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Atos de disposição voluntária do próprio corpo em vida.

Os casos do transexual e do doador de órgãos

Atos de disposição voluntária do próprio corpo em vida. Os casos do transexual e do doador de órgãos

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O conteúdo que se apresenta visa, de modo sintético, à análise de um tema demasiadamente vasto, a respeito das intervenções provocadas pelos indivíduos sobre seu próprio corpo.

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Direitos da personalidade, integridade física e suas limitações voluntárias; 3. Transexualidade: noções essenciais; 3.1. Distinção em relação a outros fenômenos sexuais; 3.2. O direito à cirurgia de redesignação sexual; 3.3. Efeitos jurídicos da mudança de sexo; 4. Transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano em vida: os limites legais; 5. Considerações finais; 6. Referências bibliográficas.


1. Considerações iniciais

O conteúdo que se apresenta visa, de modo sintético, à análise de um tema demasiadamente vasto, a respeito das intervenções provocadas pelos indivíduos sobre seu próprio corpo ou, de maneira geral, as limitações voluntárias praticadas pelas pessoas sobre sua integridade física.

Do amplo universo de hipóteses que o tema abarca, serão abordados, em especial, dois tópicos: a transexualidade e os transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Embora eventualmente ambos sejam objetos de alguns estudos doutrinários, ainda pairam inúmeras incertezas sobre seus reflexos, sobretudo quanto à transexualidade, matéria que jamais foi objeto de qualquer lei no Brasil. Como consequência, tais temas acabam por ser tratados com certa superficialidade, inobstante mereçam ser aprofundados, devido à sua complexidade e singularidade.

Antes, contudo, de se proceder à abordagem dos principais aspectos que circundam a transexualidade e os transplantes, faz-se necessário o esboço de algumas linhas sobre os direitos da personalidade, nomeadamente a integridade física, e suas possíveis limitações voluntárias. A partir destas bases, será possível compreender quais as balizas para a realização dos transplantes no Brasil e em que medida cabe defender que os transexuais têm o direito de optar pela cirurgia de redesignação sexual, ainda que ela implique numa permanente redução de sua integridade física.


2. Direitos da personalidade, integridade física e suas limitações voluntárias

Existem valores da pessoa humana que o ordenamento jurídico considera intangíveis, já que ela apresenta um valor em si e por si. Tais valores integram a personalidade humana, que, no âmbito jurídico é o conjunto de faculdades e de direitos em estado de potencialidade, que dá ao ser humano a aptidão para ter direitos e obrigações, tornando-o um ser autônomo com natureza moral.

Pessoas naturais e jurídicas são entes dotados de personalidade, apesar de que suas origens não coincidem, pois no caso das pessoas jurídicas tal personalidade lhe é atribuída, no caso de pessoas naturais é meramente reconhecida, pois esta é inerente aos seres humanos.

Os Direitos da Personalidade são:

  • Inatos: no sentido de serem “originários”. Basta ser pessoa para gozar de tais direitos;

  • Absolutos: não há pessoa que possa interferir nos direitos da personalidade. Impossível tomar o termo “absoluto” por ilimitado, porque todo direito encontra limitações, em si mesmo e em confronto com direitos alheios;

  • Necessários: são aqueles acompanham a pessoa desde a concepção;

  • Vitalícios: acompanham a pessoa em toda a sua existência (gerando até mesmo, reflexos post mortem);

  • Irrenunciáveis: porque não se pode abdicar da sua titularidade;

  • Extrapatrimoniais: não comportam avaliação pecuniária ou econômica determinada. É necessário fazer uma observação: certos aspectos dos direitos de personalidade comportam a celebração de negócios jurídicos de caráter oneroso, como se passa quanto ao direito ao nome ou à imagem. Há outros direitos da personalidade, como o direito à vida, que já não admitem qualquer restrição neste sentido. Na questão do direito à imagem, esta pode ser cedida para a exploração comercial em anúncios publicitários, por exemplo, o que não se trata da patrimonialização do direito em si, mas meramente a autorização para que terceiros dele explorem certos aspectos de caráter patrimonial;

  • Intransmissíveis: pois apenas a própria pessoa os pode titularizar, sendo impossível o seu desprendimento. Na hipótese acima, da permissão do uso da imagem, não existe a cessão do direito em si, mas tão-somente a permissão para a sua exploração comercial;

  • Imprescritíveis: não se perdem pelo desuso. Não há prazo de caducidade relativo à titularidade dos direitos da personalidade, embora, evidentemente, pretensões patrimoniais decorrentes da violação destes direitos estejam sujeitas à prescrição.

Os Direitos da Personalidade estão dispostos no Código Civil dos artigos 11 ao 21, e podemos dividi-los da seguinte maneira:

1. Direito à Integridade Física (arts 13 ao 15, CC)

2. Direito ao Nome (arts 16 ao 19, CC)

3. Direito à Imagem (art 20, CC)

4. Direito à Privacidade (art 21, CC)

2.1. AS LIMITAÇÕES VOLUNTÁRIAS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Como dito anteriormente, os Direitos da Personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, tornando-se assim direitos indispensáveis às pessoas. Contudo, tal afirmação não conclui que seu titular não possa de certa forma dispor destes direitos, de maneira limitada e voluntária. Assim está disposto em nosso Código Civil atual o artigo 11: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. A lei impede que haja limitações voluntárias aos direitos da personalidade com exceção aos casos previstos no próprio ordenamento jurídico.

Quanto ao artigo transcrito acima, é necessário que se faça uma observação, pois o simples e frio texto da lei não é suficiente para reger as variadas situações em que os direitos da personalidade podem admitir limitações voluntárias.

2.2. DIREITO AO PRÓPRIO CORPO E AS POSSÍVEIS LIMITAÇÕES VOLUNTÁRIAS À INTEGRIDADE FÍSICA

Quanto à integridade física e o Direito ao próprio corpo, o Código Civil de 2002 tratou dos assuntos nos artigos 13 a 15. Dos atos de disposição do próprio corpo e dos transplantes (assunto que trataremos adiante) dispõe o art. 13. do Código Civil, cujo caput assim determina: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Em complemento, estabelece o parágrafo único: “o ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”.

O corpo é considerado um bem da personalidade, pois determina o aspecto exterior de alguém de forma essencial, consequentemente, sem ele não existimos “fisicamente” no mundo jurídico. O corpo humano completo pelos órgãos, tecidos, músculos, nervos, células que o estruturam representa a integridade física de alguém. Dispor significa fazer da coisa o que seu titular bem entender, usando-a livremente.

É pensamento corrente que o titular do direito ao corpo tem um poder limitado de disposição deste bem, devendo observar as restrições impostas em lei, pelos usos e costumes, pelos princípios da moral vigentes e que não acarrete uma diminuição permanente da integridade física de seu titular. No caso dos transplantes, por exemplo, é ilícito doar órgãos vitais, mesmo que seja por um filho que esteja correndo risco de vida. Nesses casos não há a possibilidade de voluntariamente desfazer-se de um órgão necessário à vida, pois atinge a própria integridade física.

É inegável que o ser humano tem um direito sobre seu corpo e que pode exercê-lo de maneira limitada. Porém, é bem verdade que fora as limitações existentes, o homem acaba dispondo livremente de si em virtude do que lhe é permitido, por exemplo: expondo o seu corpo a perigos de vida e lesões incalculáveis, como nos contratos de trabalho circenses, em atividades perigosas e insalubres, nas touradas, nas corridas automobilísticas, nas dublagens cinematográficas, entre outros.

Como citado em exemplo anterior, há a possibilidade de disposição do corpo, mais necessariamente, de órgãos em benefício de outrem. Segundo Ricardo Antequera Parilli. Tal direito deve seguir os seguintes princípios gerais:

O indivíduo pode consentir na ablação das partes internas do seu corpo, com o fim de restaurar sua saúde ou preservar-lhe a vida;

A pessoa pode dispor de partes regeneráveis do seu corpo vivo desde que não afetem a saúde ou a vida do doador;

A disposição, em vida, de órgãos ou partes renováveis com finalidade de transplante, está restringida aos órgãos duplos e tecidos renováveis (rins e sangue, por exemplo), nos casos admitidos em lei, quando a separação não cause um dano irreparável e permanente à integridade física do doador e sempre que a doação seja necessária para devolver a saúde ou salvar a vida de outra pessoa.

Em nosso ordenamento jurídico, portanto, é vedada a disponibilidade total sobre o próprio corpo em relação à pessoa viva. O que a legislação pretende com isso é eliminar a possibilidade de ofensa à integridade física, que seria um bem de grande valor humano. Devemos ressaltar que eventuais negócios jurídicos atrelados à disposição do próprio corpo (doações de sangue e de órgãos, por exemplo) ou mesmo atos do cotidiano (cortar cabelo, unhas), além de não ofenderem a integridade física, têm como característica fundamental a impossibilidade de execução forçada.


3. Transexualidade: noções essenciais

Sempre que se discute a livre disposição da pessoa ao seu próprio corpo e restringe tal indagação a respeito da sua identidade sexual, a questão do transexual vem à tona, devido à complexidade e singularidade que é inerente a esse tema tão controverso.

Em Linhas gerais, pessoa que é transexual acredita fielmente pertencer ao sexo contrário ao de seu atual e por isso se transveste, pois não há outra opção. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação. Em momento algum vive, comporta-se ou age como seu sexo ‘físico’. Tal fato decorre do reconhecimento da existência de uma sexualidade diversa daquela que ele subjetivamente possui, mas que em verdade é oposta ao gênero que é revelado em sua aparência exterior.

3.1. Distinção em relação a outros fenômenos sexuais

Um dos principais motivos para a distinção da transexualidade e os demais fenômenos sexuais é decorrente do caráter psicopatológico. O transexual não se confunde com o homossexual, pois este não nega seu sexo, embora mantendo relações sexuais com pessoas do seu próprio sexo. Não se confunde com o travesti, que em seu fetichismo é levado a se vestir nos moldes do sexo oposto. Nem se identifica com o bissexual, indivíduo que mantém relações sexuais com parceiros de ambos os sexos.

Em suma, a diferença entre o transexual e o homossexual é que o homossexual aceita a sua genitália, ele se aceita do jeito que é. Já o transexual acredita que o seu corpo está errado, porém, existem várias diferenças sobre homossexualismo, o homossexual utiliza a sua genitália nas relações sexuais, só que estas relações são com parceiros do mesmo sexo que o seu.

Desse modo, devemos entender por transexual a pessoa que apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático que lhe fora destinado. Portanto, um indivíduo que se encontra nesta condição tem uma autoimagem do sexo (físico) oposto ao seu e, por isso, se sente, concebe a si mesmo e quer a todo custo se afirmar socialmente, inclusive em seu papel sexual, como pertencente ao sexo oposto. Vive constantemente atormentado pelo ensejo de se submeter às intervenções cirúrgicas plásticas, com a finalidade de transformar sua estrutura anatômica sexual, dando a ela características aparentes do sexo oposto.

3.2. O direito à cirurgia de redesignação sexual

“A Cirurgia de Redesignação Sexual (CRS) (Sex reassignment surgery – SRS) é o termo para os procedimentos cirúrgicos pelos quais a aparência física de uma pessoa e a função de suas características sexuais são mudadas para aquelas do sexo oposto. É parte do tratamento para a desordem do transtorno de identidade para transexuais e transgêneros.”

Sabemos da situação paradoxal, dissonante quanto á perfeição de sua sexualidade em que vivem os transexuais e enquanto não for promulgada uma lei autorizando, com suas exigências e cautelas que forem especificadas, a operação de mudança de sexo continuará considerada mutiladora, uma vez que consiste na remoção de órgãos para substituí-los por algo “artificial”, que tem apenas semelhança com a genitália do outro sexo, configurando assim, crime de lesão corporal gravíssima.

No Brasil, tal cirurgia foi autorizada pelo Conselho Federal de Medicina por meio da resolução de número 1.482 do ano de 1997, a qual habilitou os hospitais universitários a realiza-la. A cirurgia é feita em desde então em caráter experimental nesses hospitais e só em meados de 2007 começaram a ser realizadas também pelo SUS.

irreversível.Por isso seu caráter tão criterioso, envolvendo um pré- acompanhamento efetuado através de uma equipe multiciplinar.

A legislação é bastante defasada, por sua vez as técnicas e estudos são bastante recentes, e como não houve regulamentação sobre a mudança de sexo, sob o ponto de vista jurídico, são raros os acórdãos, por exemplo, admitindo que “não age dolosamente o médico que através de cirurgia faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá-lo ou reduzir o seu sofrimento físico ou mental” como o do TA-SP. Entendemos que a mudança do sexo justifica-se pelo princípio do respeito à vida privada, á individualidade do transexual, que assegura aos transexuais o direito de retificação de seu sexo. Dessa forma entendeu também o Tribunal em questão.

A ‘Vaginoplastia’ como é denominada a cirurgia redesignação sexual , foi realizada pela primeira vez em 1954, na paciente americana Christine Jorgensen1. No Brasil, desde 2007 é realizada pelo Sistema Único de Saúde- SUS, segundo o Ministério da Saúde,atenderá: “ A todo e qualquer cidadão que tenha interesse, apresentando a queixa de incompatibilidade entre o sexo anatômico e o sentimento de pertencimento ao sexo oposto ao do nascimento, terá o direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação. A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde assegura o direito ao uso do nome social. O usuário pode indicar o nome pelo qual prefere ser chamado, independentemente do nome que consta no registro civil. No caso de usuário que já esteja fazendo uso de hormônios sem acompanhamento médico, será realizado encaminhamento imediato ao médico endocrinologista.”

O processo ‘Transexualizador’, por sua vez envolve um rol de complexidade que exigi indiscutivelmente que alguns requisitos sejam cumpridos, tendo por objetivo uma melhor efetivação dos resultados e reduzir a chance de arrependimento por parte do indivíduo que se submeterá, tendo em vista o caráter irreversível da cirurgia de redesignação sexual. O puro e simples consentimento do paciente não será suficiente para fazer cair por terra o princípio da integridade física. Para que tal fato ocorra este deverá estar atrelada a necessidade terapêutica comprovada. Segundo a Portaria 1.707 do Ministério da Saúde, o processo como um todo abrangerá indiscutivelmente as seguintes etapas2:

3.2.1. Acompanhamento Terapêutico

Consiste na promoção da saúde integral, com especial ênfase na re-inserção social. Compreende três dimensões: médica, psicológica e social. O acompanhamento terapêutico não se restringe apenas ao diagnóstico ou à avaliação da pertinência da realização da cirurgia de transgenitalização (mudança de sexo) ou intervenções sobre gônadas e caracteres sexuais secundários. Ao usuário deve ser assegurada a liberdade para descobrir, com o amparo profissional, estratégias de promoção do seu bem-estar.

O processo psicoterapêutico resguarda ao transexual o direito às diferenças comportamentais e subjetivas. O acompanhamento terapêutico médico-endocrinológico deve se pautar na perspectiva da redução de danos, em exames com periodicidade mínima semestral para acompanhamento dos efeitos do uso das medicações determinadas.

A assistente social deverá reconhecer a dinâmica relacional do usuário, a fim de promover estratégias de inserção social na família, no trabalho, nas instituições de ensino e nos demais espaços sociais prementes na vida do indivíduo transexual.

3.2.2. Transgenitalização

Intervenções médico-cirúrgicas devem atender aos critérios estipulados pela Resolução Nº 1.652/2002 do CFM, que determinam o prazo mínimo de dois anos de acompanhamento terapêutico como condição para a viabilização de cirurgia, bem como a maioridade e o diagnóstico de transexualidade.

Transcorridos os dois anos de acompanhamento terapêutico, caso o usuário seja diagnosticado transexual estará apto a se submeter à cirurgia de transgenitalização, o que não significa que deva necessariamente se submeter a este recurso terapêutico.

A cirurgia de transgenitalização deve ser concebida como um dentre outros recursos terapêuticos dos quais dispõe o indivíduo transexual em seu processo transexualizador.

A escolha pela intervenção na genitália deve ser alcançada pelo usuário através do processo psicoterapêutico e social, requerendo:

  • - Conhecimento acerca dos aspectos cirúrgicos;

  • - Conhecimento dos resultados cirúrgicos em suas dimensões estética e funcional;

  • - Consideração crítica das expectativas que acompanham a demanda de transgenitalização;

  • - Consideração crítica das conseqüências estéticas e funcionais da intervenção cirúrgica experiência pessoal e relacional do indivíduo transexual;

  • - Consideração crítica de outras alternativas necessárias para a melhoria da qualidade de vida, sobretudo no que se refere às relações sociais.

Os profissionais que compõe a equipe são responsáveis por incitar o questionamento da demanda transexual de transgenitalização, que deverá ter como conseqüência, no caso da opção pela intervenção cirúrgica, do consentimento livre e esclarecido do(a) usuário(a).

A cirurgia de transgenitalização para construção do pênis são experimentais e têm sua viabilização condicionada a protocolos de pesquisa em hospitais universitários. As demais cirurgias transexualizadoras para homens transexuais (histerectomia e mastectomia) não encontram essa restrição.

Em caso de internação médico-hospitalar, o(a) transexual será internado(a) na enfermaria em conformidade ao sexo com o qual se identifica socialmente, a despeito do nome que conste no registro civil.

3.2.3. Atenção Continuada

O Processo Transexualizador no SUS apresenta situações que exigem a atenção continuada do usuário da saúde. A hormonioterapia requer o uso contínuo de hormônios por longos períodos detempo, por isso, há necessidade da assistência endocrinológica continuada. Os exames devem ser realizados com intervalo máximo de um ano, a fim de reduzir danos por efeitos colaterais do uso da medicação, e para viabilizar diagnósticos precoces em relação a câncer e baixa densiometria ósseos.

A transgenitalização implica na atenção pós-cirúrgica, que não restringe seu sentido à recuperação física do corpo cirurgiado, mas também à própria pesquisa dos efeitos da medida cirúrgica na qualidade de vida do(a) transexual cirurgiado(a). O acompanhamento pós-cirúrgico deve se estender por pelo menos dois anos após a ocorrência do procedimento. O tratamento psicológico e social se mantém como possibilidade a todo usuário que retorne ao SUS com demanda de psicoterapia ou de assistência social, mesmo havendo o paciente se desvinculado dos programas de atenção por tempo indeterminado.

3.3. Efeitos jurídicos da mudança de sexo

Na generalidade dos casos, os transexuais, sabedores da dificuldade de obter uma autorização judicial para mudar de sexo, preferem apresentar o fato consumado: realizam possivelmente no estrangeiro a operação e depois pedem retificação. Seja de forma autorizada no país, ou executada no estrangeiro, é certo que uma vez feita a operação haverá efeitos psicológicos, socioculturais e, claro, jurídicos.

O primeiro efeito que podemos perceber é a imediata vontade de mudança de nome, o qual compõe direito á identidade pessoal, direito de adaptar o nome á nova realidade do indivíduo, visto que o nome é forma como nos apresentamos socialmente. Justa mudança, pois assim evita-se que o mesmo sofra qualquer tipo de constrangimento por conter um nome incompatível com sua nova aparência física. Como dito anteriormente, no Brasil não há lei específica tratando do transexual, mas neste assunto especificamente, podemos analogamente usar a Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973) para defender tal questão, pois em seu artigo 55, §único, encontra-se regra em que faculta aos oficiais do registro civil a recusa ao registro de prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. O objetivo de tal norma é o de evitar constrangimento a qualquer cidadão e deve ser estendida aos transexuais, que não devem ser visto como motivo de chacota unicamente pela sua condição de transexual.

A diferença em questão é que tal alteração não constitui apenas uma correção de um nome e sim alteração do estado individual da pessoa de acordo com sua identidade sexual. A partir daí, surge uma determinada polêmica em que um grupo de pessoas mais conservadoras defende que nos documentos de identificação do indivíduo operado deva conter o termo “transexual”. Tal atitude violaria o direito à intimidade e privacidade do indivíduo, visto que sua situação não seria diferente, caso seu nome não fosse modificado, pois, estaria sujeito da mesma forma a situações constrangedoras e embaraçosas, se não, de próprio desprezo público. Já outros, a partir deste entendimento, defendem que a honra e a intimidade do transexual deve ser respeitada, defendem que o termo esteja contido apenas na certidão de nascimento, pois não é tão ostensivo quanto os documentos de identidade, e diria até, que necessário, para que não induza alguém a erro sobre tal pessoa.

Por fim, depois de feita a cirurgia, depois de adquirido o direito de mudança de nome, há de se reconhecer ao transexual o direito de constituir matrimônio com pessoa de sexo oposto (oposto ao sexo que possui depois da operação). Vale ressaltar que sua condição de transexual deve ser de conhecimento da pessoa com quem se pretende casar, caso contrário o matrimônio pode ser anulado, por constituir erro essencial de pessoa (1.556 e 1.557, I, do Código Civil).


4. Transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano em vida: os limites legais

Entre as exceções previstas em lei para a prática de atos que podem resultar na diminuição permanente da integridade física, encontram-se os transplantes. No Brasil, a Lei n. 9.434/97 cuidou de regulamentar o problema dos transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem – embora, para fins deste estudo, apenas os primeiros interessem.

Tanto no preâmbulo quanto em seu art. 1º, nota-se que a Lei n. 9.434/1997 contempla duas possibilidades, em se tratando de intervenções sobre a integridade física em vida: admite-se a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano tanto para fins terapêuticos quanto de transplantes. Enquanto na primeira hipótese o consentimento do indivíduo implica uma autorização para a intervenção corporal que tem o único intuito de tratá-lo e curá-lo, sem que tal implique qualquer vinculação a outrem, há, na segunda, um interesse direto de terceiro, ou seja, do receptor dos órgãos ou tecidos. Naquela hipótese, justifica-se a intervenção corporal, mesmo que lesiva à integridade física, para prover a sobrevivência do próprio paciente; na derradeira, contudo, o doador de órgãos não obtém qualquer benefício com a intervenção, mas antes consente com a prática de um ato que resultará num agravamento da sua condição, restando todo o benefício em favor de um terceiro. Não obstante as considerações dirigidas a uma questão sejam extensíveis à outra, a matéria que interessa mais de perto é a dos transplantes, precisamente porque, quanto a eles, caberá encontrar alguma justificativa capaz de legitimá-los num fundamento exterior ao próprio sujeito, que só vê sua incolumidade física abalada ao anuir com a prática do ato.

Quando se coloca em questão a possibilidade de se dispor do corpo humano para fins de transplantes, três fundamentais princípios jurídicos são postos à prova: a autonomia privada, a solidariedade e a intangibilidade corporal. Sob o prisma estritamente deste último, a necessidade de se preservar a incolumidade física de uma pessoa poderia valer como impedimento à prática dos transplantes; no entanto, analisado o problema em cotejo com aqueles outros dois valores, constata-se que o ato voluntário de disposição do próprio corpo para fins de transplante não apenas decorre do direito à autodeterminação dos indivíduos, mas se presta, precipuamente, à preservação da vida e da saúde de outrem. Poucas condutas podem ser tão nobres, e o ato, por isso, encontra fundamento na inegável solidariedade que move uma pessoa a dar de si mesma aos outros.

É possível ir além: o altruísmo que impele o doador à realização de um transplante não é, ainda, o argumento final. Ao se proceder a uma ponderação entre os princípios em pauta, é perfeitamente possível o sacrifício (parcial e cautelosamente limitado, como se verá) da integridade corporal, porque o ato se revela necessário à salvaguarda de bens jurídicos do mais elevado escalão. Sendo possível manter vivo e saudável o doador, apesar da redução permanente da sua integridade física, não há que proibir o ato do transplante, posto que animado pelo propósito de também preservar viva e saudável outra pessoa.

Importa atentar para a utilização, no próprio texto da lei, das expressões “doação” e “doador”, para exprimir, respectivamente, o ato de dispor do próprio corpo em vida e o indivíduo que se dispõe a praticá-lo. Naturalmente, é inadequado confundir a doação de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo com a doação a que se referem os 538 a 564 do Código Civil.3 O doador a que se reporta a Lei n. 9.434/1997 seria, em terminologia mais adequada, o disponente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo. Entretanto, por serem as expressões “doador” e “doação” reiteradamente empregadas para tais fins, seja na legislação ou no meio doutrinário e jurisprudencial, serão também utilizadas nas considerações que se seguem.

Embora a lei admita expressamente a disposição de partes do corpo humano para atender aos transplantes, há diversos limites para a prática do ato, mediante a salvaguarda da vida e da saúde tanto do doador quanto do receptor.

Quando cogitados os limites para as intervenções corporais, ainda que em sede de transplantes – atos consentidos, portanto – vêm à tona, em primeiro lugar, os princípios da beneficência4 (que significa usar todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente, com vistas à minimização dos riscos e à maximização dos benefícios) e da não-maleficência (a impor, sobretudo aos profissionais da saúde, o dever de não causar mal e/ou danos a seus pacientes).5 A beneficência, portanto, deve ser encarada como um princípio de cariz comissivo, a impor um comportamento ativo, mediante o emprego do esforço que se revele possível para obter os melhores resultados; a não-maleficência, por sua vez, se reveste de um tom passivo, ao determinar a omissão de comportamentos que possam ser lesivos à integridade física, numa manifesta derivação da determinação de Hipócrates, segundo a qual é imprescindível “antes de tudo, não fazer mal” (“primum non nocere”). Analisados em conjunto, estes princípios implicam a vedação de toda e qualquer intervenção danosa, exceto se puder resultar na melhoria da qualidade de vida do paciente.

Transposto este raciocínio para a seara dos transplantes, é possível traduzir o sentido dos princípios expostos numa única formulação: o ato do transplante deve ser necessário para salvaguardar a vida e a saúde do receptor, e o seu benefício deve também ser superior ao sacrifício da integridade corporal do doador. Beneficência e não maleficência atuam, aqui, com o propósito de minimizar as lesões ao doador e potencializar ao máximo o proveito ao receptor.

Postas estas questões prévias, compete analisar em que termos o legislador brasileiro disciplinou a matéria dos transplantes. Em se tratando da disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo, ponto que merece particular consideração para os fins destas notas, a disposição nuclear contida na Lei n. 9.434/1997 é o art. 9º, cujo teor se transcreve:

“Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei n. 10.211/2001)

§ 1º (VETADO)

§ 2º (VETADO)

§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.

§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.

§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.

§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.

§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.

§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais”.

A análise da disposição provoca uma série de questionamentos, alguns deles, aliás, carentes de preenchimento ora pelo intérprete, ora pelo próprio legislador, que, para regulamentar a Lei n. 9.434/1997, editou, no mesmo ano, o Decreto n. 2.268, de 30 de junho. O primeiro e mais primordial aspecto a salientar consiste na indicação dos requisitos erigidos em lei para a realização de transplantes no Brasil. É possível, consoante o conteúdo destes requisitos, classificá-los em três grupos, a seguir indicados:

De início, a lei estabelece determinados requisitos subjetivos, posto que respeitam aos próprios agentes envolvidos.

Em primeiro lugar, o doador deve ser juridicamente capaz, consoante preveem o caput da disposição transcrita e o art. 15. do Decreto n. 2.268/1997. Como estas normas não fazem distinção entre os absolutamente e os relativamente incapazes, impõe-se o entendimento de que nenhum deles poderá dispor do seu corpo para fins de transplante, à exceção da hipótese contemplada no § 6º acima transcrito, que permite a doação de medula óssea, desde que previamente consentida pelos representantes legais e autorizada judicialmente e, em acréscimo, desde que o ato não venha a comprometer a vida e a saúde do doador. Ao regulamentar a questão, o art. 15, § 8º do Decreto n. 2.268/1997 estatui que “a extração de parte da medula óssea de pessoa juridicamente incapaz poderá ser autorizada judicialmente, com o consentimento de ambos os pais ou responsáveis legais, se o ato não oferecer risco para a sua saúde”.

Quanto ao receptor, a lei exige, como regra, que seja cônjuge ou parente consanguíneo até o quarto grau, inclusive, do doador. Se o beneficiário não estiver enquadrado neste restritivo rol, a lei admitirá o transplante, desde que precedido de autorização judicial, procedimento somente dispensado em relação aos transplantes de medula óssea.

O texto legal revela preocupação com a higidez da manifestação de vontade dos interessados. Isto vale não apenas para o disponente dos órgãos e tecidos, mas também para o receptor, como registra o art. 10. da Lei n. 9.434/1997: “o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento”. Os parágrafos 2º e 3º do art. 22. do Decreto n. Decreto n. 2.268/1997, por sua vez, explicitam as exigências do consentimento prestado pelo receptor, ao determinar que a autorização para o procedimento conterá informações a ele concernentes e as perspectivas de êxito ou insucesso e que os riscos considerados aceitáveis pela equipe de transplante ou enxerto serão informados, com indicação das sequelas previsíveis. O descumprimento do aludido dever de informar sujeitará o infrator às penas do art. 14. da Lei n. 9.434/1997, que sanciona a conduta de remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições deste diploma.

Na sequência, é possível enumerar a presença de requisitos objetivos, que respeitam ao ato em si, descritos pelo § 3º do art. 9º.

Quanto aos órgãos, tecidos ou partes do corpo que podem ser transplantados, exige a lei que sejam duplos (como os pulmões) ou que possam ser retirados do organismo do doador sem que daí advenha risco sua à integridade. Aqui, a disposição não pode ser tomada em sua acepção literal: evidentemente, toda intervenção que tenha o propósito de retirar partes do corpo humano pata fins de transplante derivará, necessariamente, de uma redução da integridade corporal, que restará definitivamente comprometida. Quer-se estabelecer, com a reserva em apreço, que a recolha do órgão ou tecido não poderá resultar num prejuízo à saúde e à funcionalidade do organismo do doador, ou seja, que a intervenção não impedirá que ele continue a viver nas mesmas condições em que se encontrava no período pré-operatório.

Além disso, exige a lei que o ato não represente grave comprometimento das aptidões vitais e da saúde mental do doador, nem cause mutilação ou deformação inaceitável. Não se admite que, com a cirurgia, determinadas capacidades sejam suprimidas, como também não se tolera que a intervenção termine por desfigurar a fisionomia do doador. É o que impede a retirada de órgãos que, apesar de duplos, ocasionariam mutilação grave se ausentes, como as córneas. Colocadas todas estas ressalvas, servem como exemplos de órgãos e tecidos passíveis de transplante inter vivos a pele e a medula óssea e, entre as partes de órgãos, o fígado.6 Em suma, o transplante, nos casos em que a lei o permite, não compromete o núcleo duro dos direitos à vida e à saúde.

Ademais, o transplante deve corresponder a uma comprovada necessidade terapêutica do receptor. Segundo a lei, portanto, condutas de mero capricho (como seria o de dispor do corpo sem que a medida seja indispensável) ou mesmo de heroísmo (feito disponibilizar um órgão vital, como o coração, para salvar a vida alheia) não se admitem: há que demonstrar, em relação ao receptor, a imprescindibilidade do ato (que, em reforço, deverá ser inadiável, consoante os termos do § 2º do art. 15. Decreto n. 2.268/1997). O transplante, portanto, não deve ser apenas recomendável ou conveniente, mas verdadeiramente indispensável. Tal representa não apenas uma decorrência de um dos reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana, que não permite a sua instrumentalização (ou seja, não é legítimo pretender sacrificar uma “vida-meio” para salvar uma “vida-fim”), mas também significa que deve ser inviável a cura por outra intervenção médica, preferencialmente menos invasiva, ou mesmo pela obtenção de órgãos de cadáveres, porque se estas soluções forem suficientes, dispensa-se a necessidade de se recorrer ao transplante entre vivos. Com este mesmo propósito de recorrer aos transplantes como derradeira e imprescindível medida, o art. 23. do Decreto n. 2.268/1997 estipula que “os transplantes somente poderão ser realizados em pacientes com doença progressiva ou incapacitante, irreversível por outras técnicas terapêuticas (...)”.

Finalmente, impõe-se a gratuidade do ato. Esta é uma decorrência não apenas da determinação contida no art. 1º da Lei n. 9.434/1997, mas pelo próprio caráter extrapatrimonial do direito à integridade física. Como se viu a propósito do estudo da relativa disponibilidade dos direitos da personalidade em geral, alguns deles são compostos também de uma região periférica, dotada de um conteúdo econômico; não é, contudo, o caso do direito ao próprio corpo, em relação ao qual se rejeita a prática de todo ato jurídico de cunho patrimonial. Precisamente em virtude disso, o art. 15. da Lei n. 9.434/1997 tipifica como criminosa não apenas a compra e venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, mas também o ato de promover, intermediar, facilitar ou auferir qualquer vantagem com a transação.7

Finalmente, atesta-se a presença de requisitos formais, concernentes à maneira de exercer o ato. Neste particular, há duas normas dignas de nota. A primeira delas é o § 4º do art. 9º da Lei em questão, outrora reproduzido, a determinar que o doador deva especificar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, qual o tecido, órgão ou parte do corpo a sofrer a colheita. A outra, contida no art. 10. da Lei, estipula que “o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento”.

As referidas disposições, manifestamente lacunosas, terminaram por ser preenchidas por outras normas, contidas no Decreto n. 2.268/1997. Enquanto o texto da Lei n. 9.434/1997 previu que o consentimento do doador deveria ser firmado “preferencialmente” por escrito e “diante de testemunhas”, sem determinar ao certo o seu número, o art. 15, § 4º do aludido Decreto precisou estas exigências:

“O doador especificará, em documento escrito, firmado também por duas testemunhas, qual tecido, órgão ou parte do seu corpo está doando para transplante ou enxerto em pessoa que identificará, todos devidamente qualificados, inclusive quanto à indicação de endereço”.

Em acréscimo, o § 5º do art. 15. do Decreto n. 2.268/1997 prevê que o documento escrito, em que o doador manifesta seu consentimento, deverá ser expedido em duas vias, “uma das quais será destinada ao órgão do Ministério Público em atuação no lugar de domicílio do doador”, exigência somente dispensada em se tratando de doação de medula óssea, por força do § 6º do mesmo dispositivo.

Para além dos mencionados requisitos, o art. 2º da Lei n. 9.434/1997 determina que os transplantes só podem ser realizados por estabelecimentos de saúde, sejam eles públicos ou privados, e por equipes médico-cirúrgicas previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde (SUS). O parágrafo único do dispositivo prevê, em complemento, que a realização de transplantes deve ser precedida de testes de triagem sobre o doador, para diagnóstico de infecção e infestação exigidos em normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde.

Outro aspecto digno de relevo diz respeito à previsão dos autotransplantes, também designados transplantes autoplásticos. Ao contrário das transplantações heteroplásticas, que envolvem a remoção de partes de um organismo e a inserção em outro,8 o autotransplante supõe a transferência de tecidos de um lugar para outro, no mesmo organismo, como ocorre com as cirurgias de “ponte de safena”.9 Por se tratar de ato unilateral, independente de vinculação com terceiros, o § 8º do art. 9º da Lei n. 9.434/1997 determina que “o auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais”.

Cabe ainda salientar um aspecto crucial: a autorização do doador para a realização de transplantes é plenamente revogável. Nos termos do art. 9º, § 5º da Lei n. 9.434/1997, “a doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização”. Por sua vez, o § 7º do art. 15. do Decreto n. 2.268/1997, que regulamenta aquela Lei, estabelece balizas mais precisas, ao estipular que “a doação poderá ser revogada pelo doador a qualquer momento, antes de iniciado o procedimento de retirada do tecido, órgão ou parte por ele especificado”.

Embora a lei nada disponha a respeito, é forçoso concluir que, ao contrário da autorização, que deverá ser prestada por escrito, a declaração de revogação do consentimento pode ser firmada inclusive oralmente, uma vez que a lei, ao admiti-la em qualquer momento que anteceda o início do procedimento de retirada do órgão ou tecido a ser transplantado, faculta que tal ocorra, inclusive, no momento em que se estiver prestes a começar a intervenção, circunstância em que já não se poderá exigir do indivíduo que se manifeste por escrito.

Tudo que se expôs acerca dos transplantes, enfim, serve como argumento para legitimá-los. Não poderia o legislador, com supedâneo no interesse de preservar a incolumidade física das pessoas, estabelecer empecilhos para que elas pudessem livremente escolher abdicar de parte do próprio corpo para, num gesto de inegável fraternidade, ajudar o próximo. Sendo a solidariedade um dos objetivos fundamentais da República e, inequivocamente, uma das mais expressivas dádivas inerentes ao comportamento humano, encontram-se, na lei e na alteridade, os fundamentos que, afinal, justificam que uma pessoa possa validamente consentir com tão significativa intromissão sobre seu corpo.

O legislador brasileiro, cautelosamente, soube dimensionar as questões éticas e jurídicas que o tema abarca, ao disciplinar os transplantes de forma a preservar a vida e a saúde dos doadores e, ao mesmo tempo, salvaguardar, em relação aos receptores, estes mesmos bens jurídicos. Não há, enfim, violação ao ordenamento: o núcleo duro dos direitos à vida e à integridade física permanece inabalado e, numa perspectiva ponderativa, o parcial sacrifício do corpo de uns é adequado ao proveito que se extrai dos transplantes; ao revés, antes há, sem dúvida, a promoção dos valores existenciais da pessoa humana e o reconhecimento de que sua dignidade também se concretiza, enfim, com a realização dos outros.


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Notas

1 Disponível em: <https://ai.eecs.umich.edu/people/conway/TS/PT/SRS-PT.html > Acesso em: 8 de outubro 2012.

2 Disponível em: <https://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=34017&janela=1> Acesso em 22 de outubro de 2012.

3 Segundo RITA DE CÁSSIA CURVO LEITE, “(...) a disposição de órgãos e tecidos não configura doação propriamente dita, no sentido técnico-jurídico, mas, sim, uma doação sui generis, na medida em que há transferência de bens de um sujeito a outro, gratuitamente, favorecendo-se um em detrimento do outro” (LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de órgãos e tecidos e os direitos da personalidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 101).

4 Conforme expõem DÉLIO JOSÉ KIPPER e JOAQUIM CLOTET, “beneficência, no seu significado filosófico moral, quer dizer fazer o bem. (...) O princípio da beneficência tem como regra norteadora da prática médica, odontológica, psicológica e da enfermagem, entre outras, o bem do paciente, o seu bem-estar e os seus interesses, de acordo com os critérios do bem fornecidos pela medicina, odontologia, psicologia e enfermagem. (...) O princípio da beneficência tenta, num primeiro momento, a promoção da saúde e a prevenção da doença e, em segundo lugar, pesa os bens e os males buscando a prevalência dos primeiros” (KIPPER, Délio José; CLOTET, Joaquim. Princípios da beneficência e não-maleficência. Disponível em https://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/bioetica/ParteIIprincipios.htm. Acesso em 07 de fevereiro de 2012).

5 LOCH, Jussara de Azambuja. Princípios da bioética. Disponível em: https://www.nhu.ufms.br/Bioetica/Textos/Princ%C3%ADpios/PRINC%C3%8DPIOS%20DA%20BIO%C3%89TICA%20(3).pdf. Acesso em 06 de fevereiro de 2012.

6 LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de órgãos e tecidos e os direitos da personalidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 131-132.

7 Apesar de se tratar de determinação legal no Brasil, há quem conteste a vedação à comercialização de órgãos. JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI, por exemplo, entende que “os fins humanitários e terapêuticos não se desnaturam quando o disponente é movido pelo fim de lucro (...)” (PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 228).

8 O transplante heteroplástico não necessariamente pressupõe que os organismos envolvidos pertençam à mesma espécie. Assim, existem os homo-transplantes, ou transplantes homólogos, em que os indivíduos são da mesma espécie, e os xenotransplantes, em que se dá a transferência de um órgão ou tecido de animais para seres humanos (OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quitino. Doação de órgãos e tecidos humanos. Disponível em https://www.unorp.br/downloads_blogs/Doacao_de_Orgaos_e_Tecidos_Humanos.pdf. Acesso em 07 de fevereiro de 2012).

9OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quitino. Doação de órgãos e tecidos humanos. Disponível em https://www.unorp.br/downloads_blogs/Doacao_de_Orgaos_e_Tecidos_Humanos.pdf. Acesso em 07 de fevereiro de 2012.


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