Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/23255
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O valor do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro

O valor do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro

Publicado em . Elaborado em .

O ato inconstitucional pode gerar efeitos jurídicos válidos no direito positivo brasileiro, nas hipóteses de coisa julgada inconstitucional, dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial e da situação jurídica da lei em confronto com Constituição anterior.

Resumo: O objetivo principal do presente trabalho é analisar se o ato eivado de inconstitucionalidade pode gerar algum efeito jurídico no direito brasileiro. A questão é abordada a partir da investigação da natureza jurídica da declaração de inconstitucionalidade e, ainda, da retroatividade de seus efeitos. Ao final, conclui-se que há algumas hipóteses em que são mantidos alguns dos efeitos do ato inconstitucional.

Sumário: INTRODUÇÃO. I – A abordagem tradicional. II – A problemática subjacente. 1 A nulidade absoluta ou os efeitos declaratórios do juízo de inconstitucionalidade. 2 A anulabilidade (ou os efeitos constitutivos negativos do juízo de inconstitucionalidade). III – Hipóteses infraconstitucionais de atribuição de efeitos ao ato inconstitucional. 1 A “coisa julgada inconstitucional”. 2 A suspensão da eficácia da norma e a inconstitucionalidade por omissão. 3 Lei revogada anteriormente à nova Constituição. IV – Análise do tema sob os auspícios das Leis 9868/99 e 9882/99. 1 A possibilidade de fixação do termo inicial da inconstitucionalidade.  2 A constitucionalidade dos artigos 27 da Lei 9868/99 e 11 da Lei 9882/99. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO.

O presente trabalho visa analisar se o ato inconstitucional é sempre e necessariamente nulo no direito positivo brasileiro.

Para tanto, discutir-se-á se a decisão de inconstitucionalidade tem natureza declaratória ou constitutiva, temática intimamente ligada a outra: a retroatividade dos efeitos daquela decisão.

Analisar-se-ão algumas situações específicas do ordenamento jurídico brasileiro, em que os atos inconstitucionais parecem gerar efeitos jurídicos válidos, quais sejam, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado em face de decisões judiciais transitadas me julgado (a “coisa julgada inconstitucional”), a suspensão da eficácia da norma e a inconstitucionalidade por omissão e a situação jurídica da lei revogada anteriormente à nova Constituição.

Por derradeiro, serão objeto de estudo os artigos 27 e 11 das Leis 9868 e 9882, que regulamentaram o procedimento das ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental. Nesse item, ficarão evidenciadas algumas inovações trazidas pelas referidas leis e ainda será discutida a sua própria constitucionalidade.


I – A abordagem tradicional.

O presente trabalho visa analisar se o ato eivado de inconstitucionalidade produz ou não efeitos jurídicos e, em caso afirmativo, sob quais condições.

Desta sorte, a verdadeira discussão se trava a respeito da natureza do ato inconstitucional.

Entretanto, o que se percebe nas pesquisas doutrinárias é que o tema é tratado a partir de uma ótica um pouco distinta. De fato, nota-se que várias vezes o tema não é diretamente abordado, cedendo espaço à discussão sobre a retroatividade ou não-retroatividade dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

É desta forma que problematiza Alexandre de Moraes:

“Declarada incidenter tantum a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, desfaz-se, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive os atos pretéritos com base nela praticados. Porém, tais efeitos ex tunc (retroativos) somente tem aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração” [1].

Linhas adiante, o mesmo autor comenta:

“... o Senado Federal poderá editar uma resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, da lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, que terá efeitos erga omnes, porém, ex nunc, ou seja, a partir da publicação da resolução senatorial”.

Obviamente, não se pode ter por incorreta esta abordagem. No entanto, ela parece amenizar a gravidade da declaração de inconstitucionalidade. Tratando-se a questão sob o ponto de vista processual, perde-se de vista o caráter eminentemente político do controle de constitucionalidade. A questão é assim colocada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“(...) este controle [de constitucionalidade] importa em recusar valor a ato de um dos Poderes do Estado. Mais, em negar validade à lei, editada pela representação nacional, sancionada, em regra, pelo chefe de Estado, obra, portanto, dos Poderes eleitos pelo povo. E isto em regime democrático.”

“Claro está que, sob essa aparência, não deixa de estar presente o elemento político, sobretudo porque os textos constitucionais devem ser interpretados para poder ser aplicados. Ora, na interpretação sempre se instituem elementos ideológicos, portanto, posições políticas” [2].

Desta forma, ainda que não se empreste tal sentido à dicotomia ex tunc – ex nunc, é insofismável que a atribuição de efeitos não retroativos à declaração de inconstitucionalidade se traduz (implícita e pragmaticamente) no reconhecimento da existência e validade de efeitos jurídicos derivados do ato inconstitucional.

É sobre este alicerce que o trabalho se desenvolverá nas linhas seguintes.


II – A problemática subjacente.

1 A nulidade absoluta ou os efeitos declaratórios do juízo de inconstitucionalidade.

A primeira concepção a respeito do valor do ato inconstitucional surge, obviamente, com a própria noção de controle de constitucionalidade das leis. Desta sorte, é de se analisar o caso-paradigma estadunidense estabelecido entre William Marbury e James Madison.

O sobrecitado precedente judicial é freqüentemente identificado pelos constitucionalistas contemporâneos como marco que simboliza o início do controle de constitucionalidade. Desta forma, o referido julgamento é doutrinariamente muito rico, contendo diversas discussões passíveis de estudo específico. Contudo, em obséquio a finalidades epistemológicas, nesse trabalho tratar-se-á apenas do valor do ato inconstitucional, desprezando-se todas as demais discussões.

Retomando a discussão, mencione-se que o momento inicial do constitucionalismo contemporâneo a propósito do tema consagra a máxima segundo a qual o ato inconstitucional é nulo e de nenhum efeito[3].

Tal entendimento deriva diretamente da doutrina da supremacia e inicialidade da Constituição. De fato, se é ela quem inaugura a ordem jurídica de um determinado Estado, todos os atos nele praticados buscam nela sua fonte de validade. Carente de tal fundamento, o ato é inválido desde a sua origem e não pode o ordenamento emprestar-lhe qualquer efeito.

Assim, o ato inconstitucional não é ato jurídico, exatamente porque avesso à norma fundamental que consagra validade a todas as demais, e como tal, não é hábil a produzir conseqüência juridicamente válida.

Esta forma de compreender o ato inconstitucional se espraiou pelo moderno constitucionalismo ocidental – com o perdão do pleonasmo, já que não há nada mais “moderno” ou “ocidental” do que o constitucionalismo.

No Brasil, parece ter sido inaugurada por Ruy Barbosa[4] e plenamente endossada por Alfredo Buzaid[5] e Francisco Campos[6] e tende a seduzir grande parte dos doutrinadores contemporâneos.

De sua parte, o Supremo Tribunal Federal tem secundado esta doutrina, conforme sinaliza Gilmar Ferreira Mendes:

“... consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal, o princípio da supremacia da Constituição não se compadece com uma orientação que pressupõe a validade da lei inconstitucional. O reconhecimento da validade de uma lei inconstitucional – ainda que por tempo limitado – representaria uma ruptura com o princípio da supremacia da Constituição. A lei inconstitucional não pode criar direitos, nem impor obrigações, de modo que tanto os órgão estatais como direitos, nem impor obrigações, de modo que tanto os órgãos estatais como o indivíduo estariam legitimamente autorizados a negar obediência às prescrições incompatíveis com a Constituição”[7].

Este, portanto, o entendimento que se tem por majoritário.

2 A anulabilidade (ou os efeitos constitutivos negativos do juízo de inconstitucionalidade).

Em sentido diverso da doutrina exposta até aqui, surgem vários posicionamentos de que o ato inquinado de inconstitucionalidade não é necessária e inevitavelmente nulo e de nenhum efeito.

Já há mais de quatro décadas, Themístocles Brandão Cavalcanti ressalvava que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei não implica inexoravelmente na sua nulidade (ou na sua inexistência):

“Não obstante essas opiniões valiosas, ousamos discordar dos seus argumentos. Em primeiro lugar e tècnicamente (sic), as coisas não se passam pela forma apresentada, isto é, a declaração de inconstitucionalidade, em nenhum momento, tem efeitos tão radicais. Nem os funcionários nomeados com aplicação de leis inconstitucionais, nem as conseqüências sôbre (sic) os contratos já concluídos, principalmente os de natureza patrimonial, partem do pressuposto da inexistência da lei”[8].

Contemporaneamente e no mesmo sentido, encontramos a advertência de José Afonso da Silva:

“A nós nos parece que a doutrina privatística da invalidade dos atos jurídicos não pode ser transposta para o campo da inconstitucionalidade, pelo menos no sistema brasileiro, onde (...) a declaração de inconstitucionalidade em nenhum momento tem efeitos tão radicais, e, em realidade, não importa por si só na ineficácia da lei”[9].

Um indício de que a inconstitucionalidade não importa em total anulação dos efeitos da lei viciada está associado à resolução senatorial que lhe retira a eficácia. É cediço que tal pronunciamento não é dotado de efeitos retroativos, o que implica em dizer que, até então, a lei existiu, foi aplicada (ou, pelo menos, tinha aptidão jurídica suficiente para tanto) e produziu validamente seus efeitos[10].

Outro dado relevante é que o Supremo Tribunal Federal já cristalizou entendimento semelhante na sua Súmula 5. O referido verbete consagra que a sanção presidencial sana eventual vício de iniciativa de projeto de lei[11].

Sobre a questão, Manoel Gonçalves Ferreira Filho lembra que o modelo europeu de controle de constitucionalidade (pelo menos na Alemanha) permite que a Corte Constitucional, mesmo quando reconhece a inconstitucionalidade, mantenha “em vigor por certo tempo a norma inconstitucional, dando tempo para que o Parlamento a substitua por outra, essa constitucional”[12].

Linhas adiante, o autor explicita que o sistema brasileiro, desde a sua origem, sempre adotou a tese de nulidade absoluta do ato inconstitucional. No entanto, ressalva:

“Cumpre observar, porém, que essa nulidade ‘retroativa’ encontra limites, em nome da segurança jurídica, como os que resultam da preclusão e, mormente, da coisa julgada” [13].

Apenas estas conjecturas já seriam suficientes para lançar algumas sombras sobre o entendimento clássico a respeito dos efeitos do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro. Desta sorte, cumpre verificar se há ou não fundamentos jurídicos relevantes para tanto.

Um dos argumentos que poderiam ser citados em abono desta, por assim dizer, desconfiança, é o princípio da presunção de constitucionalidade das leis. Tal princípio é traduzido por Luís Roberto Barroso em duas regras de aplicabilidade prática:

“a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida, deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade;”

“b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que carreavam para  ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor”[14].

Do referido princípio derivaria a circunstância de que a lei permanece em pleno vigor, gerando efeitos jurídicos válidos até que sobrevenha a declaração de sua inconstitucionalidade. Desta forma, rechaçada estaria a tese de Francisco Campos[15], que tem por inexistente a lei inconstitucional.

No entanto, a mais consistente objeção aos efeitos declaratórios da decisão de inconstitucionalidade se deve a Hans Kelsen. O jurista austríaco enxergou com grande precisão a implicação recíproca entre os binômios nulidade-anulabilidade e declaratório-constitutivo. O cerne da sua doutrina é a rejeição da idéia de nulidade (associada à natureza declaratória do provimento judicial que a pronunciasse), tendo-a por incompatível com o ordenamento jurídico. Desta forma:

“... dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode ser anulável. Mas esta anulabilidade prevista pela ordem jurídica pode ter diferentes graus. Uma norma jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro, por forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Mas também pode ser anulada com efeito retroativo, por forma tal que os efeitos jurídicos que ela deixou atrás de si sejam destruídos (...). Porém, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início. Não é portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como ‘declaração de nulidade’, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como ‘nula desde o início’ (ex tunc). A sua decisão não tem caráter simplesmente declarativo, mas constitutivo. O sentido do ato pelo qual uma norma é destruída, quer dizer, pelo qual a sua validade é anulada, é, tal como o sentido de uma ato pelo qual uma norma é criada, uma norma.”[16].

Assim, com base neste ensinamento de Kelsen[17], pode-se afirmar que os efeitos constitutivos do pronunciamento (judicial ou não-judicial) decorrem da própria natureza do sistema jurídico: apenas o Direito pode criar o Direito.

Costuma-se atacar esta doutrina com o argumento de que ela tende a conferir efeitos a uma norma contrária à Constituição. Entendem que isto fere a própria lógica do sistema jurídico, em que uma norma inferior sempre busca sua validade em outra, hierarquicamente superior. Assim, a única razão de validade de uma norma seria a circunstância de ter sido elaborada de acordo com a Constituição – e que, portanto, uma norma contrária à Constituição não encontraria qualquer fundamento de validade no ordenamento jurídico.

A esta objeção, Regina Maria Macedo Nery Ferrari responde:

“Sabemos, porém, que(...) a admissão de uma norma inconstitucional equivale a aceitar o fato de a Constituição prever a possibilidade de serem elaboradas normas em discordância com a mesma e prever para tais casos o modo de combatê-las. Dessa forma, podemos admitir a discordância; o que não podemos é aceitar que a norma inferior continue a existir após o reconhecimento do vício, pois desde que haja a incompatibilidade entre duas normas em um sistema escalonado, uma deve curvar-se à outra, e sempre a inferior à superior, a lei ordinária à Constituição, que deverá prevalecer como norma fundamental da ordem jurídica”[18].

De fato, é de se ponderar que a teoria das nulidades foi tradicionalmente construída com base no Direito Privado, em que a sanção de nulidade visa restabelecer o equilíbrio entre os indivíduos. Já no Direito Público, tem-se em mira a proteção do interesse público, “o que leva a considerar o tema com maior ou menor flexibilidade, conforme o exija o interesse a proteger”[19].

Pelo modelo kelseniano, a norma nula só se caracteriza como tal por força de uma ordem jurídica. E mais, segundo tal ordem, somente após a análise e a decisão do órgão estatal competente (note-se que a sua competência foi determinada pelo próprio sistema) pode-se ter uma norma por nula ab initio. Sem esta decisão, não se pode ter o ato por nulo e, por via de conseqüência, só a partir de então os seus efeitos são anulados, retroativamente ou não[20].

Secundando este entendimento, Pontes de Miranda esclarece que a decisão de inconstitucionalidade tem caráter constitutivo, não apenas declaratório:

“Para que a decisão sobre inconstitucionalidade fosse declaratória, seria preciso que a lei, eivada de tal vício, não existisse, de jeito que o juiz ou o tribunal diria Não (sic) existe e a eficácia seria de toda decisão declarativa”[21].

Contemporaneamente, Sérgio Resende de Barros lembra que a Constituição brasileira abraçou um sistema misto de controle de constitucionalidade, associando o modelo americano ao modelo europeu. Conclui que no direito positivo brasileiro não se pode indiscriminadamente falar em declaração de inconstitucionalidade como expressão do controle de constitucionalidade:

“(...) melhor chamar decisão de inconstitucionalidade, uma vez que o ato judicial que decide da constitucionalidade nem sempre se concebe como declaratório, mas cada vez mais é aceito como na realidade ele é: constitutivo negativo ou desconstitutivo(...)”[22].

Linhas adiante, defende que o controle de constitucionalidade sempre foi um instrumento político. Segundo ele, desde a inauguração do controle concentrado em 1965 o vocábulo utilizado era de representação, e não de ação. Menciona que a natureza jurídica de ação ganhou foros de ação de declaração de inconstitucionalidade por influência de conjecturas processualísticas e da “obsessão” do constitucionalismo pela separação absoluta dos poderes. Nesse sentido:

“Mantendo o Judiciário como poder apolítico – neutro, porque há de ser imparcial -, o apego à separação de poderes clássica impediu ver que, quando o Supremo julga da constitucionalidade das leis, nessa função ele é tribunal constitucional e, como tal, profere decisões político-jurídicas, as quais – por serem assim – devem e podem ter os seus efeitos graduados e modelados no tempo e no espaço, bem como em sua compreensão e extensão, conforme a necessidade político-social que as enforma (sic)”[23].

Desta forma, a razão parece assistir àqueles que defendem a natureza desconstitutiva (ou constitutiva-negativa) da decisão de inconstitucionalidade. Isto porque é a própria ordem jurídica que define se uma norma é ou não nula, além de definir qual o órgão competente para tal decisão. No mesmo sentido, é o próprio sistema normativo que determina quais os efeitos do ato eivado de inconstitucionalidade ou, como preferem alguns, quais os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

Partindo desta premissa – de que cabe ao sistema jurídico definir quais os efeitos do ato inconstitucional – deve-se pesquisar qual a opção política do direito positivo brasileiro.

Nesse passo, é fundamental notar que a Constituição de 1988 se demora ao tratar da matéria sujeita a controle de constitucionalidade e da autoridade da decisão de inconstitucionalidade, mas não define expressamente a sua retroatividade ou irretroatividade. Resta discutir, então, se legislação infraconstitucional o fez e, em caso positivo, se poderia tê-lo feito.


III -  Hipóteses infraconstitucionais de atribuição de efeitos ao ato inconstitucional.

1 A “coisa julgada inconstitucional”.

Importa verificar se a declaração de inconstitucionalidade no controle abstrato importa em anulação das decisões judiciais proferidas ao amparo de lei declarada inconstitucional. Em caso negativo, é forçoso reconhecer que o ato inconstitucional gera efeitos válidos no direito positivo brasileiro.

Após defender que a inconstitucionalidade implica na nulidade do ato, Gilmar Ferreira Mendes ressalva:

“Não se deve supor, todavia, que a declaração de inconstitucionalidade afete todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. Embora o nosso ordenamento não contenha regra expressa sobre o assunto e se aceite, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade, concede-se proteção ao ato singular, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato individual (Einzelaktebene) através das chamadas fórmulas de preclusão.”

“Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade”[24].

Com esteio nesse entendimento, o autor defende que a sentença criminal transitada em julgado pode ser rescindida a qualquer tempo, já que inexiste prazo decadencial para a propositura de revisão criminal no direito positivo brasileiro.

Por outro lado, o processo civil brasileiro fixa o prazo decadencial de dois anos para a propositura da ação rescisória. Desta forma, o autor ensina que após tal prazo está fechada a via reformadora, ainda que o Supremo Tribunal Federal reconheça a inconstitucionalidade da lei sob a qual se fundou o comando judicial transitado em julgado[25].

Prosseguindo, o autor menciona que somente pela via da rescisória pode-se obstar o curso de ação de execução fundada em título judicial constituído sob o amparo da lei declarada inconstitucional, jamais por embargos à execução. Isto porque não há autorização legal expressa para que se oponha a referida defesa do executado na hipótese de decisão proferida com base em lei declarada inconstitucional[26].

Assim, por força da coisa julgada absoluta, é possível afirmar que o direito positivo brasileiro confere efeitos jurídicos ao ato inconstitucional – pelo menos no que se refere à decisão judicial não-criminal proferida com base em lei inconstitucional.

2 A suspensão da eficácia da norma e a inconstitucionalidade por omissão.

O tema da inconstitucionalidade por omissão tem como pano de fundo as normas constitucionais programáticas, ou seja, aquelas que expressam um objetivo a ser perseguido pelo Estado constitucional. Desta forma, entende-se que o legislador infraconstitucional deve agir de forma a colmatar o ordenamento jurídico, concretizando os desígnios inscritos na Carta Política.

Dessa forma, tem-se a inconstitucionalidade por omissão em duas hipóteses: a primeira, quando o órgão legislativo permanece totalmente inerte – omissão total; a segunda, quando ele não satisfaz integralmente o objetivo constitucionalmente desejado – omissão parcial[27].

Além disso, é perfeitamente possível que se leve à apreciação do Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade do ato tido nesse contexto por “defeituoso” ou “incompleto”.

Aqui importa lembrar a ressalva feita por Gilmar Ferreira Mendes:

“Aceita a idéia geral de que a declaração de inconstitucionalidade da omissão parcial exige a suspensão de aplicação dos dispositivos impugnados, não se deve perder de vista que, em determinados casos, a aplicação excepcional da lei inconstitucional traduz exigência do próprio ordenamento constitucional”[28].

Para evidenciar que a hipótese aqui ventilada não é cerebrina, transcreva-se o exemplo colacionado pelo sobrecitado autor:

“Se o Supremo Tribunal Federal chegasse à conclusão, em processo de controle abstrato da omissão ou mesmo em processo de controle abstrato de normas (...), de que a lei que fixa o salário mínimo não corresponde às exigências estabelecidas pelo constituinte, configurando-se, assim, típica inconstitucionalidade em virtude de omissão parcial, a suspensão de aplicação da lei inconstitucional – assim como sua eventual cassação – acabaria por agravar o estado de inconstitucionalidade. É que, nesse caso, não haveria lei aplicável à espécie”[29].

Desta forma, ainda que se reconheça a suspensão da aplicação da lei como conseqüência fundamental da declaração de inconstitucionalidade, a sua aplicação parece ser exigida pela própria Constituição.

Assim, a própria Carta Fundamental, embora não o faça expressamente, permite que se imprimam efeitos jurídicos ao ato inconstitucional.

3 Lei revogada anteriormente à nova Constituição.

Toda a discussão travada até aqui se assenta sobre a premissa de que a pode ser judicialmente apreciada a colisão entre o ato e a Constituição vigente à época do controle.

De fato, lei que foi revogada antes da Constituição atual não pode ser objeto de ação que suscite o controle concentrado de inconstitucionalidade, à míngua de permissivo legal.

Entretanto, pode-se imaginar que uma lei promulgada anteriormente à Constituição em vigor tenha sido revogada (melhor dizendo, não recepcionada) pela Constituição anterior. No entanto, se tal lei não foi expressamente retirada do mundo jurídico (por resolução senatorial, por revogação legislativa expressa ou por ação direta de inconstitucionalidade) é também possível que ela tenha gerado uma série de relações de trato sucessivo.

Nesta hipótese, a lei que era inconstitucional frente à Carta anterior não poderá ser objeto de controle em abstrato (já que ele só se autoriza no caso de violação da Constituição atual), permanecendo em vigor.

Dircêo Torrecillas Ramos assim coloca a questão:

“Se neste caso não se pode aplicar a Constituição anterior, se a lei revogada não é objeto de ação direta e ainda sendo uma lei revogada anteriormente à promulgação da Constituição em vigor, isto significa que (...) algo nulo, que nunca existiu produz efeitos e continuará produzindo (...), porque inconstitucional gerou e gera efeitos”[30].

Nesta hipótese, ao proibir que referida norma seja objeto de controle concentrado de constitucionalidade, a Constituição de 1988 permite que ato materialmente inconstitucional gere efeitos jurídicos.


IV – Análise do tema sob os auspícios das Leis 9868/99 e 9882/99.

1 A possibilidade de fixação do termo inicial da inconstitucionalidade.

Até o presente momento, tratou-se de hipóteses normativas que previam tacitamente que o ato inconstitucional gerasse efeitos jurídicos válidos, seja escapando ao controle concentrado, seja como exigência lógica deste controle.

O presente capítulo trata de situação diversa.

O estudo dos efeitos do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro não pode passar ao largo de uma análise das Leis 9.868/99 e 9.882/99, que deram novo fôlego à discussão.

Os referidos diplomas normativos pretenderam disciplinar os procedimentos de declaração de inconstitucionalidade e de constitucionalidade pela via direta, bem como regular o procedimento da ação de descumprimento de preceito fundamental. Estabeleceram que, no exercício do controle concentrado, o Supremo Tribunal Federal poderá “restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (artigo 27 da Lei 9.868/99 e artigo 11 da Lei 9.882/99).

É importante notar que a Constituição portuguesa encarta em seu artigo 282, n.º 4 preceito semelhante ao dos sobrecitados artigos 27 e 11. Sobre tal circunstância, Elival da Silva Ramos afirma:

“A nosso ver, considerando-se que as características do sistema de controle de constitucionalidade luso apontam, em relação ao vício de inconstitucionalidade, para a aplicação de uma sanção de nulidade, de pleno direito, o disposto no art. 282, n.º 4, da Constituição há de ser interpretado no sentido de ter o Constituinte conferido ao Tribunal Constitucional o poder de convalidar parcialmente o ato legislativo sancionado com nulidade, de modo que permita a produção dos efeitos a que se predispunha, tomando-se como limite máximo dessa convalidação a data da publicação da decisão declaratória de sua inconstitucionalidade”[31].

Inicialmente, perceba-se que o legislador infraconstitucional seguiu a maioria dos doutrinadores pátrios e utilizou o enfoque eminentemente processual para tratar dos efeitos do ato inconstitucional.

Sobre os dispositivos, comenta Alexandre de Moraes:

“(...) permitiu-se ao STF a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, seja em relação à sua amplitude, seja em relação aos seus efeitos temporais...”.

“Em relação à amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a regra geral consiste em que a decisão tenha efeitos erga omnes, decretando-se, conforme já analisado, a nulidade total de todos os atos emanados do poder Público com base na lei ou ato normativo inconstitucional. (...) Excepcionalmente, poderá o Supremo Tribunal Federal (...) limitar esses efeitos, seja para afasta a nulidade de alguns atos praticados pelo Poder Público com base em norma declarada inconstitucional, seja para afastar a incidência dessa decisão em relação a algumas situações, seja, ainda, para eliminar, total ou parcialmente, os efeitos repristinatórios da decisão”.

Quanto à possibilidade de fixar o termo a partir do qual a decisão de inconstitucionalidade gera seus efeitos, o sobrecitado autor esclarece:

“Essa hipótese de restrição temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade tem limites lógicos. Assim, se o STF entender pela aplicação dessa hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos, qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão, data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos” [32] (todos os grifos são do autor).

De imediato, faça-se um pequeno reparo ao contido no último parágrafo excerto supratranscrito. Os próprios dispositivos das sobrecitadas Leis determinam que o Supremo Tribunal Federal poderá decidir que a declaração de inconstitucionalidade só tenha efeitos a partir do seu trânsito em julgado. Este momento processual só ocorre após a publicação da decisão e o transcorrer dos prazos para a interposição de recursos. Assim, afigura-se possível que a decisão tenha efeitos a partir do trânsito em julgado, momento processualmente posterior à publicação da decisão em Diário Oficial.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho evidencia que o cerne da problemática sobre a retroatividade dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade é, em verdade, a discussão acerca dos efeitos do ato inconstitucional no direito brasileiro. Comentando os mesmos artigos 27 da Lei 9868/99 e 11 da Lei 9882/99, o autor explicita:

“... o ato inconstitucional não é mais, como ensinavam doutrina e jurisprudência, nulo e írrito.”

“É contra a índole do direito admitir que um ato nulo somente possa deixar de produzir efeitos ‘a partir do... trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado’”.

“Conclusão óbvia, a violação da Constituição pode ser ‘direito’ positivo, mesmo depois de reconhecida, no processo competente, pelo Supremo Tribunal Federal, ‘guarda da Constituição’”.

“E, mais. A decisão pode ‘restringir’ os seus efeitos... isto significa, por exemplo, que ela poderá considerar válidos atos inconstitucionais, ou dispensar o Estado de devolver o que percebeu em razão de tributo inconstitucionalmente estabelecido e cobrado... Donde resultará a inutilidade do controle”[33].

Assim, apesar de ter empregado técnica distinta, a Lei 9882 estabeleceu (ou esclareceu) que o ato inconstitucional no direito positivo brasileiro não é nulo de pleno direito. Nesse sentido, à luz das Leis 9.868 e 9.882 a decisão de inconstitucionalidade tem natureza constitutiva-negativa, e não declaratória[34].

2 A constitucionalidade dos artigos 27 da Lei 9868/99 e 11 da Lei 9882/99.

Segundo se demonstrou anteriormente, é forçoso reconhecer a natureza constitutiva-negativa da decisão de inconstitucionalidade como decorrência da própria lógica a partir da qual se orienta o ordenamento jurídico, explicitada pelas Leis 9.868 e 9.882.

A questão que surge, a partir de então, é saber se é constitucional a atribuição de competência ao Supremo Tribunal Federal para determinar a partir de quando os efeitos do ato inconstitucional se nulificam. Nesse momento, calha uma importante distinção.

Uma coisa é dizer que a natureza da decisão de inconstitucionalidade é desconstitutiva: pelas razões traçadas neste estudo, inegavelmente o é.

Outra coisa é dizer que no direito positivo brasileiro seus efeitos são sempre e necessariamente retroativos: por força das circunstâncias até aqui analisadas, nem sempre, já que há as mencionadas hipóteses da coisa julgada inconstitucional, da aplicabilidade da lei considerada inconstitucional por omissão parcial e da impossibilidade de interposição de ação direta contra norma que contrarie a Constituição anteriormente em vigor. O direito positivo brasileiro não opta pelos efeitos necessariamente retroativos da decisão que decreta a inconstitucionalidade (por alguns equivocadamente traduzido como sua natureza declaratória).

A aferição da constitucionalidade dos artigos 11 e 27 tem contornos bem mais definidos: importa em dizer que a Constituição permite – expressa ou tacitamente – que o legislador ordinário confira competência a um órgão específico para decidir a partir de quando os efeitos do ato inconstitucional se nulificam.

Elival da Silva Ramos defende a inconstitucionalidade do artigo da Lei 9.882 que confere ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de atribuição de efeito não retroativo à declaração de inconstitucionalidade:

“(...) as características de nosso sistema de controle, extraídas das disposições pertinentes da Constituição de 1988, conduzem à conclusão, pode-se dizer pacífica, doutrinária e jurisprudencialmente, de que a lei inconstitucional, entre nós, é sancionada com nulidade.”

“Como se admitir, entretanto, que disposição infraconstitucional confira ao Supremo Tribunal Federal um poder de saneamento parcial da invalidade legislativa, em face do descumprimento de preceito fundamental, invalidade, com suas características de nulidade de pleno direito, que brota do sistema de controle disciplinado em nível superior?”

“Em suma, olvidou-se o Legislador Ordinário que a matéria exigia disciplina em nível constitucional e, com isso, acabou perpetrando rematada inconstitucionalidade, ao permitir algo que a Constituição não permite” [35].

No mesmo sentido, Gilmar Ferreira Mendes sinaliza:

“Embora o Supremo Tribunal Federal não tenha logrado formular esta conclusão com a necessária nitidez, é certo que também ele parece partir da premissa de que o princípio da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional”[36].

Analisando o artigo 11 da Lei 9882/99, Ives Gandra da Silva Martins é categórico:

“Não me parece possa ser o texto mencionado tido por constitucional, uma vez que adota princípio do Direito alemão de não possível hospedagem pelo Direito brasileiro.”

(...)

“Se uma norma tiver sido afastada do cenário jurídico nacional pelo vício maior da inconstitucionalidade, não há como considerar seus efeitos válidos, como se constitucional fosse no passado ou – o que é pior – mantê-los com validade ainda por certo período de tempo, como ocorre no Direito germânico, de conformação diversa do Direito brasileiro”[37].

Analisem-se as conclusões a partir de sua premissa.  Os excertos acima tomam como certo um fundamento até aqui rechaçado: conforme o exposto, o direito positivo brasileiro (ou o sistema de controle de constitucionalidade) não define que os efeitos da decisão de inconstitucionalidade são sempre e irremediavelmente retroativos. Assim, esta tese não soluciona a questão da inconstitucionalidade dos artigos 11 e 27.

Linhas adiante, Gilmar Ferreira Mendes menciona que foi objeto de discussão no Congresso Constituinte de 1986-1988 um dispositivo que autorizava o Supremo Tribunal Federal a determinar se a lei que teve sua inconstitucionalidade declarada no controle abstrato de normas haveria de perder eficácia ex tunc, ou se a decisão deixaria de ter eficácia a partir da data de sua publicação[38]. Afirma que tal projeto inspirava-se no sobredito artigo 282, parágrafo 2.º da Constituição Portuguesa e foi rejeitado pelo Congresso Constituinte.

Embora esta circunstância evidencie que o constituinte originário não pretendia atribuir ao Supremo Tribunal Federal semelhante poder, ela não leva inexoravelmente à inconstitucionalidade dos questionados artigos 11 e 27. Isto porque a inconstitucionalidade é a contrariedade em face do direito posto e não da intenção do legislador constituinte.

Outro óbice erguido contra os multicitados artigos 11 e 27 é que a Constituição de 1988 não permitiu expressamente a fixação do termo inicial da inconstitucionalidade. Desta sorte, lei infraconstitucional não poderia fazê-lo.

Um reparo inicial a fazer é que o artigo 102, parágrafo 1.º da Constituição expressamente prevê edição de lei ordinária para a regulamentação da ação de descumprimento de preceito fundamental. Desta sorte, parece que o argumento em referência não se presta a macular a Lei 9.882, que se refere unicamente ao procedimento de julgamento daquela ação.

Ingo Wolfgang Sarlet tem esta solução por simplista, afirmando que não há autorização constitucional para que qualquer das Leis manipule os efeitos das referidas ações:

“À medida que no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental igualmente se encontra prevista a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade e constitucionalidade, inclusive em conexão com decisões proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade e/ou ação declaratória de constitucionalidade, não haveria como aceitar tal assimetria de tratamento. Com efeito, (...) a argüição de descumprimento integra o cada vez mais complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro e, tendo em conta os diversos pontos de contato com as demais ações de controle abstrato, não pode ser pura e simplesmente analisada de forma isolada”[39].

O entendimento supratranscrito parece não prevalecer, embora haja paralelismo entre a ação direta de inconstitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental. Isto porque a discriminação de tratamento foi feita pela própria Constituição, o que não se pode ter por irrelevante ou mesmo contrário ao sistema jurídico – que é por ela própria inaugurado.

De qualquer forma, o que há de realmente relevante é verificar se a regulação dos dispositivos constitucionais por lei ordinária (expressamente prevista, no artigo 102, parágrafo 1.º ou logicamente deduzida, no caso do artigo 102, I, a) poderia ou não ter chegado a autorizar o Supremo Tribunal Federal a fixar o termo inicial da inconstitucionalidade.

A este respeito, Ingo Wolfgang Sarlet ensina:

“(...) pela natureza e importância do tema, envolvendo a ampliação dos poderes do Supremo Tribunal Federal em relação aos demais órgãos judicantes e administração pública, a regulação por lei ordinária haveria – pelo menos assim nos parece lícito argumentar – de se restringir a aspectos ligados a questões de ordem organizacional e procedimental (...), sendo esta, salvo melhor juízo, uma alternativa plausível para se interpretar a remissão à lei prevista no art. 102, § 1.º, de nossa Carta Magna”[40].

E, linhas adiante:

“(...) as dúvidas geradas pela formulação adotada pelo legislador (...) tornam extremamente penosa a tarefa de um pronunciamento sobre a legitimidade constitucional (...) das inovações no que diz com a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e seu diferimento no tempo.”

(...)

“Com efeito, postergar no tempo, para além das alternativas ex tunc e ex nunc (...) os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, isto é, a nulidade do ato, constitui fator de grande insegurança jurídica e institucional, por si só potencial ameaça ao princípio do Estado de Direito, além dos graves riscos de ofensas aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos”[41].

Como exemplo, o autor cogita da declaração de inconstitucionalidade da cobrança de um tributo. Por força dos permissivos legais ora discutidos, o Supremo Tribunal Federal poderá negar aos contribuintes o direito de repetição, ou mesmo autorizar a exação por mais alguns meses.

No mesmo sentido, Sérgio Resende de Barros defende que seria necessária uma emenda constitucional para que se autorizasse o Supremo Tribunal Federal a determinar o termo inicial dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade[42].

Identifica-se, assim, que o cerne da discussão está na contraposição de dois institutos constitucionais: a independência dos Poderes e as suas esferas de competência.

Obviamente, a independência constitucionalmente garantida não é absoluta, pois a ela corresponde a limitação de um poder pelo outro, mas implica em dizer que apenas pode ser limitada a independência pelo mesmo diploma que a garante.

Nesse sentido, é importante realçar que ao atribuir competências aos Poderes da República a Constituição dá a própria conformação do sistema brasileiro de tripartição de poderes.

Desta forma, lei ordinária que limita a competência constitucionalmente assegurada a um dos Poderes da República é inconstitucional, porque fere diretamente o princípio da independência. Pelo mesmo motivo, também  inconstitucional é a lei ordinária que atribui ao Judiciário atribuições que seriam, por sua natureza, próprias a outro Poder.

É por esta ótica que se deve analisar a constitucionalidade dos multicitados artigos 11 e 27. A decisão de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal implica em atribuir ao texto infraconstitucional uma interpretação constitucionalmente válida ou a extirpar do ordenamento jurídico uma norma absolutamente contrária à Constituição. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal esclarece qual é o conteúdo da Constituição, e, no contexto das ações regulamentadas pela Lei 9868 e 9882, seu entendimento tem força vinculante.

Isto equivale a dizer que a Constituição é aquilo que o Supremo Tribunal Federal entende que ela seja. Aí se evidencia o caráter político do controle de constitucionalidade, já assinalado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho[43].

Assim, pela decisão de inconstitucionalidade o Supremo Tribunal Federal edita uma norma cogente, geral e abstrata – função tipicamente atribuível ao Poder Legislativo.

Quanto aos limites fixados pela própria Constituição, não se pode afirmar que o princípio da independência dos Poderes esteja vilipendiado – pois, conforme afirmado anteriormente, é pela técnica da repartição de competências que a Constituição define os termos em que a os Poderes são independentes. No entanto, a legislação infraconstitucional que transige estes mesmos limites fere o princípio da independência.

Desta forma, embora o ato inconstitucional no direito positivo brasileiro não seja sempre e necessariamente nulo de pleno direito, é inconstitucional a possibilidade de fixação do termo inicial dos efeitos da inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal trazida pelos artigos 27 e 11 das Leis 9868 e 9882.


CONCLUSÃO

Este estudo evidenciou que o ato inconstitucional pode gerar efeitos jurídicos válidos no direito positivo brasileiro.

Isto ficou evidente quando se discutiram a “coisa julgada inconstitucional”, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial e a situação jurídica da lei em confronto com Constituição anterior.

Demonstrou-se que a decisão de inconstitucionalidade no direito positivo brasileiro não é apenas declaratória, mas constitutiva-negativa, cabendo ao à Constituição fixar o termo inicial a partir do qual se nulificam os atos praticados sob seu império.

Concluiu-se, ainda, que são inconstitucionais os artigos 27 e 11 das Leis 9868 e 9882, que autorizaram o Supremo Tribunal Federal a fixar o termo inicial dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.


BIBLIOGRAFIA

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. “Processo Constitucional”. Rio de Janeiro: Forense. 1984.

BARBOSA, Ruy. “A Constituição e os atos inconstitucionais”. Rio de Janeiro: Atlântida. S.d.

BARROSO, Luís Roberto. “Interpretação e aplicação da Constituição”. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998.

BUZAID, Alfredo. “Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro”. São Paulo: Saraiva. 1958.

CAMPOS, Francisco. “Direito constitucional”. Rio de Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos. 1956.

CAVALCANTI, Themístocles Brandão. “Do contrôle da constitucionalidade”. Rio de Janeiro: Forense. [s.d.].

FERRARI, Regina Maria Macedo. “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1987.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “Aspectos de Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003.

JAMPAULO JÚNIOR, João. “O controle de constitucionalidade das leis”. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, n. 40, p. 227-251, jul./set. 2002.

KELSEN, Hans. “Teoria pura do Direito”. Tradução de João Baptista Machado. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1996.

______. “Teoria geral do direito e do Estado”. Tradução de João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1997.

MENDES, Gilmar Ferreira. “Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha”. São Paulo: Saraiva. 1996.

MORAES, Alexandre. “Direito Constitucional”. 14ª ed. São Paulo: Atlas. 2003.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. “Comentários à Constituição de 1946”. V. I. Rio de Janeiro: Henrique Cahen. 1947.

RAMOS, Dircêo Torrecillas. “O controle de constitucionalidade por via de ação”. São Paulo: Angelotti. 1994.

SILVA, José Afonso da. “Curso de Direito Constitucional positivo”.17ª ed. São Paulo: Malheiros. 2000.

TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001.


Notas

[1] MORAES, Alexandre. “Direito Constitucional”. 14ª ed. São Paulo: Atlas. 2003. P. 593.

[2] “Aspectos do Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003. P. 220.

[3] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. “Processo Constitucional”. Rio de Janeiro: Forense. 1984. P. 209.

[4] “A Constituição e os atos inconstitucionais”. Rio de Janeiro: Atlântida. S.d.

[5] “Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro”. São Paulo: Saraiva. 1958.

[6] “Direito constitucional”. Rio de Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos. 1956.

[7] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 255.

[8] “Do contrôle da constitucionalidade”. Rio de Janeiro: Forense. [s.d.]. P. 169

[9] “Curso de Direito Constitucional positivo”.17ª ed. São Paulo: Malheiros. 2000. P. 55.

[10] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Ob. cit., p. 166.

[11] JAMPAULO JÚNIOR, João. O controle de constitucionalidade das leis. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, n. 40, p. 245, jul./set. 2002.

[12] “Aspectos de Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003. P. 225.

[13] “Aspectos de Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003. P. 226.

[14] “Interpretação e aplicação da Constituição”. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998. P. 165.

[15] “Direito constitucional”. Rio de Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos. 1956.

[16] “Teoria pura do Direito”. Tradução: João Baptista Machado. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1996. P. 306-307.

[17] RAMOS, Dircêo Torrecillas. “O controle de constitucionalidade por via de ação”. São Paulo: Angelotti. 1994. P. 78.

[18] “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1987. P. 87.

[19] FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1987. P. 80.

[20] “Teoria geral do direito e do Estado”. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes. 1997. p. 168.

[21] “Comentários à Constituição de 1946”. V. I. Rio de Janeiro: Henrique Cahen. 1947. P. 298.

[22] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 181.

[23] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 189.

[24] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 258.

[25] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 259-260.

[26] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 260.

[27] MENDES, Gilmar Ferreira. “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 299.

[28] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 297.

[29] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 298.

[30] “O controle de constitucionalidade por via de ação”. São Paulo: Angelotti. 1994. P. 28.

[31] “A inconstitucionalidade das leis: vício e sanção”. São Paulo: Saraiva. 1994. P. 111.

[32] MORAES, Alexandre. “Direito Constitucional”. 14ª ed. São Paulo: Atlas. 2003. P. 625 e 626.

[33] “Aspectos de Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003. P. 231.

[34] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “Aspectos de Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003. P. 232.

[35] Argüição de descumprimento de preceito fundamental: delineamento do instituto. Em “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9882/99”. André Ramos Tavares e Walter Claudius Rothenburg (organizadores). São Paulo: Atlas. 2001. P. 109 a 125.

[36] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 255.

[37] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 173.

[38] “Jurisdição constitucional”. São Paulo: Saraiva. 1996. P. 255.

[39] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 160.

[40] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 160.

[41] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 162.

[42] TAVARES, André Ramos e ROTHENBURG, Walter Claudius. (Org.). “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da lei 9.882/99”. São Paulo: Atlas. 2001. P. 192.

[43] “Aspectos de Direito Constitucional contemporâneo”. São Paulo: Saraiva. 2003.


ABSTRACT

This article´s main goal is analyzing the unconstitutional act ability to perform effects before the brazilian laws. The starting point is the analysis of the temporal effects of the declaration of unconstitutionality by the brazilian courts. The conclusion is that, in some situations, the effects of the unconstitutional act are sustained. 


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Alexandre Magno Borges Pereira. O valor do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3457, 18 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23255. Acesso em: 18 maio 2024.