foi a técnica de pesquisa utilizada, mediante consulta à bibliografia referenciada. Conclui-se que atos de violência como os discutidos no trabalho possuem raízes num quadro de insatisfação social com direitos prometidos e nunca concretizados, o que impõe às classes dominantes uma maior concessão de benesses em favor dos menos favorecidos, sob pena de implosão do sistema socioeconômico tal como o conhecemos.

Palavras-chave: Declarações. Direitos Humanos. Discurso. Dominação.

Sumário: Introdução; 1 Sinal de alerta em forma de atentado terrorista; 2 O direito como discurso ideológico; 2.1 Do Direito Natural ao “triunfo” dos direitos humanos; 2.2 Os Direitos Humanos e o individualismo; 2.3 As declarações de direitos como técnicas de dominação; 2.4 Existem direitos humanos universais?; 3 O Direito e o cumprimento do seu papel social; 4 Os sinais de esgotamento das promessas de direitos como fator de contenção dos conflitos numa sociedade desigual; Conclusão.


INTRODUÇÃO

Episódios violentos, como os atentados terroristas ocorridos na França no início de 2015, seguidos por diversos outros atos similares praticados em países do Ocidente nos últimos anos, de autoria de cidadãos desses próprios países, parecem sinalizar que a promessa de igualdade e paz social que as declarações de direitos proclamadas após a Segunda Guerra Mundial e dotadas de pretensões universais, gradativamente vêm se convertendo em discurso de difícil aceitação num cenário de supressão gradativa das bases do Estado de Bem Estar Social construído sobre as cinzas daquele conflito.

Investigar qual a relação entre os atentados terroristas praticados na França no início de 2015 e o quadro de crise de legitimação do discurso de direitos humanos universais que não são concretizados para uma grande parcela da população, constitui o problema desta pesquisa.

Como hipótese, considera-se que um quadro de direitos prometidos e nunca concretizados integralmente, pode representar o combustível capaz de implodir os sistemas jurídicos ocidentais do pós-guerra, se um cenário de concessões similares ao que se verificou durante o apogeu do Estado de Bem-estar Social na Europa não for sinalizado pelas classes dominantes à crescente massa de excluídos, a quem se vem negando direitos básicos, como, por exemplo, acesso à alimentação básica.

O objetivo da pesquisa volta-se a analisar como um discurso de direitos humanos que não se concretiza no cotidiano de grandes parcelas da população apresenta sinais de exaurimento, sendo os atos de violência praticados contra o modelo de organização da sociedade um reflexo desse esgotamento.

A pesquisa foi construída segundo uma abordagem indutiva, tendo sido adotada a documentação indireta como técnica de pesquisa, mediante consulta à bibliografia referenciada.


1. SINAL DE ALERTA EM FORMA DE ATENTADO TERRORISTA

O início do ano de 2015 foi marcado pela ocorrência de fatos que nos convidam à reflexão: no dia 07 de janeiro, os irmãos Chérif e Said Kouachi invadiram a sede de uma revista humorística francesa conhecida como “Charlie Hebdo” e assassinaram doze pessoas. Dois dias depois, também em Paris, Amédy Coulibaly invadiu uma mercearia judaica e, após fazer refém alguns clientes, foi morto pela polícia, não sem antes assassinar quatro das pessoas por ele mantidas como reféns2.

A justificativa utilizada pelos responsáveis pelos ataques à revista “Charlie Hebdo” seria a publicação de charges que, na visão dos muçulmanos, depreciariam a imagem de Maomé, considerado como profeta pela religião islâmica, não podendo, portanto, ser utilizado de forma jocosa por uma publicação. Quanto aos fatos envolvendo Amédy Coulibaly, a invasão do estabelecimento comercial judaico provavelmente teve vinculação com o persistente conflito entre árabes (adeptos da religião islâmica) e judeus, que atualmente habitam o Estado de Israel3.

Outro ponto que chama a atenção no ocorrido diz respeito a origem dos responsáveis pelos ataques. Não se trata de estrangeiros que adentraram ao território francês com a exclusiva finalidade de praticarem atos terroristas. Ao contrário, eles eram franceses, filhos de imigrantes que se encontravam, supostamente, inseridos na cultura local.

O palco dos acontecimentos também é emblemático. Trata-se da França, país que em 1789 foi sacudido por um movimento revolucionário que modificou as bases do pensamento ocidental, colocando por terra uma estrutura de governo monárquico- absolutista, fixando as balizas do pensamento político moderno e, por consequência, das formas e sistemas de governo que atualmente conhecemos. Pode-se dizer que a França foi o berço do liberalismo ou, pelo menos, o espaço no qual sua ideologia conseguiu se firmar de maneira mais ostensiva para, a partir daí, disseminar-se por todo o Ocidente, valendo-se, para tanto, de sua histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O próprio lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade) tem servido para sistematizar os direitos humanos, que geralmente são divididos em direitos que protegem a liberdade, buscam fomentar a igualdade e o espírito de cooperação entre todos os povos4.

Com o movimento revolucionário francês, teve início a disseminação pelo Ocidente da ideia de que existem direitos inerentes ao gênero humano, inalienáveis por natureza, cabendo ao Estado e aos demais indivíduos os respeitarem de forma praticamente sacra, sendo que, de tal respeito, adviria a felicidade de todo o gênero humano.

Mas, os ataques do início de janeiro de 2015, perpetrados por indivíduos supostamente inseridos na sociedade e cultura francesa sinalizam que nem todos estão felizes no berço revolucionário do liberalismo, o que nos conduz a refletir a respeito do papel que o Direito desempenha, em especial no que diz respeito a sua atribuição de conter os potenciais conflitos existentes na sociedade.


2. O DIREITO COMO DISCURSO IDEOLÓGICO

2.1. Do Direito Natural ao “triunfo” dos direitos humanos

Estamos vivenciando a época em que o Direito, em especial os Direitos Humanos, são colocados como resposta para todas as mazelas da humanidade. Se há encarceramento injustificado, logo se procura abrigo na necessidade de respeito ao direito à liberdade individual como arma contra a arbitrariedade estatal. Se há pessoas sem abrigo, famintas, doentes ou socialmente excluídas, argumenta-se que a resposta para todos esses problemas se encontra no respeito ao direito à moradia, à alimentação e à saúde, todos eles acolhidos sob o manto do respeito à dignidade da pessoa humana5. Os Direitos Humanos são postos como resposta para todas as mazelas sociais.

Parece que a simples menção ao direito no ordenamento jurídico já é suficiente para solucionar todos os problemas. O legislador brasileiro, por exemplo, quando confrontado com o crônico problema da falta de moradia no Brasil, encontrou a solução mágica: fez constar, por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia como um dos direitos sociais a integrar o texto da Constituição Federal. Problema solucionado. A moradia é um direito de cada brasileiro. Se não existem recursos financeiros ou interesse político em concretizá-lo, isso já é uma outra questão, pois o legislador já fez a sua parte e, de forma reverente, consagrou a moradia, direito social elementar, como integrante de primeira grandeza do metafísico conceito de dignidade da pessoa humana6.

DOUZINAS (2009, p.19), ao descrever o cenário do suposto triunfo dos direitos humanos, destaca que eles “são alardeados como a mais nobre criação de nossa filosofia e jurisprudência e como a melhor prova das aspirações universais da nossa modernidade, que teve de esperar por nossa cultura global pós-moderna para ter seu justo e merecido reconhecimento”.

Vê-se, portanto, que os Direitos Humanos integram a mesma raiz histórico- filosófica da qual se abeberou o Direito Natural, que constituiu, ao longo de muito tempo, um discurso de resistência ou de justificação de ordenamentos jurídicos diversos.

Quando se buscava confrontar o ordenamento jurídico, considerá-lo injusto ou contrário aos interesses do indivíduo, o Direito Natural servia como ferramenta de resistência, lastreando o argumento de que a prática do direito posto ou positivado, afrontava a um direito superior, de origem cósmica, divina ou racional, eterno e imutável, de forma que, uma vez desconsiderado pelo direito positivado, tornava este último ilegítimo e, por consequência, passível de ser resistido pelos eventuais prejudicados7.

Mas, por outro lado, quando se pretendia assegurar um quadro de submissão de todos em face do ordenamento jurídico do Estado, tornando-o imune a questionamentos, o mesmo discurso do Direito Natural era utilizado, desta vez para informar aos súditos que o direito positivado era uma mera transcrição do Direito Natural, eterno e imutável e, por consequência, superior aos próprios homens.

É por isso que, como lembra KELSEN (2005, p. 151), Kant defendia que qualquer resistência do povo em face do legislador seria ilegítima, pois o direito positivado seria uma mera transcrição do Direito Natural. Dentro dessa visão conservadora, pode-se dizer, valendo-se ainda das palavras de KELSEN (2005, p. 150), que “a resistência somente é justificável se o uso da força pelo governo não só for injusto mas também ‘ilegítimo’ – isto é, contrário não apenas ao Direito natural mas também ao Direito positivo.”

Verifica-se, portanto, que o Direito Natural constituiu ao longo do tempo um discurso, moldável de acordo com os interesses de quem o defendia, podendo servir de argumento para resistência ou justificação do ordenamento jurídico positivado.

Logo, como lembra VILLEY (2007, p.3), o Direito Natural não desapareceu no Século XIX, conforme foi anunciado por alguns teóricos. Ao contrário, ele recebeu uma nova roupagem e assumiu a atual configuração que os Direitos Humanos ostentam.

2.2. Os Direitos Humanos e o individualismo

Os direitos humanos, ao contrário do que defendem os seus entusiastas, não parece haver se distanciado muito do círculo discursivo em torno do qual o Direito Natural orbitou ao longo do tempo. O que se enxerga hoje é que aos Direitos Humanos se atribui uma faceta que muito os aproxima do papel de resistência que o Direito Natural já ostentou em seus primórdios.

DOUZINAS (2009, p. 38), destaca que duas tendências assinalaram a passagem do Direito Natural clássico para a fase dos Direitos Humanos. Segundo ele, “a primeira transferiu o padrão de direito da natureza para a história e, com o tempo, para a humanidade ou a civilização. Este processo pode ser chamado de positivação da natureza.” Já a segunda tendência seria o que ele chamou de “legalização do desejo”. Nessa fase, “o homem foi transformado no centro do mundo, seu livre-arbítrio tornou-se o princípio da organização social, seu desejo infinito e irrefreável conquistou reconhecimento público."

O Direito Natural, portanto, foi humanizado ao se transformar nos direitos humanos tão mencionados na atualidade. Não existe mais uma ordem cósmica, divina, que inspira a positivação do direito. O que se tem, na atualidade, na formulação teórica dos Direitos Humanos, é um discurso no sentido de que o homem, ao nascer, traz consigo determinados desejos, anseios que devem ser tutelados pela ordem jurídica. Dentro dessa visão, o mundo, a organização da sociedade e tudo o mais, existe em função do ser humano, da sua dignidade e devem se voltar para satisfação desse ser desejante, que nunca estará completamente satisfeito.

É por isso que MARX (2010, p.48) argumenta que “os assim chamados direitos humanos, os droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade (itálico no original).”

Para MARX (2010, p. 49-50), “a aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada.” Já a segurança “é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e da sua propriedade (itálico no original).”

Os direitos humanos, em sua versão atual, fomentam o egoísmo. São os interesses individuais que precisam de satisfação, pois “o homem real só chega a ser reconhecido na forma do indivíduo egoísta, o homem verdadeiro, só na forma do citoyen abstrato” – itálico no original (MARX, 2010, p. 53).

Ao fomentar o individualismo, os Direitos Humanos, de inspiração burguesa, conseguem obstar qualquer ímpeto revolucionário, pois, como lembra LOSURDO (1998, p. 204), amparado nas lições de Haym, o individualismo se mostra como “a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a ‘revolução’”.

O que se verifica, portanto, é a existência de um discurso que pretende se arrogar a condição de norma de cunho universal, válido para toda humanidade, sem qualquer consideração relativa às diferenças culturais existentes entre os povos.

Mas os direitos humanos, norteados por uma visão associada ao Liberalismo8, encontram-se mais preocupados com a garantia da liberdade individual. Não é de somenos importância o fato de que a liberdade é colocada como o principal direito a ser tutelado pelo Estado mediante a não interferência nos negócios privados, devendo o Estado, apenas, assegurar a livre iniciativa de cada indivíduo.

Embora não se diga abertamente, mas o direito essencial a ser protegido segundo a visão do liberalismo é a propriedade privada. Desde a época em que prevalecia a doutrina do Direito Natural, a propriedade esteve no ápice dentre os direitos dignos de proteção. Kelsen (2005, p. 158), ao analisar esse contexto histórico, menciona que

(...), muitos dos seguidores da doutrina do Direito natural argumentam que um dos propósitos essenciais do Estado, isto é, do Direito positivo, é proteger o direito de propriedade estabelecido pelo Direito natural; e isso está além do poder do Estado, porque é contra a natureza abolir esse direito, que existe independentemente do Direito positivo.

Ainda segundo KELSEN (2005, p. 159), “não há direito absoluto à vida, mas há um direito absoluto à propriedade. A razão correta, implícita na natureza, ensina que a propriedade é ainda mais valiosa que a vida.”

A centralização do discurso de proteção dos direitos humanos na propriedade tem trazido dificuldades na universalização de tais direitos, uma vez que ele se torna monolítico e autoritário, pois não leva em consideração qualquer possibilidade de organização econômica de uma sociedade sem que haja a construção do sistema produtivo em torno da propriedade privada.

Os direitos humanos construídos a partir de um paradigma liberal fomentam o egoísmo, pois os interesses individuais acabam se sobrepondo aos anseios da coletividade. Quando se reclama, por exemplo, o atendimento do direito à saúde, à educação, à moradia, o indivíduo que o pleiteia não está interessado na universalização de tais direitos. O que ele pretende é o atendimento momentâneo e individualizado dos seus anseios sendo que estes, uma vez atendidos, satisfazem o pleito daquele indivíduo, o que lhe retira, na maioria das vezes, qualquer interesse em manifestar preocupação com a universalização do atendimento destes direitos em benefício da coletividade.

É por isso que, como lembra FEITOSA (2013, p. 93), “a luta pelos direitos humanos é a luta por sua concretização, é a luta para garantir os instrumentos de promoção da sociabilidade e não do isolamento e do egoísmo.”

Essa sistemática de promoção dos direitos humanos mediante promessas dirigidas ao indivíduo egoísta tem gerado um passivo impossível de ser atendido pelo Estado, tornando-os irreais (VILLEY, 2007, p. 5-6). Não existe orçamento estatal que possa garantir, por exemplo, tratamentos de “última geração” para todos os indivíduos que venham necessitar, independentemente da moléstia de que padeçam.

Com isso, ao prometer em excesso, levando em consideração os interesses particulares de cada indivíduo, os direitos humanos perdem concretude, tornando-se meras declarações voltadas a proteger quem já se encontra socialmente incluído ou ludibriar os excluídos, fazendo-os crer serem possuidores de direitos que estão bastante distantes de suas realidades.

O discurso se torna ainda mais vazio quando se considera o direito de propriedade, por exemplo. De nada vale garantir tal direito para quem se encontra sem acesso a ele. A proteção da propriedade dentro desse contexto, objetiva, apenas, tutelar quem já dispõe de propriedade privada, colocando-o a salvo de qualquer interferência de quem não possui acesso a tal direito.

Os Direitos Humanos norteados pelo liberalismo fomentam a proteção a posteriori deles, ou seja, os direitos são protegidos apenas em relação a quem já os possui, colocando-o a salvo da interferência dos despossuídos.

Dessa forma, quando se tutela o direito de propriedade, por exemplo, ele é assegurado aos proprietários, amortecendo nos despossuídos qualquer insurreição em face dele com a vazia promessa de que, no futuro, eles também poderão vir a se tornar proprietários e, por consequência, também terão a sua posição jurídica devidamente protegida pelo direito positivo.

Além disso, a presença do direito de propriedade dentro da Constituição cria no ordenamento jurídico uma limitação negativa para o legislador a qual, segundo a classificação de Bobbio, impossibilita que qualquer medida normativa venha a ser adotada de forma a violar o direito de quem já é proprietário (BOBBIO, 2014, p.63).

É preciso, portanto, levar em consideração que uma declaração de direitos, ainda que, na aparência, seja imbuída das mais respeitáveis intenções, pode trazer consigo o objetivo de assegurar situações jurídicas já consolidadas, colocando-as a salvo da interferência de qualquer indivíduo que por elas venham a ser prejudicados.

Adicionalmente, quando se declara a existência de direitos passíveis de proteção, cria-se a seguinte conjuntura: protege-se os interesses dos que já são detentores dos direitos declarados e, ao mesmo tempo, fomenta-se o anseio de acesso a tais direitos pelos despossuídos que, movidos pelo egoísmo fomentado pelo individualismo, passam a acreditar que, mediante seus próprios esforços, alcançarão no futuro, o acesso a tais benesses.

2.3. As declarações de direitos como técnicas de dominação

A técnica de declarar direitos, sem preocupação real com a sua efetividade, parece ser uma artimanha perfeita. Os direitos referidos são assegurados para quem já os possui e, em relação aos alijados das benesses, cria-se a ilusão de que poderão acessar a tais direitos no futuro e, uma vez tendo-os incorporado ao seu patrimônio jurídico, terão os seus interesses igualmente protegidos.

Em razão da baixa efetividade das declarações de Direitos Humanos, que oscilam no círculo de uma jurisprudência repetitiva e banalizada, os direitos que gozam de efetividade para os indivíduos no seu cotidiano continuam sendo uma espécie de concessão do grupo dominante (DOUZINAS, 2009, p. 21. e 36). Os processos revolucionários, que conduzem a substituição de uma classe dominante por outra trazem consigo o seu próprio ordenamento jurídico, legitimado a partir do modelo de produção normativa delineado pela nova ordem vigente9.

Logo, as declarações de direitos oriundas dos movimentos burgueses que se consolidaram no poder a partir de 1789, refletem os valores sociais e econômicos da burguesia, não sendo, por consequência, declarações de direitos válidas para todos os povos, em todas as culturas e sem limitação temporal.

Mas do que o produto de consciências humanas arrependidas em decorrência de atos de violência e massacres praticados, ensejando uma forma de ato penitencial, que busca resguardar uma tal suprema dignidade da pessoa humana, como defendeu COMPARATO (2013, p. 50), as declarações de Direitos Humanos buscam estruturar os valores considerados caros para o grupo dominante, servindo, por consequência, como norte para a estruturação do ordenamento jurídico.

É por isso que em todas as declarações de direitos produzidas após a consolidação da burguesia como classe dominante, a propriedade privada sempre esteve entre os direitos básicos a serem protegidos, ainda que dentro da sociedade existam grandes contingentes de desvalidos, sem qualquer acesso a tal direito ou a uma garantia real de que poderão usufruí-lo no futuro.

Com isso, as declarações de direitos são construídas com a finalidade de legitimar o ordenamento jurídico que protege o direito declarado para quem já o possui, sendo que, para os desamparados de tal direito, tais declarações servem apenas como uma promessa vazia, desprovida de qualquer efetividade.

2.4. Existem direitos humanos universais?

Nesse ponto, é preciso desmistificar a áurea de universalidade que os Direitos Humanos presentes nas declarações produzidas partir de 1789 buscam ostentar. Todas as declarações produzidas desde então representam apenas a consolidação textual de valores dominantes na sociedade ocidental que, travestidos de universais, buscam ser impostos aos demais povos, sem grandes considerações com as peculiaridades de cada cultura.

Os conflitos de valores que se assiste atualmente entre o Ocidente e o restante da humanidade não causam perplexidade quando se renuncia a uma visão defensora da existência de direitos válidos para todos os povos, tal como pretendido pelo universalismo. Por mais que consideremos os nossos valores como importantes e produtores de benesses para a humanidade, jamais poderemos impô-los a outros povos sem o estabelecimento de um diálogo intercultural sério, sem pretensões de dominação, ao contrário do que se assiste atualmente.

A cultura do outro, quando ostenta valores diferentes do Ocidente, é taxada de primitiva, merecendo, por consequência, ser combatida. Não se leva em consideração que os supostos Direitos Humanos declarados são produto de uma visão de mundo que não necessariamente é a melhor e, portanto, não pode excluir os valores presentes nas demais civilizações.

É preciso que seja disseminada a consciência de que os valores que se ocultam nas declarações de direitos não são universais, tal como se pretende difundir. Eles são mutáveis e, mesmo que estejam presentes em todas ou na maioria das culturas, a forma de aplicação ou mesmo de positivação nos diversos ordenamentos jurídicos é diferente e deve ser respeitada.

As divergências surgidas quando da construção do texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 bem demonstra que os valores e direitos nela consagrados não são universais. A proteção da propriedade presente neste documento foi objeto de repulsa dos países integrantes do então bloco socialista, que se recusaram a externar expressa anuência ao seu texto, optando pela abstenção10. Isso significa que esses países se encontravam na contramão da defesa dos direitos humanos? A resposta para essa indagação talvez não seja tão simples como não raras vezes se pretende fazer crer.

Talvez o núcleo da resposta deva ser buscado na constatação de que os direitos humanos presentes no texto da Declaração não eram tão universais como se pretendia. É sintomático o fato de que o enfoque primordial do texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 se encontrava centrado na proteção das liberdades individuais, valores bastante caros para a burguesia e o sistema econômico-filosófico que melhor a representa (o liberalismo). Já os direitos voltados à proteção social do indivíduo não mereceram a mesma preocupação, somente tendo sido objeto de pactos mais específicos na década 6011, quando já estava claro o esgotamento do Estado Liberal e a necessidade de concessão de direitos em favor das classes trabalhadoras, formando-se o que veio a ser conhecido como Estado de Bem-estar Social.

O Estado de Bem-estar Social nada mais foi do que uma concessão de direitos pela classe econômica e politicamente dominante no Ocidente. É falsa a ideia de que representou um novo modelo de Estado que substituiu o Estado Liberal. O que se verificou, na verdade, foi uma crescente insatisfação das classes operárias com as condições de exclusão e exploração a que eram relegadas, obrigando a classe dominante a fazer concessões, como forma de manutenção do statu quo.

Não houve, portanto, o surgimento de uma conjuntura político-social que tornou o ambiente fértil à proliferação de direitos humanos. À medida que se declarava direitos, como forma de amortecimento das insatisfações sociais, a violação destes mesmos direitos declarados persistia ou até se intensificava, a ponto de o Século dos Direitos (Século XX), ter sido também aquele no qual se perpetrou as suas mais cruéis violações (DOUZINAS, 2009, p. 21).

Dessa forma, quando as declarações de direitos, de eficácia praticamente nula, não se mostravam mais suficientes para amortecer os conflitos sociais e as medidas repressivas se exauriam sem maiores êxitos, então as classes dominantes passaram a fazer maiores concessões em favor dos despossuídos dos direitos declarados, sendo as benesses proporcionais aos níveis de organização e conscientização das classes trabalhadoras.

No entanto, não se pode jamais dizer que essa forma de tratamento dos conflitos sociais é um privilégio dos países capitalistas. No bloco das nações que formaram o eixo do socialismo real, a sistemática de tratamento também foi similar. À medida que se disseminava a ideia de que os negócios do Estado eram geridos em nome do povo, estruturava-se uma elite dominante, formada por burocratas membros do partido único que, apropriando-se do Estado, dele passaram a se utilizar em benefício próprio, em detrimento do povo, a quem coube, apenas, o papel de sustentar a estrutura do Estado e essa nova classe dominante, sendo os dissidentes, considerados como “traidores”, submetidos às mais cruéis punições e formas de aniquilamento12.

Na verdade, a técnica de declarar direitos, sem uma preocupação consistente com a sua efetividade é um mecanismo de dominação ideológica que vem sendo utilizado de forma bastante exitosa ao longo da história. No entanto, deve-se levar em consideração que o Direito é muito mais do que uma mera declaração de boas intenções - consoante se verifica da maioria dos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos ou mesmo nos textos constitucionais - quando abordam os chamados direitos sociais. O Direito, para ser eficaz, precisa ser acobertado por mecanismos de coerção, capazes de impor a vontade da lei aos que contra ela se insurgem13.

Logo, pode-se concluir que direito sem capacidade de concretização é promessa vazia, destinado a alienar as classes subordinadas pelo sistema político-econômico levando-as a pensar serem detentoras de determinados direitos, de concretização difícil ou inviável em decorrência de mecanismos presentes na doutrina ou jurisprudência dos tribunais, tal como acontece com determinadas construções teóricas como a reserva do possível em confronto com a garantia de um mínimo existencial, a existência de normas de eficácia limitada ou normas de eficácia contida e outros instrumentos ideológicos cuja finalidade é mascarar a completa ineficácia de uma norma declarada14.


3. O DIREITO E O CUMPRIMENTO DO SEU PAPEL SOCIAL

A essa altura, impõe-se uma indagação: o Direito vem cumprido o seu papel na atualidade? A resposta é sim, dentro da proposta de efetivação do próprio Direito, visto como norma dotada da possibilidade de ser concretizada mediante coerção oriunda do Estado.

Não se pode dizer que o Direito não goza de eficácia, quando as declarações de Direitos Humanos, por exemplo, bem como as declarações de direitos presentes nos diversos textos constitucionais, não se encontram desempenhando a contento o seu papel. Isto é, na verdade, um engano do observador. Esses direitos presentes em tais documentos, não são direitos reais, são meras promessas voltadas ao amortecimento de conflitos na sociedade, cujos membros pensam possuir determinadas garantias, quando na verdade são destinatários de meras promessas, cuja efetividade é praticamente inexistente.

Mencionar a existência de direitos, como saúde, moradia e alimentação, para quem se encontra doente e sem assistência, desabrigado ou faminto chega a constituir uma violência moral contra o indivíduo. No entanto, essa postura é adotada diariamente pelos Estados. E isso não é feito porque o modelo de Estado Capitalista é mais cruel do que outros que já existiram no passado. Na verdade, o discurso em forma de promessa dos dominantes em relação aos subordinados na escala social sempre foi uma técnica utilizada nos mais diversos momentos históricos.

Nas sociedades escravagistas da antiguidade, por exemplo, a condição de escravo era justificada pela existência de uma determinada ordem cósmica que definia a posição dos homens na sociedade. Para isso, justificações filosóficas ou religiosas eram utilizadas, de forma que, não obstante a grande superioridade numérica de subalternos em relação a quantidade de dominantes (o que viabilizaria o êxito de possíveis revoltas), a quantidade delas em tais sociedades foram bastante diminutas e geralmente limitadas a uma pequena quantidade dos explorados que se insurgiram contra as condições de vida a que eram submetidos15.

No Feudalismo, por sua vez, com a divisão social em estamentos, a ordem das coisas era mantida com base no forte discurso religioso que predominava na sociedade, exercendo a Igreja Católica a função de amortecedora de eventuais conflitos que pudessem surgir.16

Com a rejeição crescente da posição social do homem definida segundo uma ordem cósmica ou divina, as sociedades capitalistas atuais buscaram encontrar outros mecanismos de dominação discursiva voltados a assegurar a estabilidade social num contexto de fortes diferenças econômicas entre os indivíduos. Esse papel vem sendo legado às declarações de direitos, que muito prometem e pouco concretizam em favor dos menos favorecidos.

A dimensão concretizadora dos direitos, quer eles estejam presentes em documentos internacionais de direitos humanos ou nos próprios textos constitucionais, depende da capacidade reivindicatória dos mais diversos grupos sociais, pois os que se encontram no papel de dominantes não fazem concessões sem que sejam compelidos a isso.

Dessa forma, o aspecto de promessas vazias que ostentam os direitos declarados persistirá, a não ser que os integrantes do topo da pirâmide sejam forçados a fazer concessões em nome da manutenção da organização social que os beneficia.

No entanto, a capacidade de reivindicação dos explorados pelo sistema político-econômico será sempre proporcional a conscientização do papel que eles ocupam na sociedade. Essa tomada de consciência precisa ser acompanhada pelo interesse de associação com os demais indivíduos que estão na mesma situação, viabilizando o surgimento de grupos de reivindicação que, à medida que se tornam maiores, podem lograr êxito em alterar a própria forma de organização da sociedade, tal como aconteceu, por exemplo, na Revolução Francesa de 1789 e na Revolução Russa de 1917.

Portanto, é necessário fazer a diferenciação entre o que é Direito efetivo, que se impõe coercitivamente a todos os seus destinatários, e o que é direito ideológico (se é que assim o podemos chamar), que representa na sociedade o papel de meras promessas, cuja concretização sempre fica relegada a segundo plano, albergando-se em justificativas, por exemplo, como a inexistência de recursos financeiros disponíveis para que o direito prometido possa ser usufruído pelos indivíduos dele supostamente destinatários.

Esse “direito” em forma de promessa, presente nos mais diversos documentos internacionais de Direitos Humanos, bem como nas declarações de direitos de muitos textos constitucionais dos países do Ocidente é mero discurso, sendo necessário, para que alcance alguma efetividade, que grupos de pressão se formem dentro da sociedade, com a finalidade de compelir os integrantes dos estratos mais favorecidos da sociedade a fazerem concessões, pois, do contrário, eles continuarão como promessas vazias e, sendo normas sem capacidade de imposição aos destinatários mediante coerção, direitos não podem ser considerados, pois lhes faltará a indispensável eficácia.


4. OS SINAIS DE ESGOTAMENTO DAS PROMESSAS DE DIREITOS COMO FATOR DE CONTENÇÃO DOS CONFLITOS NUMA SOCIEDADE DESIGUAL

Iniciamos estas reflexões com uma breve menção aos episódios ocorridos no início de janeiro de 2015 envolvendo os irmãos Cherif e Said Kouachi e Amedy Coulibaly, cidadãos franceses que supostamente deveriam se encontrar integrados ao modelo de sociedade ocidental mas que, ao contrário disso, contra ela se insurgiram e praticaram atos terroristas em suposta defesa da religião muçulmana e do seu profeta Maomé.

A indagação que se coloca é o que teria motivado pessoas supostamente inseridas na sociedade francesa atual, construída sob o famoso lema da Revolução Francesa de 1789, a se insurgirem contra o seu país?

Embora pudéssemos dirigir nosso enfoque para questões relativas a diferenças entre culturas, conflitos entre religiões e outros temas similares, preferimos considerar a situação econômica a que os descendentes de imigrantes se encontram expostos na França como uma explicação plausível.

Quando se avalia esse contexto econômico, chega-se à conclusão de que o direito à liberdade de exercício, por exemplo, de qualquer atividade econômica capaz de assegurar uma vida digna ao indivíduo, a igualdade de tratamento pelo Estado de todos cidadãos e a fraternidade que deveria existir no seio da sociedade, de forma que os menos favorecidos sejam prontamente assistidos em suas necessidades, constituem uma quimera, uma falácia, cujo amortecimento ideológico gerado pelas promessas de direitos, em especial em virtude da crise econômica vivenciada pela Europa na atualidade, encontra-se dando sinais exaurimento17.

Num contexto de convulsão social, é muito difícil dizer para pessoas famintas e desprovidas de atendimento às suas necessidades básicas, que elas possuem determinados direitos, cuja eficácia elas não enxergam em suas vidas. O papel do “direito” ideológico no amortecimento de conflitos por meio de promessas sem real concretude, é limitado. Quando as pessoas descobrem o quanto estão sendo enganadas por esse discurso, a semente da revolta, da rebelião, do anseio niilista de extirpação de todas as estruturas sociais existentes, começa a surgir.

Talvez sejam os efeitos do despertar da população do engodo ideológico produzido por um direito inexistente que supostamente asseguraria a felicidade de todos os indivíduos, que gerou em BURKE (2014) a perplexidade que ele externou quando se deparou com os rumos tomados pela Revolução Francesa de 1789.

Naquele momento histórico, a massa dos excluídos pode constatar que o reino existente, supostamente constituído para assegurar o bem-estar e a felicidade de todos, conduzido pela figura paternal de um rei, cujo único interesse seria servir ao seu povo, era uma falácia. O que na verdade existia era uma estrutura de opressão focada em assegurar os privilégios de uma minoria que era beneficiária do trabalho e da riqueza gerada pelo trabalho da maior parte da população.

Nesse despertar, não adianta tentar levar o povo à crença de que é possível a modificação dos rumos do Estado, corrigindo as suas distorções de forma servil e reverente, tal como BURKE (2014, p. 114-115) defendeu18. Quando a semente da revolta encontra terreno fértil, a explosão do magma da indignação popular é incontrolável.

É importante, por consequência, que não se atribua aos eventos ocorridos na França em janeiro de 2015 o perfil apenas de um suposto “choque de civilizações”, tal como pretendeu HUNTINGTON (1997). A capacidade de transmissão de informações na atualidade tem levado cada vez mais pessoas a enxergar o quadro de exploração e injustiça social a que se encontram relegadas, o que pode ser a semente para que revoltas, capazes de desconstruir as estruturas de Estados, disseminem-se por todo o mundo, independente do sistema político-econômico socialmente aplicado.

Por consequência, é fundamental que se leve em consideração que esse papel do “direito” que aqui chamamos de ideológico, desprovido da capacidade de ser efetivamente concretizado - uma vez que a sua finalidade é apenas prometer benesses como forma de amortecimento de insurreições entre a população alijada da maior parte dos benefícios do sistema - aparenta se encontrar em estágio de esgotamento, assim como se exauriram, no passado, por exemplo, o discurso de justificação da ordem social a partir da determinação divina.

Logo, se as concessões da classe dominante não se ampliarem, talvez o quadro de convulsão social que o mundo atualmente vivencia conduza à desconstrução do modelo econômico vigente, restando aos beneficiários dele, quando e se isso vier a ocorrer, apenas prantear sobre as suas cinzas, tal como BURKE (2014), que via o seu mundo monarquista e estruturado sob privilégios de nobres bem-nascidos consumido pelas chamas da Revolução Francesa.


CONCLUSÃO

Os Direitos Humanos, tal como os conhecemos na atualidade, não surgiram nos últimos cem ou duzentos anos, como muitas vezes se defende. Ao contrário, eles possuem as suas raízes na antiga doutrina do Direito Natural, que não desapareceu, porém sofreu um processo de metamorfose e adaptação, agregando-se conceitualmente à doutrina moderna dos Direitos Humanos.

Ao se analisar as diversas declarações de direitos, quer se façam presentes em documentos internacionais, quer estejam em textos constitucionais internos, verifica-se que elas, ao agregarem os chamados Direitos Humanos, fazem-no sem uma preocupação maior com a efetividade, constituindo, portanto, apenas um discurso de cunho ideológico, voltado a transmitir para os excluídos do usufrutos de tais benesses apenas a mensagem de que, uma vez eles vindo a serem titulares de fato dos direitos e garantias presentes em tais declarações, receberão a devida proteção do sistema jurídico. Enquanto isso não ocorre, devem, reverentemente, respeitar o exercício do direito garantido por quem já o incorporou ao seu patrimônio jurídico.

Verifica-se, portanto, que da forma como a defesa dos Direitos Humanos se encontra concebida, em especial sob as luzes do Liberalismo, tem-se uma proteção de direitos a posteriori, uma vez que, somente após se tornar titular do direito é que o indivíduo passa a ter uma real proteção dele, haja vista que, no estágio anterior, ele é apenas detentor de promessas.

Essa faceta individualista presente nas diversas declarações de direitos tem como escopo basilar a defesa do direito de propriedade, assegurado como direito de primeira grandeza nos mais importantes documentos jurídicos ocidentais produzidos após 1789.

Dessa forma, o direito como discurso, presente nas diversas “declarações”, tem a finalidade de promover o amortecimento de conflitos sociais, uma vez que por meio delas se legitima a atuação do Estado no exercício da proteção da minoria que já é titular do direito declarado, ao mesmo tempo em que se produz uma contenção ideológica da maioria dos excluídos, que anseia se tornar futuramente detentores de direitos similares, oportunidade em que também poderão contar com a proteção do sistema jurídico.

No entanto, os diversos conflitos que se assiste atualmente na sociedade, leva-nos a concluir que esse papel de controle ideológico exercido por essas declarações de direitos está adentrando numa fase de exaurimento, pois com a difusão rápida de informações, um número crescente de indivíduos percebe que a forma de organização do sistema inviabiliza que eles, de fato, venham a ser titulares dos direitos garantidos, o que leva a convulsões sociais que despontam sob as mais diversas formas, sendo uma das mais letais na atualidade aquela que se reveste de extremismo religioso, tal como se assistiu no início de 2015 na França.

Com isso, percebe-se que a elite dominante necessitará fazer concessões mais amplas de direitos como forma de se autopreservar, pois, do contrário, um ambiente de revoltas violentas poderá se instalar, conduzindo a uma implosão do modelo atual de organização político-econômica em um futuro que pode estar próximo.


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Notas

2 Estes fatos foram amplamente noticiados na imprensa no início do ano de 2015. No entanto, os jornalistas CALLIMACHI e YARDLEY (2015), ao noticiarem os acontecimentos, buscam traçar um perfil dos envolvidos nos atentados, buscando vincular o ocorrido apenas a um processo de radicalização religiosa dos autores.

3 Vincular a rejeição dos judeus pelos árabes apenas ao conflito que historicamente vem se desenrolando na região da Palestina talvez não seja a conclusão mais adequada. Na verdade, o antissemitismo há muito tempo se encontra presente na cultura ocidental, o que vem ensejando ondas periódicas de perseguições aos judeus desde os primórdios da Era Cristã.

4 Interessante quadro do momento histórico, bem como das ideias que nortearam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, é traçado por COMPARATO (2010, p. 154-179). De acordo com ele, a princípio o que se buscou foi a construção de uma sociedade livre da divisão por estamentos, sem a existência de privilégios com base no nascimento. Assim, mais do que a liberdade individual, segundo ele o valor almejado em 1789 seria a igualdade entre os homens.

5 ODORISSI e LEAL (2014, p. 17), por exemplo, defende que “garantir os direitos sociais dos cidadãos é assegurar a dignidade humana, constituindo uma meta permanente para o Estado”. SARLET (2012, p. 93-111), também defende que a dignidade da pessoa humana desempenha um papel preponderante entre os princípios fundamentais de um texto constitucional. No entanto, parece-nos que o problema do conteúdo do suposto princípio da dignidade da pessoa humana permanece insolúvel, uma vez que cada autor a ele atribui a definição e conteúdo que lhe parece mais adequado. Assim, entendemos que dignidade da pessoa humana, apesar de toda áurea que reveste o termo na atualidade, não passa de um conceito vazio, que se presta a utilização como argumento de autoridade, sendo-lhe enxertado conteúdo e definições ao gosto do usuário.

6 O problema da alimentação também foi solucionado pelo legislador brasileiro mediante uma alteração constitucional: a Emenda Constitucional nº 64, de 04 de fevereiro de 2010, fez constar a alimentação como integrante do rol dos direitos sociais. Parece um subterfúgio destinado a eximir o Estado Brasileiro de adotar políticas públicas sérias voltadas a solucionar o problema da fome entre os brasileiros. Alterar o texto constitucional é o caminho que o nosso legislador encontrou para resolver a questão, embora as pessoas continuem famintas, pois um direito social etéreo, pelo simples fato de se fazer presente na Constituição Federal, não sacia a fome de ninguém.

7 Esse papel de resistência que o Direito Natural já ostentou ou de fundamento superior que sustenta o próprio ordenamento positivado, segundo a maior parte da doutrina, é inspirado na tragédia grega conhecida como Antígona, escrita por Sófocles. Segundo a narrativa, a personagem Antígona decidiu conceder honras fúnebres a Polinices, não obstante a existência de uma norma proibitiva editada por Creonte, o soberano local. Para respaldar seu ato, Antígona se diz movida pela ideia de que o direito de conceder aos mortos um funeral digno é superior a qualquer norma proibitiva humana, que, por consequência, não tem qualquer validade perante essa norma eterna e superior, legada pelos próprios deuses.

8 LOSURDO (2006, p. 13), define o liberalismo como “a tradição de pensamento que situa no centro de suas preocupações a liberdade do indivíduo, desconsiderada ou pisoteada pelas filosofias organicistas de diferente orientação”.

9 Como lembra KELSEN (1998, p. 5-10), não é qualquer determinação de que um indivíduo deve proceder de determinada forma que pode ser considerada uma norma jurídica. Para que o enunciado normativo constitua um dever ser, com natureza impositiva, é necessário que a ordem esteja legitimada por uma norma fundamentada em outra superior que, em último caso, obterá sustentação no que ele denominou de norma fundamental ou Grundnorm. Pode-se dizer que essa norma fundamental, mais do que conteúdo jurídico, é dotada de conteúdo político, que lhe foi transferido pela conjuntura social que moldou o modelo de Estado e, por consequência, norteou a formação do ordenamento jurídico em vigor.

10 Comparato (2010, p. 237-253), ao traçar o histórico do ambiente de construção do documento internacional que ficou conhecido como Declaração Universal dos Direitos Humanos, informa que a intenção inicial era produzir um documento vinculante, capaz de obrigar todos os povos a observarem os seus preceitos. No entanto, em decorrência das acesas divergências existentes entre os representantes dos países participantes de sua elaboração, optou-se pela edição, apenas, de uma Recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas aos seus membros. O mesmo autor ainda noticia que o núcleo central da Declaração foi extraído do discurso do presidente americano Franklin D. Roosevelt, proferido em 06 de janeiro de 1941, durante o qual ele sustentou que as quatro liberdades a serem defendidas seriam a liberdade de palavra, de crença, bem como de convivência a salvo do temor e da necessidade. Isso demonstra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar de sua ambição universalista, encontra-se fortemente inspirada por valores ocidentais, em especial dos vencedores da Segunda Guerra Mundial

11 Trata-se do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966.

12 Um minucioso quadro da forma como o chamado socialismo real se estabeleceu e foi gerido na extinta União Soviética é apresentado por REIS FILHO (2003, p. 77-134). Na obra, o autor mostra as dificuldades enfrentadas pelo povo russo, em especial os camponeses, em decorrência do modelo de exploração coletiva da terra e da fixação de prioridades pelo Estado, voltadas, em especial durantes o terceiro, quarto e quintos planos quinquenais para a assistência às chamadas indústria de base, como a siderurgia, a mineração e a petrolífera, deixando a agricultura relegada a segundo plano. Paralelamente a isso, o autor apresenta a forma como os indivíduos considerados perigosos pelo sistema eram tratados, destacando, ainda, a punição de todo o grupo familiar, cidade ou vila a que pertencia o suposto delinquente, prática esta do antigo regime Czarista, que foi ressuscitada na ex-União Soviética, em especial a partir dos anos 30.

13 Com defende HART (2009, p. 33), “(...), onde quer que exista um sistema jurídico, deve haver algumas pessoas ou um grupo de pessoas que proferem ordens de caráter geral, apoiadas por ameaças, que são geralmente obedecidas, e deve haver também a convicção geral de que essas ameaças podem ser efetivadas em caso de desobediência”.

14 Para uma discussão aprofundada em torno da temática, em especial a respeito da forma como os conceitos de mínimo existencial e reserva do possível são utilizados quando se avalia a concretização dos direitos sociais, apesar da existência de inúmeras obras a respeito do tema, recomendamos OLSEN (2008) e a obra coletiva organizada e coordenada por SARLET e TIMM (2010).

15 A respeito da escravidão nas sociedades antigas, em especial em Roma, consultar JOLY (2004).

16 Cf. PEDRERO-SÁNCHEZ (2000).

17 Segundo RIBEIRO (2015, p. 29), “Os números dão uma ideia do fosso social que existe entre franco-franceses e famílias de imigrantes. Enquanto o desemprego na França ronda os 10%, entre os imigrantes o número sobe para 14%, segundo dados oficiais de 2014. Os de ascendência africana registram as maiores taxas de desemprego: 22%. Entre os jovens que acabam de terminar os estudos, a discrepância é ainda maior. Entre os franceses, 11% não conseguem trabalho nos cinco primeiros anos após a universidade, segundo um estudo promovido pelo governo em 2012.Entre filhos e netos de imigrantes, o percentual chega a 34%. A formação acadêmica é um dos maiores problemas. Três em cada quatro franceses conseguem aprovação no BAC, uma espécie de ENEM francês que valida o diploma do ensino médio – mas apenas metade dos alunos de origem africana consegue passar. Entre os moradores da região de Paris com mais de 15 anos, 16% não tem nenhum diploma. Entre os imigrantes, são 37% nessa situação”.

18 “Para evitar, portanto, os males da inconstância e da versatilidade, mil vezes piores que os da obstinação e do mais cego preconceito, os ingleses consagraram o Estado para que ninguém se aproximasse a fim de examinar-lhe os defeitos e as corrupções sem a circunspeção necessária; para que jamais se imaginasse começar sua reforma por sua subversão; para que se aproxime das falhas do Estado como quem se aproxima das feridas de um pai, com pia reverência e trêmula solicitude.”


Abstract: This paper aims to analyze, as from the terrorist attacks that occurred in early 2015 in France, as a right settled in declarations with little reflection in the daily life of a large part of the population excluded from the enjoyment of social rights, it may not be able to perpetuate itself. The research problem is to investigate the relationship between the terrorist attacks in France in early 2015 and the crisis of legitimation of the speech of universal human rights that are not fulfilled for a large part of the population. As a hypothesis, it is considered that a framework of rights promised and never fully fulfilled, could represent the fuel capable of imploding the western legal systems of the post-war, if a scenario of concessions similar to that verified during the apogee of the Welfare State in Europe, is not signaled by the dominant classes to the growing mass of the excluded. The paper was elaborated guided by the inductive method of approach and the indirect documentation was the research technique used, based on the referenced bibliography. It is concluded that acts of violence such as those discussed in the paper are rooted in a framework of social dissatisfaction with promised rights that have never been fulfilled, which imposes on the dominants classes a bigger concession of benefits in favor of the less favored, under penalty of implosion of the socioeconomic system as we know it.

Key words: Declarations. Human Rights. Speech. Domination.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques de. As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7587, 9 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88179. Acesso em: 17 maio 2024.