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Recall: o direito de revogação do mandato político e a Constituição Federal Brasileira

Recall: o direito de revogação do mandato político e a Constituição Federal Brasileira

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O recall, que não faz parte das propostas da reforma política em andamento, se mostra um remédio mais eficaz contra a crise política e de representatividade, pois conferirá ao cidadão um maior controle dos seus representantes.

RESUMO:O presente artigo trata sobre o instituto do recall, em seu conceito político de direito de revogação do mandato político pelos eleitores, e a compatibilidade com a Constituição Federal. Diante da grave crise de representatividade, que passa o Brasil atualmente, na qual a maioria da população brasileira não se sente representada por nenhum partido ou político, e levando em consideração que mais da metade do povo deseja o impeachment da Presidente da República, o recall surge como uma alternativa para a reforma política que está sendo votada aos poucos no Congresso Federal. Diferente do impeachment que para ocorrer deve o Chefe do Executivo ter cometido um crime de responsabilidade, o recall confere ao eleitor a possibilidade de revogar um mandato concedido quando se perdeu a confiança ou quando o governante não esteja realizando um trabalho honesto e eficiente. Para a realização do presente estudo, foram utilizados métodos dedutivos, históricos e comparativos, com o intuito de analisar o instituto do recall, outros instrumentos de revogação do mandato eletivo existentes no mundo e a sua compatibilidade com a Constituição Federal.

 

 

Palavras-chave: Recall. Representatividade. Democracia semidireta. Mandato eletivo. Revogação.

 


1 INTRODUÇÃO

 

O Brasil passou por manifestações populares em 2013 que chamaram a atenção do mundo, durante a realização da Copa das Confederações, que pediam reforma política, mais saúde, educação e criticavam os gastos com a Copa do Mundo de 2014.

Conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE) realizada com 2002 (dois mil e dois) manifestantes em oito capitais durantes os protestos de 20 de junho de 2013, 89% (oitenta e nove por cento) dos manifestantes não se sentiam representados por qualquer partido político, e 86% (oitenta e seis por cento) por nenhum político brasileiro (SILVA, 2013).

A  ex-Presidente, Dilma Rousseff (PT), foi reeleita nas eleições de 2014 com 51,6% (cinquenta e um vírgula seis por cento) dos votos válidos, contra 48,3% (quarenta e oito vírgula três por cento) do candidato Aécio Neves (PSDB), em uma eleição difícil.

Com a deflagração da “Operação Lava-Jato” pela Polícia Federal que investiga um esquema bilionário de corrupção na Petrobras, somada à inflação alta, insegurança econômica, cortes em programas sociais, aumento de tributos, a popularidade da Presidente chegou a um nível bem baixo. De acordo com a pesquisa do Instituto DataFolha (2015) apenas 8% (oito por cento) da população considera a administração ótima ou boa.

O País passa por um grave momento de instabilidade política, com manifestações populares que levaram milhões às ruas em 2015, e entre as reivindicações estava o impeachment da atual Presidente, que ocorreu no ano de 2016, assumindo em seu lugar o então Vice-Presidente, Michel Temer.

Com tantos escândalos de corrupção e sinais de má gestão do dinheiro público, a democracia representativa não tem representado o povo, haja vista que segundo pesquisa recente do Instituto DataFolha (2015) 66% (sessenta e seis por cento) da população brasileira desejava o impeachment.

Após o impeachment da ex-Presidente, o Presidente Temer iniciou uma série de reformas impopulares como a da Previdência e Trabalhista, além de novamente os escândalos de corrupção invadirem seu governo. A insatisfação popular é grande, a popularidade do Presidente está mais baixa que a da anterior. Mais uma vez, a população pede e deseja a saída do Chefe maior do País, mas o processo de impeachment não é tão simples.

Isso porque, o processo de destituição de um Presidente no atual sistema brasileiro apenas pode ocorrer no caso do Chefe do Executivo ter cometido crime de responsabilidade, que são definidos pela Lei 1.079/1950, e também depende do interesse político do Congresso.

Também consta nessa pauta a reforma política, que aos poucos está sendo votada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A crise que o Brasil está passando demonstra que a democracia representativa necessita de alterações, pois, tem apresentado falhas.

Essa crise representativa enfraquece as instituições políticas, distancia eleitores e eleitos, e acaba por enfraquecer a própria democracia brasileira, quando o sentimento geral da população é de total descrença na classe política.

O recall político, ou, o direito de revogação do mandato eletivo pela população surge como uma alternativa ao procedimento do impeachment, pois, é proveniente da ação política da população e não de deliberações legislativas. Existem diversas formas de ocorrer, mas, a mais comum se dá através de um plebiscito, convocado por um número determinado de cidadãos, no qual a população vota continuar ou revogar o mandato eletivo do representante.

Em 2003 esse instituto ganhou evidência quando um plebiscito trocou o então Governador da Califórnia - Estados Unidos, Gray Davis, pelo ator Arnold Schwarzenegger.

Em 2006, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entregou ao então Ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, proposta de reforma política que contemplava o recall. Com a reforma política sendo votada no Congresso neste ano de 2015, o movimento “Vem pra Rua” sugere o instituto revocatório como forma de consultar a população sobre a continuidade ou não de um governante.

No Brasil, foram propostas 4 alterações na Constituição, para incluir esse instrumento de revogação do mandato, mas todas foram arquivadas, em sua maioria em razão do término do mandato eletivo dos Autores conforme determina os Regimentos Interno da Câmara e do Senado.

Sendo o Recall uma forma de iniciativa e participação popular a atual Constituição Brasileira mostra-se compatível com esse instrumento de revogação do mandato eletivo.

No presente trabalho será realizado um breve histórico desse instituto, a história no Brasil de instrumentos de revogação, o conceito de recall, os procedimentos adotados na Califórnia e em países da América Latina, analisando a sua compatibilidade com a Constituição Federal, com a apresentação de um breve conceito de democracia direta, representativa e semidireta, sendo finalizado com a análise de 4 propostas que tramitaram no Congresso Nacional após a Constituinte.

Considerando o exposto, o presente artigo irá abordar esse instrumento de iniciativa popular denominada Recall, que confere ao povo o direito de revogação do mandato eletivo, através da análise de legislação, artigos científicos e monografias.

 


2 O INSTITUTO DO RECALL

 

2.1 Breve Histórico

 

Apesar de casos de perda de mandato público terem sido registrados em diversos momentos da história, como na Grécia antiga, no período medieval e na Suíça, o presente instituto como é conhecido atualmente tem origem, apesar de ter sofrido diversas influências, na democracia norte-americana.

Segundo Spivak (2004, p. 22 apud ÁVILA, 2009, p. 57) a primeira previsão normativa sobre o tema surgiu nas Leis denominadas General Court of Massachussets Bay Colony, no ano de 1631, e mais tarde na Colony Charter, em 1691.

Cronnin (1999, p. 129) citado por Ávila (2009, p. 59) afirma que “há registro de que na época dos Artigos da Confederação (1781-89) foram apresentadas propostas para a criação de um instituto muito semelhante ao recall”. Essas propostas não prosperaram por falta de apoio, em especial daqueles que participavam das convenções de ratificação (CRONNIN, 1999, p. 129 apud ÁVILA, 2009, p. 59).

Foi no final do século XIX e início do Século XX que a revogação dos mandatos eletivos ressurgiu com força, especialmente no estado da Califórnia, com a denominação de recall, a fim de combater os abusos econômicos cometidos por uma empresa privada ferroviária que realizava o transporte de passageiros e de mercadoria chamada Southern Pacific Railroad.

Segundo Àvila (2009, p. 60) havia um movimento denominado Progressive Movement no Partido Republicano que buscava acabar com a influência econômica dos grandes grupos e empresas sobre os políticos e magistrados.

Conforme Cronnin (1999 apud ÁVILA 2009):

 

[...] além dos progressistas, em 1890, os Partidos Populistas e Socialistas já incitavam a adoção do recall em nível nacional e estadual, sob o argumento de que os governos estavam infestados de pessoas corruptas e privilegiadas. Para eles o dinheiro e o lobby subvertiam a democracia representativa e aí passaram a afirmar que o representante seria um agente e não o patrão.

 

Muitos outros casos de instrumentos de revogação de mandato público são encontrados na história, em diversos países e em diversos sistemas de governo. Cumpre ainda destacar, que na Comuna de Paris em 1871, surgiu uma figura de revogação do mandato.

Nesse sentido, destaca Bobbio (2004, p. 467):

 

Se depois de considerarmos o mandato livre como um instituto característico da democracia representativa, haveremos de convir que sua crítica mais radical veio do movimento operário de inspiração marxista, a reboque das famosas reivindicações de uma representação verdadeira e própria, e portanto com poder de revogação do mandato por parte do mandante, feita pelo próprio Marx no comentário aos acontecimentos da Comuna de Paris. A revogação do mandato foi introduzidas nas sucessivas constituições soviéticas, depois de ter sido proclamada no momento da derrubada do antigo poder como único instituto que a democracia representativa operária poderia permitir, aproximando-a da democracia direta. Assim, o movimento operário revolucionário fazia retornar com honra um instituto que a democracia “burguesa” havia suprimido, tendo-o reputado anacrônico.

 

Apesar de todos esses registros, o recall como é hoje conhecido nasceu do movimento progressista americano, que além do presente instituto também inovou ao trazer a iniciativa popular e o referendo para a democracia.

Em 1908 no Estado do Oregon e em 1911 no Estado da Califórnia o recall foi instituído, e posteriormente muitas outras cidades e Estados passaram a dispor sobre esse instituto em suas Leis Orgânicas e Constituições.

Segundo Vieira e Souza (2014) há notícias de mais de dezenove estados e cem municípios dos Estados Unidos da América que adotam o recall, além de cantões suíços e desde 2009 as Filipinas.

Nos países latino-americanos a revogação de mandato eletivo, embora não seja o recall estadunidense, encontra-se previsto na Colômbia (1999), Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009), com requisitos e quóruns diferentes nas legislações, inclusive, com regras mais rígidas do que no Estado da Califórnia, Estados Unidos.

 

2.2 Histórico no Brasil

 

Como já destacado, o recall é um instituto norte americano, entretanto, para os fins deste artigo a revogação do mandato eletivo será interpretada como recall.

No Brasil, há registros de previsões de revogação do mandato eletivo no Império e na República Velha, nas Constituições dos Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás e Santa Catarina.

Durante a Assembleia Constituinte de 1988 houveram tentativas de incluir na Constituição tal previsão, com o nome de “voto destituinte”. O ex-deputado Lysâneas Maciel (PDT-RJ) através de uma emenda aditiva buscou colocar no texto constitucional que os eleitores poderiam revogar o mandato dos integrantes do Congresso, das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores.

Santana (2014) destaca que outro deputado constituinte também buscou inserir no texto constitucional previsão nesse mesmo sentido:

 

Outra proposta semelhante foi a do deputado Domingues Leonelli, que também inseria a noção de revogação de mandato, mas não mantinha de denominação de ‘voto destituinte’. Art. A Lei estabelecerá a forma pela qual a maioria dos eleitores poderá destituir do cargo aquele que decair da confiança coletiva no exercício do mandato.

 

Segundo o mesmo Autor, a ideia de incluir no texto constitucional a revogação do mandato eletivo acabou de vez, quando houve a inclusão da ação de impugnação do mandato eletivo, embora seja diferente do instituto americano do recall e diferente da revogação do mandato pelos eleitores.

Após a Constituição Federal de 1988, há registros de 4 Propostas de Emendas à Constituição, todas encontram-se arquivadas, mas o tema será abordado em outro tópico.

 

2.3 Conceito

 

Necessário é conceituarmos o Recall, e para tanto será utilizado o conceito de alguns autores, com o foco no instituto estadunidense e não nos instrumentos de revogação do mandato de outros países que possuem outros nomes.

Ademais, o termo Recall pode ter outros significados, como o instrumento pelo qual fabricantes convoca os consumidores, por meio de divulgação ampla, para arrumar um produto defeituoso, visando proteger o consumidor e garantir a segurança desses, mas, para fins deste artigo abordaremos apenas o termo em seu sentido político.

Da mesma forma, não será abordada a utilização do instituto do recall para revogação de decisões judiciais, que ocorre nos Estados Unidos da América, e que já chegou a ser declarado inconstitucional pela Suprema Corte do Colorado em 1921.

Cronin (1999 apud ÁVILA 2009) conceitua recall como o poder que possui o eleitor de destituir e substituir uma autoridade pública. Para o Autor, a ideia desse instituto é garantir ao eleitor o direito de controlar os eleitos. Ainda, segundo o mesmo autor, a premissa desse instituto é de que se as pessoas podem ser eleitas por razões não relacionadas à sua capacidade para exercer o mandato, eles também podem ser destituídos por uma série de razões.

Segundo Munro (1949 apud ÁVILA 2009) o recall pode ser conceituado como o direito de um determinado número de eleitores requerer a destituição de um mandatário de cargo eletivo, e fazer com que esse requerimento seja submetido e votados pelos demais eleitores. Ainda, segundo o mesmo Autor, o recall está baseado na ideia de que o eleitor deve manter o controle sobre o eleito, sendo capaz de destituir seus agentes públicos.

Para Sampaio (1950 apud SANTANA, 2004), o recall pode ser compreendido como um poder conferido ao eleitor de destituir um eleito antes do término natural do seu mandato.

Aieta (2002 apud SANTANA, 2004) afirma que “recall designa um meio ou procedimento pelo qual a posse permanente de um cargo público pode ter fim por meio de voto popular”.

Barnett (1915 apud SANTANA, 2004) define o recall como “uma eleição especial para decidir se o agente público deve ser substituído antes do fim normal do seu mandato”.

Dallari (1998) ensina que recall é um instituto norte-americano utilizado para revogar o mandato de juízes, legisladores e funcionários públicos, sendo necessário que um determinado número de eleitores faça o requerimento de uma consulta ao eleitorado sobre a manutenção ou revogação do mandato conferido a alguém.

Por fim, a definição de Ávila (2009) demonstra com profundidade o instituto do recall norte-americano:

 

O recall é um mecanismo de democracia semidireta, típico dos Estados Unidos da América, adotado no início do século XX em determinados Estados da Federação norte-americana para combater a corrupção e incompetência das autoridades públicas, principalmente em nível local. Caracteriza-se como direito político do cidadão, não sendo permitida sua utilização contra autoridades federais. [...] e o seu procedimento básico consiste numa primeira fase de coleta de assinaturas dos eleitores, mediante caução prévia em dinheiro e, após a obtenção de um percentual mínimo de assinaturas válidas, resulta numa segunda fase na qual se realiza, de modo geral, uma eleição especial para destituir (e substituir) autoridades públicas estaduais e municipais [...] sendo que sua utilização hoje, nos Estados Unidos, ocorre principalmente em nível local, onde se permite, inclusive, seu uso excepcional para destituição de diretores de escolas.

 

Enfim, trata-se de um instituto que confere ao cidadão o direito de revogar o mandato conferido a alguém que não esteja cumprindo com seus deveres, sendo uma eleição especial na qual se retira uma pessoa do cargo e se coloca outra no lugar.

 

2.4 Procedimentos: Análise das previsões em alguns países latino-americanos e no Estado da Califórnia

 

Para fins de pesquisa, a opção é por um recorte que demonstre três regras diferentes, e, para isso será analisada as Constituições do Estado da Califórnia e de alguns países latino-americanos.

Ainda que os instrumentos de revogação do mandato na América Latina não se assemelham ao instituto estadunidense do recall, importante analisar as previsões nesses países, para que seja possível compreender de que forma a revogação de mandatos pelos eleitores seria possível.

Na Califórnia, o recall para ser convocado é necessário que o requerimento seja assinado por 12% dos votantes na última eleição, de no mínimo 5 municípios, sendo 1% no mínimo em cada, e não é necessário motivação, apenas a mobilização popular. O Quórum para revogar o mandato de senadores, juízes e deputados é de 20%.

Na Colômbia, o quórum para convocação é de 40% (quarenta por cento) dos votos válidos, precisa ser motivado (insatisfação geral da população ou descumprimento do programa de governo).

Na Venezuela, para a convocação do referendo revocatório é necessário o quórum de 20% (vinte por cento) dos eleitores, não é necessário motivação.

Outra diferença do recall norte-americano e as previsões de revogação de mandato pelo eleitor nos países latino-americanos é que enquanto na Califórnia não existe vedação temporal, na Colômbia não pode haver a revogação antes do primeiro ano de mandato, e na Venezuela antes da primeira metade do mandato.

Quanto ao procedimento também existem diferenças, vez que na Califórnia ocorre a destituição e a substituição, ou seja, ocorre uma eleição simultânea à revogação, enquanto na Venezuela quem assume é a suplência, e na Colômbia também ocorrem eleições de forma simultânea.

Como nos Estados Unidos da América não existe previsão desse instituto a nível Federal, no Estado da Califórnia a revogação é válida para todos os cargos a nível Estadual, enquanto na Venezuela é válido para todos os cargos, inclusive a Presidência, e na Colômbia é válido apenas para Governadores e Prefeitos.

Na Califórnia o caso mais famoso foi quando o ex Governador Gray Davis foi substituído pelo ator Arnold Schwarzenegger. Nesse caso, houveram 135 candidatos para substituir o então Governador, e o ator foi eleito com 48% dos votos válidos.

Na Venezuela, em 2004 a oposição conseguiu colher a assinatura de 20% (vinte por cento) do eleitorado, e no referendo o ex Presidente, Hugo Chavez, venceu a “eleição” com 58,9% (cinquenta e oito vírgula nove por cento) dos votos e se manteve na Presidência.

Enfim, o procedimento para o recall nos Estados Unidos e nos instrumentos semelhantes ao instituto estadunidense em outros países se assemelham com os procedimentos da iniciativa popular, com uma petição assinada por um determinado número de eleitores, com requisitos quanto ao mínimo de eleitores em cada cidades/estados, e com a justificativa.

 


3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O RECALL

 

3.1 Democracia Representativa, Direta e Semidireta

 

Para uma melhor compreensão da compatibilidade desse instituto com a atual Constituição brasileira, é necessário apresentarmos breves conceitos de democracia representativa, direta e semidireta.

A democracia representativa como o próprio nome sugere é aquela na qual o povo, detentor de todo o poder, não participa diretamente da condução do País e da política, sendo representado por cidadãos eleitos.

A Constituição Federal define claramente o conceito de democracia representativa ao estabelecer no Parágrafo Único do artigo 1º que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos.

Norberto Bobbio (2000, p. 44) conceitua a democracia representativa:

 

[...] significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade.

 

Para Bonavides (2006) “o poder é do povo, mas o governo é dos representantes, em nome do povo: eis aí toda a verdade e essência da democracia representativa”.

A democracia direta tem origem na Grécia, mais especificamente em Atenas, quando os homens livres se reuniam na praça para a tomada de decisões políticas, exercendo um poder direto e imediato.

Santana (1995, p. 36) ao conceituar a democracia direta ensina que nessa modalidade “o povo exprime a sua vontade exercendo ele próprio as funções do Estado. Quer dizer, tanto a legislação como as principais atribuições executivas e judiciárias são exercidas pelos cidadãos em assembleias populares ou primárias”.

Esse modelo atualmente existe apenas em alguns cantões suíços, entretanto, a doutrina majoritária entende que tal modalidade é uma curiosidade histórica. Rosseau (1998) defendia a democracia direta, criticando a representatividade, vez que a soberania não poderia ser representada assim como não poderia ser vendida, e que a vontade não se representa.

Por sua vez, a democracia semidireta surgiu por conta das falhas da representativa, e busca mesclar a representatividade com instrumentos de democracia direta, possibilitando ao povo intervenções diretas como projetos de lei de iniciativa popular, referendos, plebiscitos, veto popular e o recall.

Bonavides (2006, p. 295) ensina que trata-se de uma modalidade “em que se alteram as formas clássicas da democracia representativa para aproximá-la cada vez mais à democracia direta”.

A Constituição Federal de 1988 adotou como modelo democrático no Brasil a democracia semidireta, ao prever instrumentos de participação direta do povo (plebiscito, referendo e iniciativa popular) em seu art. 14 e também a representatividade do poder através dos eleitos. (BRASIL, 1988).

 

3.2 A Compatibilidade Com a Constituição

 

Como já destacado, a Constituição brasileira adota um modelo de democracia mista, mesclando a representatividade com instrumentos da participação direta do povo nas decisões.

Nesse sentido, é claro novamente o Parágrafo único do art. 1 ao estabelecer que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.

No momento em que o texto constitucional dispõe que o poder que é do povo será exercido por meio de representantes eleitos estamos diante da democracia representativa, e quando estabelece que o poder do povo também poderá ser exercido diretamente é inequívoco que se trata da democracia direta.

Os instrumentos da democracia direta previstos na Constituição brasileira estão elencados no art. 14, que estabelece que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante iniciativa popular, referendo e plebiscito”. (BRASIL, 1988).

A lei que regulamenta tais instrumentos de participação direta da população é a Lei Federal nº 9.709/1998.

O instituto do recall como já destacado é um dos instrumentos da democracia direta, assim como é a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito e o veto popular.

Ávila (2009, p. 123) analisando a viabilidade do recall no Brasil afirma que:

 

[...] é necessário, em primeiro lugar, acrescentá-lo no rol do art. 14 da Constituição Federal, com a denominação que lhe é própria da língua inglesa, sem criação de nomes ou adaptações linguísticas, para que fique bem claro que se trata do instituto sobre o qual se busca inspiração no direito norte-americano. O Recall é, da mesma forma que o termo impeachment, universal, e deve significar “revogação do mandato político por decisão dos eleitores.

 

Em relação à compatibilidade do instituto revogatório com a Constituição federal, importante destacar trecho do voto do relator da Matéria no Senado, ao analisar as propostas de emendas:

 

A Proposta de Emenda à Constituição nº 80, de 2003, não apresenta óbices de ordem constitucional, nem formal, nem material. Pensamos, contudo, que se ressente de uma regulamentação mais objetiva do direito de revogação de mandato, individual e coletivo, este objeto de divergências quanto à sua aplicabilidade, inclusive por não fazer reserva legal. A Proposta de Emenda à Constituição nº 82, de 2003, por seu turno, não identifica a revogação de mandatos como hipótese de democracia direta, atacando diretamente os arts. 28, 29, 32, 55 e 82 da Carta da República, no que esses dispositivos regulam pleitos executivos, apenas. Os mandatos legislativos ficam fora do alcance do poder de revogação. A Proposta de Emenda à Constituição nº 73, de 2005, finalmente, enfoca alterações ao art. 14 e acresce um novo dispositivo ao texto constitucional, art. 14-A, que regula o direito de revogação como cláusula geral, incluindo os mandatos legislativos e atribuindo competência aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para adaptarem as prescrições constitucionais federais aos seus respectivos documentos políticos. Parece-nos que o modelo sugerido por esta última proposição é a base mais adequada para a organização desse novo instituto.

 

O Relator da matéria, ex Senador Pedro Simon (PMDB/RS), ao analisar as propostas concluiu que não havia nenhum óbice de ordem constitucional, o que significa dizer que as propostas estavam em harmonia com a Constituição Federal, não havendo elementos que impedisse que esse instituto fosse incluído no ordenamento nacional.

Enfim, sendo a democracia semidireta consagrada no ordenamento constitucional brasileiro, o direito de revogação do mandato pelos eleitores se mostra compatível com a Constituição Federal brasileira.

 

3.3 As Propostas que Tramitaram no Congresso Nacional

 

Como já destacado, após a Constituinte foram propostos quatro (4) projetos de emenda à Constituição buscando incluir no texto constitucional a revogação do mandato pelos eleitores.

Vale destacar a Proposta de Emenda à Constituição - PEC 73/2005 de Autoria do ex Senador Eduardo Suplicy, mas que nasceu na campanha nacional da OAB em defesa da República e da Democracia.

Essa proposta adicionaria o art. 14 – A na Constituição e estabelecia que o Presidente, Senadores e Deputados poderiam ter o seu mandato revogado por referendo popular, em petição por iniciativa popular dirigida ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e com alguns requisitos como a assinatura de dois por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por sete Estados, com não menos de cinco décimos por cento em cada um deles, ou mediante a assinatura de dois por cento do eleitorado estadual, distribuído pelo menos por sete Municípios, com não menos de cinco décimos por cento em cada um deles.

Entretanto, também previa que no caso do Presidente da República, o referendo popular também poderia ser convocado por requerimento da maioria absoluta do Congresso Nacional dirigido ao TSE.

Além disso, estabelecia que mandato de senador poderá ser revogado pelo eleitorado do Estado por ele representado e o eleitorado nacional poderá decidir a dissolução da Câmara dos Deputados, convocando-se nova eleição, que será realizada no prazo máximo de três meses.

Essa proposta se difere do recall norte-americano, e mescla um pouco do modelo estadunidense e o modelo adotado na suíça no abberunfungrecht1, que são diferentes.

Destacam-se também outras propostas de emenda, a PEC 80/2003 do ex Senador Antonio Valadares (PSB/SE) que também buscou alterar o art. 14 da Constituição, inserindo mais dois instrumentos de democracia direta como o direito de revogação individual e coletivo, e o veto popular.

Já a PEC 82/2003 do ex Senador Jefferson Peres (PDT/AM) se diferenciava das demais, pois, não buscava alterar o art. 14 da CF, mas, os capítulos específicos dos Estados, Municípios e União.

Buscava incluir no art. 28 (estados), art. 29 (municípios), art. 32 (Distrito Federal), art. 55 (senadores) e 82 (Presidente) a previsão de realização de plebiscito para confirmação do mandato, no caso de subscrição, por 10% (dez por cento) dos eleitores, de petição de revogação de mandato.

Também houve uma PEC de n. 477/2010 de autoria do então Deputado Rodrigo Rollemberg (PPS/DF) que buscava incluir o art. 14-A na Constituição estabelecendo os instrumentos de Petição Revogatória, Petição Destituinte e Plebiscito Destituinte.

Entretanto, todas as propostas encontram-se arquivada no Senado e na Câmara dos Deputados.

 


4 CONCLUSÃO

 

O Recall é um instrumento da democracia direta no qual os eleitores possuem o direito de revogar o mandato político por diversas razões, mas em especial diante de casos de corrupção.

Em um sistema democrático de direito as formas legais de se retirar um governante do poder se dá através do impeachment e do recall, entretanto, o primeiro exige que tenha sido cometido um crime de responsabilidade, enquanto o segundo não exige a existência de um crime previamente, mas, apenas que o representante esteja realizando um governo prejudicial ao povo ou que casos de corrupção tenha acabado com a confiança e credibilidade do governante.

O Brasil passa atualmente por uma grave crise política e representativa, na qual o cidadão não se sente representado pelos seus representantes. Em que pese os deputados, senadores, vereadores, governadores e Presidente terem sido eleitos democraticamente a sensação é de que representam apenas o seu próprio interesse.

Ademais, a crise econômica pela qual passa o país, somada aos casos de corrupção investigados que envolvem, em tese, bilhões de dinheiro público desviado de uma empresa que é orgulho do brasileiro, levou o povo às ruas pedindo a saída da Presidente Dilma Rousseff (PT), seja pelo impeachment ou pela renúncia.

A reforma política que está sendo aos poucos votada no Congresso está focada em questões como o financiamento público ou privado das campanhas, sistemas eleitoras como o distrital misto ou o proporcional, e outros assuntos que buscam reestabelecer o elo entre representante e representado.

Entretanto, o recall que não faz parte das propostas da reforma política, se mostra um remédio mais eficaz contra a crise política e de representatividade, pois conferirá ao cidadão um maior controle dos seus representantes, que no caso de má gestão ou corrupção poderão ter o seu mandato revogado.

Além disso, o instituto revogatório é compatível com a Constituição, vez que a democracia brasileira é mista, reunindo instrumentos da representatividade com elementos da democracia direta, sendo considerada por boa parte da doutrina como uma democracia semidireta.

As propostas de emenda à Constituição ao longo da história, após a constituinte de 1988, não chegaram ao Plenário das casas legislativas do Congresso, tendo sido arquivadas em razão do término do mandato dos autores, o que certamente impossibilitou um debate amplo com a sociedade.

Ainda que pelo sistema eleitoral vigente no Brasil seja difícil se adotar o recall nos moldes do que há nos Estados Unidos da América, caberia a adoção de um mecanismo de revogação do mandato político pelos eleitores misto, ou seja, mesclando a revogação individual do instituto norte-americano com a revogação coletiva do instituto suíço.

Isso porque, a revogação individual do mandato no caso do poder legislativo, em especial no caso de vereadores e deputados, se tornaria difícil uma vez que os deputados e vereadores são eleitos com votos das diversas regiões dos estados e municípios. Somente com um sistema distrital, ou distrital misto, se poderia cogitar a hipótese de revogação do mandato individual dos representantes no legislativo.

Nesse caso, o instituto suíço, que não fora objeto deste artigo, seria mais adequado, pois, prevê o direito de revogação coletiva da assembleia. Entretanto, o instituto do recall norte-americano se mostra viável para os cargos do Executivo e de Senadores, que são eleitos pelo sistema majoritário.

Enfim, com a crise de representatividade e política pela qual passa o Brasil, com o distanciamento de eleitos e eleitores, com escândalos de corrupção sendo amplamente divulgados no mundo, com a crise econômica e a falta de credibilidade de muitos governos, o direito de revogação do mandato político pelos eleitores seria uma alternativa para a reforma política, trazendo o cidadão para o centro da democracia e obrigando os representantes eleitos à atuarem com responsabilidade.

 


REFERÊNCIAS

 

AIETA, Vânia Siciliano. O recall e o voto destituinte. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 10, n. 40, p. 157-170. jul/set.2002.

 

 

ÁVILA, Caio Márcio de Brito. Recall – A Revogação do Mandato Político pelos Eleitores: Uma proposta para o sistema jurídico brasileiro. 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-08032010-094820/pt-br.php>. Acesso em: 25 ago. 2015.

 

 

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Nota

1 Abberunfungrecht: tradicional instituto Suíço que prevê a revogação de todos os mandatos políticos da assembleia.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELATTI, Alexandre. Recall: o direito de revogação do mandato político e a Constituição Federal Brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4812, 3 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48548. Acesso em: 14 maio 2024.