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A dissonância entre o crescente anseio punitivista da sociedade brasileira e a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados e de seus consectários legais

A dissonância entre o crescente anseio punitivista da sociedade brasileira e a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados e de seus consectários legais

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A sociedade brasileira quer punições mais severas, mas isso entra em conflito com os direitos e garantias individuais previstos na Constituição.

Resumo: Existe, no ordenamento jurídico brasileiro, uma categoria de normas que, embora positivadas e cumpridas pelo Estado, parece não possuir a aceitação da sociedade brasileira: os direitos individuais penais e processuais penais, constitucionalmente assegurados, e seus consectários legais. Em todas as regiões do Brasil, pessoas vociferam contra a aplicação desses direitos em benefício de criminosos diversos. A experiência cotidiana demonstra que a “voz comum” da rejeição retumba pela população brasileira em geral, sendo ouvida entre pessoas de diferentes classes sociais, cores, crenças, filosofias, ideologias políticas, níveis de formação educacional e intelectual, inclusive entre profissionais jurídicos. Por essa razão, o presente trabalho se dedica a compreender as razões promotoras da dissonância entre os direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados, bem como de seus consectários legais, e a sociedade brasileira em geral, que tem demonstrado um crescente anseio punitivista. A partir de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, consubstanciada em análise de artigos e livros já publicados, bem como das Constituições brasileiras e de fontes normativas em geral, este trabalho, sem intenção de esgotar o tema, pretende fornecer bases para a investigação da rejeição da sociedade em relação a direitos que pertencem ao seu patrimônio jurídico-subjetivo.

Palavras-chave: Direitos individuais penais. Dissociação. Anseio social punitivista.


1. INTRODUÇÃO

A expressão ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus; ergo, ubi homo, ibi jus, habitualmente traduzida como “Onde está o homem, está a sociedade; onde está a sociedade, está o Direito; logo, onde está o homem, está o Direito”, atribuída ao filósofo e jurista romano Ulpiano (170-228 d.C.) pelo Corpus Iuris Civilis, consoante registro de Poiares (2018), representa o sentido de aproximação entre as normas, desde sua elaboração até sua aplicação, e a sociedade para a qual estão direcionadas. Idealmente, deve haver uma confluência entre o espírito e a finalidade das leis (em sentido amplo) e os anseios dos seus destinatários. Portanto, a fim de que uma lei seja considerada “boa”, no sentido de ser bem compreendida, aceita e respeitada por seus receptores, o legislador precisa ter em mente, no decorrer de suas atividades típicas, as características da sociedade na qual ele está inserido: história; formação cultural e intelectual; igualdades e desigualdades; problemas e necessidades; valores e aspirações; aspectos comuns e particularidades etc. Somente quando se verifica que a norma foi preparada e “temperada” nesse “caldo” social multifatorial, é possível dizer que, no meio em que ela foi posta, o famoso brocardo recebe aplicação, ocorrendo, de fato, uma simbiose entre leis e sociedade, que se retroalimentam. E, na busca por esse feedback, ganha destaque a figura necessária da Sociologia Jurídica, enquanto “disciplina que investiga, por meio de métodos e técnicas de pesquisa empírica (isto é, pesquisa baseada na observação controlada dos fatos), o fenômeno social jurídico em correlação com a realidade social” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 42).

No Brasil, porém, vigora um senso comum empírico de que parte das normas vigentes se encontra distante da realidade social. É muito comum se dizer que, aqui, há “leis que pegam” e “leis que não pegam”, expressões que intrigaram o jurista português José de Oliveira Ascensão, merecendo registro em sua obra O Direito – Introdução e Teoria Geral: uma perspectiva luso-brasileira (1994). No entanto, tais expressões são geralmente utilizadas em referência a normas que exigem um “fazer” ou um “não fazer” do Estado e um “obedecer” por parte dos particulares. Se predomina o entendimento comum de que uma norma deva ser respeitada e aplicada (aquelas destinadas à proteção de mulheres e crianças, por exemplo, ou a que prevê prisão civil por não pagamento de pensão alimentícia), então se diz que a “lei pegou”. Por outro lado, se o Estado não cumpre as ações a que se comprometeu através de normatização (normas programáticas); ou se se omite quando deveria implementar direitos sociais (por exemplo, ausência de legislação sobre o direito de greve dos servidores públicos, previsto na Constituição Federal); ou, ainda, se os próprios particulares decidem não obedecer às normas, como acontece com várias regras de trânsito; então se diz que a “lei não pegou”.

Nesse sentido, existe uma categoria de normas que, embora positivadas e cumpridas pelo Estado, parece não possuir a aceitação geral da sociedade brasileira. Trata-se dos direitos individuais penais e processuais penais, constitucionalmente assegurados, e de seus consectários legais: presunção de inocência, duplo grau de jurisdição, excepcionalidade da prisão, liberdade provisória, ampla defesa, contraditório, direitos do preso etc. É curioso como o Brasil, “gigante pela própria natureza”, multicultural, que abarca pessoas das mais diversas origens e realidades sociais, intelectuais e econômicas; com uma democracia ainda frágil, justamente por conta de diferentes ideologias e interesses, o que dificulta o diálogo necessário para formar um ambiente democrático saudável; que atualmente se encontra eleitoral e politicamente polarizado; onde as pessoas “concordam em discordar”; que não possui sequer uma identidade de pensamento no que tange à sua maior “paixão nacional”, o futebol; parece ter encontrado sua “voz comum” na seara da rejeição aos direitos individuais penais.

Em todos os Estados e regiões do Brasil, pessoas em geral vociferam contra a aplicação dos direitos e garantias fundamentais penais e dos seus corolários legais em benefício de criminosos diversos. Noite e dia, programas policialescos de televisão bradam “a plenos pulmões” contra as normas garantistas. É comum ouvir os gritos de apresentadores quando descobrem, por exemplo, que a liberdade provisória foi conferida pelo Judiciário a quem foi preso em flagrante delito ou que um acusado recorrerá em liberdade de sua sentença condenatória. Pede-se uma “lei mais dura”, com penas mais severas (“de morte”, se possível, afinal “bandido bom é bandido morto”) e sem quaisquer direitos para “vagabundos”. Clama-se pelo fim da maioridade penal. A comoção é ainda maior quando se deparam com a garantia dos direitos da execução penal em benefício daqueles que já iniciaram o cumprimento da pena, como progressão de regime, saídas temporárias e livramento condicional. Como exemplo, causa ojeriza nos âncoras toda notícia sobre qualquer benefício recebido por Suzane von Richthofen, no desenrolar do cumprimento de sua pena.

Obviamente, os programas policialescos carregam um forte “quê” de sensacionalismo e apelação. Porém, não se pode ignorar que eles refletem o pensamento da sociedade como um todo, afinal são dependentes de audiência, e dificilmente teriam audiência se os temas abordados e a respectiva linguagem não espelhassem o sentimento do público. É claro que não se pode generalizar, tendo em vista que há muitas pessoas engajadas na defesa dos direitos humanos de todas as categorias, que compreendem e acreditam em sua inegável importância. No entanto, a simples experiência do cotidiano demonstra que a “voz comum” de rejeição aos referidos direitos retumba pela população brasileira em geral. Essa “voz”, que por vezes desesperadamente grita, berra e clama, é ouvida em todas as classes sociais, entre pessoas de todos os “cantos” do país, de todas as cores, crenças, filosofias e ideologias políticas, de todos os níveis de formação educacional e intelectual. Essa “voz” ecoa fortemente, inclusive, entre profissionais jurídicos de áreas diversas que, em tese, estudaram o processo de conquista e evolução dos direitos fundamentais e compreendem (ou deveriam compreender) a sua necessidade e importância para o Estado Democrático de Direito. É comum se presenciar, por exemplo, a revolta de muitos advogados, de diferentes especialidades, contra os seus colegas criminalistas, porque estes “defendem bandidos”.

Neste momento, importa fazer um adendo. É recorrente na doutrina jurídica o estudo sobre existência, validade, vigência e eficácia das normas. Em termos gerais, uma norma existe quando é criada e positivada. No entanto, ela só terá validade se se coaduna ao ordenamento jurídico, ou seja, quando a sua produção se dá por autoridade competente e obedece aos procedimentos regulares de tramitação (validade formal), bem como quando o seu conteúdo se adéqua às normas de hierarquia superior (validade material). Em sua doutrina sobre a pirâmide hierárquica, Kelsen ensina que “uma norma que representa o fundamento de validade de outra norma é figurativamente designada como norma superior, em confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior” (1987, p. 205). Por sua vez, a vigência da norma começa, em regra, a partir do marco temporal designado para o início da produção de seus efeitos. Quando produz concretamente os efeitos dela esperados, diz-se que a norma é eficaz. Se, por exemplo, o Estado implementa o programa social que ele mesmo normatizou, ou se os particulares decidem obedecer ao mandamento, a norma é eficaz. Portanto, “a eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos” (TEMER, 1998, p. 23). Feito o adendo, é possível visualizar que as normas constitucionais sobre direitos individuais penais, bem como os seus consectários legais, são existentes, válidas, vigentes e eficazes, porém, mesmo assim, não costumam ser bem recebidas pela sociedade brasileira em geral.

Muitos pesquisadores se debruçam sobre o fenômeno das “leis que pegam” e das “leis que não pegam”. Porém, suas análises se voltam quase que exclusivamente às normas que envolvem um “fazer” ou um “não fazer” do Estado, referentes à implementação de programas de governo ou de direitos sociais, e um “obedecer” dos particulares. Conclui-se, geralmente, que o problema reside na falta de eficácia: quando o Estado não cumpre o prometido ou não cria condições para que os particulares desenvolvam os seus direitos, ou quando os particulares não lhes obedecem, as normas envolvidas nesses cenários padecem de eficácia. Elas existem, são válidas e vigentes, mas não produzem efeitos.

No entanto, não há pesquisas voltadas especificamente para investigar o porquê de normas existentes, válidas e vigentes, como os direitos individuais penais e seus corolários legais, não serem aceitas pela sociedade como um todo, mesmo possuindo eficácia. E possuem eficácia porque a produção de seus efeitos independe da obediência dos particulares. Assim, “alheios” à “voz” da sociedade, constituintes e legisladores promoveram (e promovem) os referidos direitos e garantias fundamentais, e julgadores os aplicam, mesmo a contragosto da população. Acusados continuam sendo postos em liberdade, e apenados continuam recebendo direitos, independentemente do “querer” social. Obviamente, há injustiças, e nem todos os acusados e apenados são tratados como preveem as normas garantistas. Porém, em geral, é possível dizer que os direitos individuais penais possuem eficácia no Brasil, porque são (bem ou mal) aplicados e produzem efeitos concretos.

Há, ainda, trabalhos que, superficialmente, buscam averiguar a razão do descontentamento da população em relação aos direitos individuais penais, associando-o exclusivamente à impunidade que supostamente impera no país. Porém, esse tipo de análise, voltada a um fator único, é insuficiente para a compreensão do fenômeno como um todo, podendo ser facilmente enfraquecida a partir da observação do cotidiano. Esta revela que existe punição no Brasil, considerando o exponencial crescimento da população carcerária, ainda que a taxa de punição não consiga acompanhar os altos índices de criminalidade. No entanto, mesmo quando ocorre punição, a sede punitivista da sociedade não é saciada pela quantidade da pena aplicada ao criminoso, nem por sua natureza ou pela forma como ela é cumprida, e tampouco se sacia em relação àqueles que já cumpriram ou estão cumprindo as suas penas. A sociedade parece estar sempre “querendo mais”.

É como se o Estado agisse como um pai que toma as decisões pelo filho ainda criança, porque ele “não sabe o que faz” nem o que “é melhor para si”. Considerando esse cenário, questiona-se:

  • É possível afirmar que a sociedade brasileira ainda é “criança”, por não compreender a importância dos direitos individuais penais?

  • Se sim, por que ainda é “criança”?

  • Quais motivos impedem a sociedade em geral de chegar à maturidade de entender a necessidade dos referidos direitos?

  • Ou seria o Estado brasileiro um “pai superprotetor”, que não enxerga que o filho, maduro ou não, não “abre mão” de tomar as suas próprias decisões?

  • Se enxerga, seria ele arbitrário ao ponto de tolher totalmente a vontade do filho?

  • Estaria o Estado alheio, insensível e imóvel diante dos anseios populares e da realidade social?

Diante disso, apresenta-se o problema central que guia este trabalho: Quais as razões promotoras da dissonância entre a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados, bem como de seus consectários legais, e o crescente anseio punitivista da sociedade brasileira em geral?

O problema central pode, ainda, ser desdobrado em uma série de perguntas que, uma vez respondidas, podem levar à elucidação do tema proposto:

  • O brasileiro tende a ser individualmente mais vingativo?

  • A criminalidade e a impunidade favorecem uma cultura coletiva de vingança?

  • O histórico do sistema penal brasileiro enraizou na sociedade brasileira um sentimento punitivista?

  • Houve participação popular nas decisões históricas do Brasil, na elaboração das Constituições e na implantação dos direitos fundamentais?

  • Quais forças, movimentos e ideologias atuaram na conquista dos direitos individuais penais no Brasil, em especial perante a Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição da República de 1988?

  • Os direitos individuais penais e seus consectários legais são vistos como conquistas pela população ou foram meramente positivados?

  • A população compreende a necessidade e a importância dos referidos direitos?

  • As normas garantistas “falam a língua” da sociedade brasileira?

A partir de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, consubstanciada em análise de artigos e livros já públicos, bem como das Constituições brasileiras e de fontes normativas em geral, o presente trabalho, sem a pretensão de esgotar o tema, em razão de sua complexidade, pretende fornecer bases para a investigação do problema apresentado, visando, especificamente:

  • a) conhecer a forma de atuação do sentimento de vingança no homem (em sentido amplo) enquanto indivíduo, pois, em atendimento à integralidade do silogismo que abre este projeto, é preciso entender também as particularidades do “ser” individual para se chegar à compreensão da sociedade e do Direito;

  • b) averiguar se o brasileiro tende a ser individualmente mais vingativo, considerando a sua raiz cultural latina, empiricamente conhecida como mais passional do que as demais culturas;

  • c) investigar se o aumento dos índices de criminalidade, associados a maior ou menor (im)punidade, tem contribuído para que o sentimento individual de vingança se torne um sentimento punitivista coletivo, uma vez que o crescimento da violência faz aumentar o número de vítimas e de criminosos, além de levar à sensação geral de insegurança; d) levantar o histórico do sistema penal brasileiro, a fim de compreender qual tipo de consciência punitiva está arraigada no sentimento social;

  • e) avaliar a intensidade da participação popular, o contexto histórico e as forças atuantes nos processos históricos, no constitucionalismo, na elaboração das constituições, na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 e na implementação dos direitos e garantias individuais penais, para medir a distância entre os particulares, as instituições e as normas;

  • f) integrar os resultados encontrados nos objetivos específicos anteriores, analisando o “caldo de cultura” no qual a sociedade brasileira está inserida e os motivos que colaboram para o crescimento do anseio social punitivista e o seu consequente distanciamento dos direitos e garantias individuais penais constitucionais e de seus corolários legais.


2. VINGANÇA E SISTEMAS HISTÓRICOS DE PUNIÇÃO

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles já identificava que as pessoas sofrem quando encolerizadas e sentem prazer quando se vingam. No seu estudo da obra de Nietzsche, Paschoal (2009) discorre sobre as ideias do filósofo em relação a ressentimento e vingança. Para Nietzsche, o ressentimento está associado a uma ideia de autoenvenenamento por meio de sentimentos como inveja, rancor e ódio. Quando não podem ser descarregados para fora, eles se voltam para o interior do homem, onde são constantemente ressentidos. No indivíduo, a percepção da própria fraqueza e o sentimento de frustração geram um sentimento de rancor e, consequentemente, a vontade de ferir e produzir sofrimento em quem o feriu. Apropria-se dele, então, uma sede de vingança. Em seu estado de natureza, o ofendido não se interessa em conscientizar, recuperar, ensinar e reintegrar o agressor, mas tão somente em feri-lo com a mesma ou maior intensidade do seu próprio sofrimento.

Percebe-se, assim, que o sentimento de vingança é natural, inerente e presente em todo ser humano. Para Lopes (2000), fazer com que o outro sofra uma punição, ou melhor, uma vingança, resulta de um impulso natural, uma paixão: aquele movimento interior que não se controla e faz com que o agente sofra a ação em vez de realizá-la. Uma vez que a vida social é frequentemente marcada por frustrações em relação ao outro, é possível dizer que não existe quem não tenha sido machucado, traído ou violentado por alguém. Dessa forma, há sempre terrenos bastante férteis para que a vingança brote, cresça e se reproduza no meio social.

Desde os tempos remotos da humanidade, a ideia de vingança sempre esteve presente na vida em sociedade. Ora divina, cujos castigos eram aplicados pelos sacerdotes, “portadores da vontade das divindades”, contra os infratores que colocavam em risco a segurança de toda a comunidade, atraindo a “ira dos deuses”; ora privada, cujas penas eram aplicadas pelas próprias vítimas ou por seus respetivos grupos contra os infratores que cometiam afrontas individuais; a vingança pura e simples, para produzir no outro a mesma dor sofrida, foi a base do sistema de punições. Segundo Capez (2003), o mal recebido era quase sempre retribuído com brutalidade desproporcional. Ensina Caldeira (2009) que, nesse período, a Lei de Talião ganhou destaque, com a máxima “olho por olho, dente por dente”. Por sua vez, Diniz (2005) anota que, nessa fase, não existia a ideia de proporcionalidade, sendo a punição comumente incongruente à ofensa. Para Ferrajoli (2002), a “vingança de sangue” não era apenas uma reação instintiva ao mal sofrido, mas sim um direito. E mais: um dever da vítima ou de seu grupo.

Fadel (2012) destaca que, nos primórdios da civilização, a vingança, além de desproporcional, era realizada contra o agressor e os membros de sua família ou tribo, o que gerava uma sucessão de revanches (no Brasil, até hoje, há muitas notícias, advindas especialmente do Nordeste, de rixas que dizimaram famílias inteiras, geradas por ódio e vingança. Como exemplo do ensinamento do autor, destaca-se a história, contida no Pentateuco, sobre a matança de um povo inteiro pelos filhos do patriarca Jacó, vingando o estupro de uma das suas irmãs, cometido pelo filho do rei desse povo dizimado). Segundo Fadel (2012), a reação ao mal sofrido era puramente instintiva.

Mesmo com a evolução das teorias e dos sistemas penais, com o Estado passando a intervir nos conflitos privados e obrigando a vítima a aceitar composição ao invés de vingar-se (DINIZ, 2005), momento histórico conhecido como fase da vingança pública, as práticas penais revelam que, apesar do ideal de abandono dos instintos de natureza, o sentimento de vingança não foi totalmente abolido. Esse deslocamento do exercício do direito de punir para o Estado (FERRAJOLI, 2002), baseado nas teorias da pena, representou, muitas vezes, a mera transferência da vingança em si, do indivíduo para o poder político, ou seja, uma forma de “vingança do rei” ou da sociedade através da autoridade política (FOUCAULT, 2009).

Greco (2015) leciona que, já no século XVIII, período identificado com a fase da vingança pública, a sociedade vivia em uma situação de terror e desigualdades. O processo penal era inquisitivo e realizado secretamente, sem que o acusado tivesse conhecimento das provas produzidas contra ele. A tortura era um meio oficial utilizado pelo Estado para obter a confissão do “culpado”. Os juízes eram peças frágeis a serviço de um governo despótico. As penas eram indeterminadas, ficando ao alvedrio do julgador aplicá-las de acordo com a sua conveniência. As leis existentes eram confusas e rebuscadas, o que impedia a sua compreensão pelos particulares. Analisando as características do sistema punitivo, Foucault (2009) identificou que as funções da pena, muitas vezes aplicada em forma de espetáculo em praça pública, eram voltadas para refletir no corpo do condenado, à vista de todos, a violência do delito por ele cometido. A lei era considerada uma extensão do corpo do soberano, sendo lógico que a vingança atingisse o corpo do condenado.

Fadel (2012) registra que, na França, já no século XVIII, subsistia a pena de morte por esquartejamento, fogo, roda, forca e decapitação, todas estas formas temperadas com extrema crueldade. O processo penal, secreto, adotava oficialmente, como meio de obtenção de prova, a tortura contra os acusados e as testemunhas não merecedoras de fé. O mesmo ocorria na Alemanha, na Itália, na Espanha e em Portugal. Verifica-se, portanto, que o monopólio estatal da punição não deixou de promover o sentimento de vingança, que apenas recebeu uma nova roupagem. Essa ideia se coaduna ao pensamento de Nietsche, estudado por Paschoal (2009), no qual o ressentimento, além de sua noção individual, possui uma abordagem social que está nas origens da justiça. Assim, o ressentimento está presente na vontade do Poder, manifestando-se no Direito, na Política e na Moral.

Dentro desse cenário, fruto de um apanhado de razões individuais e históricas, insere-se o brasileiro, enquanto ser humano e portador de todas as suas características inerentes, em maior ou menor escala. Embora o Brasil seja um país relativamente novo, não há como ignorar que o brasileiro, assim como todos os povos, advém de uma mesma origem, da qual sentimentos, ideias e percepções sobre o mundo e a humanidade são transmitidos, mesmo que inconscientemente, ao longo do tempo, de geração em geração. Dessa forma, o brasileiro, por “ser” humano, é naturalmente atraído pelo desejo de vingança. A ideia de vingança, portanto, está entranhada no brasileiro pelo simples fato de ser “homem” (em sentido amplo) e por advir de uma humanidade que, por muito tempo, naturalizou a punição exclusivamente como forma de vingança. E, mesmo com o advento das modernas ideias penais, ela não conseguiu abolir a figura da vingança dos sistemas punitivos. Esses ideais são relativamente novos se comparados a todo o período histórico precedente. Além disso, para retirar o homem do seu estado de natureza e fazê-lo controlar os seus instintos, requer-se uma melhor formação intelectual dos particulares, coisa da qual ainda poucos brasileiros dispõem.

Soma-se a isso o fato de que o brasileiro se destaca no cenário mundial por ser um povo naturalmente mais emotivo do que os demais. Segundo reportagem produzida pela BBC Brasil (Povo emotivo? Por que choramos, rimos, vaiamos e ficamos furiosos na Rio 2016?), elaborada a partir de estudos de pesquisadores diversos, o brasileiro tende a demonstrar mais as suas emoções, uma vez que a nossa socialização não é tão rígida no controles delas. Por isso, a emotividade é algo característico do povo brasileiro. Além disso, não se deve ignorar a sua origem latina, pois, conforme reportagem produzida pela Gazeta do Povo (Pesquisa mostra que países latinos são os mais emotivos do mundo), os povos latinos são os mais emotivos do mundo, segundo pesquisa realizada pelo instituto Gallup. Destarte, sendo o brasileiro mais emotivo por natureza, a dificuldade em controlar os seus sentimentos, especialmente raiva, ódio, rancor, mágoa e ressentimento, deságua em uma maior tendência ao desejo por vingança.

Portanto, é possível apontar os processos históricos de concepção e evolução dos sistemas punitivos (permeados por sanções baseadas na vingança instintiva) e as características do povo brasileiro (enquanto parte da humanidade que também recebe influência histórica e, particularmente, por ser mais emotivo) como as primeiras razões contributivas para o atual crescimento do anseio social punitivista, em confronto com a aplicação dos direitos e garantias individuais penais e seus consectários legais. Naturalmente, os brasileiros em geral possuem mais dificuldade em compreender, aceitar e receber normas que “protejam” aqueles que lhes fizeram mal e que lhes retirem a possibilidade de dar vazão aos seus ressentimentos.


3. CRIMINALIDADE, IMPUNIDADE E PUNITIVISMO

Outro fator importante para a explicação do problema que norteia esta pesquisa reside no aumento exponencial dos índices de criminalidade no Brasil e o sentimento geral de impunidade. Obviamente, não é possível falar propriamente em impunidade, uma vez que, no Brasil, (bem ou mal) pune-se, tendo em vista a sua expressiva população carcerária, embora a taxa de punição não acompanhe a criminalidade. No entanto, circula por toda a sociedade o senso comum de que, aqui, a impunidade impera, e essa sensação merece análise.

Em um cenário de insegurança geral, provocado pelo aumento da criminalidade e por insuficiente punibilidade, a sociedade tende a enxergar o sistema penal como brando demais e, consequentemente, a adotar uma postura mais punitivista, aqui compreendida como o desejo de causar no criminoso um sofrimento exacerbado. Para Martins (2015), o punitivismo é a expressão da insegurança social em relação à ineficiente tutela do Estado. Aos olhos atuais, as ideias punitivistas parecem barbárie (e não deixam de ser). No entanto, elas não são pura barbárie, possuindo uma lógica própria, quando analisadas à luz do apanhado histórico acima realizado. Ora, se o particular transferiu ao Estado o seu “direito” de vingança “com as próprias mãos”, em nome de uma sonhada ordem social, então, a partir do momento em que o Estado não consegue promover satisfatoriamente essa ordem, o “direito” de vingança deve voltar ao particular ou o Estado deve “endurecer” as leis (não se defende aqui nenhuma das duas “soluções”, limitando-se apenas a identificar a lógica do pensamento). Percebe-se, assim, que as duas “soluções” apontadas, seja de forma direta, pelo particular, seja de forma indireta, pelo Estado, ensejam o retorno ao estado de natureza, em que a punição se resume à vingança pura e simples. Nesse sentido, Martins (2015) observa que a ausência de normas compatíveis com as relações sociais atuais, para as quais elas estão direcionadas, resulta na adoção de normas de um substrato social precedente.

Segundo Lopes (2000), o tema da punição é central no atual debate social brasileiro. Uns pedem a punição dos violadores dos direitos humanos; outros, a punição dos “bandidos”. Para uma parte da população, espancar, torturar, violentar, e matar, desde que se faça contra alguém que “mereça”, não significam propriamente crime ou violência, mas justiça. São muitos os que querem um Estado vingador, capaz de promover justiça imediata e pelas próprias mãos, fazendo as vezes da vítima. E essa noção punitivista tem sido popular justamente por apelar ao estado de natureza, considerando ser “mais fácil” ao ser humano dar vazão aos seus instintos do que controlá-los.

Controlar o instinto natural de vingança imediata, abrindo mão da sensação imediata de prazer por ela proporcionada, para esperar pela justiça estatal, em nome de um ideal de ordem social, que deseja uma sociedade harmônica, passando pela ressocialização e reintegração do criminoso à sociedade, não é tarefa das mais fáceis para o ser humano, em especial o brasileiro, enquanto ele vai assistindo ao criminoso levar uma vida “normal”, “como se nada tivesse acontecido”, respondendo ao processo em liberdade ou cumprindo uma pena mais branda do que se esperava. A supressão das ideias de vingança privada demanda um considerável grau de instrução e doutrinação da população em todos os sentidos educacionais e intelectuais, o que é raro neste país. Por isso, o Brasil se tornou um “caldo de cultura” ideal para a proliferação do punitivismo, considerando a barbárie criminosa que avança sobre a sociedade, que promove uma onda geral de perigo, medo e insegurança. Tende-se a acreditar que a maior severidade das leis e das penas, inclusive a não aplicação de direitos e garantias individuais, servirá como meio de inibição da violência.

Além disso, é necessário consignar outro ponto importante. Em países onde a criminalidade é baixa, são fracas as vozes de vingança ouvidas pela sociedade, porque as poucas vítimas restam isoladas do todo, considerando que o ser humano possui dificuldade em entender e acolher a dor alheia. Assim, nesses países, não ocorre uma arregimentação social para amplificar as poucas vozes de ressentimento. No entanto, em um país com altíssimas taxas de criminalidade, como o Brasil, são muitíssimas as vozes de vingança ouvidas em todos os “cantos”, visto que o número de vítimas é exponencial. Ademais, predomina a “quase” certeza de que todos os brasileiros, se ainda não o foram de fato, são vítimas em potencial. Dessa forma, as vozes se espalham e se materializam, pois, em todo lugar e a todo momento, o contato com as dores das mais diversas vítimas é frequente. Por isso, é possível afirmar que o crescente punitivismo é reflexo da reverberação coletiva dos sentimentos individuais de vingança.

Esse “contágio” do sentimento individual de vingança, ao ponto de formar um ideal punitivista, pode ser explicado também pela Psicologia Social, que estuda o comportamento humano a partir da influência recebida do grupo ou da sociedade a que pertence. Nesse campo, os psicólogos observam como o meio é capaz de influenciar as ações, os sentimentos, o comportamento e as ideias de um membro desse meio. Segundo Dutra e Blanco (2019), o ambiente social interfere diretamente nas opiniões, crenças e ações das pessoas. Independentemente de sua vontade, determinado comportamento (ideia, crença ou sentimento) nelas se instaura e as domina de forma inconsciente e indutiva. Literaturas, livros, opiniões, crenças, discussões, casos e noticiários criam um universo invisível que orienta os membros do grupo. Além disso, as opiniões produzidas pelo meio social são resistentes, não dando margem para que os membros pensem diferentemente. Esse fenômeno é muitas vezes identificado pela Psicologia Social como “comportamento de manada”, em que, na maioria dos casos, as pessoas costumam seguir o comportamento geral pelo simples fato de ser geral. Para Jesus (2013), existe uma ideia ou ilusão de que a “manada” (massa, multidão, coletividade) possui a sua racionalidade ou “sabedoria”, além de um sentimento de que as decisões tomadas em grupo são melhores do que as individuais. Assim, “se todos fazem, é correto fazer também”; “se todos pensam de uma forma, então esta é a forma correta de pensar”.

Portanto, os sentimentos individuais de vingança vão passando de uma pessoa a outra, alimentados pelas experiências pessoais ou de terceiros próximos ou não, e acabam ganhando corpo, reverberando na noção geral de punitivismo. Assim, mesmo as pessoas que nunca foram vítimas de crimes (ou cujo bem violado pelo criminoso é de menor relevância; ou, se mais relevante, não sentiram inicialmente um forte desejo de vingança) acabam adotando a ideia geral punitivista, porque a sociedade influencia a sua forma de pensar, fazendo nascer ou potencializando sentimentos. Essas pessoas, por sua vez, retroalimentam a sociedade com as suas próprias ideias, e assim o punitivismo “de manada” vai se solidificando.

Diante disso, é possível também apontar os altos índices de criminalidade (causadores da sensação geral de insegurança e descontrole social), a impunidade (que coloca em descrédito o Estado, com suas leis e instituições, como promotor da justiça) e o comportamento de manada (no qual os desejos individuais de vingança são alimentados pela coletividade e, por sua vez, retroalimentam os desejos coletivos, reverberando o ressentimento ao ponto de tornar-se punitivismo) como razões para a dissonância entre a sociedade em geral e os direitos e garantias individuais penais e seus consectários legais. Tais fatores têm impedido os brasileiros de enxergar essas normas como proteção (afinal, esses direitos surgiram especificamente para promover a proteção do indivíduo contra os avanços do Estado), ganhando, ao contrário, contornos de “ameaça”. Pela lógica do pensamento social punitivista, se a barbárie dos criminosos tem ameaçado a segurança dos particulares muito mais do que o próprio Estado, então os direitos que os “protegem”, “favorecendo” as suas condutas, também ameaçam a sociedade, pois “impedem” que a “justiça” seja feita.


4. CULTURA PUNITIVISTA HISTÓRICA

Além das razões relacionadas à natureza e à realidade social atual, é importante investigar também o passado brasileiro, a fim de proporcionar uma compreensão ampla sobre o problema exposto. Dessa forma, propõe-se, primeiramente, uma breve análise da história do sistema penal aplicado no Brasil, para entender aquilo que está incrustado nos seus sentimentos sociais de punição, ou seja, o modo pelo qual o brasileiro apreendeu o seu ideal punitivo, a forma de “justiça” que lhe foi ensinada ao longo do tempo.

Nesse sentido, Carvalho Filho (2004) registra que, nos tempos coloniais, vigoravam em terras brasileiras as Ordenações do Reino de Portugal (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), cuja marca preponderante era a severidade extrema das punições, adotando mutilações físicas e a pena de morte. Além disso, na ausência do Estado, dada a vastidão do território brasileiro, especialmente no sertão (compreendido como o interior do país, ou seja, aquilo que não era litoral), as pessoas exerciam a justiça “pelas próprias mãos”. Silva (2009) consigna que as penas nas Ordenações Filipinas envolviam morte na forca, morte precedida de tortura, corpo suspenso após a morte até a putrefação, morte por fogo, açoites, degredo para a África e mutilações. Lopes (2000) anota que as Ordenações eram monstruosas, aplicando sanções excessivamente rigorosas aos infratores, e continuaram sendo aplicadas mesmo após a independência do Brasil, até a promulgação do Código de Processo Criminal, em 1832 (AMARAL, 2013).

Durante o Império, ensina Carvalho Filho (2004), são editados no Brasil o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832. A incidência da pena de morte foi reduzida (apenas para casos de homicídio, latrocínio e rebelião de escravos), e as execuções passaram a ser realizadas de forma austera, sem o espetáculo da mutilação e da exposição do cadáver, havendo, inclusive, previsão de pena de açoite.

Com o advento da República, a Constituição de 1891 aboliu a pena de morte, o banimento judicial e o trabalho forçado nas galés. Apesar disso, o sistema penal brasileiro cambaleou, marcado por dúvidas e inseguranças geradas pelos dois primeiros Códigos Criminais da República, até parar no Código Penal de 1940 e no subsequente Código de Processo Penal, que vigoram até hoje, com as suas inúmeras reformas.

A partir dessa análise, é possível apontar, como mais uma das razões contributivas para a explicação do problema desta pesquisa, o fato de que a tradição punitiva brasileira seja fortemente marcada pelo autoritarismo e pela severidade das sanções. Nos primeiros 391 anos da história do Brasil, a aplicação das penas teve caráter meramente punitivo, voltada à satisfação dos anseios vingativos do ofendido, da sociedade ou do próprio Poder Público. E essa ideia de vingança parece ter se entranhado no ideal brasileiro de punição, uma vez que não se pode desprezar o peso desse longo período histórico na formação da sociedade. Afinal, como já demonstrado, os instintos naturais e a influência da história da civilização, desde os tempos mais remotos, continuam agindo no ser humano (e o brasileiro não foge à regra).

Obviamente, a República, com seus ventos liberais, inaugurou no Brasil uma nova forma de enxergar o sistema penal, tendo abolido penas cruéis, perpétuas, banimentos e trabalhos forçados, além de conferir a acusados e condenados mais direitos individuais e seus consectários legais. Porém, as fortes e constantes instabilidades sociais (pobreza, falta de educação, criminalidade, insegurança, impunidade), econômicas (crises internas e externas, inflação, planos frustrados, incertezas financeiras) e políticas (dois períodos de Ditadura, nos quais os direitos individuais foram flagrantemente violados), que permearam a história da República, não propiciaram a criação de condições necessárias para a mudança dos anseios punitivos da população. A ausência “sempre presente” de investimentos sérios e adequados em educação, especialmente voltada à conscientização da sociedade sobre a importância dos direitos e garantias individuais penais, sempre impediu o brasileiro de compreender as demais funções da pena (ressocialização, reintegração) e as suas finalidades, bem como de receber os direitos que lhe são próprios e de aceitar que o outro também é sujeito de direitos.

Desse modo, verifica-se que a ideia brasileira de punição ainda está fortemente ligada ao período anterior à República, parecendo mais natural à sociedade desejar meios penais mais primitivos. É como se tantos direitos e garantias penais, processuais e executórias não conseguissem dialogar com a sociedade, os seus instintos e a sua histórica cultura punitiva arraigada à sua formação. E não se pode ignorar que é preciso muito diálogo para que o estado de natureza ceda lugar ao estado social, o que é raro no Brasil. Segundo Lopes (2000), a sociedade brasileira ainda não aprendeu que a punição estatal não deve se confundir com a vingança pura e simples. No entanto, para o autor, esse aprendizado é difícil de acontecer, uma vez que essa mistura está diretamente ligada à tradição autoritária e anticivil da formação social brasileira.


5. DISTANCIAMENTO ENTRE SOCIEDADE, CONSTITUCIONALISMO E IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS PENAIS

Além do sistema penal, investiga-se também a relação da sociedade brasileira com os processos históricos de tomadas de decisão sobre os rumos do país, em especial o constitucionalismo, as constituições proclamadas e a adoção dos direitos fundamentais. Procura-se, assim, constatar o nível de presença popular e as forças atuantes nesses acontecimentos, a fim de medir a proximidade e a “familiaridade” da sociedade brasileira com as suas próprias normas e de saber se o brasileiro em geral tende a enxergar os direitos como algo que é “seu”, que emana de si, ou como algo externo, do qual ele não fez parte e não se sente parte.

Maciel (2002) relata que, após convocar e fechar a Assembleia Constituinte destinada a elaborar a constituição imperial, D. Pedro I nomeou um Conselho de Estado, formado por apenas dez pessoas consideradas notáveis, que preparou, em um mês, a Constituição de 1824. Para o autor, essa constituição merece, na verdade, o nome de “carta”, tendo em vista ter sido outorgada, sem participação e assentimento do povo. Além disso, a Constituição de 1824 se resumiu a copiar da Constituição Francesa de 1791 aquilo que interessava ao imperador. Bedin e Spengler (2013) destacam que a Constituição imperial se preocupou muito mais em estabelecer a divisão política e administrativa do país, destinando menor espaço e atenção aos direitos individuais. Ademais, apesar da adoção expressa dos direitos fundamentais, a instituição do Poder Moderador, que consignava uma espécie de absolutismo na figura do imperador, e outros fatores, como o fraco desenvolvimento econômico, as grandes distâncias, a precariedade dos transportes e das comunicações, tornaram muito difícil a efetividade desses direitos (BONAVIDES e ANDRADE, 2002).

Percebe-se, de antemão, a ausência de integração da sociedade em geral no processo de elaboração da primeira constituição e que os direitos individuais não resultaram de luta e conquista da população, mas foram meramente positivados. Esse distanciamento não foi menor nem mesmo com o advento da República, pois é fato histórico que não houve participação popular no movimento de conspiração que derrubou a Monarquia. Consequentemente, a Constituição de 1891, embora com ares liberais, conferindo mais direitos individuais e abolindo os severos sistemas punitivos (MAIA, 2012), foi elaborada distante do povo brasileiro.

Por sua vez, a Constituição de 1934 pareceu refletir melhor os anseios da sociedade, com a implantação dos direitos sociais e a previsão de normas programáticas, tendo a Constituição de Weimer (Alemanha) como paradigma principal (ARAÚJO, 2007). Para Cunha (2001), é a mais inovadora das constituições brasileiras. No entanto, uma análise mais acurada revela que a sua base histórica reside na crise global do liberalismo econômico e do Estado Mínimo com os movimentos sociais que reivindicavam melhores condições de trabalho e de vida (MAIA, 2012). Constata-se, assim, que o olhar do constituinte está voltado mais para fora do Brasil do que para dentro. É claro que não se pode ignorar a importância do documento, tendo em vista que no país já eclodia a “guerra” entre liberalismo e direitos sociais. Porém, essa importância era maior em relação aos grandes centros urbanos da época, onde a industrialização e seus respectivos problemas se concentravam. O restante do país, a sua maior parte, agrário e ainda atrasado, com problemas diferentes e necessidades próprias, não foi representado pelo texto constitucional, o que demonstra, mais uma vez, a distância entre as normas e o povo brasileiro em geral.

Apesar dos avanços, a Constituição de 1934 logo cedeu lugar à Constituição de 1937: a face normativa do período ditatorial instaurado por Getúlio Vargas após o golpe de estado. Se a constituição “social” não conseguiu refletir suficientemente os anseios de toda a sociedade, muito menos a Constituição de 1937 logrou esse êxito, considerando a sua inspiração fascista. A Carta outorgada esvaziou as funções do Legislativo e do Judiciário e concentrou o poder nas mãos do Executivo, além de ter restabelecido a pena de morte em determinados casos (ARAÚJO, 2007). Mais uma vez, a sociedade em geral assiste de fora aos processos históricos, tendo sido dispensada a representação popular constituinte (MAIA, 2012). Ademais, nesse período marcadamente autoritário, direitos e garantias individuais foram restringidos.

Em contraposição ao totalitarismo, é promulgada a Constituição de 1946, que retoma as conquistas promovidas pela Constituição de 1934. O novo texto restabelece o regime democrático republicano, com nova proibição da pena de morte e de sanções severas (MAIA, 2012) e com a proteção de direitos e garantias, priorizando os direitos sociais e as normas programáticas. No entanto, apesar de seu apelo popular, a sua duração foi curta e insuficiente para aproximar a sociedade em geral dos processos históricos e das normas, tendo em vista a instabilidade política durante a sua vigência, que desaguou em novo golpe de estado e na implantação da ditadura em 1964. Outorgada em 1967, a Constituição da Ditadura, com suas modificações e Atos Institucionais, apesar de ter previsto direitos e garantias individuais, afastou ainda mais a população dos centros de tomadas de decisão sobre os rumos do país e de elaboração das leis, visto que os direitos fundamentais, especialmente os individuais penais e seus consectários legais, foram flagrantemente violados nesse período.

Essa análise dos documentos constitucionais do Império à Ditadura de 1964 revela a distância entre o brasileiro e as normas jurídicas. Verifica-se que, na elaboração das constituições, bem como nos processos históricos que resultaram em suas promulgações ou outorgas, nas tomadas de decisões e na elaboração das leis, a sociedade brasileira não foi devidamente chamada a participar ou, se chamada, não se envolveu como um todo organizado. Não há notícias, nas pesquisas diversas, sobre a presença e/ou a intensidade da participação de forças ou de movimentos sociais no constitucionalismo brasileiro e na conquista dos direitos fundamentais. Não há informações sobre debates sociais acerca dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados e seus corolários legais, pois, talvez, a questão da proteção contra o avanço estatal não fosse uma preocupação geral da sociedade brasileira, que se manteve alheia, em seus respectivos e isolados rincões, às discussões políticas ou à maior ou menor sede estatal em reprimir as liberdades individuais. Tais problemas sempre pareceram mais restritos aos grandes centros da época (Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros), não sendo encarados como gerais. Além disso, o fenômeno do aumento exponencial da criminalidade, que assola o país como um todo e gera o debate atual propenso a rejeitar os direitos individuais penais, é relativamente recente na história do Brasil. Antes, a criminalidade não era tão alta, além de ter sido mais restrita aos grandes centros. Por isso, não se desenvolveu um cenário que demandasse uma discussão sobre a aplicação dos direitos penais. Assim, durante muito tempo, autoritarismo estatal e criminalidade não foram problemas reais, decisivos, determinantes e comuns à maior parte do país.

Dessa forma, uma vez que, historicamente, a sociedade brasileira em geral se manteve distante dos problemas e fatores que levaram à previsão dos direitos individuais penais no Brasil, a tendência é que o brasileiro não perceba tais direitos como conquistas. Se não foi chamado a participar, ou se não se sentiu motivado a participar, porque não se viu envolvido pelos fatores históricos geradores, então logicamente o brasileiro não enxerga os direitos individuais penais como algo que é seu, como direitos subjetivos, pertencentes ao seu patrimônio jurídico. Quem não participa de uma conquista tende a não se sentir parte dela e a não sentir que ela lhe pertence.

É como se, historicamente, o brasileiro tivesse assistido a tudo “de fora” (se é que chegou a assistir) e, de repente, os direitos individuais penais “caíram em seu colo”, e ele não sabe o que fazer com “isso”, tampouco entende a sua necessidade e importância, nem para o que “serve”. É visível que, na elaboração das constituições analisadas e de suas respectivas leis, a previsão dos direitos individuais resulta de mera reprodução das constituições de países “mais evoluídos”. Assim, uma vez que o brasileiro em geral não consegue enxergar os direitos individuais penais como conquista sua, mais difícil se torna enxergá-los como conquista e direito do outro, principalmente quando tais direitos parecem “ameaçá-lo”, ora “protegendo bandidos” e não “permitindo” que ele faça justiça por conta própria, ora “impedindo” o Estado de promover a punição adequada conforme as suas convicções pessoais.

Na verdade, em termos de direitos fundamentais, o olhar brasileiro sempre esteve mais voltado aos direitos sociais do que aos individuais penais. As Constituições de 1934 e de 1946 e a própria Constituição de 1988 são as mais celebradas não só porque democráticas, mas principalmente pela previsão dos direitos sociais e de normas programáticas destinadas à sua implementação. Carreirão e Melo (2014), em seus estudos sobre as várias pesquisas de opinião pública, realizadas entre 1987 e 1988, acerca dos temas discutidos pela Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na promulgação da Constituição de 1988, demonstram que as questões debatidas no cenário nacional à época estavam voltadas a temas institucionais, trabalhistas, econômico-financeiros e morais. Nenhum questionamento sobre direitos e garantias individuais penais foi dirigido à população, evidenciando que esse tema estava distante das preocupações da sociedade. E isso é curioso porque, após duas décadas de ditadura, o natural, em tese, seria justamente a preocupação com a garantia dos direitos individuais penais, em razão das flagrantes violações cometidas no período anterior.

É fato histórico que um dos movimentos mais fortes, nesse período de transição entre ditadura e democracia, foi o “Diretas Já”, voltado ao restabelecimento integral dos direitos políticos da população. Analisando o trabalho de Negrão e Ribeiro (2022) sobre o processo de elaboração da Constituição de 1988, constata-se que as forças sociais e políticas mais pulsantes do período estavam relacionadas à necessidade de instalar o regime democrático. Além disso, é possível identificar também a influência dos movimentos sindicais na promoção dos direitos sociais e na implementação de normas programáticas. Porém, não há notícias sobre forças semelhantes destinadas à previsão e garantia dos direitos individuais penais. Sobre estes, é possível inferir, a partir do estudo dos autores mencionados, que a produção das normas constitucionais sobre tais direitos se limitou a reproduzir textos de tratados assinados pelo Brasil antes da consolidação da Assembleia Nacional Constituinte. Os autores identificaram várias normas que continham similaridades específicas, inclusive na sua forma escrita, com as normas internacionais (mais uma vez, o olhar voltado mais para fora do país do que para dentro). Além disso, atestam que, em relação aos direitos individuais penais, os temas que mais permearam as discussões da Assembleia foram acerca da tortura e da pena de morte. Aliás, segundo eles, em vários momentos do debate constituinte, os direitos individuais penais são citados como “barreiras protetivas ao criminoso”. Percebe-se, ainda aqui, a presença entranhada do ideal punitivo resultante da história penal brasileira. Talvez essa atenção maior aos direitos sociais e às normas programáticas tenha origem nos problemas mais urgentes que sempre assolaram o Brasil: pobreza, fome, desigualdades, saúde, educação etc. Essas questões dizem respeito às necessidades mais primárias do ser humano. Afinal, para que se tenha liberdade é preciso estar vivo, e para que se esteja vivo são necessárias melhores condições de vida.

Portanto, além das razões já identificadas para explicar o problema que guia esta pesquisa (instintos vingativos do homem enquanto indivíduo, influência dos moldes civilizacionais transmitidos desde tempos remotos da humanidade, problemas atuais acerca da crescente criminalidade e baixa punibilidade que incomodam a sociedade brasileira, tendência punitiva arraigada ao pensamento social brasileiro a partir do seu histórico dos sistemas penais), também é possível apontar como razão a ausência ou a insuficiência da participação da sociedade na implementação dos direitos e das garantias individuais penais e de seus consectários legais, evidenciado pelo distanciamento do brasileiro dos processos históricos, das tomadas de decisão, do constitucionalismo, da elaboração das constituições e da “conquista” dos referidos direitos.


6. AUSÊNCIA DE IDENTIDADE NACIONAL

Muitos pesquisadores têm se debruçado sobre esse afastamento entre a sociedade brasileira e as suas normas. A partir de uma abordagem mais geral, em vez de especificamente voltada aos direitos individuais penais, eles apresentam razões históricas, sociais e culturais para explicar o fenômeno, merecendo registro por sua pertinência com o tema deste trabalho.

Nesse sentido, Machado e Santos (2018) ensinam que era característica da elite local brasileira o consumo da literatura estrangeira, como modelo de progresso e civilização, cujos ideais foram simplesmente replicados no Brasil, sem considerar as fragilidades e especificidades de um país tão miscigenado. Nesse período, segundo os autores, destaca-se o movimento dos propagandistas ou glosadores, composto por intelectuais que se limitavam a reproduzir o conteúdo do positivismo europeu, sem qualquer preocupação local, em um processo maculado de importação da verdade. Assim, esses glosadores foram os responsáveis pela “produção” inicial de conhecimento jurídico no País, consagrando o ideal de que a origem da verdade se encontrava nos estudos e escritos provenientes dos países centrais. Destacam, ainda, o papel da elite na formação do Direito brasileiro, que atuou em um processo que forjou a realidade nacional, reproduzindo em cascata uma inadequação que repercutiu na realidade atual. E essa inadequação dos paradigmas positivistas dificulta, atualmente, a real apreensão da realidade nacional e macula a correta aplicação dos preceitos legais na análise dos problemas inerentes ao nosso território.

Na mesma linha, Kobielski (2019) assevera que, no Brasil, a colonização europeia não permitiu que fosse formatado um sistema de justiça condizente à realidade local. Grande parte das práticas legais do Brasil foi importada da Europa e dos Estados Unidos. Faria (2004) aduz que a ineficiência do ordenamento jurídico brasileiro decorre do fato de ser o sistema de justiça incompatível com a realidade socioeconômica. Para Carvalho (2010), a configuração do sistema de gestão pública no Brasil a partir de modelos idealizados, ou seja, modelos de justiça e de sociedade totalmente distintos da realidade brasileira, explica a incompatibilidade entre a sociedade e as instituições. Destaca, ainda, que a justiça criminal atual é reflexo do pensamento inquisitório, institucionalizado desde a colonização e consolidado ao longo do processo de formação do Estado brasileiro.

Em seu trabalho sobre os intérpretes do Brasil (sociólogos, antropólogos e historiadores de destaque, que se dedicaram ao estudo da formação da sociedade brasileira), Martins (2017) revela que, muito além da falta de identificação entre a sociedade brasileira e as suas normas e instituições, os brasileiros padecem de ausência de identidade enquanto nação.

Segundo Martins (2017), de acordo com os intérpretes, o mais básico na construção de uma cultura nacional é a figura do “herói”, elemento que falta ao Brasil. Tiradentes foi sagrado “herói nacional” somente depois da proclamação da República, por necessidade de justificar a deposição do imperador, sendo necessário lembrar que esse “mártir da independência” não portou influência moral alguma à época que antecedeu e sucedeu a independência do Brasil. Revela o autor, ainda, que o modelo de identidade nacional, criado no final do século XIX pela geração de 1870 (embasado na “raça” e no meio geográfico), teria desenvolvido nos brasileiros um sentimento de desagrado pela própria identidade. Isso porque, enquanto em outros países a identidade nacional fora construída tendo como referência a superioridade do povo, o passado esplêndido ou a língua; no Brasil, um dos modelos de identificação pressupunha a “raça”, que na época era considerada inferior, formada por pessoas indolentes e pouco propensas ao trabalho e à racionalidade. Portanto, a identidade nacional foi construída em bases consideradas negativas, o que gerou um sentimento de incompletude.

Ainda com esteio nos intérpretes do Brasil, Martins (2017) assevera que a falta de identidade nacional resulta também da importação de instituições políticas incompatíveis com a realidade social. Na verdade, não existe um povo brasileiro. Para explicar o Brasil e a sua identidade, é preciso recorrer ao seu passado sem a formação de um povo. Não há sociedade orgânica ou coesão nacional. O que existe é uma sociedade sem laços de solidariedade e sem consciência cívica nacional.

Silveira (2017) ensina que o Brasil foi construído, por um longo período, a partir de relações sociais espontâneas, não desejadas nem planejadas, como uma herança da forma de viver dos ibéricos. Para o autor, é inútil buscar por fundadores ou heróis que tenham elaborado um projeto de sociedade, porque a sociedade brasileira não foi idealizada para ser como é. Ela simplesmente existe. Destaca que nem mesmo a Constituição de 1988 possui força capaz de unificar a sociedade civil em torno de ideais. No seu entendimento, o Brasil não logrou se tornar uma democracia liberal, tampouco um Estado de bem-estar social. Em geral, o Brasil continua, na prática, sendo um país cuja desigualdade é a marca da sociedade, apesar dos ideais de igualdade contidos nos documentos oficiais.

Diante disso, é possível apontar essa ausência de identidade nacional como a razão mais geral e remota para explicar o problema desta pesquisa. Se os brasileiros não se reconhecem como nação, então consequentemente não reconhecem instituições, normas, direitos, história etc., pois não existe o sentimento de “pertencimento” e de “apropriação”.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora não tenha sido motivado pela pretensão de esgotar o tema, considerando sua complexidade, compreende-se que o presente trabalho trouxe à luz fortes e importantes razões para a investigação do problema proposto: as razões promotoras da dissonância entre a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados, bem como de seus consectários legais, e o crescente anseio punitivista da sociedade brasileira em geral. Sem pesquisas que se ocupem especificamente do tema, este trabalho, além de inédito, revela-se amplamente pertinente, importante e abrangente, uma vez que não se contenta em observar o recorte de uma realidade, mas um fenômeno que circula por todo o país.

Ao realizar uma abordagem multifatorial das razões pelas quais, no cenário dos direitos individuais penais, a sociedade parece dissociada da legislação, debruçando-se sobre suas variadas fontes, desde a gênese da sociedade brasileira, este trabalho apontou os seguintes elementos como possíveis causas do problema investigado: a) a influência histórica dos processos de concepção e evolução dos sistemas punitivos, fortemente marcados pela ideia de vingança instintiva, sobre a sociedade brasileira, que tende a ser, ainda, particularmente mais emotiva e ressentida; b) a sensação geral de insegurança, descontrole social e impunidade, gerada pelos altos índices de criminalidade e acentuada pelo comportamento de manada, que alimenta o anseio punitivista; c) tradição penal brasileira fortemente caracterizada por autoritarismo e severidade das sanções; d) ideal brasileiro de punição ainda conectado aos meios penais mais primitivos; e) ausência ou insuficiência da participação da sociedade na implementação dos direitos e das garantias individuais penais, evidenciado pelo distanciamento entre brasileiros e processos históricos, tomadas de decisão, constitucionalismo, elaboração das constituições e “conquista” dos referidos direitos; f) ausência de identidade nacional, que impede a sociedade de reconhecer suas próprias instituições, normas, direitos e história.

Acredita-se, firmemente, que este trabalho servirá de base para reduzir o distanciamento entre a sociedade e a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados e seus consectários legais; e contribuirá para reduzir o afastamento entre legisladores e particulares, que parecem caminhar em direções opostas no tocante aos referidos direitos. Ainda, as observações deste trabalho permitirão que legisladores em geral compreendam melhor a sociedade brasileira, de modo que suas atividades típicas possam refletir as características dos destinatários, no sentido de: a) ajustar, dentro de um limite razoável, normas infraconstitucionais penais e processuais penais; sem jamais, no entanto, perder de vista a necessidade e a importância da manutenção dos direitos e garantias individuais constitucionalmente previstos, sob pena de (re)instauração de um estado de barbárie tipicamente medieval; b) promover a inserção dos particulares nas escolhas políticas referentes a direitos individuais, buscando o diálogo e a pacificação entre diferentes pontos de vista; c) permitir a participação dos cidadãos nos processos decisórios e na elaboração das leis, inclusive para oxigenar as ideias legislativas; d) promover a educação dos destinatários em relação aos direitos fundamentais, a fim de que, compreendendo a sua importância, desenvolvam um sentimento de conquista, bem como a maturidade necessária que lhes permita aceitar e recepcionar os direitos individuais penais.


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THE DISSONANCE BETWEEN BRAZILIAN SOCIETY'S GROWING PUNITIVIST DESIRE AND THE APPLICATION OF CONSTITUTIONALLY GUARANTEED CRIMINAL INDIVIDUAL RIGHTS AND GUARANTEES AND ITS LEGAL CONSECTORS

Abstract: There is, in the Brazilian legal system, a category of norms that, although affirmed and enforced by the State, do not seem to have the acceptance of Brazilian society: individual criminal and criminal procedural rights, constitutionally guaranteed, and their legal consequences. In all regions of Brazil, people protest against the application of these rights to the benefit of various criminals. Daily experience demonstrates that the “common voice” of rejection of these rights resounds among the Brazilian population in general, being heard among people from different social classes, colors, beliefs, philosophies, political ideologies, levels of educational and intellectual training, including among professionals legal. For this reason, the present work focuses on understanding the reasons that promote the dissonance between constitutionally guaranteed individual criminal rights and guarantees, as well as their legal consequences, and Brazilian society in general, which demonstrates a growing punitive desire. Based on a qualitative, bibliographical and documental research, embodied in the analysis of articles and books already public, as well as the Brazilian Constitutions and normative sources in general, this work, without intending to exhaust the theme, intends to provide bases for the investigation of the society's rejection of rights that belong to its legal-subjective heritage.

Keywords: Individual criminal rights. Dissociation. Punitive social yearning.


Autor

  • Thiago Meneses Rios

    Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Experiência anterior como Assessor de Juiz em Vara Criminal. Experiência como estagiário da Defensoria Pública Estadual do Piauí.

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RIOS, Thiago Meneses. A dissonância entre o crescente anseio punitivista da sociedade brasileira e a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados e de seus consectários legais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7344, 10 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104796. Acesso em: 12 maio 2024.