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As mudanças legislativas e seus impactos no trabalho em condições insalubres para as gestantes e lactantes

As mudanças legislativas e seus impactos no trabalho em condições insalubres para as gestantes e lactantes

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As mudanças legislativas desde a reforma trabalhista apresentam a insegurança jurídica que esses grupos enfrentam, impactando negativamente na capacidade de trabalhar e de serem contratadas das gestantes e lactantes.

Resumo: A dissertação que se apresentará a seguir, traz um recorte focando nas principais mudanças sobre as gestantes e lactantes desde a reforma trabalhista de 2017 no Brasil. Nosso enfoque foi nas discussões e polêmicas dos artigos aprovados que feriam o direito humano e fundamental dessas pessoas no ambiente de trabalho, atingindo a saúde não só das mulheres, como das crianças também, sendo utilizado o métodobibliográfico-referencial de pesquisa para fundamentar a argumentação. Começando pela parte histórica para a contextualização e suas discussões doutrinárias, até o ponto atual das leis trabalhistas e suas aplicações no ordenamento jurídico, analisando o impacto no novo formato em que o trabalho é exercido.

Palavras-chave: Reforma trabalhista. Leis trabalhistas. Gestantes. Lactantes. Insalubridade.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa dissertar acerca das leis trabalhistas direcionadas às gestantes e lactantes, delimitando como foco a reforma trabalhista de 2017 e seus impactos, além das adaptações que esses grupos sofreram durante a pandemia, sendo utilizado o método bibliográfico-referencial de pesquisa para fundamentar a argumentação.

Primeiramente, é necessário a contextualização histórica, pois as leis trabalhistas no Brasil passaram por diversas modificações ao longo dos anos, sendo influenciada por fatores externos e internos, tendo como ponto marcante a Constituição de 1934, que foi a primeira a versar sobre os direitos trabalhistas, sendo considerada um grande avanço para o direito do trabalhador. No entanto, em 2017 foi aprovada a lei 13.467/2017, também conhecida como a Reforma Trabalhista, que modificou a dinâmica nos ambientes de trabalho ao modificar diversos artigos.

É importante destacar que uma das maiores críticas feitas à Reforma Trabalhista é sobre as alterações das condições de trabalho para as gestantes e lactantes. Tendo desencadeado a necessidade de uma Medida Provisória para lidar com os pontos controversos que feriam os direitos humanos desse grupo.

Por fim, a lei teve parte de seu conteúdo jurídico sendo considerado inconstitucional, já que os direitos assegurados devem buscar a proteção da mãe e do bebê durante a gravidez, bem como nos primeiros meses de vida da criança. Além disso a situação trabalhista das grávidas, foi também alterada durante a pandemia que se iniciou em 2020, necessitando assim de uma nova regulamentação para o novo modelo de trabalho visando a segurança desse grupo ao ser exposto ao coronavírus COVID-19, o qual será debatida ao longo da dissertação.


1. O CONTEXTO HISTÓRICO BRASILEIRO ATÉ A REFORMA TRABALHISTA

É possível dividir a história do direito do trabalho no Brasil no tempo em três fases: a primeira, do descobrimento à abolição da escravatura; a segunda, da proclamação da república à campanha política da Aliança Liberal; e a terceira, da Revolução de Trinta aos dias atuais, segundo o autor Carlos Henrique Bezerra Leite. (2020, p. 52)

Sendo necessário salientar que a fase contemporânea do direito do trabalho brasileiro, se iniciou a partir da Revolução de Trinta, e que o surgimento do direito do trabalho no Brasil sofreu influência de fatores externos e internos, uma vez que as próprias transformações que aconteciam na Europa sobre a proteção ao trabalhador e o ingresso do Brasil na OIT Organização Internacional do Trabalho, criada pelo Tratado de Versalhes (1919), influenciaram no regime legislativo brasileiro, sendo, portanto, um dos fatores externos. Ademais, os fatores internos foram basicamente o movimento operário influenciado por imigrantes europeus (final de 1800 e início de 1900), o surto industrial (pós-primeira guerra mundial) e a política de Getúlio Vargas (1930).

É importante ressaltar que a Carta Constitucional brasileira de 1934 foi a primeira constituição a elevar os direitos trabalhistas ao patamar constitucional, trazendo avanços sociais importantes para os trabalhadores pois instituiu o salário mínimo, a jornada de trabalho de oito horas, o repouso semanal, as férias anuais remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa, etc.

Seguindo a linha do tempo houve finalmente a Consolidação das Leis do Trabalho, instituída por meio do Decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, que somente entrou em vigor em 10.11.1943, e sistematizou as leis esparsas então existentes, acrescida de novos institutos, devendo ser destacado aqui a Seção da Proteção à Maternidade. Nesse contexto da importância da CLT, o autor Carlos Henrique Bezerra Leite explica que a CLT não é um código, mas uma lei, melhor, um decreto-lei de caráter geral, aplicado a todos os empregados sem distinção de natureza do trabalho técnico, manual ou intelectual. A CLT é equiparada à lei federal. (2020, p. 53)

Além do mais, destaca-se a ligação direta entre o direito do trabalho e o direito constitucional estabelecida ao longo dos anos, sendo previsto na constituição atual, em diferentes artigos, nesse ponto o professor Luciano Martinez explica perfeitamente que a Carta de 1988 reconheceu o valor social do trabalho como fundamento da República (art. 1º, IV), oferecendo, por essa razão, uma especial proteção aos direitos sociais (art. 6º), notadamente a um conjunto de direitos mínimos conferidos a trabalhadores urbanos, rurais (art. 7º, I a XXXIV) e domésticos (parágrafo único do art. 7º). Dito isto, sabe-se que é imprescindível estudar os princípios, as limitações e os pressupostos constantes do mencionado texto estrutural para entender sobre o direito do trabalho. (2019, p 84)

Ressalta-se ainda que o trabalho é visto como direito humano e fundamental. É humano porque é reconhecido nos documentos internacionais, desde o Tratado de Versalhes, de 1919. Além de também estar presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no art. 23º.

Art. 23. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Consagrado também no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil (Decreto legislativo 226, de 12.12.1991, e Decreto 591, de 06.07.1992), art. 6º, itens 1 e 2:

Art. 6.

1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito que têm todas as pessoas de assegurar a possibilidade de ganhar a sua vida por meio de um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito.

2. As medidas que cada um dos estados-partes no presente Pacto tomará com vista a assegurar o pleno exercício deste direito devem incluir programas de orientação técnica e profissional, a elaboração de políticas e de técnicas capazes de garantir um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e um pleno emprego produtivo em condições que garantam o gozo das liberdades políticas e econômicas‐ fundamentais de cada indivíduo.

É direito fundamental, no sistema jurídico brasileiro, pois está positivado na Constituição Federal, sendo, portanto, tutelado pelo direito constitucional, ora como princípio (e valor) fundamental do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, II, III e IV); ora como direito social (CF, arts. 6º e 7º); ora como valor fundante da ordem econômica, que tem por finalidade assegurar a todos existências dignas, conforme os ditames da justiça social, observado, dentre outros, o princípio da busca do pleno emprego (CF, art. 170, VIII). (LEITE, CARLOS BEZERRA, 2020, p. 60)

No entanto, entende-se que não é qualquer trabalho que deve ser considerado um direito humano e fundamental, pois a determinação de trabalho digno é mediante a consolidação de direitos mínimos ao trabalhador. Sendo observadas, por exemplo, as garantias de se ter uma remuneração justa, e de segurança no ambiente de trabalho. Portanto, na visão da autora Gabriela Delgado, o trabalho, enquanto direito universal fundamental, deve fundamentar-se no referencial axiológico da dignidade da pessoa humana (DELGADO, Gabriela, 2006, p 203.)

Todavia, por meio da Lei nº 13.467, o Brasil passou pelas mais profundas alterações no ordenamento jurídico que regula as relações trabalhistas desde a instituição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943. Por conseguinte, a nova lei é amplamente reconhecida como Reforma Trabalhista, a lei alterou, criou e revogou mais de oitenta artigos e parágrafos da CLT, mudando substancialmente o funcionamento do mercado de trabalho brasileiro ao entrar em vigor em novembro de 2017, tendo um impacto ainda maior em grupos, como os das gestantes e lactantes, e os exercícios de suas respectivas funções em locais insalubres, que será dissertado ao longo do trabalho.


2. A REFORMA TRABALHISTA PARA AS GESTANTES E LACTANTES QUE TRABALHAM EM CONDIÇÕES INSALUBRES

Obviamente os direitos trabalhistas visam proteger a relação entre empresa e colaboradores, mas quando se fala especificamente da lei trabalhista para as gestantes e lactantes a legislação tem o papel de tornar essa relação entre empregador e funcionárias mais confortável e segura para ambas as partes, levando em consideração também o feto.

Os temas como garantia de emprego, exames no período pré-natal, pausas para amamentação e extensão dos benefícios para a adoção, não foram modificados pela reforma trabalhista de 2017. Por outro lado, esta trouxe mudanças sobre a possibilidade de trabalho em condições insalubres, ou seja, exposição a variados agentes nocivos, a depender da forma, tempo de exposição e atividade laboral, durante a gravidez e a fase de lactação.

Sendo, portanto, o assunto mais comentado durante a tramitação do projeto que resultou na Lei 13.467/2017 e, muito embora tenha havido as críticas à permanência da mulher em ambientes insalubres durante o período de gestação e da amamentação, que vieram não só da doutrina, como também do restante da população brasileira, ainda sim, o resultado da lei foi decepcionante por causa do retrocesso dos direitos à proteção desses grupos.

É necessário entender que, anteriormente, com o objetivo de proteger as gestantes e lactantes, os fetos e os recém-nascidos em fase de amamentação de possíveis doenças por conta de uma atividade laboral, o artigo 394-A da CLT foi alterado em 2016 por meio da lei 13.287, para proibir o trabalho das grávidas e lactantes em locais insalubres. Assim, se uma mulher gestante ou em fase de lactação exercesse suas funções em local insalubre, deveria ser afastada da atividade insalubre e realocada em um local salubre, sendo por isso, considerado um grande avanço nos direitos trabalhistas.

No entanto com o advento da Reforma Trabalhista, este artigo foi novamente alterado, passando a viger com a seguinte redação:

Art. 394-A. Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional de insalubridade, a empregada deverá ser afastada de:

I - atividades consideradas insalubres em grau máximo, enquanto durar a gestação;

II - atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a gestação;

III - atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a lactação.

(Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)

Percebe-se, então, que segundo a redação exposta uma empregada grávida será automaticamente afastada do local insalubre apenas se a atividade for considerada insalubre de grau máximo, se esse não for o caso o afastamento dependerá de atestado médico.

Já no caso das lactantes, por sua vez, não há hipótese de afastamento obrigatório, nem mesmo quando estão expostas ao grau máximo de insalubridade. Isso significa que as lactantes só seriam afastadas de suas atividades em local insalubre se apresentassem atestado fornecido por um médico recomendando o afastamento.

É essencial ressaltar que expor as trabalhadoras aos ambientes insalubres durante a gravidez ou lactação não só pode causar prejuízos à própria mulher, o que já seria ruim o suficiente, como também pode afetar a saúde do feto ou recém-nascido. Como bem observa o professor e ex-Procurador Regional do Trabalho, Raimundo Simão de Melo, ao expressar que a restrição de trabalho em ambientes insalubres por parte das grávidas e lactantes está amparado em fundamento científico, o que foi totalmente ignorado pelo Congresso Nacional e pelo presidente da República, que sancionou a lei sem qualquer restrição. (2017)

Foi questionado ainda se os atestados médicos seriam mesmo uma garantia de proteção para a mulher e o feto, já que seria necessário que no mínimo os médicos em questão possuíssem o conhecimento específico sobre segurança no trabalho, e fossem capazes de examinar e identificar o local de trabalho, além de um estudo aprofundado sobre as possíveis consequências da exposição em cada local de trabalho em questão, caso contrário, de nada serviria uma autorização de trabalho de um médico que nem sequer entende o suficiente da exposição aos agentes nocivos no ambiente laboral. Resultando na possibilidade de haver também responsabilidades judiciais a serem atribuídas ao médico que liberasse uma empregada para trabalhar em situação insalubre, já que não teria como saber se ela estaria realmente livre dos respectivos riscos do trabalho e dos seus resultados.

Ao se falar de insalubridade, é necessário lembrar, ainda, sobre o art. 195 da CLT que determina que a caracterização e a classificação da insalubridade e da periculosidade, segundo as normas do Ministério do Trabalho, far-se-ão através de perícia a cargo de Médico do Trabalho ou Engenheiro do Trabalho, registrados no Ministério do Trabalho.

Além disso, existem poucas hipóteses de insalubridade em grau máximo: ao longo dos 14 anexos da Norma Regulamentadora (NR)15, como bem explica o autor Homero Batista Mateus da Silva ao citar que em sua maioria dos anexos lidam com o grau médio, como os ruídos excessivos, os ruídos de impacto, a exposição ao calor e ao frio elevados, radiações não ionizantes, vibrações, umidade e boa parte dos elementos químicos e dos agentes biológicos. Portanto, a maioria das gestantes empregadas se encontra em ambientes de grau médio de insalubridade, e não no grau máximo, ficando desprotegidas do afastamento não-obrigatório, além da lei apenas tratar do afastamento imediato das gestantes e não citar sequer sobre as lactantes. (2019, 157)

Portanto, considerado um passo para trás pela doutrina, esse artigo foi duramente criticado, pois coloca em risco a saúde e a segurança da trabalhadora, além da criança que também é afetada. Por isso, foi necessária uma Medida Provisória para atender esse grupo de pessoas que foi prejudicado.


3. MEDIDA PROVISÓRIA 808 E SUA EFICÁCIA

Como dito, é evidente que o legislador da reforma trabalhista de 2017 não poupou devidamente nem a gestante, nem lactante do submetimento à insalubridade do ambiente de trabalho.

Em decorrência disso a Medida Provisória (MP) n. 808/2017, foi proposta. Tendo como principal função corrigir diversas lacunas e eventuais equívocos deixados pela Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), especialmente quando se trata do grupo discutido nesta dissertação.

A proposta da MP 808, que vigorou de 14.11.2017 a 22.04.2018, como pontuou o autor Homero Batista Mateus da Silva, tinha em seu artigo 394-A, três pontos essenciais: vedava totalmente o trabalho da gestante em ambiente insalubre (caput), permitia o trabalho nos ambientes de grau médio e mínimo, mas apenas se a empregada obtiver atestado liberatório de seu médico de confiança (§ 2º), e não do médico da empresa, e, para o caso da lactação,o raciocínio inverso: : autorização da lei para o trabalho da lactante em ambientes insalubres em geral e possibilidade de apresentação de atestado médico determinando o afastamento (§ 3º) (2019, p. 157)

Diante desse cenário, por não ter sido transformada em Lei, todas as alterações da MP 808 não possuem mais eficácia, e sua aplicação serve apenas para os períodos contratuais em que permaneceu vigente, ou seja, de novembro de 2017 até abril de 2018. Portanto, a perda da vigência da MP n. 808/2017 restaurou o conteúdo normativo da Lei n. 13.467/2017.

Trazendo, desta forma, novamente a discussão sobre o trabalho de gestantes e lactantes em locais insalubres, e seus impactos na saúde em curto e longo prazo, além das críticas sobre a constitucionalidade do artigo 364- A da CLT que será discutido adiante.


4. ADI 5938: A INCONSTITUCIONALIDADE DO TRABALHO INSALUBRE PARA GESTANTES E LACTANTES

Fica clara, portanto, a não adequação do trecho da reforma que abre precedentes para que gestantes e lactantes trabalhem em condições insalubres. Sendo assim, vale anotar o posicionamento adotado no Enunciado 50 aprovado na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, e divulgado em fevereiro de 2018, declarando que:

A autorização legal permitindo o trabalho de gestantes e lactantes em ambiente insalubre é inconstitucional e inconvencional porque é violadora da dignidade humana, do direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, da proteção integral ao nascituro e à criança e do direito social à saúde. Ademais, o meio ambiente do trabalho saudável é direito fundamental garantido pela Constituição da república, revestido de indisponibilidade absoluta. Incidência dos arts. 1º, III; 6º; 7º, XXII; 196; 200; 201, II; 203, I; 225; 226 e 227 da Constituição Federal; Convenção 103 e 183 da OIT; arts. 25, I e II da DUDH (Anamatra, 2018. Destacou-se.)

O enunciado supracitado deixa claro diversos motivos que levam ao questionamento dos termos adicionados pela reforma para que haja o afastamento da mulher que está nessas condições, todos eles albergados constitucionalmente, especialmente nos artigos 6°, 7° e 227 da constituição federal, que dispõem:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988. Destacou-se)

Primeiramente, a respeito do art 6°, deve-se destacar seu trecho sobre a proteção à maternidade e à infância, classificando esse dever estatal como um direito social. Sobre o art. 7° é válido destacar os incisos XX e XXII, que tratam, respectivamente, da proteção ao mercado de trabalho da mulher e da necessidade de incentivos específicos e do direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho. Por fim, o art. 227, define como absoluta prioridade do Estado, da família e da sociedade, em relação à criança, ao adolescente e ao jovem, dentre outros, o direito à vida e à saúde. É, portanto, nítida a afronta a esses dispositivos, uma vez que o precedente aberto não dá a devida proteção nem à mãe e nem à criança, além de aumentar os riscos de um trabalho já insalubre e não dar os incentivos específicos que o caso exige, colocando em risco a vida e a saúde das vítimas.

Nesse contexto, é evidente o caráter concretizador de direitos fundamentais da vedação ao trabalho de gestantes e lactantes em atividades insalubres de qualquer grau. A situação é agravada quando se analisa o amplo desconhecimento em relação aos direitos da mulher gestante e lactante, que é uma realidade na sociedade brasileira, fazendo com que a regra, o que acontece automaticamente, a partir da inércia das partes (no caso, continuar trabalhando no ambiente insalubre), seja muito mais concretizada do que aquilo que depende de alguma comprovação ou esforço (no caso, pedir o afastamento/deslocamento de função a partir da apresentação de atestado médico), já que, principalmente por ignorância, as mulheres que se enquadram nessas categorias tenderiam a continuar trabalhando e se submetendo à insalubridades que poderão ser prejudiciais à sua saúde e a do seu filho.

É válido ressaltar que mesmo analisando o cenário das mulheres que, sabendo seus direitos, não buscariam atestar sua condição para pedir o afastamento/deslocamento de função por mera negligência, ainda assim é dever do poder público garantir esse direito a elas, uma vez que o impacto negativo se estende à vida que essa mãe está gerando, que não tem oportunidade de escolha e merece ser preservada.

Sendo assim, à luz dos fundamentos supramencionados, foi impetrada ação direta de inconstitucionalidade, a ADI 5938, que visou declarar a inconstitucionalidade da expressão quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento, contida nos incisos II e III do art. 394-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), inseridos pelo art. 1º da Lei 13.467/2017, defendida pelos autores nos seguintes termos:

Ao autorizar o trabalho de gestantes em atividades insalubres em graus médio e mínimo e o de lactantes em qualquer grau, acabou por, temerariamente, transformar em regra a exposição ao risco, obstando as trabalhadoras e aos seus filhos a integral proteção assegurada pela Carta Magna e, ainda, desviando-se do objetivo maior das normas tutelares do meio ambiente laboral. Aduz, ainda, que as normas em questão representariam um retrocesso social, no tocante à autorização do trabalho de gestantes e lactantes em condições insalubres, uma vez que reduziram de forma arbitrária e injustificada o nível de proteção à vida, à saúde, à maternidade, à infância e ao trabalho em condições dignas e seguras. Sustenta, portanto, a inconstitucionalidade dos dispositivos por violação dos arts. 1º, IV, 6º, 7º, XX e XXII, 170, 193, 196, 201, II, 203, I, 225 e 227 da Constituição Federal. (ADI 5938, 2019. Destacou-se)

A partir disso, foi declarado inconstitucional o critério em questão, a partir da seguinte fundamentação:

Sob essa ótica, a proteção da mulher grávida ou da lactante em relação ao trabalho insalubre caracteriza-se como importante direito social instrumental protetivo tanto da mulher, quanto da criança, pois a ratio das referidas normas não só é salvaguardar direitos sociais da mulher, mas também efetivar a integral proteção ao recém-nascido, possibilitando sua convivência integral com a mãe, nos primeiros meses de vida, de maneira harmônica e segura e sem os perigos de um ambiente insalubre, consagrada, com absoluta prioridade, no artigo 227 do texto constitucional, como dever inclusive da sociedade e do empregador.

A proteção à maternidade e a integral proteção à criança são direitos irrenunciáveis e não podem ser afastados pelo desconhecimento, impossibilidade ou a própria negligência da gestante ou lactante em juntar um atestado médico, sob pena de prejudicá-la e prejudicar o recém-nascido.

A previsão de determinar o afastamento automático da mulher gestante do ambiente insalubre, enquanto durar a gestação, somente no caso de insalubridade em grau máximo, em princípio, contraria a jurisprudência da CORTE que tutela os direitos da empregada gestante e lactante, do nascituro e do recém-nascido lactente, em quaisquer situações de risco ou gravame à sua saúde e bem-estar.

A inconstitucionalidade consiste no fato de as expressões impugnadas permitirem a exposição de empregadas grávidas e lactantes a trabalho em condições insalubres. Mesmo em situações de manifesto prejuízo à saúde da trabalhadora, por força do texto impugnado, será ônus desta a demonstração probatória e documental dessa circunstância, o que obviamente desfavorece a plena proteção do interesse constitucionalmente protegido, na medida em que sujeita a trabalhadora a maior embaraço para o exercício de seus direitos. (ADI 5938, 2019. Destacou-se)

Como foi didaticamente explicado no julgado, a proteção às gestantes, lactantes e aos seus filhos não é apenas um interesse privado destes e sim um interesse público, resguardado constitucionalmente, que não pode ser prejudicado pela eventual inércia da mulher, seja por desconhecimento ou por negligência. É função do Estado, portanto, garantir, a partir dos dispositivos legais, que essa proteção seja maximizada, e, a partir de políticas públicas no sentido amplo, que a aplicação dessas normas seja efetiva.

Fica evidente, então, a razoabilidade da análise do tribunal, tanto no que diz respeito à coerência com a jurisprudência pátria, como no que tange à adequação à legislação. Dessa forma, após declarada a inconstitucionalidade, voltou a valer o dispositivo anterior, que vedava a exposição da gestante a qualquer nível de insalubridade, dando continuidade à preservação dos direitos fundamentais dessas pessoas.


5. A INSALUBRIDADE CAUSADA PELA PANDEMIA DA COVID-19

Nesse contexto, desde o começo de 2020 o Brasil vive uma pandemia, causada pela disseminação do vírus SARS-CoV-2, ou coronavírus, que ataca principalmente o sistema respiratório e têm ceifado muitas vidas. A Covid-19, como é chamada a doença, levou a uma necessidade de isolamento social, devido ao estado de emergência na saúde pública. Por essa razão, o trabalho à distância foi muito aderido por diversas empresas, para que fosse possível efetivar o distanciamento social e não paralisar suas atividades.

Sendo assim, em razão da pandemia, foi publicada a Lei 14.151, de 12 de maio de 2021, que classificou como insalubre o ambiente de trabalho para mulheres gestantes e lactantes durante a emergência de saúde pública, nos seguintes termos:

Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração.

Parágrafo único. A empregada afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância. (BRASIL, 2021. Destacou-se)

A medida foi de extrema importância para a garantia dos direitos fundamentais supramencionados para essa população, uma vez que, independentemente da função exercida e do tipo de trabalho, a mera exposição dessas mulheres a um vírus perigoso e ainda desconhecido, já torna o ambiente insalubre, colocando em risco sua integridade física e a do bebê, uma vez representam um grupo de risco para adquirir a doença e desenvolver complicações, para além das diversas sequelas imprevisíveis que a patologia tem gerado.

Vale ressaltar também a importante disposição que prevê que não haja prejuízo da remuneração, ou seja, que mesmo afastada do ambiente insalubre a gestante ou a lactante continue recebendo sua remuneração integralmente, sem desconto do valor relativo ao adicional de insalubridade, por exemplo. A importância disso é nítida quando se avalia o fato de a mulher já ter o hábito de receber aquele valor e contar com a integralidade dele para sua subsistência, não sendo justo que, em um momento de vulnerabilidade e aumento de gastos, que não está sob o seu controle, a mulher tenha prejuízo da sua remuneração.

Tal dispositivo legal ficou vigente até 9 de março de 2022, quando entrou em vigor a Lei 14.311, que determinou a retomada do trabalho presencial para as gestantes que já estão com o esquema completo de vacinação ou que optaram por não se vacinar, nos seguintes termos:

Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2, a empregada gestante que ainda não tenha sido totalmente imunizada contra o referido agente infeccioso, de acordo com os critérios definidos pelo Ministério da Saúde e pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial.

§ 1º A empregada gestante afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição do empregador para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, sem prejuízo de sua remuneração.

(...)

§ 3º Salvo se o empregador optar por manter o exercício das suas atividades nos termos do § 1º deste artigo, a empregada gestante deverá retornar à atividade presencial nas seguintes hipóteses:

I - após o encerramento do estado de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2;

II - após sua vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2, a partir do dia em que o Ministério da Saúde considerar completa a imunização;

III - mediante o exercício de legítima opção individual pela não vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2 que lhe tiver sido disponibilizada, conforme o calendário divulgado pela autoridade de saúde e mediante o termo de responsabilidade de que trata o § 6º deste artigo.

§ 6º Na hipótese de que trata o inciso III do § 3º deste artigo, a empregada gestante deverá assinar termo de responsabilidade e de livre consentimento para exercício do trabalho presencial, comprometendo-se a cumprir todas as medidas preventivas adotadas pelo empregador.

§ 7º O exercício da opção a que se refere o inciso III do § 3º deste artigo é uma expressão do direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual, e não poderá ser imposta à gestante que fizer a escolha pela não vacinação qualquer restrição de direitos em razão dela." (BRASIL, 2022. Destacou-se)

Portanto, pode-se dizer que a medida é coerente, tendo em vista a redução do número de casos e óbitos, a eficácia do imunizante e a gradual retomada presencial de todos os setores da sociedade, fatores que vem tornando cada vez menor a necessidade de isolamento social, o que descaracteriza a insalubridade em questão.

Contudo, no que tange à retomada presencial de mulheres grávidas que optaram por não se vacinar, é válido questionar até que ponto a liberdade de autodeterminação individual deve ser priorizada quando afeta não só a pessoa que fez a opção, mas também a criança que está sendo gerada, tendo em vista que esta sofrerá diretamente com as consequências das escolhas da mãe.

Além disso, é importante salientar que a vacinação é uma medida profilática coletiva, ou seja, para que seja efetiva, não basta que o indivíduo se vacine, mas é necessário que o máximo de pessoas possíveis estejam imunizadas, reduzindo a circulação do vírus. Ou seja, a gestante ou lactante não imunizada, além de colocar em risco o seu filho, também coloca em risco as pessoas que trabalham consigo.

Por fim, é lamentável ver que nenhuma das duas medidas supracitadas tenha abrangido as mulheres lactantes que, assim como as gestantes, são um público muito vulnerável, representando um canal direto de transmissão, através do leite e do contato próximo, com seus filhos, o que torna essas pessoas ainda mais expostas nessa situação de grande insalubridade.


CONCLUSÃO

Dado o exposto, conclui-se que o Estado tem grande importância na efetivação dos direitos individuais, especialmente aqueles que albergam o interesse público, como é o caso da proteção à vida e à saúde, a exemplo do direito aqui analisado. Sendo assim, as consequências das políticas públicas, ou a ausência delas, nesses âmbitos são marcantes, aumentando a responsabilidade daqueles que exercem os cargos e funções públicas.

Ademais, o trabalho digno é um objetivo a ser buscado, por meio não só da remuneração justa, como da equidade e de melhores condições de trabalho. Portanto, é essencial que os legisladores tenham certa precaução ao tratar sobre o trabalho em condições insalubres que envolvem as mulheres grávidas e em fase de amamentação, já que possuem a responsabilidade de proteger não só as trabalhadoras, como também o feto ou recém-nascido.

Ainda é necessário ressaltar que a exposição de gestantes e lactantes a certos ambientes, significa colocar em risco a formação do feto e a saúde do recém-nascido, não se tendo total controle das consequências que podem ser a longo prazo ou não, por isso é fundamental que a legislação seja específica e baseada em estudos cientificamente comprovados e não unicamente na satisfação da classe dos empregadores em manter seus funcionários produzindo acima de tudo objetivando, assim, garantir a segurança dos envolvidos.

Outrossim, as mudanças legislativas aqui apresentadas desde a reforma trabalhista apresentam a insegurança jurídica que esses grupos enfrentam, impactando negativamente na capacidade de trabalhar e de ser contratada das envolvidas.

Portanto, é preciso uma maior humanização e cuidado na aprovação das medidas governamentais e nas normas que regerão essas garantias, e, só a partir disso, será possível a verdadeira concretude da proteção à vida e à saúde, e do trabalho digno.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Paloma Kauany dos Santos; REGIS, Carolina Xavier Regis . As mudanças legislativas e seus impactos no trabalho em condições insalubres para as gestantes e lactantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7027, 27 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100357. Acesso em: 9 maio 2024.