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A presunção de veracidade do depoimento de policiais nos crimes de desacato, desobediência e resistência

A presunção de veracidade do depoimento de policiais nos crimes de desacato, desobediência e resistência

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É inconcebível aceitar que a prerrogativa da presunção de veracidade das declarações de um agente público seja suficiente para ensejar um decreto condenatório.

RESUMO: A presente pesquisa teve por objetivo o estudo crítico da presunção de veracidade do depoimento de agentes públicos no processo penal, assim como, suas implicações legais e doutrinárias em face do abuso de autoridade e da imparcialidade do Juiz. Foram investigados, inicialmente, a origem desta presunção de veracidade em suas bases que remontam ao Direito Administrativo. Em seguida, buscou-se demonstrar a incongruência desta prerrogativa com os princípios fundamentais do Direito Penal Material e Processual. O método de abordagem seguido foi o dialético, a partir de um referencial teórico constitucional, legal, jurisprudencial e doutrinário.

Palavras-chave: Abuso de autoridade. Crimes contra a Administração Pública. Princípios penais.


1 INTRODUÇÃO

O objetivo da presente pesquisa será proceder um estudo crítico sobre a presunção de veracidade adotada pela jurisprudência no depoimento de agentes públicos, em especial os policiais, no Direito Penal, assim como, demonstrar a sua incompatibilidade com a sistemática e os princípios basilares deste ramo do direito, quando se tratando da apuração de crimes perpetrados contra a administração pública onde os agentes atuam como vítima secundária do delito.

Primeiramente, tratar-se-á do conceito de administração pública, buscando seu conceito na doutrina vigente em seu sentido amplo, sendo assim, definir quem são seus agentes e do que se trata o poder de polícia, assim como, suas atribuições e justificativa.

Em seguida, será tratada a origem e o significado dessa presunção de veracidade dentro da sistemática do direito penal perante a qualidade da pessoa como testemunha, abordando, para tal, o significado de verdade em seu sentido metafísico, assim como, de que maneira se revela esta verdade dentro da estruturação do Estado e para o Juiz de Direito em contraste com o abuso de autoridade.

Após, serão tratados os crimes de Resistência, Desobediência e Desacato em espécie, apresentando seus aspectos legais e doutrinários e a sua consequente incompatibilidade com a presunção de veracidade quando comparados a outros crimes com características semelhantes.

O objetivo a ser alcançado é a demonstração que tal prerrogativa pode servir como ferramenta de abuso de autoridade e privar o indivíduo de suas garantias constitucionais, assim como, o colocar em posição de vulnerabilidade perante o Estado.

Para a obtenção dos resultados almejados nesta pesquisa, o método de abordagem utilizada será o dialético, a partir da importância dos tipos penais abordados e sua incompatibilidade com os princípios do Direito Penal. A metodologia de investigação utilizada será em especial a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.


2 AGENTES PÚBLICOS: DA FUNÇÃO POLICIAL

Quando se fala em administração, o que vem à mente é a organização, gestão, controle de recursos, regime e disciplina a que se submete algo, no geral, seria tudo aquilo que possibilita a continuidade e eficácia de algo que se pretende, isso também se aplica à administração pública, embora alguns possam vislumbrá-la apenas como a figura dos chefes do Poder Executivo, ou então, para outros pode se tratar apenas da organização interna de seus órgãos, para o Direito, porém, a Administração Pública adquire sentido amplo, desde a criação e a organização de seus agentes e órgãos, à execução de seus atos.

Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007 apud Di Pietro 2018), a etimologia do termo Administração Pública vem de duas versões: para uns, vem de ad (preposição) mais ministro, as, are (verbo), que significa servir, executar; para outros, vem de ad manus trahere, que envolve ideia de direção ou gestão.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018) explica que para alguns autores, a administração no direito público adquire sentido amplo, abrangendo a legislação e a execução, enquanto para outros, incluem as funções de governo e propriamente administrativas.

A autora (Pietro, 2018) ainda aponta que parte da doutrina divide a expressão Administração Pública em seu sentido objetivo, compreendendo natureza da atividade exercida, sendo, portanto, a própria função administrativa, e em seu sentido subjetivo, o qual abarca as pessoas jurídicas, seus órgãos e agentes públicos.

Outro conceito importante a se retratar é o de Agente Público. Mazza (2020, p. 602) ensina que o termo Agente Público designa da forma mais genérica possível qualquer pessoa que desempenha função pública, estes estão contemplados pela Constituição Federal de 1988 nas Seções I e II, Capítulo VII, Título III, e se dividem em várias espécies, dentre eles os agentes militares, cuja menção se encontra no art. 421 da Constituição Federal de 1988, o mesmo autor ainda esclarece que a organização destes agentes se baseia na hierarquia e disciplina, Di Pietro (2018, p. 748), por sua vez, complementa que estes agentes se submetem a regime estatutário, estabelecido em lei a que se submetem.

O Decreto n° 88.777/83 e o Decreto-Lei n° 667 de 1969 tratam, respectivamente, da organização e o regulamento das polícias militares.

O art. 144 da Constituição Federal de 1988 atribui o dever da segurança pública às polícias, cabe destacar, portanto, o conceito de poder de polícia na doutrina pátria. José Soares Ferreira Aras Neto (2019, p. 80) assim define o Poder de Polícia: O poder de polícia é o poder-dever que tem a Administração Pública de condicionar o exercício dos direitos individuais ao interesse público. (grifo do autor) Di Pietro esclarece que este conceito de Poder de Polícia atualmente adotado nem sempre vigorou:

Pelo conceito clássico, ligado à concepção liberal do século XVIII, o poder de polícia compreendia a atividade estatal que limitava o exercício dos direitos individuais em benefício da segurança. Pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público. (PIETRO, 2018, p. 194) (grifo da autora)

Di Pietro (2018, p. 113) ainda esclarece que antigamente o poder de polícia já possuiu um sentido muito mais amplo do atual, chegando inclusive a designar toda a atividade do Estado na Alemanha em meados do fim do século XV, porém, atualmente o poder de polícia está ligado à ideia de coação. Sendo assim, entende-se que o objetivo do poder de polícia é a contenção dos indivíduos em prol do interesse público, restringindo sua liberdade para evitar a lesão a outros bens jurídicos, sendo o principal meio de coerção da Administração Pública, por este motivo, Mazza (2020, p. 387) ainda que menciona que muitos administrativistas passaram a adotar a expressão limitação administrativa para se referir ao poder de polícia.

Porém, cabe apresentar o conceito de poder da polícia e a sua diferença do poder de polícia, Cretella Júnior (apud LAZZARINI, 1994, p. 73-74) esclarece que o poder de polícia engloba o aparelhamento, o princípio jurídico que justifica a ação policial, enquanto o poder da polícia, é a possibilidade da atuação da polícia, é a polícia quando age, o autor ainda complementa que, é em virtude do poder de polícia que o poder da polícia é empregado, que este é legitimado por aquele.

Lazzarini (1994, p.74), ainda pontua que a o poder de polícia se trata do conjunto de atribuições da Administração Pública, e é, inclusive, a razão da existência do poder da polícia, embora ambos conceitos estejam ligados em razão da tendência ao controle dos direitos e liberdades das pessoas.

Di Pietro complementa que: O fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados [...] (PIETRO, 2018, p. 192).

Não obstante, estatui o art. 3012do Código de Processo Penal a faculdade de qualquer pessoa prender aquele que se encontre em flagrante delito, todavia, conforme reforça o art. 13, §2°, alínea a3do Código Penal, embora facultado a qualquer pessoa, para os policiais isto é um dever, tal questão é abordada por Mazza (2019, p. 391-392), esclarecendo que o poder de polícia, trata-se, de competência em sua maioria discricionária, existindo, todavia, hipóteses em que o ato exercido pelo poder de polícia é vinculado.

Mazza (2020) assevera, porém, que o poder de polícia não é privativo das polícias, pois se trata de um complexo de atividades administrativas, dessa forma, o autor ainda aponta as diferenças adotadas pela doutrina entre a polícia administrativa e a polícia judiciária, esta primeira tem caráter predominantemente preventivo, enquanto a polícia judiciária se encarrega da repressão do delito, age após sua ocorrência apurando a autoria e materialidade.4

Apesar destas diferenças, há uma semelhança importante a salientar, como a principal função do poder de polícia é a repressão e prevenção dos delitos, os policiais são, em geral, os agentes públicos com mais proximidade a estes fatos, vez que sua atuação requer que estejam presentes na cena do delito, seja para tentar coibi-lo, ou para investiga-lo.


3 PRESUNÇÃO DE VERACIDADE E ABUSO DE AUTORIDADE

O direito penal possui uma sistemática própria que o difere dos demais ramos do direito, diferentemente do que acontece com o direito civil, por exemplo, onde há maior possibilidade das provas colhidas no processo serem de natureza documental, no direito penal, embora existam os crimes capazes de ser apurados por provas inequívocas, tal como a documental, em várias situações o fato jurídico que é relevante para o direito penal é inesperado e súbito, razão pela qual a prova testemunhal adquire elevada importância, e algumas vezes, pode ser a única colhida, por este motivo é relevante que haja preocupação acerca da validade e veracidade desse tipo de prova.

Nucci (2020, p. 502) define a testemunha como: [...]a pessoa que declara ter tomado conhecimento de algo, podendo, pois, confirmar a veracidade do ocorrido, agindo sob o compromisso de ser imparcial e dizer a verdade [...]. Cabe ressaltar que, à pessoa que jurou dizer a verdade e mentiu ou se omitiu a dizer a verdade como testemunha, caberá responsabilização penal.5

Sobre a importância dessa espécie de prova, Aury Lopes Júnior (2020, p.515) assim ensina:

Com as restrições técnicas que infelizmente a polícia judiciária brasileira em regra tem, a prova testemunhal acaba por ser o principal meio de prova do nosso processo criminal. Em que pese a imensa fragilidade e pouca credibilidade que tem (ou deveria ter), a prova testemunhal culmina por ser a base da imensa maioria das sentenças condenatórias ou absolutórias proferidas.

Nessa lógica, o Código de Processo Penal prevê em seu art. 2146o ato da contradita, ao qual uma das partes poderá apontar elementos que coloquem em dúvida a parcialidade daquele que irá depor. Além disso, aplicado subsidiariamente, o Código de Processo Civil prevê em seu art. 447, § 2° ao §5°7, a suspeição e o impedimento de certas pessoas, tais como, alguns familiares, o cônjuge e os inimigos ou amigos íntimos da parte; ressalvando a possibilidade da testemunha impedida ou suspeita depor quando necessário, todavia, o depoimento de tais pessoas servirá apenas como elemento informativo, mas não de corroboração dos fatos, devendo o juiz dar ao depoimento desta, o valor que este merece.

Denota-se que para o direito positivado, os elementos ligados à pessoa que depõe têm grande relevância para a valoração da prova testemunhal, os quais podem diminuir ou elevar seu valor como fonte de conhecimento dos fatos.

Nesse segmento, a jurisprudência consolidada reconhece a presunção de veracidade do depoimento de agentes públicos no processo penal, quando relativo a atos exercidos em suas funções, o que, embora tal presunção seja relativa, ou seja, carece de um mínimo grau de verossimilhança e coesão com eventuais provas presentes, possuem elevado valor probatório. Não obstante, os depoimentos destes agentes são suficientes para inclusive ensejar a condenação, mesmo quando são a única prova produzida em Juízo, nesse sentido decidiu a 3° Turma Criminal do egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal no acórdão de n° 1243263.

Tal presunção não possui previsão legal, ela é oriunda de uma aplicação analógica da presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos.

Inicialmente, é necessário conceituar a presunção de legitimidade e presunção de veracidade dos atos administrativos. A esse respeito, Di Pietro ainda pontua que se tratam de conceitos são distintos:

Embora se fale em presunção de legitimidade ou de veracidade como se fossem expressões com o mesmo significado, as duas podem ser desdobradas, por abrangerem situações diferentes. A presunção de legitimidade diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei. A presunção de veracidade diz respeito aos fatos; em decorrência desse atributo, presumem-se verdadeiros os fatos alegados pela Administração. Assim ocorre com relação às certidões, atestados, declarações, informações por ela fornecidos, todos dotados de fé pública. (PIETRO, 2018, p. 278)

Sendo assim, o entendimento da jurisprudência pátria é que, por se tratarem de atos praticados em razão da função e no exercício dela, os fatos alegados em juízo dizem respeito a atos guarnecidos pelos princípios da administração pública, isso se revela pela decisão proferida pela 2° Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal no Acórdão de n° 1242191.

Ressalte-se que, embora qualquer agente público goze desta prerrogativa, é notório que seu maior impacto é na atuação de policiais militares e civis em razão da natureza de suas funções.

Todavia, tal entendimento é inconsistente com a sistemática do Direito Penal, especialmente em razão de dois princípios basilares da sistemática penal brasileira, os princípios do livre convencimento motivado e da busca da verdade real.

O princípio do livre convencimento motivado, tem previsão legal no art. 155 do Código de Processo Penal8, Nucci o conceitua como um sistema de avaliação de provas onde o juiz deverá avalia-las de forma racional e lógica, devendo adequadamente fundamentá-la. Aury Lopes Júnior (2020, p. 421) complementa que:

Não existem limites e regras abstratas de valoração (como no sistema legal de provas), mas tampouco há a possibilidade de formar sua convicção sem fundamentá-la (como na íntima convicção). [...] Também decorre da própria ausência de um sistema de prova tarifada, de modo que todas as provas são relativas, nenhuma delas tem maior prestígio ou valor que as outras, nem mesmo as provas técnicas (a experiência já demonstrou que se deve ter cuidado com o endeusamento da tecnologia e da própria ciência). [...]

Sendo assim, tal princípio está intimamente ligado ao princípio da busca da verdade real, assim definido por Nucci: O princípio da verdade real significa, pois, que o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes, não se contentando com o que lhe é apresentado, simplesmente [...] (NUCCI, 2020, p. 92). O motivo disto é que, como explica o mesmo autor, a verdade real, buscada no Direito Penal, é aquela que mais se aproxima da realidade.

Diante disto, cabe conceituar o significado de verdade.

Aristóteles define em sua obra Metafísica o que é verdade em seu sentido metafísico como, dizer do que é, que é, e do que não é, que não é, é dizer o verdadeiro; dizer do que é, que não é, e do que não é, que é, é dizer o falso, nesta acepção, a verdade é aquilo que se aproxima da realidade, dos fatos que realmente aconteceram, e como este são projetados na mente. Esta é a verdade buscada pelo Direito Penal.

Porém, por outro lado, há a preocupação epistemológica do que é verdade, ou como esta é alcançada. Aqui, cabe mencionar que, conforme a máxima Kantiana no tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela, sendo assim, desvela se o grande problema da busca da verdade real, a experiência trazida aos sentidos do Juiz, se limita ao que foi trazido nos autos do processo, portanto, a verdade processual, pode ter, ou mesmo carecer de elementos que a distancie da verdade real.

Nesse sentido, cabe mencionar o que Foucault propôs como regime da verdade:

Por "verdade", [pode-se] entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A "verdade" está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. [...] (FOUCAULT, 1979, p.11)

Nucci ainda esclarece que o Juiz jamais deverá alegar ter alcançado a reconstituição dos fatos como realmente aconteceram, mas tão somente que tem uma crença segura na verdade real através das provas colhidas (NUCCI, 2020, p. 92).

O que se entende é que tal princípio se trata de uma orientação imprescindível para onde o processo deverá seguir, Nucci (2020) aponta que, diferentemente do processo civil, onde prevalece a verdade formal, ou seja, aquela oriunda apenas das provas trazidas pelas partes, por outro lado, no processo penal este deve buscar ativamente pela maior aproximação possível da verdade real, todavia, caso frustrada tal busca através das provas colhidas, sendo insuficiente a prova da materialidade ou autoria do delito, o Juiz deverá absolver o réu a rigor do Princípio da Presunção de Inocência, estatuído no art. 5°, inciso LVII, da CF/88 e art. 386, incisos I a VII, do Código de Processo Penal.

Nesse sentido, cabe realçar uma reflexão trazida por Nietzsche:

Ao experimentar o sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como vermelha, outra como fria, uma terceira como muda, ele é seduzido por um impulso moral que o orienta para a verdade e, em oposição ao mentiroso a que ninguém dá crédito e que todos excluem, o homem é persuadido da dignidade, da confiança e da utilidade da verdade. Nietzsche (NIETZSCHE, 1873, p. 13)

A presunção de inocência é uma garantia aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo constitucionalmente assegurados, tais como a dignidade, à vida, à liberdade e à segurança, sendo de extrema importância para a proteção do indivíduo perante o Estado como forma de coibir o abuso de autoridade, na medida em que, a coerção exercida pelo Estado é pública e somente poderá ser exercida mediante fundamentada certeza, legalidade, , assim como, na necessidade desta medida, assegurados os direitos do indivíduo ao devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Não obstante, a história é permeada pela relação entre indivíduo e Estado, primeiramente pela sua justificativa de existir, mas também pelos limites do seu poder sobre os indivíduos.

Considerando a Administração Pública como figura do Estado, Di Pietro assevera que: Praticamente, todo o direito administrativo cuida de temas em que se colocam em tensão dois aspectos opostos: a autoridade da Administração Pública e a liberdade individual. (PIETRO, 2018, p. 192)

Lilia Moritz Schwarcz ensina em sua obra Sobre o Autoritarismo Brasileiro, que o Brasil vive atualmente uma política autoritária, cujas raízes remontam à época colonial brasileira e a escravidão, o formato administrativo daquela época e o que a autora descreve como pretensão de nobreza, formaram um padrão de conduta baseado no mando e na obediência que persiste até hoje, a autora ainda discursa que com o advento das mídias sociais, é possível perceber a presença da afeição do presidente-pai, um governante autoritário e severo diante daqueles que se rebelam e justo e próximo de quem o segue. (SCHWARCZ, 2019, p. 53)

Isso se corrobora na persistência de resquícios do maior retrato do abuso de autoridade na história brasileira, a Ditadura Militar, a própria regulamentação da polícia militar advém do Decreto n° 88.777/83, promulgado durante este período.

Ademais, em 2019 a Lei n° 13.869/19 substituiu a Lei n° 4.898/65, que dispunha sobre os crimes de abuso de autoridade. Ressalte-se que o art. 3°9do novo regulamento prevê expressamente que estes crimes são de ação pública incondicionada. É possível deduzir que a razão disto é que o abuso de autoridade não é um crime que afeta tão somente a vítima, mas é um mal que necessita de rígido controle estatal.

Outrossim, cabe ainda mencionar que a Lei n° 13.964/19 trouxe para o Código de Processo Penal uma revolução no campo do controle da legalidade e das garantias fundamentais, o Juiz das Garantias. 10


4 ASPECTOS LEGAIS E DOUTRINÁRIOS DOS CRIMES DE DESACATO, DESOBEDIÊNCIA E RESISTÊNCIA

Contidos no Título XI da Parte Especial do Código Penal, os crimes contra a Administração Pública são, em geral, crimes cometidos contra o funcionamento, organização, autoridade e o regular exercício da Administração Pública.

Primeiramente, é importante fazer uma diferenciação entre o conceito de Administração Pública para o Direito Penal, nesse sentido, Noronha explica que:

[...] o conceito de administração pública, no que diz respeito aos delitos compreendidos neste título, é tomado no sentido mais amplo, compreensivo da atividade total do Estado e de outros entes públicos. Portanto, com as normas que refletem os crimes contra a Administração Pública, é tutelada não só a atividade administrativa em sentido restrito, técnico, mas, sob certo aspecto, também a legislativa e a judiciária. Na verdade, a lei penal, neste título, prevê e persegue fatos que impedem ou perturbam o desenvolvimento regular da atividade do Estado e de outros entes públicos [...]. (NORONHA apud CAPEZ, 2020, p. 198)

Sendo assim, o objeto jurídico tutelado, é o desenvolvimento regular da atividade do Estado, dentro de regras da dignidade, probidade e eficiência (NORONHA apud CAPEZ, 2020, p. 198).

Capez (2020) ensina que estes crimes podem ser praticados por funcionário público (intranei) ou por particular (extranei), quanto aos crimes funcionais11, ou seja, aqueles em que é necessário que o sujeito ativo seja funcionário público, é importante notar que, embora cediço que a Administração Pública tenha seus próprios instrumentos internos para punir o funcionário público que infringe as normas de funcionamento do serviço público, este poder de punir advém dos poderes hierárquico e disciplinar da Administração Pública, diferente do que acontece no Direito Penal, nesse sentido, Meirelles pontua que:

[...] poder disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração (...). Não se deve confundir o poder disciplinar da Administração com o poder punitivo do Estado, realizado através da Justiça Penal. O poder disciplinar é exercido como faculdade punitiva interna da Administração e, por isso mesmo, só abrange as infrações relacionadas com o serviço; a punição criminal é aplicada com finalidade social, visando à repressão de crimes e contravenções definidas nas leis penais, e por esse motivo é realizada fora da Administração ativa, pelo Poder Judiciário. (MEIRELLES, apud CAPEZ, 2020, p. 462)

O Capítulo II do Título XI do Código penal trata dos crimes praticados por particular contra a Administração em geral, uma coisa importante a se notar nestes crimes, é que é necessário que o sujeito ativo seja particular, pois, de outra maneira, poderia configurar outro fato ilícito na esfera administrativa ou penal, nesse sentido, Capez ensina que:

[...] a ausência da qualidade de funcionário público não torna o fato atípico, pois poderá constituir outro crime (atipicidade relativa), por exemplo, o delito de peculato nada mais é que um crime de apropriação indébita ou furto, praticado por funcionário público em razão do cargo. Se o agente, ao tempo da prática delitiva, havia, por exemplo, se exonerado do serviço público, o delito por ele cometido contra a Administração Pública poderá configurar um dos crimes contra o patrimônio (CP, arts. 155 ou 180). (CAPEZ, 2020, p. 464)

Quanto à qualidade do sujeito ativo como particular, o mesmo autor ainda esclarece:

[...] assim como grande parte da doutrina, entendemos que o funcionário público pode ser sujeito ativo do crime em apreço, desde que a ordem recebida não se relacione com suas funções, isto é, não esteja incluída em seus deveres funcionais, pois, presente esse dever, poderá haver o crime de prevaricação. [...]. (CAPEZ, 2020, p. 568)

Previstos crimes de Resistência, Desobediência e Desacato nos arts. 329, 330 e 331 do Código Penal12, respectivamente, os crimes de Resistência, Desobediência e Desacato carregam algumas semelhanças notáveis entre si.

Primeiramente, são enquadrados como crimes de menor potencial ofensivo a rigor da Lei n° 9.099/9513, vez que suas penas máximas não ultrapassam dois anos de pena privativa de liberdade, são de competência dos Juizados Especiais para processar e julgar estes delitos, e por consequência, seguem o rito sumaríssimo, estatuído nesta norma14.

Ademais, são crimes dolosos, sem previsão legal de forma culposa do delito, de ação penal pública incondicionada à representação e são perpetrados primeiramente contra a Administração Pública, porém, como são cometidos geralmente na presença e diretamente contra agentes públicos, na maioria das vezes policiais, estes atuarão como vítimas secundárias no delito, questão pacificada pelo STF na decisão do HC de n° 141949.

Tratam-se também de crimes formais, de forma livre, cuja consumação se dá no momento em que é praticado o verbo núcleo do tipo, sendo assim, são crimes cuja materialidade é, em geral, puramente fática e não deixa vestígios, além disso, Capez (2020) ensina que, por serem crimes formais, no caso dos crimes de desobediência e resistência, não é necessário que o ato legal não se concretize em razão do delito este seja configurado, sendo assim, o que se extrai é que o legislador vislumbrou a punição da intenção, não da produção de efetivo resultado naturalístico. Todavia, cabe ressaltar que, na forma qualificada do crime de Resistência, o agente atinge o objetivo de frustrar a execução do ato legal, outrossim, é importante notar que, o §2° do art. 329 do Código Penal ainda prevê que o agente responderá em concurso material pelo resultado da violência utilizada.

Quanto ao delito de Resistência, Nucci ensina que o verbo núcleo do tipo opor pode ser entendido como colocar obstáculo ou combater a execução do ato legal, objeto deste crime, outrossim, é crime comissivo, vez que, para ser configurado, é necessário que a oposição se dê mediante violência ou ameaça.

Ademais, o autor assevera que para a configuração deste delito, o ato oposto pelo agente deve ser lícito, vez que, o art. 5°, inciso II, da CF/8815 é absoluto ao expor que a obrigação de fazer ou não fazer deve ser apenas em virtude de lei, assim como, o funcionário público que proferiu a ordem, deve ser competente para a execução do ato legal, pois, caso contrário, é legítima a recusa do agente em atender a referida ordem (NUCCI, 2020, p. 498), o mesmo se aplica ao crime de Desobediência.

É necessário levar em consideração algumas questões relevantes sobre os crimes de Resistência e Desobediência, considerando que o ato legal, objeto deste delito, deve ser revestido de legalidade e competência, não é razoável que o delito seja configurado quando o ato não tiver a devida formalidade e humanidade para com o indivíduo que deve acatar a ordem.

Ademais, as circunstâncias, tais como, do que se trata o ato, suas razões e a identificação dos agentes o executam, devem ser claras e de forma que o indivíduo possa facilmente constatar que se trata de ato legal.

Em relação ao delito de Desobediência, embora este possua grande semelhança com o de Resistência, cabe notar que, pode ser praticado de forma comissiva ou omissiva, isto porque seu verbo núcleo do tipo, desobedecer, tem significado mais amplo, primeiramente porque neste crime, o Código Penal não descreve o meio exercido, como ocorre no crime de Resistência. Capez ainda aclara que:

Na hipótese, conforme já dito, não há emprego de violência ou grave ameaça, por exemplo, em recusar-se a abrir a porta da residência para o oficial de justiça dar cumprimento ao mandado judicial, agarrar-se a um poste, jogar-se no chão, espernear, fugir para evitar a prisão ou, ainda, recusar-se a abrir a pasta, uma vez instado por policiais militares, após ultrapassar detector de metais instalado no foro e que sinalizou a existência de metal [...] (CAPEZ, 2020, p. 579)

Nucci aclara que: Se se tratar de uma omissão, o momento consumativo se verifica quando transcorre o prazo para cumprimento (se houver) ou o decurso de um lapso e tempo juridicamente relevante, a evidenciar o propósito de opor-se ao cumprimento da ordem. (NUCCI, 2020, p. 502)

Cabe mencionar também, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu no julgamento do HC 348265 que, à luz do princípio da especialidade da norma16, a recusa em acatar a ordem de parada proferida por policiais no trânsito não configura o crime de Desobediência. Sendo assim, depreende-se a não hierarquia entre as normas administrativas e penais, vez que neste caso, trata-se de mero conflito aparente de normas.

O crime de Desacato é um dos mais polêmicos crimes contra a Administração Pública, motivo disso porque é tênue o limiar entre a conduta do desacato e o direito à liberdade de expressão, constitucionalmente garantido (art. 5°, inciso IX e art. 220 da CF/88)17.

Em razão disto, em 2016 a 5° Turma do STJ decidiu através do Recurso Especial de n° 1.640.084 pela descriminalização do crime de Desacato por incompatibilidade com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, na decisão o Ministro Relator Ribeiro Dantas definiu que o crime de desacato vai de oposto ao humanismo, traduzindo desigualdade entre os funcionários públicos e particulares, assim como, que o crime de desacato priva os indivíduos de exercer o direito à livre expressão, assim como, que inexistindo o tipo penal do desacato, as ofensas contra funcionários públicos não ficariam impunes, vez que o Código Penal ainda prevê os crimes de Injúria e Difamação. Porém, em sentido contrário, a 3° Turma do STJ decidiu no HC n° 379.269 que o desacato deve ser criminalizado, na medida que se trata de abrigo legal para os agentes públicos.

Tal questão foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal no HC 141.949 no ano de 2018, e reforçada no ano de 2020 em nova decisão na APDF 496. O entendimento majoritário reforçou que a razão da existência do crime de desacato, é a exposição diária dos funcionários públicos a ofensas quando no exercício de suas funções, assim como, que embora os tratados internacionais tenham o status de norma supralegal, deve haver adequação entre a norma vigente e os tratados internacionais que o Brasil é signatário. Todavia, há de se considerar que não houve unanimidade de votos nesta decisão, uma vez que, na decisão proferida em 2020, os Ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber discordaram do relator Luís Roberto Barroso, na medida que este tipo penal restringiria a liberdade de expressão através do medo de represália. Depreende-se, portanto, que há uma preocupação nos limites da coerção exercida pela Administração Pública, a qual poderia, inclusive, censurar o direito de crítica dos cidadãos.

Sendo assim, o entendimento da Jurisprudência e Doutrina pátria é que, o crime de Desacato se configura quando há a manifesta intenção do agente em ofender, humilhar ou depreciar funcionário público, quando no exercício de sua função, ou pela sua qualidade de funcionário público. Nucci ainda ensina que, quando se tratando de mera crítica à atuação funcional, não deve constituir crime de desacato. (NUCCI, 2020, p. 511)

Ademais, Capez aponta que, na existência de crime de desacato em concurso material com os crimes de injúria ou difamação, estes serão absorvidos por aquele. Não obstante, quanto ao crime de desacato, Nucci aponta que para a que o fato seja típico, é necessário que tenha alguma relevância jurídica:

Se o funcionário público demonstra completo desinteresse pelo ato ofensivo proferido pelo agressor, não há que se falar em crime, pois a função pública não chegou a ser desprestigiada. É o que pode acontecer quando um delegado, percebendo que alguém está completamente histérico, em virtude de algum acidente ou porque é vítima de um delito, releva eventuais palavras ofensivas que essa pessoa lhe dirige. Não se pode considerar fato típico, desde que o prestígio da Administração tenha permanecido inabalável. Mas caso o funcionário seja efetivamente humilhado, no exercício da sua função, a sua concordância é irrelevante, pois o crime é de ação pública incondicionada. (NUCCI, 2020, p. 513)

Tal entendimento leva a uma reflexão importante, embora se tratem de crimes de ação penal pública incondicionada à representação, muito se assemelham os crimes de Resistência,

Desobediência e, em especial, Desacato, a outros crimes como os delitos de Difamação e Injúria, previstos respectivamente nos arts. 139 e 140 do Código Penal18, na medida em que, além de se tratarem de crimes formais, cuja materialidade em geral é puramente fática, e a prova testemunhal pode ser a única colhida, será evidente o envolvimento emocional do policial contra quem o crime fora perpetrado, vez que, houve suposto emprego de violência, ameaça, ofensa ou insubordinação à sua autoridade.


5 A VERDADE DE AGENTES PÚBLICOS EM PROCESSOS POR CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Se por um lado é notória a incompatibilidade desta supervalorização do depoimento dos Agentes Públicos no Direito Penal, cabe ressaltar que, por outro lado, em uma visão pragmática, é inegável a sua importância em certas situações. Isso se dá porque o agente público representa o Estado e a Administração Pública na imposição e execução das normas, sua figura como personificação do poder e moralidade estatais presume dignidade, honra e transparência, de outro modo seria duvidar da própria seriedade e legitimidade do poder público.

Outro grande expoente disto, é que a atuação repressiva do Poder de Polícia requer a adoção de sua figura como pessoa imparcial a serviço do interesse público, de outro modo, seria sempre necessário primeiro validar os atos do Agente Público durante a persecução penal.

Ainda, conforme explicitado, embora qualquer crime possa potencialmente causar efeitos em toda a coletividade, quando determinado delito é perpetrado contra uma certa pessoa, é cediço o interesse daquele que configura como suposta vítima, pois, primeiro que em muitos casos, como nos crimes de ameaça, injúria e difamação19, é necessária a apresentação de queixa crime ou representação, ademais, em tese, a vítima não será imparcial durante a instrução probatória por se envolver emocionalmente e possuir interesse na causa. Nesse sentido, Nucci ensina que:

Por certo que a vítima não pode ser considerada testemunha. As razões são várias: a) a menção à vítima está situada, propositadamente, no Código de Processo Penal, em capítulo destacado daquele que é destinado às testemunhas; b) ela não presta compromisso de dizer a verdade, como se nota pela simples leitura do caput do art. 201; c) o texto legal menciona que a vítima é ouvida em declarações, não prestando, pois, depoimento (testemunho); d) o ofendido é perguntado sobre quem seja o autor do crime ou quem presuma ser (uma suposição e não uma certeza), o que é incompatível com um relato objetivo de pessoa que, efetivamente, sabe dos fatos e de sua autoria, como ocorre com a testemunha (art. 203, CPP); e) deve-se destacar que a vítima é perguntada sobre as provas que possa indicar, isto é, toma a postura de autêntica parte no processo, auxiliando o juiz e a acusação a conseguir mais dados contra o acusado; f) a vítima tem interesse na condenação do réu, na medida em que pode, com isso, obter mais facilmente a reparação do dano na esfera cível (art. 63, CPP). Da testemunha, exige-se, diversamente, fatos dos quais tenha ciência e as razões do seu conhecimento, tudo para aferir a sua credibilidade. (NUCCI, 2020, p. 496)

Até mesmo na qualidade de testemunhas, o autor assevera que o Juiz deverá ter a cautela necessária para a avaliar o compromisso de dizer a verdade da testemunha policial como prova, vez que, este pode estar vinculado à prisão e investigação do réu, razão pela qual seu depoimento pode ser alterado por seu lado emocional (NUCCI, 2020, p. 505), o que é reforçado por Aury Lopes Jr (2020, p. 208):

Obviamente, deverá o juiz ter muita cautela na valoração desses depoimentos, na medida em que os policiais estão naturalmente contaminados pela atuação que tiveram na repressão e apuração do fato. Além dos prejulgamentos e da imensa carga de fatores psicológicos associados à atividade desenvolvida, é evidente que o envolvimento do policial com a investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os atos (e eventuais abusos) praticados.

Dessa forma, não é sequer lógica a atuação dos policiais como vítima e testemunha concomitantemente, que dirá, tratar seu depoimento isolado como prova suficiente para ensejar condenação.

Tal suspeita se forma tanto em como o policial irá descrever o fato efetivamente delituoso, o que poderia levar a uma punição mais severa do acusado, quanto se o crime realmente aconteceu. Ainda, é ilógico pensar que, mesmo que existam diversas testemunhas policiais em determinado processo, um irá contradizer o outro, ou até, certo policial se retratar da falsa imputação do crime, fazer isto seria invalidar o ato, gerando, inclusive, responsabilização na esfera penal, conforme determina art. 3020 da Lei n° 13.869/19, a qual dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade.

Dada a capacidade do depoimento dos policiais como única prova para fundamentar a condenação, há o risco de recair sobre o acusado produzir prova inequívoca da inexistência do crime, ou de fato excludente da sua ilicitude, culpabilidade ou tipicidade, suficientes para rechaçar os depoimentos dos agentes públicos.

Tal questão é incompatível não apenas com a busca da verdade real, quanto com o princípio da presunção de inocência. Nesse sentido afirma Aury Lopes Jr. (2020, p. 946):

No modelo constitucional não se admite nenhuma imposição de pena: sem que se produza a comissão de um delito; sem que ele esteja previamente tipificado por lei; sem que exista necessidade de sua proibição e punição; sem que os efeitos da conduta sejam lesivos para terceiros; sem o caráter exterior ou material da ação criminosa; sem a imputabilidade e culpabilidade do autor; e sem que tudo isso seja verificado por meio de uma prova empírica, levada pela acusação a um juiz imparcial em um processo público, contraditório, com amplitude de defesa e mediante um procedimento legalmente preestabelecido.

O mesmo autor ainda sustenta:

Em síntese, o poder judicial somente está legitimado enquanto amparado por argumentos cognoscitivos seguros e válidos (não basta apenas boa argumentação), submetidos ao contraditório e refutáveis. A fundamentação das decisões é instrumento de controle da racionalidade e, principalmente, de limite ao poder, e nisso reside o núcleo da garantia. (LOPES, 2020, p. 948)

Ademais, há de se considerar que, em que pese exista a interdisciplinaridade de normas, tal aplicação deve antes de tudo ser compatível com a sistemática de cada ramo do direito.

Exemplo disto é o instituto da revelia, onde, embora o Código de Processo Civil seja aplicado subsidiariamente ao processo penal, caso o réu não compareça à Audiência de Instrução e Julgamento no processo penal não haverá a incidência dos efeitos materiais da revelia, quais sejam, a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor da ação e o prosseguimento do feito sem qualquer tipo de defesa21.

Guilherme de Souza Nucci esclarece que:

Pensamos que, no processo penal, inexiste a figura da revelia, tal como ocorre no processo civil. Neste, conforme prevê o art. 344 do Código de Processo Civil de 2015, caso o réu não conteste a ação, quando devidamente citado, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor na inicial. É o efeito da revelia, isto é, o estado de quem, cientificado da existência de ação contra si proposta, desinteressa-se de proporcionar defesa. (NUCCI, 2020, p. 734)

Por fim, denote-se que o Direito Penal é considerado a ultima ratio, definido por Nucci (2020) como a última cartada do sistema legislativo, devendo-se abrir mão deste caso possível a proteção do bem jurídico por outro ramo do direito, vez que o direito penal tutela somente aqueles bens jurídicos considerados mais relevantes.

Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido, nos casos de estupro, a palavra da vítima como importante meio de prova, todavia, há de se considerar que se trata de crime hediondo, a teor do art. 1°, inciso V22, da Lei n° 8.072/90, possuindo, portanto, elevada relevância, além do que, trata-se aqui de pessoa em momento vulnerável e de um ato totalmente clandestino, diferente do que acontece nos crimes de Resistência, Desobediência e Desacato, vez que, tratam-se de agentes com o conhecimento da lei e com maior capacidade de resistência ao crime e poder de corroborá-lo, assim como, cuja atuação é pública, outrossim, embora mereçam o devido amparo legal, por serem tipos penais, a seriedade do Direito Penal requer comprovação robusta e inequívoca de fato delituoso, pois de outro modo, a própria atuação jurisdicional estará se contradizendo, e o objeto jurídico protegido nesse caso, o prestígio e a honra da Administração Pública, poderá ser lesado em eventual abuso de poder.


CONCLUSÃO

Diante do que foi coligido nesta pesquisa, conclui-se:

O Direito Processual Penal trata das testemunhas como pessoas imparciais, as quais se prestam a dizer a verdade em favor da justiça e do interesse público, para tanto, é necessário que fique evidente inexistir interesse e envolvimento na causa por parte daquele que presta o depoimento como testemunha, de outra forma, atuaria mormente como fonte de informação, vez que sua imparcialidade é duvidosa.

Tal requisito de imparcialidade e desinteresse se estendem à pessoa da vítima, sujeito passivo no delito, ao passo que, a própria qualidade de vítima as torna incompatíveis de atuar como testemunha.

Ao se tratar dos crimes perpetrados contra a Administração Pública, embora a primeira vítima seja a própria figura da administração pública, como pessoa de direito, o que diferencia os crimes de Resistência, Desobediência e Desacato é o envolvimento direto do agente público com o fato apurado, ademais, o fato delituoso em tese atingirá primeiro a honra, dignidade, integridade física, psíquica e moral, assim como, a autoridade exercida pelo agente, razões pelas quais é presumível o seu envolvimento emocional e interesse na causa.

A questão não é duvidar do exímio trabalho exercido pelas polícias e sua integridade, mas é inconcebível aceitar que tal prerrogativa, que a propósito se justifica apenas em determinadas situações por uma ótica pragmática, seja suficiente para ensejar um decreto condenatório, contrariando os princípios da busca da verdade real, da livre convicção e da presunção de inocência, ademais, o fator humano não pode ser ignorado, apesar de ser agente público, trata-se de uma pessoa que sente e também pode mentir.

Dessa forma, corre-se o risco de propiciar o abuso de autoridade, na medida que caberá ao réu provar fato negativo, conferindo aos agentes públicos uma possível ferramenta de abuso através da imputação de falso crime, ou até mesmo agravamento da pena imputada pelo crime que de fato ocorreu.

Sendo assim, como o Direito Penal é um direito dinâmico, revelando realidades processuais diferentes em várias de suas facetas, embora a prerrogativa da presunção de veracidade possa ter sua importância em determinadas situações, nos crimes contra a Administração Pública, ela não se aplica.


Notas

1 Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

2 Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

3 Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

[...]

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância

4 Cabe mencionar que para Di Pietro, tal classificação não é absoluta, vez que, as polícias podem agir tanto repressivamente quanto preventivamente (PIETRO, 2018, p. 196)

5 Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

6 Art. 214. Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos, que a tornem suspeita de parcialidade, ou indigna de fé. O juiz fará consignar a contradita ou argüição e a resposta da testemunha, mas só excluirá a testemunha ou não Ihe deferirá compromisso nos casos previstos nos arts. 207 e 208.

7 Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. [...]

§ 2º São impedidos:

I - o cônjuge, o companheiro, o ascendente e o descendente em qualquer grau e o colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito;

II - o que é parte na causa;

III - o que intervém em nome de uma parte, como o tutor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros que assistam ou tenham assistido as partes.

§ 3º São suspeitos:

I - o inimigo da parte ou o seu amigo íntimo;

II - o que tiver interesse no litígio.

§ 4º Sendo necessário, pode o juiz admitir o depoimento das testemunhas menores, impedidas ou suspeitas. § 5º Os depoimentos referidos no § 4º serão prestados independentemente de compromisso, e o juiz lhes atribuirá o valor que possam merecer.

8 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

9 Art. 3º Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.

10 Todavia, cabe mencionar o Juiz das Garantias inserido pela Lei n° 13.964/19, que, embora sua implementação esteja atualmente suspensa, revela a preocupação crescente na preservação dos direitos fundamentais dos indivíduos e sua proteção contra o abuso de poder. Nesse sentido, Norberto Avena define o Juiz das Garantias como [...] a figura de um juiz a que atribuída competência para exercer, durante a investigação, funções jurisdicionais relacionadas, exclusivamente, à observância dos direitos legal e constitucionalmente assegurados ao investigado [...] (AVENA, 2020, p. 94)

11 Sobre o conceito de crimes funcionais, Capez ainda ensina que: Há crimes previstos neste Título XI que somente podem ser praticados por funcionário público (por exemplo: peculato, concussão, abandono de função etc.), outros somente por particular (por exemplo: usurpação de função pública, corrupção ativa, resistência etc.). Os primeiros constituem delitos próprios, já que são praticados exclusivamente por aqueles que detêm uma qualidade especial, qual seja: ser funcionário público. São, por isso, denominados crimes funcionais. (CAPEZ, 2020, p. 463)

12 Resistência

Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio:

Pena - detenção, de dois meses a dois anos.

§ 1º - Se o ato, em razão da resistência, não se executa:

Pena - reclusão, de um a três anos.

§ 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. Desobediência

Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Desacato

Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

13 Brasília, Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.

14 Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

15 Art. 5° [...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; [...]

16 Miguel Reale assim define o princípio da especialidade: Cabe, de forma sintética neste passo, mencionar o concurso de normas. No concurso de normas, o mesmo fato resta sujeito a ser qualificado por duas normas, chamando-se de concurso aparente; há critérios em razão dos quais este concurso resolve-se, com a aplicação de uma delas. O primeiro critério é o da especialidade, objeto de dispositivo do Código Penal que estabelece no art. 12 que as regras da Parte Geral do Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, salvo disposição em contrário. Assim, se a lei especial compreende além dos elementos de uma norma incriminadora do Código Penal outros dados especificadores, prevalecerá a lei especial [...] (REALE, 2020, p. 207)

17 Art. 5° [...]

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

[...]

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

18 Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

[...]

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

[...]

19 Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.

[...]

Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

20 Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

21 Ressalte-se, porém, que o réu pode se abster de promover a própria defesa, todavia, é imprescindível que lhe seja assegurado o direito à defesa técnica por defensor, constituído ou nomeado, vez que, conforme determinam os artigos 261 e 367 do Código de Processo Penal, embora o processo continue sem a presença deste quando ausente, é imprescindível a nomeação ou constituição de defensor:

Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

Parágrafo único. A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada.

[...]

Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Gabriel José. A presunção de veracidade do depoimento de policiais nos crimes de desacato, desobediência e resistência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7086, 25 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101291. Acesso em: 9 maio 2024.