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A responsabilidade penal por omissão do chefe do Poder Executivo no combate à epidemia viral do novo coronavírus (covid-19)

A responsabilidade penal por omissão do chefe do Poder Executivo no combate à epidemia viral do novo coronavírus (covid-19)

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Diante de uma doença viral devastadora, que soma milhares de pessoas mortas e doentes pelo mundo, medidas de ações positivas são exigidas dos administradores públicos, sobretudo, daqueles que estão à frente do Poder Executivo. E se forem omissos?

1. INTRODUÇÃO

O novo Coronavírus (COVID-19) demonstrou a força e os efeitos que uma epidemia viral pode causar no sistema de saúde de um determinado país ou região.

O vírus, que causa síndrome aguda respiratória grave, vitimou milhares de pessoas pelo mundo e chegou ao Brasil ceifando muitas vidas, de pessoas idosas a jovens, de pessoas com comorbidades pré-existentes ou não, além de causar déficit de vagas em unidades de terapia intensiva de vários estados brasileiros (dado o grande número de doentes acometidos ao mesmo tempo), acentuando a deficiência do já combalido sistema público de saúde do País. 

Diante desta situação excepcional vivida pelo Brasil, foi editada a Lei nº 13.979/20, que autorizou a adoção de inúmeras medidas pelo Presidente da República, Governadores e Prefeitos, visando combater o vírus e evitar, ao máximo, o adoecimento da população.

Dentre as medidas previstas na legislação, tem-se a restrição de direitos fundamentais, como a liberdade de locomoção, determinação compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, manejo de cadáver, dentre tantas outras, afinal, situações excepcionais exigem a adoção de medidas excepcionais.

Ocorre que a adoção de medidas deveras restritivas, como o fechamento de comércios e a paralisação de determinadas atividades, causam problemas para a economia, pessoas perdem empregos e famílias ficam sem sustento, levando os administradores públicos a se omitirem nos cuidados com a saúde pública (visando o resguardo da economia) e, por consequência, conduzindo ao rápido alastramento do vírus.

Diante deste quadro instalado na sociedade, cabe verificar se a omissão do Poder Executivo na adoção de medidas de combate ao novo Coronavírus pode ensejar a responsabilidade penal do Presidente da República, dos Governadores e dos Prefeitos Municipais.


2. O NOVO CORONAVÍRUS (COVID-19).

Os Coronavírus (CoV) são uma família viral, conhecida desde meados da década de 1960, que causam infecções respiratórias em seres humanos e animais. Em regra, infecções por coronavírus causam doenças respiratórias leves a moderada, semelhantes a um resfriado comum.

O Novo Coronavírus (COVID-19) faz parte desta família de vírus e causa síndrome respiratória aguda grave, podendo levar à morte. O primeiro alerta emitido pela Organização Mundial da Saúde foi no dia 31 de dezembro de 2019, após autoridades chinesas notificarem casos de uma misteriosa pneumonia na cidade de Wuhan, cidade chinesa com 11 milhões de habitantes (7ª maior cidade da China e 42ª do mundo).

O país chinês em poucos meses somou milhares de pessoas infectadas e pessoas mortas. A doença se espalhou pelo mundo, ceifando número assustador de vítimas, dizimando populações.

A transmissão do vírus é extremamente fácil. Uma pessoa doente – que pode estar inclusive assintomática – transmite para outra ou por contato próximo através de toque do aperto de mão, gotículas de salivas, espirro, tosse, catarro, objetos ou superfícies contaminadas, como celulares, mesas, maçanetas, brinquedos, teclados de computador etc.

Como já era esperado, o vírus chegou ao Brasil e de forma avassaladora acometeu inúmeros brasileiros, fez muitas vítimas e exigiu dos governantes brasileiros a adoção de medidas públicas de combate, a fim de evitar o adoecimento e a morte da população. 

2.1 A LEI Nº 13.979/20 E AS MEDIDAS QUE PODEM SER ADOTADAS PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, GOVERNADORES E PREFEITOS

A Lei nº 13.979/20 entrou em vigor e foi publicada no dia 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (COVID-19).

A mencionada lei traz conceitos distintivos para isolamento e quarentena, bem como fornece medidas que podem ser adotadas pelos chefes do Poder Executivo no combate ao vírus.

Dentre as medidas que podem ser empregadas pelos citados agentes políticos está: o isolamento, a quarentena, a determinação compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos, estudo ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver, restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do País e locomoção interestadual e intermunicipal, requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que: a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e b) previstos em ato do Ministério da Saúde.

Estas hipóteses estão previstas explicitamente no artigo 3º da Lei nº 13.979/20.

Ainda, segundo a supracitada lei federal (§ 7º do artigo 3º), as medidas acima detalhadas poderão ser adotadas pelo Ministério da Saúde e pelos gestores locais de saúde, desde que algumas delas sejam autorizadas pela mencionada pasta.

A lei de regência ora citada encontra amparo na Constituição Federal, mais precisamente no artigo 196, que estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O artigo 197 da Constituição Federal também reforça a legitimidade da Lei nº 13.979/20, ao prever competir ao Poder Público dispor sobre a regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde.

         Destarte, no plano abstrato, a legislação cintila como uma estrela cadente, prevendo inúmeras ações que podem ser adotadas pelos governantes para o combate à pandemia do Coronavírus, inclusive, prevê hipóteses de restrições de direitos fundamentais (como a liberdade de locomoção), dispensa excepcional de licitação para contratação, possibilidade de contratação com empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso.

         Ou seja, o administrador público possui à disposição um leque de mecanismos excepcionais que facilitam sobremaneira a governabilidade para o enfrentamento da crise de saúde pública.

         Neste contexto, indaga-se: existe alguma responsabilização criminal aos Chefes do Poder Executivo se, a despeito da facilidade trazida pela Lei nº 13.979/20, estes permanecem inertes (omissos) e deixam de adotar medidas para o combate ao vírus?


3. A RESPONSABILIDADE PENAL POR OMISSÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

3.1 DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE CRIMES COMISSIVOS E OMISSIVOS

A legislação penal brasileira prevê sanções criminais a condutas comissivas e omissivas, a fim de tutelar bens jurídicos valiosos para a convivência harmoniosa em sociedade.

O crime comissivo é a realização de uma ação, a efetiva prática, através de um fazer, de uma conduta criminalizada pelo ordenamento jurídico. Por exemplo, matar alguém (artigo 121 do Código Penal), provocar aborto nas condições proibidas pela legislação (artigos 124 a 126 do Código Penal), ofender a integridade corporal de outrem (artigo 129 do Código Penal), etc.

Neste sentido destaca-se a lição de Fernando de Almeida Pedroso:

“Crimes comissivos são aqueles que apresentam núcleo que, pela sua índole e natureza, comporta forçosamente atuação de aspecto positivo. Elemento nuclear comissivo, por via de consequência, é o que pressupõe a movimentação física e corpórea do agente no mundo exterior, um desprendimento de sua energia destinado à realização da ação típica. Há mister, em casos tais, como condição indeclinável para a realização da conduta incriminada, que o sujeito ativo aja ostensivamente no plano fenomênico. Deve ele fazer alguma coisa e proceder de forma positiva para a concreção da conduta punível. Tem que desenvolver comportamento dinâmico endereçado à concretização do núcleo típico, denotando fisicidade para o mister”[1].

Por outro lado, nos crimes omissivos ocorre o inverso dos comissivos, ou seja, os bens jurídicos podem ser tutelados com a criminalização de uma inércia por parte do agente. Houve um não fazer do agente que ensejou a resposta penal.

Basicamente, o crime omissivo criminaliza a inação do agente, quando estava juridicamente obrigado e lhe era possível agir naquele contexto fático. Exemplificativamente, deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública (artigo 135 do Código Penal), deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória (artigo 269 do Código Penal).

Segundo o escólio de Rogério Sanches Cunha, o crime omissivo é:

“a não realização (não fazer) de determinada conduta valiosa (comportamento ideal) a que o agente estava juridicamente obrigado e que lhe era possível concretizar. Viola um tipo mandamental.”[2].

Em resumo, os crimes comissivos violam os tipos proibitivos, isto é, o agente realiza a conduta que o tipo penal proíbe. Lado outro, os crimes omissivos violam o tipo mandamental, ou seja, o agente não realiza o que o tipo penal manda e, portanto, este acaba por ser violado por omissão.

3.2 DAS ESPÉCIES DE CRIMES OMISSIVOS.

Dentro do gênero “crimes omissivos”, decorrem duas espécies de classificações: a) o crime comissivo próprio; e b) o crime comissivo impróprio.

O crime omissivo próprio, também chamado de “puro”, decorre da violação de um dever genérico de agir dirigido a todos (dever de solidariedade). O agente descumpre a norma imperativa que determina a ação, a atuação do agente para afastar o perigo.

O crime de omissão de socorro (artigo 135 do Código Penal) é um exemplo clássico. A situação de perigo existia, a norma imperativa determinando a atuação também, porém, o agente permaneceu inerte, consumando-se, portanto, o crime previsto no Diploma Penal.

Já o crime omissivo impróprio, também chamado de impuro ou comissivo por omissão, a devida ação do agente não decorre de um dever genérico, do dever de solidariedade, mas, do dever jurídico especial que possui para evitar o resultado.

Em outras palavras, ao contrário do que ocorre no crime omissivo próprio, não basta apenas a abstenção de comportamento pelo agente, sendo necessária a presença deste especial vínculo – a obrigação de agir para impedir a ocorrência do resultado.

Em termos esquemáticos, se nos crimes omissivos próprios a norma mandamental decorre do próprio tipo penal, ao revés, na omissão imprópria ela decorre de cláusula geral prevista no artigo 13, § 2º do Código Penal, norma de regência que estabelece as hipóteses em que alguém possui o dever jurídico de impedir o resultado, in verbis:

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Neste caso, o omitente não responde apenas pela omissão, mas também pelo resultado produzido, salvo se este não lhe puder ser atribuído por dolo ou culpa.

Sob esta acepção doutrina Fernando Capez:

“o agente tinha o dever jurídico de agir, ou seja, não fez o que deveria ser feito. Há, portanto, a norma dizendo o que ele deveria fazer, passando a omissão a ter relevância causal. Como consequência, o omitente não responde só pela omissão como simples conduta, mas pelo resultado produzido, salvo se este não lhe puder ser atribuído por dolo ou culpa”[3].

Em sentido diverso do crime omissivo puro (próprio), nas hipóteses de omissão impura (imprópria) o tipo penal transgredido pelo agente descreve conduta comissiva, respondendo o agente pelo resultado.

Nessa esteira, Rogério Sanches Cunha esclarece citando exemplo:

“O omitente conquista o evento comissivamente incriminado por meio de um não fazer, de uma abstenção ou omissão. Da mesma forma que se pode matar uma criança por meio de asfixia, também é possível chegar a esse mesmo resultado porque se deixa de socorrê-la (omissão). Se o omitente tinha o dever jurídico de impedir a morte do menor, responderá por homicídio (e não simples omissão de socorro)”[4].

Acresça-se ao exemplo citado pela doutrina, o exemplo do médico que, ciente do estado de saúde debilitado da vítima, que necessita de cuidados médicos, se omite na prestação destes cuidados, abandonando o plantão (TJ/SP, Apelação Criminal nº 0000173-67.2013.8.26.0584; Relator :Lauro Mens de Mello; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Criminal; Foro de São Pedro - 1ª Vara; Data do Julgamento: 17/03/2020; Data de Registro: 17/03/2020).

Destarte, eis as espécies de crimes omissivos existentes em nosso ordenamento jurídico penal, cujos conceitos serão importantíssimos para o desenvolvimento deste trabalho.


4. O CRIME DE EPIDEMIA, PREVISTO NO ARTIGO 267 DO CÓDIGO PENAL

4.1 CONCEITUAÇÃO LEGAL E BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFRAÇÃO PENAL EM DEBATE

O crime de epidemia está inserido no Código Penal, no capítulo dos crimes contra a saúde pública.

O artigo 267 do Diploma Penal assim prevê:

“Art. 267 – Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena – reclusão, de dez a quinze anos.

§ 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.

§ 2º - No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.

Segundo assevera Rogério Sanches Cunha[5], este crime passou a fazer parte de divrsos ordenamentos jurídicos após a Primeira Guerra Mundial, período em que foram utilizados, como “armas”, germes patogênicos em combate, prática que, posteriormente, restou vedada por convenções internacionais, e que não se repetiu na Segunda Guerra.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo deste crime, não exigindo qualquer condição especial do agente. O sujeito passivo, primariamente, é a coletividade, a higidez da saúde pública e, secundariamente, aqueles que forem atingidos pela disseminação dos germes patogênicos.

A conduta criminosa consiste em “causar” epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos.

Conforme ensina Rogério Greco, o núcleo “causar” é utilizado no texto legal no sentido de “produzir”, “originar”, “provocar” a epidemia[6].

Já a epidemia é o surto de uma doença transitória que surge rapidamente e ataca simultaneamente um grande número de pessoas, conforme lembra o supracitado jurista:

“Por epidemia deve ser entendida uma doença que surge rapidamente em determinado lugar e acomete simultaneamente grande número de pessoas”[7].

Outrossim, conveniente destacar o alerta de Fragoso sobre o vocábulo epidemia empregado na lei:

“Não é qualquer moléstia infecciosa e contagiosa, mas somente aquela suscetível de difundir-se na população, pela fácil propagação de seus germes, de modo a atingir, ao mesmo tempo, grande número de pessoas, com caráter extraordinário (ex.: tifo, peste, poliomielite, influenza, raiva, difteria, etc)”[8].

Por sua vez, germes patogênicos são, na lição de Bento de Faria, seguindo a exposição de motivos do Código Penal italiano, “todos os elementos capazes de produzir moléstias infecciosas (bacilos ou quaisquer outros micro-organismos com esse poder), pouco importando que já estejam biologicamente identificados”[9].

Exemplificativamente, o COVID-19 (Coronavírus) também pode ser considerado um germe patogênico.

A consumação do delito ocorre quando várias pessoas forem contaminadas em razão da conduta do agente.

O § 1º do tipo penal prevê a aplicação da pena em dobro se do fato praticado pelo agente resultar morte culposa, sendo esta figura majorada considerada crime hediondo, conforme disposição do artigo 1º, inciso VII, da Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos).

Recorda-se que basta a morte de apenas uma pessoa para que a pena seja majorada nos termos do § 1º do artigo 267 do Código Penal.

Sob esta acepção, importante destacar, ainda, a lição de Luiz Regis Prado:

“Não se pode olvidar, no entanto, que nem sempre a morte é causada somente pela doença. Pode ser que existam fatores que possibilitem a sua ocorrência. Mas nem por isso o autor deixa de ser responsabilizado”[10].

Há previsão também da modalidade culposa, no § 2º do mencionado dispositivo legal.

4.2 A POSSIBILIDADE DE RESPOSABILIZAÇÃO POR OMISSÃO DO SUJEITO ATIVO

É pacífico na doutrina a possibilidade de consumação do delito de epidemia na forma omissiva imprópria.

Neste sentido, segundo Guilherme de Souza Nucci, o delito de epidemia pode ser praticado quando o agente tem o dever jurídico de evitar o resultado, nos termos do artigo 13, § 2º, do Código Penal, in verbis:

“comissivo (o verbo implica ação) e, excepcionalmente, omissivo impróprio ou comissivo por omissão (quando o agente tem o dever jurídico de evitar o resultado, nos termos do artigo 13, § 2º, do Código Penal)”.[11]”

No mesmo sentido doutrina Delmanto:

“A propagação geradora de epidemia pode se dar tanto por ato comissivo quanto por ato omissivo (neste caso, somente nas hipóteses em que o agente devia e podia agir para evitar o resultado – CP, artigo 13, § 2º)”[12].

Em termos esquemáticos, portanto, é unívoco a possibilidade de responsabilização do agente pelo delito previsto no artigo 267 do Código Penal na forma omissiva imprópria.


5. O CHEFE DO PODER EXECUTIVO FEDERAL, ESTADUAL E MUNICIPAL E AS RESPECTIVAS RESPONSABILIDADES EM RELAÇÃO À SAÚDE PÚBLICA E O COMBATE AO CORONAVÍRUS (COVID-19).

É uma obviedade que a chefia do Poder Executivo Federal compete ao Presidente da República, nos termos do artigo 76 da Constituição Federal, auxiliado pelos Ministros de Estado.

Por simetria, o Poder Executivo Estadual é exercido pelos respectivos Governadores de Estado e do Distrito Federal, auxiliado pelos Secretários.

E, por fim, também com base no mesmo princípio, o Poder Executivo Municipal compete aos Prefeitos na circunscrição de cada município, auxiliado pelos Secretários.

 Sendo assim, passemos à análise das responsabilidades destes agentes políticos no âmbito da saúde pública (campo de estudo que interessa para o deslinde deste trabalho), quando do combate ao Novo Coronavírus (COVID-19).

5.1 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL OMISSIVA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA NO COMBATE AO CORONAVÍRUS (COVID-19)

Segundo pontua o artigo 84, inciso II, da Carta Magna, compete ao Presidente da República “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal”.

 Eis aqui a atribuição por excelência da chefia do Poder Executivo Federal, pois dirigir a administração federal, dirigir o País, estabelecer as políticas públicas prioritárias, é a principal atribuição do Presidente da República.

Sob este ponto, afirma o constitucionalista Flávio Martins:

“II – exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal. Esse inciso é a essência principal da atribuição do Presidente, enquanto Chefe de Governo. Cabe, portanto, ao Presidente, estabelecer quais as políticas públicas prioritárias, levando-se em conta os parâmetros constitucionais mínimos, bem como as diretrizes da administração pública, ao lado de seus ministros”[13].

Neste sentido, compete ao Presidente da República, auxiliado pelo Ministro da Saúde, o estabelecimento de políticas públicas de combate e controle dos riscos epidemiológicos que possam levar ao adoecimento da população, detentora do direito social à saúde (artigo 6º da Constituição Federal).

Nessa toada, indubitavelmente incide, sobre o Poder Público, a obrigação de tornar efetivas as ações e prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas, medidas – preventivas e de recuperação –, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concretude ao que determina a Constituição Federal, no artigo 196, conforme tem sido asseverado de forma recorrente pelo Supremo Tribunal Federal:

“O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA . - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional . A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE . - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode convertê-la em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.” (RE 393.175-AgR/RS, Rel. Min. Celso de Mello).

Neste sentido, destaca-se as palavras do Ministro Celso de Mello, da Colenda Suprema Corte:

Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido , especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional[14].

Observe-se que o artigo 85, inciso III, da Constituição Federal, institui ser crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais.

De igual modo, a lei federal específica que trata dos crimes de responsabilidade do Presidente da República (Lei nº 1.079/1950), no artigo 4º, inciso III, também traz a mesma disposição, no sentido de criminalizar os atos do Chefe do Poder Executivo Federal que atentem contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais.

Neste sentido, especificamente o Direito à Saúde é um direito social, segundo previsão do artigo 6º, da Constituição Federal.

Portanto, qualquer conduta comissiva ou omissiva do Presidente da República que atente contra a saúde pública (direito social garantido constitucionalmente) configura crime de responsabilidade, passível, assim, de impeachment.

Sob este prisma, cabe distinguir, brevemente, a diferença entre crimes comuns e crimes de responsabilidade.

Ora, nos regimes democráticos não existe governante acima da lei, irresponsável, ao contrário do que previa, em plena monarquia, a Constituição brasileira de 1824, no artigo 99, “a pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”[15]. Portanto, a Constituição Federal de 1988, democrática, como sói poderia ocorrer, previu a responsabilidade do Presidente da República nos chamados crimes de responsabilidade, ficando o Chefe do Poder Executivo Federal sujeito a sanções de perda do cargo.

Assim, crimes de responsabilidade são aqueles previstos no artigo 85 da Constituição Federal (e na Lei nº 1.079/50), as chamadas infrações políticas. Enquanto os crimes comuns são aqueles previstos na legislação penal comum ou especial.

Nesse palmilhar leciona o inigualável constitucionalista José Afonso da Silva:

“O Presidente da República poderá, pois, cometer crimes de responsabilidade e crimes comuns. Estes definidos na legislação penal comum ou especial. Aqueles distinguem-se em infrações políticas: atentando contra a existência da União, contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário ou do Ministério Público  e dos Poderes Constitucionais das unidades da Federação, contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, contra a segurança interna do País (art. 85, I-IV), e crimes funcionais, como atentar contra a probidade da administração, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e das decisões judiciais (art. 85, V-VII)”.[16].

In casu, considerando o interesse de estudo do trabalho, cabe ponderar que, se o Presidente da República se omite no combate ao Novo Coronavírus (COVID-19), não adotando medidas que protejam a população do adoecimento (algumas delas previstas na Lei nº 13.979/20), segundo a Constituição Federal (analisando a letra fria da Carta Magna, sem qualquer juízo de valor), poderá ele sofrer processo de impeachment pela prática de ato omissivo atentatório contra o direito social à saúde.

5.2 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL OMISSIVA DOS GOVERNADORES DE ESTADO E DO DISTRITO FEDERAL NO COMBATE AO CORONAVÍRUS (COVID-19)

Todas as constatações a respeito da competência do Presidente da República são totalmente aplicáveis, por simetria, aos Governadores de Estado e do Distrito Federal, porém, no âmbito dos governos estaduais e distrital.

Assim, compete a esses agentes políticos estaduais e distrital (auxiliado pelos Secretários de Saúde), no âmbito da saúde pública (e das demais pastas governamentais), o estabelecimento das políticas prioritárias, a destinação de recursos para o desempenho dos serviços de saúde, bem como a estratégia para combate aos riscos epidemiológicos, inclusive aqueles atinentes ao Novo Coronavírus (COVID-19).

Tal como o Presidente da República e os Ministros de Estado, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal e os respectivos Secretários também respondem pelos crimes de responsabilidade previstos na Lei Federal nº 1.079/50, por força do artigo 74 da mencionada legislação.

No bojo da alvitrada lei federal, também é previsto como crime de responsabilidade dos Governadores os atos comissivos e omissivos que atentem contra os direitos sociais, no caso, a saúde pública.

Destarte, segundo a legislação em vigor, configura crime de responsabilidade dos agentes políticos estaduais e distrital, qualquer ação ou omissão capaz de atentar contra a saúde pública, inclusive a inércia no combate ao novo Coronavírus (COVID-19).

5.3 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL OMISSIVA DOS PREFEITOS MUNICIPAIS NO COMBATE AO CORONAVÍRUS (COVID-19)

Aos Prefeitos Municipais competem a administração pública dos respectivos municípios. Especificamente no que concerne à saúde pública, o artigo 30, inciso VII, da Constituição Federal prevê ser competência dos municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população”.

Aliás, é reconhecido aos municípios a obrigação de ampliação e melhoria no atendimento à população que necessita dos serviços de saúde pública, razão porque os artigos 196 e 197 da Constituição da República devem ser cumpridos também pelos entes municipais, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

AMPLIAÇÃO E MELHORIA NO ATENDIMENTO À POPULAÇÃO NO HOSPITAL MUNICIPAL SOUZA AGUIAR – DEVER ESTATAL DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE RESULTANTE DE NORMA CONSTITUCIONAL – OBRIGAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AOS MUNICÍPIOS (CF, ART. 30, VII) – CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO/RJ – DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819) – COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA (RTJ 185/794-796) – A QUESTÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL: RECONHECIMENTO DE SUA INAPLICABILIDADE , SEMPRE QUE A INVOCAÇÃO DESSA CLÁUSULA PUDER COMPROMETER O NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197) – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS, ESPECIALMENTE NA ÁREA DA SAÚDE (CF, ARTS. 6º, 196 E 197) – A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO : ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – EXISTÊNCIA, NO CASO EM EXAME, DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA: INSTRUMENTO PROCESSUAL ADEQUADO À PROTEÇÃO JURISDICIONAL DE DIREITOS REVESTIDOS DE METAINDIVIDUALIDADE – LEGITIMAÇÃO ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CF, ART. 129, III) – A FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO “DEFENSOR DO POVO” (CF, ART. 129, II) – DOUTRINA – PRECEDENTES – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO (STF, AI 759.543 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 17/12/2013).

Destarte, a omissão do poder público municipal no estabelecimento de medidas que garantam ampliação e melhoria no atendimento à população, também viola o direito social à saúde.

No entanto, será que esta omissão dos prefeitos municipais, quando o município está sofrendo com grave crise de saúde em razão da proliferação do novo Coronavírus, configura crime de responsabilidade, crime comum ou fato atípico?

Com efeito, a Constituição Federal, no artigo 29, § 2º, define os crimes de responsabilidade do Prefeito Municipal, a saber:

§ 2º Constitui crime de responsabilidade do Prefeito Municipal:

I - efetuar repasse que supere os limites definidos neste artigo;

II - não enviar o repasse até o dia vinte de cada mês; ou

III - enviá-lo a menor em relação à proporção fixada na Lei Orçamentária.

Perceba que, diferentemente do que ocorre com o Presidente da República e com os Governadores, não existe a previsão constitucional, para os Prefeitos Municipais, de crime de responsabilidade por atos atentatórios contra os direitos sociais ou contra o direito à saúde.

Na mesma toada, o Decreto-Lei nº 201/67, que estabelece sobre os crimes de responsabilidade dos prefeitos e vereadores, também não contêm esta previsão específica.

Neste sentido, indaga-se: será possível que, com base no princípio da simetria com as regras estabelecidas ao Presidente da República e aos Governadores dos Estados, seja considerado crime de responsabilidade do Prefeito Municipal os atos omissivos no combate ao novo Coronavírus (atentatórios, portanto, à saúde pública) ou os prefeitos responderiam por crime comum, ou, quem sabe, seria fato atípico? 

Segundo Hely Lopes Meirelles, autor do projeto que culminou na edição do Decreto-Lei nº 201/67, o Prefeito Municipal apenas poderá responder, como autoridade municipal, pelos crimes de responsabilidade expressamente previstos e tipificados no mencionado decreto, bem como pelos crimes funcionais descritos no Código Penal (artigos 312 a 326).

“O prefeito, como autoridade municipal, só poderá incidir nos crimes de responsabilidade expressamente previstos e tipificados no Decreto-lei nº 201, de 27.2.67, mas como agente público poderá também ser responsabilizados pelos crimes funcionais definidos no Código Penal, que não estejam absorvidos pelos crimes de responsabilidade equivalentes, ou seja, pelos crimes funcionais não cogitados pela lei especial. Poderá, ainda o prefeito, praticar os crimes de abuso de autoridade definidos na Lei nº 4.898, de 9.12.65, e, como qualquer pessoa, cometer crimes especiais, crimes comuns e contravenções penais, respondendo com ou sem prerrogativas processuais, como veremos no decorrer desta exposição”[17].

Portanto, de acordo com Meirelles, no caso de epidemia enfrentada pelo município e inércia do Chefe do Poder Executivo, este não responderia por crime algum. Ora, se não existe tipificação legal no citado Decreto e considerando não estar o crime de epidemia (artigo 267 do Código Penal) tipificado dentre os crimes funcionais previstos no Código Penal, o fato deve ser considerado atípico, não cabendo a imposição de qualquer sanção ao inerte Prefeito Municipal, em plena crise de saúde pública.

Entretanto, esta conclusão pode ser desarrazoada sob o prisma do princípio da proibição da proteção deficiente, pois há um dever de proteção do Estado no sentido de tutelar o direito da população à hígida saúde pública.

Sobre o alvitrado princípio consigna Gecivaldo Vasconcelos Ferreira, citando Maria Luiza Schafer Streck:

Portanto, o Estado Democrático de Direito, não exige mais somente uma garantia de defesa dos direitos e liberdades fundamentais contra o Estado, mas também, uma defesa contra qualquer poder social de fato! Estamos falando, então, nas palavras de Dieter Grimm, da proibição de "ir longe demais" (Übermassvebot), em contraponto com a proibição de "fazer muito pouco" (Untermassverbot), ambos mecanismos semelhantes, porém, vistos de ângulos diferentes. Daí que "quando um direito é invocado como direito negativo a questão é saber se o legislador foi longe demais. Quando é invocado como direito positivo ou dever de proteção (Schutzpflicht); a questão é saber se ele fez muito pouco para proteger o direito ameaçado". Assim, só haverá a possibilidade de se reconhecer a proibição de proteção deficiente quando se estiver face a um dever de proteção, isto é, para explicar melhor, a Untermassverbot tem como condição de possibilidade o Schutzpflicht[18].

Seguindo esta linha de raciocínio, no caso vertente – a omissão do Prefeito Municipal que vivencia, em sua cidade, grave crise de saúde pública em razão do novo Coronavírus, e se omite no dever de agir -, deve o Prefeito Municipal responder, com base no princípio da simetria, por crime de responsabilidade ou crime comum?

Veja, o crime de responsabilidade somente seria possível com o emprego de analogia à Lei nº 1.079/50. Entretanto, a analogia é vedada quando ocorre in malam partem. Dessa forma, sem olvidar, outrossim, do princípio da anterioridade e da reserva legal – que estabelecem a obrigatoriedade de lei anterior, em sentido formal, para que um fato seja considerado crime -, no mínimo, criticável, o uso da analogia neste caso.

Lado outro, tem-se que o artigo 267 do Código Penal encontra perfeita subsunção à omissão fática verificada em tela. Embora não seja um dos crimes funcionais previstos no Diploma Penal, teria sido, in casu, praticado no exercício do mandato e com ele guardado estreita relação.

No entanto, a responsabilização por este crime comum dependerá do atendimento de certos critérios, por se tratar de crime de perigo concreto (e não abstrato).

Sob este prisma, colaciona-se a lição de Delmanto:

“deve o fato efetivamente ter colocado em risco a incolumidade pública, resultado este que não pode se dar por presunção do legislador (não pode haver punição por presunção)” (...) “Trata-se, pois, de perigo concreto, que deve efetivamente colocar em risco um número indeterminado de pessoas (perigo comum)”[19].

Vicente de Paula Rodrigues Maggio, em obra coordenada pelo saudoso Professor Luiz Flávio Gomes, citando Cezar Roberto Bitencourt, corrobora a exposição de Delmanto ao sustentar que o delito é de perigo concreto, de modo que deve restar esclarecido através de perícia técnica:

“(1) os meios utilizados para a propagação dos germes patogênicos; (2) se os meios utilizados eram realmente idôneos para causar a epidemia; (3) a constatação de que a epidemia não decorre de mero evento natural, mas é resultado da ação humana e dos respectivos meios utilizados pelo agente para a propagação dos germes patogênicos (relação de causalidade e relação de risco)”[20].

Assim, atendidos a tais critérios, poderá o Prefeito Municipal ser responsabilizado pelo crime de epidemia (artigo 267 do Código Penal) por se omitir no combate à proliferação do novo Coronavírus (COVID-19).


6. CONCLUSÕES

O Brasil vive uma situação jamais enfrentada anteriormente, o combate a um vírus mortal, de rápida e fácil proliferação, que tem ceifado muitas vidas.

Além de acentuar as deficiências do já combalido sistema de saúde pública brasileiro, o novo Coronavírus (COVID-19) ainda fez outra vítima: a economia do País. Se medidas de isolamento social e de restrição à abertura de comércios e desenvolvimento de atividades econômicas são adotadas pelo Poder Executivo visando eliminar ou, ao menos, diminuir a incidência do vírus na sociedade, de outro lado, a economia do Brasil entra em recessão (empresas fecham e pessoas perdem empregos).

Esta “escolha de Sofia” pode levar o Presidente da República, Governadores e Prefeitos a priorizarem a economia e omitirem-se nos cuidados com a saúde pública, levando ao alastramento do vírus e o adoecimento da população.

Neste sentido, a Constituição Federal, a Lei nº 1.079/1950, bem como o Código Penal preveem a possibilidade de responsabilização penal dos chefes dos Poder Executivo em cada âmbito da Federação por atos omissivos que atentem contra a saúde pública – direito social do cidadão (artigo 6º, da Constituição Federal) e causem a propagação do vírus do COVID-19.

Entretanto, como se viu, a legislação brasileira tende a punir mais facilmente o Presidente da República e os Governadores, em virtude da expressa previsão legal de crimes de responsabilidade para a hipótese.

Com relação aos Prefeitos, diante da lacuna legislativa (não há previsão para este tipo de omissão no Decreto-Lei nº 201/67), a punição deve ocorrer através do artigo 267 do Código Penal (epidemia), na forma omissiva imprópria, desde que atendidos a três critérios: (1) os meios utilizados para a propagação dos germes patogênicos; (2) se os meios utilizados eram realmente idôneos para causar a epidemia; e (3) a constatação de que a epidemia não decorre de mero evento natural, mas é resultado da ação humana e dos respectivos meios utilizados pelo agente para a propagação dos germes patogênicos (relação de causalidade e relação de risco), conforme doutrina Vicente de Paula Rodrigues Maggio.

A grande dificuldade na responsabilização penal do Prefeito Municipal pela omissão no enfrentamento do novo Coronavírus (COVID-19) seria constatar que a epidemia no município ocorreu justamente em razão do ato omissivo, pois, caso ela (epidemia) tivesse ocorrido de qualquer jeito, mesmo com a adoção de medidas pelo administrador, não poderá ele ser responsabilizado pelo tipo penal em debate.

Por uma questão de equidade, esses mesmos critérios devem ser seguidos na responsabilização do Presidente da República e dos Governadores por crime de responsabilidade. Em outras palavras, deve estar plenamente demonstrado nos autos: (1) os meios utilizados para a propagação dos germes patogênicos; (2) se os meios utilizados eram realmente idôneos para causar a epidemia; e (3) a constatação de que a epidemia não decorre de mero evento natural, mas é resultado da ação humana e dos respectivos meios utilizados pelo agente para a propagação dos germes patogênicos (relação de causalidade e relação de risco).


Referências

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL;

CÓDIGO PENAL BRASILEIRO;

DECRETO-LEI Nº 201/67;

LEI Nº 1.079/50;

LEI Nº 13.979/20;

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FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. Princípio da proibição da proteção deficiente. A outra face do garantismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2273, 21 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13542. Acesso em:10.05.2020, às 16h08min;

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Niterói: Editora Impetus, 2019;

MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Curso de Direito Penal: parte especial (arts. 213 a 288-A). Salvador: Editora JusPodivm, 2015;

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MEIRELLES, Hely Lopes. Responsabilidades do Prefeito. Revista de Direito Administrativo. 128, p. 36/52, abr./jun. 1977. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/42297/41014> acesso em 10.05.2020, às 12h33min;

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2019;

PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Editora Método: 2008;

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https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/02/27/qual-e-a-origem-do-novo-coronavirus.ghtml> acesso em 13.05.20, às 21h21min;

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https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid> acesso em 13.05.20, às 21h36min;


Notas

[1] PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Editora Método: 2008, P. 127/128.

[2] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal Parte Geral (arts. 1º ao 120). Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 286.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 165.

[4]Ob. cit., p. 288.

[5] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal Parte Especial (arts. 121 ao 361). Salvador: Editora JusPodivm, 2020, P. 696.

[6] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Niterói: Editora Impetus, 2019, p. 1.034.

[7] Ob. cit., p. 1.034.

[8] Apud, CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal Parte Especial (arts. 121 ao 361). Salvador: Editora JusPodivm, 2020, P. 696.

[9] Apud, Ob. cit., 697.

[10] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial, p. 699.

[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1.310.

[12] DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 680.

[13] MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 1.458.

[14] AI 759.543 AgR, Rel. Min. Celso de Mello.

[15] MARTINS, Flávio. Ob. cit., p. 1.469.

[16]. DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 550/551.

[17] MEIRELLES, Hely Lopes. Responsabilidades do Prefeito. Revista de Direito Administrativo. 128, p. 36/52, abr./jun. 1977.

[18] FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. Princípio da proibição da proteção deficiente. A outra face do garantismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2273, 21 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13542. Acesso em:10 maio 2020.

[19] Ob. cit., p, 680.

[20] MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Curso de Direito Penal: parte especial (arts. 213 a 288-A). Salvador: Editora JusPodivm, 2015, P. 250.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Bruno Zanesco Marinetti Knieling Galhardo. A responsabilidade penal por omissão do chefe do Poder Executivo no combate à epidemia viral do novo coronavírus (covid-19). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6195, 17 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82453. Acesso em: 10 maio 2024.