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A vedação da sanção disciplinar de prisão nas instituições militares

uma análise crítica à Lei 13.967/19

A vedação da sanção disciplinar de prisão nas instituições militares: uma análise crítica à Lei 13.967/19

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Com o advento da Lei 13.967/19, o processo administrativo aplicado às polícias militares e corpos de bombeiros militares passa a ganhar nova roupagem. Discute-se a suposta inconstitucionalidade da vedação do instituto da prisão disciplinar.

RESUMO: Com o advento da Lei 13.967/19 o processo administrativo disciplinar militar aplicado às Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados passa a ganhar nova roupagem, momento em que se passa a afirmar a necessária observância de princípios processuais já consagrados na Constituição brasileira, como, por exemplo, a legalidade, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa. Ocorre que esta mesma legislação passou a vedar a aplicação de sanção disciplinar de prisão aos militares estaduais quando do cometimento de transgressão militar, situação esta que vai de encontro à possibilidade constitucional de aplicação desta espécie de sanção disciplinar. Partindo desta provocação o presente estudo exploratório, de caráter qualitativo, com abordagem predominantemente dedutiva, busca discutir a possível (in)constitucionalidade desta lei infraconstitucional que altera o Decreto-Lei 667/69 e ainda, seus reflexos no campo do direito administrativo militar.

PALAVRAS-CHAVE: Administrativo Militar. Sanção Disciplinar. Prisão disciplinar.

SUMÁRIO: 1 Introdução - 2 A construção normativa da possibilidade de aplicação da prisão disciplinar como sanção administrativa militar - 3 Uma análise da possível (In)constitucionalidade da Lei 13.967/19 – 4 A prisão disciplinar na Constituição brasileira: norma constitucional inconstitucional? - 5 Considerações Finais.


1 INTRODUÇÃO:

No dia 26 de dezembro de 2019, foi sancionada a Lei 13.967/19, que alterou o art. 18 do Decreto-Lei 667/69, aplicando às polícias militares e aos corpos de bombeiros militares um Código de Ética e Disciplina, aprovado por Lei, e inserindo, como um dos seus princípios, a vedação de medida privativa de liberdade.

Ocorre que o Decreto-Lei 667/69, norma infraconstitucional que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, não trazia consigo o instituto da sanção disciplinar de prisão, ou qualquer outra, de caráter restritivo de liberdade. Na verdade, o artigo 18 do Decreto 667/69 ora reformulado, apenas disciplinava a existência de um regulamento disciplinar para os órgãos militares estaduais, à semelhança do Exército brasileiro, e adaptado às condições especiais de cada corporação.

Dentre as justificativas para a vedação de aplicação de sanção disciplinar restritiva de liberdade aos militares estaduais, nos termos do Projeto de Lei 7.645/14, está a afirmativa de que “As Policiais Militares e Corpos de Bombeiros Militares por sua vez, atuam diuturnamente na prevenção da violência e combate à criminalidade. Na preservação da ordem e na segurança pública. Atividade eminentemente civil, de proteção à vida, ao patrimônio e garantias individuais de cidadania e liberdade” (destaque nosso).

Não obstante a justificativa que recai sobre o argumento de que a atividade de polícia ostensiva se traduz em atividade eminentemente civil, e que também por este motivo, ao contrário da atividade exercida pelo Exército brasileiro e demais Forças Militares federais, deve-se vedar a aplicação de sanção disciplinar restritiva de liberdade, necessário se faz questionar a possibilidade de se proibir ou extinguir tal sanção, por meio de norma infraconstitucional, em especial quando este tipo de sanção está autorizada pela Constituição Federal Brasileira de 1988, especificamente em ser Art. 5º, inciso LXI, que asseverá que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.(destaque nosso).

A previsão da espécie de sanção disciplinar de prisão nos casos de transgressão disciplinar não emerge da vontade do legislador infraconstitucional. Como visto, a previsão deste instituto sancionador aos militares, sejam eles federais ou estaduais, se traduz em norma de direito fundamental, expressa claramente em texto constitucional.

Neste contexto, o problema que se evidencia é a possibilidade de o legislador infraconstitucional propor norma que vede a aplicação de sanção disciplinar aos militares estaduais, em dissintonia à previsão normativa constitucional que autoriza a aplicação desta espécie de sanção disciplinar.

Assim, o presente trabalho apresenta como problema a possibilidade do legislador infraconstitucional vedar a aplicação de sanção disciplinar autorizada constitucionalmente no caso de transgressões militares, e, neste caso, alcançando apenas os militares estaduais, fazendo emergir possível inconstitucionalidade.

Trata-se de um estudo exploratório, de caráter qualitativo, com abordagem predominantemente dedutiva, com o estudo de leis que parametrizam a aplicação o direito administrativo militar, bem como, de decisões judiciais que abordaram o tema examinando casos concretos. Assim, para se atingir os objetivos da pesquisa, o iter de construção se dará com a compreensão da construção normativa no território brasileiro de aplicação da sanção disciplinar de prisão aos militares, tanto federais como estaduais, pautada na doutrina que discute a (in)constitucionalidade da Lei 13.967/19, bem como, da possível inconstitucionalidade da sanção constitucional disciplinar de cerceamento de liberdade aos militares.

Objetivando responder às indagações apresentadas, o referencial teórico do trabalho é o da dignidade da pessoa humana plasmada na igualdade enquanto garantia de tratamento com igual respeito e consideração para todos.


2 A CONSTRUÇÃO NORMATIVA DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA PRISÃO DISCIPLINAR COMO SANÇÃO ADMINISTRATIVA MILITAR.

A permissão de se executar a prisão de militares diante do cometimento de transgressão disciplinar ou cometimento de crime propriamente militar, regra de exceção àquela que é garantida aos civis, os quais somente poderão ter sua liberdade cerceada sendo encontrados em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, esta assentada na vigente Carta Magna brasileira de 1988, especificamente inserida em norma de direito fundamental.

A constitucionalização da possibilidade de prisão disciplinar a militares como exceção à regra de cerceamento de liberdade diante do cometimento de transgressões disciplinares não está adstrita apenas ao Estado Brasileiro.

O Estado Português fez prever, em sua Constituição da República, vigente desde 1976, especificamente no artigo 27º, alínea ‘d’, a possibilidade de “prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”. Também a Constituição Espanhola em seu artigo 25.3 impôs a regra de que “A administração civil não poderá impor sanções que, directa ou subsidiariamente, impliquem privação de liberdad”, deixando assim aberta a possibilidade de que a administração militar possa aplicar tal instituto.

A historicidade constitucional brasileira demonstra que o cerceamento de liberdade como sanção aplicada aos militares, diante do cometimento de certas infrações disciplinares, é realidade, afinal, com exceção da Constituição da República de 1891, todas as demais abordaram o tema ao regulamentarem a impossibilidade de manejo da ação constitucional de Habeas Corpus nos casos de transgressão disciplinar1, reconhecendo, assim, tal espécie de sanção em âmbito dos processos disciplinares de caserna.

Aos militares das forças federais (Exército, Marinha e Aeronáutica) tem-se nos termos de seu Estatuto, que é regulamentado por Lei apreciada pelo Congresso desde o ano de 19712, a oportunidade de que seja a disciplina e a hierarquia militar, as contravenções ou transgressões disciplinares normatizadas por regulamentos disciplinares destas Forças Armadas, que passam a especificar e classificar as contravenções ou transgressões disciplinares, estabelecendo as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, sendo o Decreto n. 4.346/023 norma vigente a regular o comportamento disciplinar do Exército Brasileiro – RDE (R-4) e trazer em seu texto a sanção disciplinar de cerceamento de liberdade (prisão e detenção).

No tocante aos militares pertencentes às instituições de Polícia e Bombeiros dos Estados e Distrito Federal, excetuando também a primeira Constituição Republicana de 1891, todas as demais Constituições reconheceram a condição das Instituições Militares Estaduais como forças auxiliares e reservas do Exército Brasileiro, sendo a Constituição de 1934 a primeira a assim considerar, provocando o mover do legislador infraconstitucional a legislar, no ano de 1936, por meio da Lei n. 192, a reorganização, pelos Estados e pela União, das Polícias Militares e de sua condição de forças reserva do Exército Brasileiro.

Passado o tempo, a legislação que aborda esta reorganização das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e Distrito Federal foi novamente modificada pelo Decreto-Lei n. 317/67, que ao avançar na temática Justiça e Disciplina passou asseverar que as Polícias Militares seriam regidas por Regulamento Disciplinar à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército, situação esta que perdurou com o Decreto-Lei 667/69 nos termos de seu art. 18, artigo este que no ano de 2019 é plenamente alterado com a sanção da Lei 13.967/19.

Desta presente alteração o que se verifica é a determinação do legislador federal, para os Estados e Distrito Federal, para que se abstenham de aplicar sanção disciplinar restritiva de liberdade para instituições militares estaduais (policiais e bombeiros militares), todavia, em total dissintonia ao que está orientado pela Constituição brasileira de 1988, que, claramente, oportuniza a aplicação de tal preceito administrativo disciplinar inscrito no rol dos direitos fundamentais, previsto em seu art. 5º, inciso LXI.

Esta modificação legislativa se assenta na oferta de aplicação de sanções disciplinares outras, que não a prisão disciplinar ou medida privativa de liberdade para os casos de transgressão disciplinar cometidas por militares estaduais, adotando inclusive um Código de Ética e Disciplina como norma reguladora do processo administrativo disciplinar aprovado por lei dos Estados e Distrito Federal4, postura esta que dá efetividade à Recomendação n. 12/2012 do Conselho Nacional de Segurança Pública – CONASP o qual orientava, dentre outras ações, a vedação de pena restritiva e privativa de liberdade para punições de faltas disciplinares nas instituições militares dos Estados.

Apesar do clamor da classe de militares estaduais, com toda sua representação e força política agora evidenciada, é imperioso considerar o risco de existência de uma pluralidade de éticas para um mesmo tipo de servidor militar, que passa a ser estabelecida a considerar a compreensão de cada ente federativo de sua instituição policial ou bombeiro militar, e não menos importante, de um tratamento discrepante, desigual e heterogêneo, frente a oportunidade de sancionar administrativamente militares das forças armadas com prisão disciplinar e, quando militares estaduais, esta impossibilidade, fazendo surgir, talvez, duas espécies de militares, com éticas distintas e regulamentos vários.

Enfrentando esta desigualdade de tratamento entre militares federais e estaduais, tomando a situação do afastamento da aplicação de uma sanção disciplinar em sede de processo administrativo disciplinar, quando da ocorrência de determinada transgressão disciplinar, o que se inaugura é nova celeuma de ordem constitucional, qual seja: flagrante descumprimento de um direito fundamental à isonomia, afinal, se não se aplica a sanção restritiva de liberdade a militares estaduais, deixar também de não aplicá-la a militares federais é algo que não se sustenta.

A manutenção do presente status, inaugurado com o advento da Lei 13.967/19, é a de manifesta existência de duas espécies de militares, que os qualifica pela sua atividade principal, os de polícia e os de guerra, que foi apresentado no argumento para sustentar o projeto modificador do Decreto Lei 667/69, e quem sabe, de construção política no Estado brasileiro para efetivar a desnaturação da condição militar das forças policiais e bombeiros militares estaduais, ou ainda, de uma espécie de militar estadual que não carregue consigo os mesmos princípios norteadores da condição de Militar, condição esta que vai além da atividade que prestam, mas sim, da postura ética comportamental que destes cidadãos se deve exigir.

Na defesa desta inaplicabilidade da sanção de prisão disciplinar sob o viés da diferença de atividades prestadas pelos órgãos militares dos Estados e Forças Armadas, esta Eliezer Martins5, ao afirmar que a pena privativa de liberdade como espécie de sanção disciplinar, afina-se com o militarismo das forças armadas, que segue a lógica da guera e do enfrentamento do inimigo associado à realidade das tropas aquarteladas, realidade diversa dos profissionais de segurança pública, cuja a lógica não é a do enfrentamento do inimigo, mas sim o da proteção e atendimento do cidadão.

Todavia, tal argumentação parece desconsiderar que o objetivo de toda e qualquer sanção, em especial aquelas direcionadas à repressão e educação para a erradicação dos desvios de conduta na caserna alcança não apenas a atividade para a qual se prestam os militares, mas também, a proteção da instituição militar, ou seja, a manutenção de seus pilares de sustentação: a disciplina e a hierarquia.

A questão que deveria ou poderia ser enfrentada e que não se apresenta, mas que alcançaria tanto militares federais quanto os estaduais, é, se a aplicação de uma sanção administrativa de prisão disciplinar feriria direitos outros afetos ao cidadão servidor militar, direitos que de mesma sorte são garantidos aos servidores civis6, questionando a isonomia de servidores militares e cidadãos civis, ou seja, se haveria uma perda de direitos do cidadão ao se tornar militar, a exemplo da oportunidade de prisão de militares mesmo não estando em situação de flagrante delito, quando do cometimento de crimes propriamente militares, ou da prisão destes no âmbito do poder administrativo disciplinar.

Como resposta, e defendendo a proteção dos princípios da hierarquia e disciplina nos quartéis e sua relação com a condição do ser cidadão militar, defesa esta que perpassa pela aplicação de um regulamento rígido, que contenha normas que desmotivem a prática de desvios de conduta, inclusive aquelas de natureza grave que requeiram a aplicação de uma sanção disciplinar de prisão, como a que está oportunizada pela CF/88, o Procurador da República Dr. Mario Pimentel Albuquerque apresenta em sua manifestação no Habeas Corpus nº 02217/TRF/2ª Região, importantes pontos que devem ser considerados ao se tratar o tema:

(…) A hierarquia e a disciplina constituem, por assim dizer, a própria essência das forças armadas. Se quisermos, portanto, preservar a integridade delas devemos começar pela tarefa de levantar um sólido obstáculo às pretensões do Judiciário, se é que existem, de tentar traduzir em conceitos jurídicos experiências vitais da caserna. Princípios como o da isonomia e da inafastabilidade do Judiciário têm pouco peso quando se trata de aferir situações específicas à luz dos valores constitucionais da hierarquia e da disciplina. O quartel é tão refratário àqueles princípios, como deve ser uma família coesa que se jacta a ter à sua frente um chefe com suficiente e acatada autoridade.

(…) Da mesma forma que a vocação religiosa implica o sacrifício pessoal e do amor-próprio – e poucos são os que a têm por temperamento –, a militar requer a obediência incontestada e a subordinação confiante às determinações superiores, sem o que vã será a hierarquia, e inócuo o espírito castrense. Se um indivíduo não está vocacionado à carreira das armas, como o despojamento que ela exige, que procure seus objetivos no amplo domínio da vida civil, onde a liberdade e a livre iniciativa constituem virtudes. Erra rotundamente quem pretende afirmar valores individuais onde, por necessidade indeclinável, só os coletivos têm a primazia. Comete erro maior, porém, quem, colimando a defesa dos primeiros, busca a cumplicidade do judiciário para, deliberadamente ou não, socavar os segundos, ainda que aos nossos olhos profanos, lídimo possa parecer tal expediente e constitucional a pretensão através dele deduzida.7

Na perspectiva da necessidade de um direito disciplinar militar que defenda o trinômio ética, estrutura e valores, bem como sua distinção com o direito penal, o Procurador Marcelo Weitzel Souza apresenta os ensinamentos de José Rojas Caro para quem:

o Direito Disciplinar vem alicerçado em um caráter eminentemente ético (no caso específico das FFAAs, inspirado na estrutura hierárquico piramidal conquanto uma instituição “disciplinada, hierarquizada e unida”, acompanhada de valores de lealdade, heroísmo, honra, conhecimento da história nacional, etc.” haja vista que “seu objetivo primordial não é tanto o restabelecimento da ordem jurídica quebrada, mas sim – como assinala Da La Tore Trinidad – salvaguardar o prestígio e a dignidade corporativa, assim como garantir a correta e normal situação da pessoa na dupla vertente do eficaz funcionamento do serviço [...]”8

Portanto, o que está em jogo não é apenas a proteção do cidadão militar ao considerar sua condição de servidor público militar estadual ou federal, mas do reconhecimento de uma classe de servidores que, tendo se voluntariado ao presente ofício, que externaliza o Estado protetor, deve-se destes se exigir conduta ilibada, pronto acatamento às ordens, dentre outras manifestações de comportamento ético que, aos serem desconsideradas ou desrespeitadas, levando-se em conta a gravidade dos fatos, nos termos da Constituição da República brasileira, poderão, após aplicação do devido processo legal e do contraditório, ser sancionados disciplinarmente, aplicando-se a prisão disciplinar.


3. UMA ANÁLISE DA POSSÍVEL (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.967/19.

Com o advento da Lei 13.967/19, implementou-se a alteração do art. 18 do Decreto-Lei 667/69, sendo que, dentre estas, a vedação à aplicação de medida privativa e restritiva de liberdade no âmbito da administração disciplinar militar das polícias militares e corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal.

Ocorre que tal instituto disciplinar encontra sua previsão na Constituição da República Federativa do Brasil, conforme já comentado no capítulo anterior, cuidando ainda o legislador constitucional de vedar o manejo de Habeas Corpus quando da aplicação de punições disciplinares militares restritiva de liberdade (art. 142, §2º)9, vedação esta que está disposta em capítulo que regulamenta as Forças Armadas.

Presentes tais considerações, sobrevém o questionamento quanto a possibilidade do legislador infraconstitucional vedar a aplicação de certa sanção, quando, na verdade a sua aplicação está autorizada pelo legislador constitucional em clara previsão de preceito administrativo disciplinar na rol dos direitos fundamentais nos termos do art. 5º, inciso LXI, da CF/88.

Na defesa da inaplicabilidade de uma sanção disciplinar de prisão, Paulo Tadeu Rosa10 apontou possível inconstitucionalidade ao afirmar que regulamentos disciplinares sob forma de Decretos, como no caso das Forças Armadas, estaria em desacordo com outros princípios constitucionais, e, dentre estes, o da legalidade, pois contrariavam o art. do art. 5º, inciso LXI da vigente Constituição da República Brasileira de 1988, especificamente quanto ao vernáculo final do inciso apontado, em que diz da necessidade de uma “Lei” para definir os casos de transgressão disciplinar militar e crime propriamente militar.

A defesa do jurista no presente tempo esta afirmada no vigente Decreto-Lei 667 alterado pela Lei 13.967/19, todavia, não aplicada aos militares federais. Neste ponto, quanto à possível inconstitucionalidade de Decretos editados para regularem a disciplina das forças armadas, quando na realidade o deveriam ser editados por lei federal ou estadual (no caso das forças militares Estaduais)11, enfrentou o Supremo Tribunal Federal a matéria, nos termos da ADI 3340, quando o Ministro Marcou Aurélio (Relator), apesar de ter sido desconhecida a ação na forma do art. 3º da Lei n. 9.868/99, enfrentando o mérito, em especial quanto à expressão “definidos em lei”, contida no artigo 5º, inciso LXI, afirmou que tal regra se refere-se aos crimes militares e não às transgressões militares, afinal:

(…) A transgressão militar circunscreve-se ao campo administrativo das Forças Armadas, decorrendo da hierarquia e da disciplina que qualificam esse segmento da administração pública. Vale dizer que a versatilidade e a dinâmica da vida militar direcionam a ter-se o trato da matéria via regulamento, via ato circunscrito ao comando cabível e previsto constitucionalmente – inciso XIII do artigo 84 da Constituição Federal. Ao Chefe do Poder Executivo cumpre a fixação das balizas definidoras do comportamento do cidadão ou cidadã enquanto integrantes das Forças Armadas, enquadrando certos atos como transgressões militares e impondo punição ante o desvio de conduta no dia a dia da atividade específica, peculiar, que é a vida militar.12

É claro que esta discussão está vencida diante a modificação do art. 18 do Decreto-Lei 667/69, no que tange aos militares dos Estados. Porém, é necessário esclarecer que, ao se discutir sobre a aplicação do princípio da legalidade para a adoção, ou não, de sanção privativa de liberdade aos militares, sejam estes federais ou estaduais, o que se buscava responder era qual a espécie de norma que disciplinaria as transgressões e sanções disciplinares e, dentre as possíveis, a de prisão disciplinar, ou seja, se por Decreto exarado pelo Chefe do Poder Executivo ou Lei emanada pelo Poder Legislativo.

No tocante aos militares das forças armadas, aos quais ainda se impõe regulamentos disciplinares por Decreto, a celeuma ainda não está superada a considerar carente de decisão na Suprema Corte o Recurso Extraordinário (RE) 603116/RS em que está reconhecida repercussão geral para se discutir se o artigo 47 da Lei 6.880/1980 que regula o Estatuto da Forças Armadas, norma esta que possibilita a definição por decreto regulamentar das sanções previstas no Regulamento Disciplinar do Exército, teria sido recepcionada ou não pela Constituição Federal de 1988, à luz do artigo 5º, inciso LXI.

Ao discorrer sobre a matéria, Mauro Guedes13 afirma que “apesar de ambos os tipos de ilícito militar – penal e disciplinar – estarem consignados no mesmo dispositivo, certo é que não possuem a mesma carga axiológica, e esse evidente discrímen se manifesta na forma pela qual tais injustos se apresentam no mundo exterior (leis no primeiro caos e decretos, no segundo).

Em sintonia, e defendendo a constitucionalidade de aplicação da sanção disciplinar de prisão a militares e de que a interpretação do artigo 5º, inciso LXI, deve ocorrer de forma restrita, em franca compatibilização de seu conteúdo com outras normas, inclusive de mesma hierarquia constitucional que incidem sobre a matéria14, está Jorge César de Assis15, para quem “a Carta Magna não possui dispositivos antagônicos entre si; qualquer contradição aparente implica o esforço necessário para conciliação das normas estabelecidas em dispositivos constitucionais diversos a serem considerados”.

A afirmativa de Jorge César de Assis advém dos ensinamentos de Ferdinand Lassale16, que demonstrou que a Constituição se traduzia em uma lei fundamental de uma nação, uma força ativa que faz, por uma exigência da necessidade, que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são.

O contexto e o cenário em que o posicionamento de Lassale foi colocado se dava em um momento da história no qual, o conceito de Lei fundamental de uma Constituição como lei máxima a irradiar princípios norteadores de proteção da sociedade pelo Estado ainda estava em plena fase de construção e aceitação, mas que Ferdinand Lassale, para distinguir uma lei fundamental ou constitucional de outra qualquer, lecionava que para que assim o fosse sua construção perpassava por três caminhos:

(i) Que a Lei Fundamental seja uma lei básica, mais do que as outras comuns; (ii) Que constitua o verdadeiro fundamento de outras leis, isto é, a lei fundamental, se realmente pretende ser merecedora deste nome, deverá informar e engendrar as outras leis comuns originárias da mesma. A lei fundamental, para sê-lo, deverá, pois, atuar e irradiar-se através das leis comuns do país; (iii) mas as coisas que tem fundamento não o são por um capricho; existem porque necessariamente devem existir. O fundamento a que respondem não permitem serem de outro modo.17

Partindo destas premissas, especificamente sobre o item (iii), no qual se deve focar na busca de resposta da necessidade de um força de polícia militarizada, a ação do poder legislativo infraconstitucional em vedar aquilo que a Constituição permite, ou seja, impedir que os entes federativos apliquem às suas forças militares estaduais sanção disciplinar privativa de liberdade, vem oportunizar interpretação senão de flagrante inconstitucionalidade da Lei 13.967/19 conforme defendido por Carvalho e Ramos18 quando reclama as disposições dos art. 5º, LXI, 42, §1º, e 142, §2º, 144, V e §§ 5º e 6º, todos da Constituição Federal, para asseverar que:

Na verdade, essa Lei é inconstitucional justamente na parte que veda a previsão, por meio de leis estaduais e federal para o Distrito Federal, de penas privativas e restritivas de liberdade de natureza disciplinar para policiais militares e bombeiros militares. Isto porque a Constituição Federal deve ser interpretada de forma sistemática e nela não há palavras desnecessárias.

(…)Retirar de modo definitivo, para toda e qualquer hipótese de transgressão disciplinar de policiais militares e bombeiros militares, a possibilidade de prisões e restrições de liberdade de caráter disciplinar, significaria a própria destruição da estrutura das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, porquanto ignoraria as condições fixadas pela própria Constituição como indispensáveis para a efetiva prestação de seus serviços de segurança pública e de Forças Auxiliares e de Reserva do Exército brasileiro (ver artigo 144, V e §§ 5º e 6º, da Constituição). Isto porque desestabilizaria os sistemas de controle disciplinar dos policiais militares e bombeiros militares, responsáveis no primeiro caso, pelo policiamento ostensivo e pela preservação da ordem pública e, no segundo, pela defesa civil e outras atividades previstas em lei.

Assim, impossível admitir a possibilidade de que uma lei infraconstitucional possa silenciar um regramento constitucional autorizado, ou seja, uma lei infraconstitucional venha impedir que entes federativos apliquem aquilo que a Constituição autoriza fazer, em especial a aplicação de sanção disciplinar de prisão a militares, quando do cometimento de transgressões disciplinares graves, sob argumento pautado por situações de cunho político, fazendo com que esta mesma Constituição deixe de ser o que realmente é, tornando-a como dito por Lassale em apenas um pedaço de papel.

Necessário, neste ponto, relembrar a afirmativa de Konrad Hesse19 quanto à existência de uma força normativa da Constituição, tendo como ponto de partida o condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social em que devem ser considerados, nesse contexto, os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica e finalmente, hão de ser investigados os pressupostos de eficácia desta Constituição.

Quanto aos pressupostos de eficácia, esclarece, ainda, Hesse20, que, entre a “Constituição real” e “Constituição jurídica”, ou seja, entre o que se vislumbra o corpo político representante e a própria Constituição formal, há uma relação de coordenação, todavia estas não dependem pura e simplesmente uma da outra e ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio.

Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no campo de forças da qual resulta a realidade do Estado, pois uma análise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um ou outro aspecto, não se afigura em condições de fornecer resposta adequada à questão21, afirmativa esta que deve ser a bússola para qualquer atividade hermenêutica de tamanha sensibilidade como a que está colocada, sendo necessário conhecer o mover legislativo constitucional de normatização desta inserção da prisão disciplinar enquanto sanção.

Verifica-se, assim, que a Lei 13.967/19, ao alterar o Decreto-Lei 667/69, inserindo como princípio a vedação de medida privativa e restritiva de liberdade aos militares dos Estados, nos termos do art. 18, inciso VII, fez emergir princípio normativo contraditório aquele previsto no art. 5º, inciso LXI da CF/88 e, porque não dizer também ao princípio da isonomia, ao dispensar uma desigualdade de tratamento a servidores militares diante ao serviço que prestam, amoldando-se assim à espécie de inconstitucionalidade material, esclarecendo Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco22 que os “vícios materiais dizem respeito ao próprio conteúdo ou ao aspecto substantivo do ato, originando-se de um conflito com regras ou princípios estabelecidos na Constituição”, e ainda:

É possível que o vício de inconstitucionalidade substancial decorrente do excesso de poder legislativo constitua um dos mais tormentosos temas do controle de constitucionalidade hodierno. Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade, isto é, de se proceder à censura sobre a adequação e a necessidade do ato legislativo.

No caso em estudo, é notória a incompatibilidade da norma infraconstitucional de vedação à aplicação de sanção em que a Constituição autoriza. E, de mesma sorte, trazer a justificativa à situação da prestação do serviço policial realizado por militares, enquanto atividade eminentemente civil, como única justificativa suficiente para legitimar tratamento desigual entre militares federais e estaduais, conforme já apontado, não parece ser compatível com os fins constitucionalmente previstos e, tão pouco, se amoldar aos princípios da adequação ou da necessidade do ato legislativo.

Ainda sobre a conceituação da inconstitucionalidade material, leciona Luiz Roberto Barroso23 que esta espécie de inconstitucionalidade:

expressa uma incompatibilidade de conteúdo, substantiva entre a lei ou o ato normativo e a Constituição. Pode traduzir-se no confronto com uma regra constitucional – e.g., a fixação da remuneração de uma categoria de servidores públicos acima do limite constitucional (art. 37, XI) – ou com um princípio constitucional, como no caso de lei que restrinja ilegitimamente a participação de candidatos em concurso público, em razão do sexo ou idade (arts. 5º, caput, e 3º, IV), em desarmonia com o mandamento da isonomia. O controle material de constitucionalidade pode ter como parâmetro todas as categorias de normas constitucionais: de organização, definidoras de direitos e programáticas.

Quanto aos demais princípios que foram inseridos no Decreto-Lei 667/69 pela Lei 13.967/19, em especial o da legalidade assentado no inciso II do art. 18 – apesar da possível manifestação futura do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário (RE) 603116/RS que venha afirmar a possibilidade de regulamentos disciplinares pela via de Decretos do Chefe do executivo –, bem como os demais princípios de garantia entregues aos militares dos estados, também devem ser estendidos aos militares federais, em evidente afirmação da extensão da própria garantia constitucional de isonomia.

Por outro lado, quanto à vedação a aplicação de sanção disciplinar constitucional de cerceamento de liberdade previsto no caso de cometimento de transgressão militar, sejam os servidores militares federais ou estaduais, quando realizada pela via do processo legislativo infraconstitucional, conforme realizado pela Lei 13.967/19, o que se tem é uma norma que neste ponto específico, de proibir a aplicação de sanção disciplinar que o legislador constitucional autoriza, o que se assiste é uma afronta e seu resultado se reveste de plena inconstitucionalidade, reclamando o devido controle pelos órgãos de defesa desta mesma Constituição.


4. A PRISÃO DISCIPLINAR NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA: NORMA CONSTITUCIONAL INCONSTITUCIONAL?

A real tentativa do legislador infraconstitucional ao vedar a aplicação de sanção disciplinar aos militares estaduais foi alinhar o processo administrativo disciplinar com o princípio garantista dos direitos humanos e demais princípios reservados ao mover processual disciplinar. Todavia, quando o fez, apenas para os militares dos Estados, deixando à margem militares pertencentes às forças armadas, fez emergir a desigualdade de tratamento entre servidores públicos aos quais, apesar de recrutados por entes federativos diferentes, não podem ser diferenciados apenas pelo serviço que prestam, pois se assim o for, um destes não poderá trazer consigo o adjetivo que o demonstra, ou seja, servidor militar.

Partindo então de possível entendimento de que a sanção disciplinar de prisão prevista na Constituição Federal, e direcionada aos militares, estaria em descompasso com outros princípios constitucionalmente previstos, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana, ou ainda, de isonomia com servidores públicos civis (compreendidos aqueles pertencentes ao rol descrito no art. 144 da CF/88), tem-se o questionamento então de que seria tal instituto sancionador uma norma constitucional inconstitucional.

Sobre esta possibilidade de inconstitucionalidade, está a tese do professor Otto Bachof24, que vem demonstrar que tal hipótese de inconstitucionalidade de normas constitucionais seria possível quando da apreciação de normas constitucionais, ou seja, inseridas no texto da própria constituição, e que fossem contrárias ao direito natural, isto é, infringindo direito supralegal que é operado pelas próprias Constituições e do caráter fluido da fronteira entre a inconstitucionalidade e a contradição com o direito natural daí decorrente.

Segundo Bachof, as possibilidades de ocorrência de normas constitucionais inconstitucionais se apresentam quando da (i) violação da Constituição escrita, (ii) violação do direito constitucional não escrito, sendo estes compreendidos como princípios constitutivos não escritos da Constituição, direito consuetudinário ou direito supralegal positivado e, por fim, (iii) outras possibilidades em que embora situadas fora da Constituição formal, seriam materialmente parte integrante da ordem constitucional, em virtude de sua função integradora.

Dentre as hipóteses de tal ocorrência de normas constitucionais se revelarem inconstitucionais, está a possibilidade de tais normas constitucionais, previstas no próprio texto constitucional, infringirem direito supralegal positivado na própria lei constitucional, fato este que para a Constituição brasileira de 1988 se amolda nos termos do § 2º do art. 5º.

É justamente neste ponto que o Juiz Militar Paulo Tadeu Rosa25 reclama a aplicação do Pacto de São José da Costa Rica, à situação, por exemplo, de vedação ao cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares militares, compreendendo assim que tal norma constitucional se demonstra inconstitucional, ou seja:

O art. 5o, LXVIII, da CF, não limita o seu cabimento. Esse cerceamento constante do art. 142, § 2o, da CF, é inconstitucional. Segundo o art. 60, § 4o, inciso IV, da CF, os direitos e garantias fundamentais assegurados aos brasileiros ou aos estrangeiros residentes no país não admitem nem mesmo Emenda Constitucional.

Sobre este ponto, na defesa desta possível inconstitucionalidade, Bachof26 afirma que se “uma norma consitucional infringir uma outra norma da Constituição, positivadora de direito supralegal, tal norma será, em qualquer caso, contrária ao direito natural e, de harmonia como exposto supra, carecerá de legitimidade, no sentido de obrigatoriedade jurídica”, afirmando ainda o autor não ter nenhuma dúvida em qualifica-la também, apesar de pertencer formalmente à Constituição, como inconstitucional.

Ocorre que a impossibilidade de aplicação de habeas corpus em relação à punições disciplinares militares, apesar de inserida no próprio texto constitucional, têm-se que sua natureza se diferencia da aplicação da punição disciplinar de prisão a qual se vê inserida no art. 5º, a qual se eleva a condição de direito fundamental, e, neste ponto, a considerar o § 1º do mencionado artigo 5º, norma esta que possui aplicação imediata.

Ainda sobre a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais a Suprema Corte brasileira enfrentou a temática na ADI de n. 815-3/9627 em que sob a tese de Otto Bachof o Governador do Estado do Rio Grande do Sul arguiu a inconstitucionalidade das expressões “para que nenhuma daquelas unidades tenha menos de oito ou mais de setenta deputados” do parágrafo 1º e da expressão “quatro” do § 2º, ambos do artigo 45 da Constituição Federal, sustentando para tanto que há normas Constitucionais inconstitucionais, ainda quando aquelas derivem do Constituinte originário, por haver normas constitucionais – como cláusulas pétreas – superiores a outras normas também constitucionais, momento me que o Ministro Moreira Alves (Relator) ponderou que:

Essa tese – a de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras – se me afigura incompossível com o sistema de Constituição rígida, como bem observou Francisco Campos (Direito Constitucional, I, p. 392, Livraria Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro/São Paulo, 1956) ao acentuar que “repugna, absolutamente, ao regime de constituição escrita ou rígida a distinção entre leis constitucionais em sentido material e formal; em tal regime, são indistintamente constitucionais todas as clausulas constantes da Constituição, seja qual foi o seu conteúdo ou natureza. E repugna, porque todas as normas constitucionais originárias retiram sua validade do Poder Constituinte originário e não das normas que, também integrantes da mesma Constituição, tornariam direito positivo o direito suprapositivo que o Constituinte originário integrou à constituição ao lado das demais e sem fazer qualquer distinção entre estas e aquelas.

Apesar de esta decisão fortalecer o princípio da unicidade da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal já exerceu e vem exercendo o controle de constitucionalidade de Emendas Constitucionais assim comentado por Gilmar Mendes, mas que todavia esclarece que, a considerar as clausulas de garantia, sendo possível apontar aquelas previstas no art. 60 da CF/88, em especial a impossibilidade de deliberação de emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais, “estas traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade”.

É sob esta perspectiva que se deve questionar: qual a intenção do constituinte originário inserir no campo de normas de direito fundamental a garantia de aplicação de sanção disciplinar de prisão dos servidores militares, diferenciando-os assim dos servidores civis?

Como resposta, José Miguel Tomaz28 demonstra que ao abordar a temática da constitucionalidade das sanções militares privativas de liberdade, tomando como parâmetro a experiência da Constituição Espanhola que converge com a questão brasileira sob estudo, não é possível considerar os Corpos e Forças de segurança de caráter militar como Administração Civil, consagrando assim a constitucionalidade de previsão de no regime sancionador destas instituições militares tenha-se previsão de sanções privativas de liberdade, esclarecendo sob este ponto esclarece que:

Embora seja verdade que haja distinção em certos preceitos constitucionais (art. 8º e 104, entre outros) entre as Forças Armadas e as Forças e Corpos de Segurança, não se pode inferir que a Constituição os define como Administração Civil, uma vez que o art. 25.3 contempla o aspecto sancionador da disciplina militar, disciplina a que se refere em geral.

Esta afirmativa demonstra o erro na alteração legislativa para impossibilitar a aplicação de sanção disciplinar prevista em texto constitucional sob a afirmativa de serem os Policiais e Bombeiros Militares, a considerar a natureza de suas atividades de natureza civil, também como servidores civis, ou seja, servidores de mesma natureza e que requeiram éticas semelhantes.

De mesma sorte, a considerar a possibilidade de ilegitimidade da sanção privativa de liberdade a militares, o tema não pode ser tratado da forma que foi, ou seja, inaugurando tratamentos diferenciados a servidores militares, independente das funções que executam, pois, o que se deve defender não é a situação de aplicação, ou não, das espécies de sanção previstas, mas sim, a oportunidade de um processo administrativo disciplinar que obedeça os demais princípios reguladores do processo como, por exemplo, a ampla defesa e o contraditório.

Sobre tratamento diferenciado entre militares estaduais e federais, a presente inovação legislativa é apenas mais um alargamento de tantas outras situações que já estão presentes no arcabouço jurídico brasileiro, sendo possível citar como exemplo a situação de crimes dolosos praticados por militares em desfavor de civis quando das atividades de Garantia de Lei e da Ordem no emprego de tropas federais e da execução do policiamento ostensivo executado por militares estaduais, em que as duas espécies de execução da atividade ocorrem em mesmo ambiente, mas que, advindo a situação de crime, inaugura-se a competência judiciaria distinta para sua apreciação, sendo a Justiça Militar para os militares federais e o Tribunal do Júri para os Estaduais. Apesar da possível inconstitucionalidade material por desvio do tratamento isonômico entre militares, este é tema para novo debate.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordar a temática que envolve a prisão disciplinar aplicada a militares no processo administrativo disciplinar no Brasil com o advento da Constituição cidadã de 1988, em um ambiente de pleno amadurecimento democrático, em que a busca pelo reconhecimento e aplicação dos princípios de proteção a direitos humanos estabelecidos nesta mesma constituição, bem como nos pactos ratificados pelo Brasil como a Convenção Americana de Direitos Humanos, se traduz em hermenêutica de extrema sensibilidade.

Contudo, é necessário reconhecer que esta mesma Constituição de 1988, ao estabelecer a possibilidade de aplicação de uma sanção disciplinar que possa cercear a liberdade de seus servidores militares, colocando esta sanção no campo de direito fundamental, não o faz por mero capricho ou, como possam pensar outros intérpretes, para oportunizar abusos de autoridades no ambiente de caserna. Ao contrário, demonstra o constituinte originário que aos Militares, sejam estes dos Estados ou da União, se exigirá uma conduta ética irrepreensível.

Legalizar a possibilidade de prisão nos casos de transgressão militar, como uma espécie de sanção disciplinar que seja aplicável apenas aos militares federais, não trouxe para o direito administrativo militar solução de respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa do servidor militar; ao contrário, inaugurou nova inconstitucionalidade que se amolda à não obediência ao princípio da isonomia entre servidores militares de entes federativos distintos, que torna-se inaceitável a defesa desta possibilidade por serem suas atividades distintas.

Não é possível negar que a Lei 13.967/19 inaugurou um novo tempo para o processo administrativo militar nos Estados, porquanto reforça a necessária aplicação de princípios constitucionais como respeito à dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, razoabilidade e proporcionalidade. Todavia, vedar a aplicação de medida privativa de liberdade como sanção disciplinar que alcança apenas os militares dos Estados é determinação que vai de encontro àquilo que o legislador constituinte oportunizou e que deve ser compreendida como de caráter geral.

Por fim, é importante que a sociedade esteja alerta quanto às ações que, veladamente, sob a falácia política de concessão de direitos a seus servidores militares estaduais, sirvam como pano de fundo para a retirada contínua de direitos, mas também de deveres que são inerentes à condição daqueles que se voluntariaram à prestação do serviço militar, independentemente do ente federativo a que estão subordinados.


REFERÊNCIAS

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Notas

1BRASIL Constituição de 1934, Art. 113, item 23; Constituição de 1937, Art. 122, item 16; Constituição de 1946, Art. 141, § 23; Constituição de 1967, Art. 150, § 20; Emenda Constituição de 1969, Art. 152, § 20.

2BRASIL. Lei nº 5.774, de 23 de dezembro de 1971. Dispões sobre o Estatuto dos Militares e dá outras providências. Revogada pela Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980.

3BRASIL. Decreto nº 4.346/02. Art. 24. Segundo a Classificação resultante do julgamento da transgressão, as punições disciplinares a que estão sujeitos os militares são, em ordem de gravidade crescente: IV – a detenção disciplinar; V – a prisão disciplinar.

4O Estado de Minas Gerais desde o ano de 2002, após movimento grevista de sua força pública, por meio da Lei 14.310/02 institui o Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado erradicando das sanções disciplinares previstas a prisão ou detenção disciplinar, rompendo com a aplicação de Regulamento Disciplinar semelhante ao Exército brasileiro como estava previsto no Dec. Lei 667/69. No ano de 2006 o Estado do Pará, por meio da Lei 6.8333/06 também editou um CEDM para suas forças militares estaduais, porém, manteve a aplicação das sanções de restrição à liberdade. No ano de 2018, o Estado de Goias sanciona a Lei 19.969/18 que passa instituir o CEDM e, como no Estado de Minas Gerais, deixa de fazer previsão da sanção que restrinja a liberdade de militares.

5MARTINS, Eliezer Pereira. Abolição da “prisão disciplinar” para policiais e bombeiros militares e o militarismo de segurança pública – primeiras considerações. Revista Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/318146/abolicao-da-prisao-disciplinar-para-policiais-e-bombeiros-militares-e-o-militarismo-de-seguranca-publica-primeiras-consideracoes. Pesquisado em: 14mai2020.

6É possível mencionar os demais servidores públicos pertencentes às forças de segurança com status civis como Polícia Federal, Polícias Civis, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal e Guardas Municipais.

7BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Recurso de Habeas Corpus 97, n. 2000.2.01.071148-6. Relator: Desembargador Federal Carreira Alvim.

8SOUZA, Marcelo Weitzel Rabello de. O direito disciplinar miliar e sua distinção ante o direito penal militar. Revista do Ministério Público Militar, Brasília, 20 ed., 2007.p. 89 a 116.

9Veja o RE 338840 do STF cuja Ementa demonstra a possibilidade de apreciação do Habeas Corpus quando o que se busca analisar são as questões inerentes à legalidade e não ao mérito.

10ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. A extinção da prisão administrativa disciplinar e a segurança pública. Revista Consultor Jurídico. 2002. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2002-jul-17/extincao_prisao_administrativa_ordem_publica. Pesquisado em: 14mai2020.

11Convém relembrar que o Decreto-Lei 667/69 é criticado por ser fruto da competência legislativa do Presidente da República, amparado pelo Ato Institucional n. 5 de 1968, o mesmo AI-5 que suspendeu direitos políticos, mitigou liberdade de expressão, direito de locomoção e outros; legislação esta que em seu texto original, especificamente em seu art. 18 também disciplinaria a necessidade das instituições militares estaduais adotarem Regulamento Disciplinar à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército e adaptado às condições especiais de cada corporação, sendo possível afirmar que as espécies de sanções, inclusive a prisão disciplinar, tanto naquele momento do período ditatorial, como ainda hoje, se apresentam inseridas em Decretos direcionados às Forças Armadas, ainda vigente para regular a organização das Polícias Militares consideradas forças auxiliares, reserva do Exército Brasileiro.

12BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.340-9/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/762635/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-3340-df/inteiro-teor-100478798?ref=juris-tabs. Acesso em: 04jun20

13GUEDES, Mauro Machado. A (in)constitucionalidade dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas. Revista do Ministério Público Militar. Brasília, 32 ed, 2020, p. 10.

14Ver Constituição Federal Federativa do Brasil/1988: Art. 142 (Estruturação das Forças Armadas com base na hierarquia e disciplina); Art. 84, inciso XIII (Submissão das Forças Armadas ao Comando Supremo do PR), Art. 84, inciso IV (Competência do Presidente da República para editar decretos visando à fiel execução das leis, Art. 142, § 2º (Inadmissibilidade de HC em face de transgressões disciplinares (Art. 142, 2º).

15ASSIS, Jorge Cesar de. Curso de Direito Disciplinar Militar – da simples transgressão ao processo administrativo. Curitiba: Juruá, 2018, p. 111.

16LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. Prefácio: Aurélio Vander Bastos. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2001, p. 10.

17LASSALE, op. cit., p. 9

18CARVALHO, Marcia Haydée Porto de; RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Vedação de prisão disciplinar para PMs e bombeiros é inconstitucional. Revista Consultor Jurídico. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-24/opiniao-vedacao-prisao-disciplinar-pms-inconstitucional

19HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 126

20HESSE, op. cit, p. 130

21HESSE, op. cit., p. 127.

22MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 1745.

23BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 29.

24BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Trad. José Manuel M. Cardoso da Cosata. Coimbra: Atlantida Editora, 1977.

25ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos no direito administrativo militar. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71422/aplicacao-da-convencao-americana-de-direitos-humanos-no-direito-administrativo-militar. Acesso em 12jun20.

26BACHOF, op. cit., p. 62-63

27BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 815-3/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Moreira Alves. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur116053/false. Acesso em: 04jun20

28TOMÁS, José Miguel Sánchez. La prohibición de sanciones privativas de libertad impuestas por la administracion civil. In: FERRER, Miguel Rodríguez-Piñero y Bravo; BAAMONDE, Maria Emilia Casas. Comentários a La Constitución Española. Madrid: Fundación Wolters Kluwer, Boletín Oficial del Estado, Tribunal Consitucional y Ministerio da Justiça, 2018, 955 a 960. p. 959.


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