Artigo Destaque dos editores

A (in)efetividade do direito humano e fundamental à saúde no mercado internacional globalizado

Exibindo página 3 de 4
01/10/2022 às 11:40
Leia nesta página:

3. CASOS CONCRETOS E MECANISMO EXISTENTE

O Capítulo 3 procura apresentar casos concretos que exemplificam o problema, fazendo a relação com o tema específico da presente pesquisa relacionada ao direito à saúde. Serão investigados mecanismos já existentes que garantem a efetividade do direito à saúde perante o mercado internacional globalizado.

3.1 Casos Concretos e Mecanismos existentes

3.1.1 Caso dos respiradores

Assim que o novo coronavírus se alastrou pelo Brasil e os casos de internação começaram a subir, o governo deparou com a falta de respiradores, instrumento essencial para auxiliar aqueles com sintomas graves causados pela doença. Com isso, os esforços foram direcionados para a aquisição de novos aparelhos, por meio de importações da China, já que a produção nacional supre apenas 40% da demanda, de acordo com Carlos Gadelha, pesquisador da Fiocruz[43]. Entretanto, começaram a surgir problemas na importação, já que os respiradores se tornaram um aparelho de alta demanda no mercado internacional.

O jornal “O Globo” publicou uma matéria, no dia 01/04/2021, período em que a pandemia estava começando a tomar mais força no Brasil, cuja manchete é “Compra em massa dos EUA à China cancela contratos de importação de equipamentos médicos no Brasil, diz Mandetta”[44]. Este título, dá a entender que um contrato fechado entre os EUA e a China prejudicou um contrato de importação de equipamentos médicos no Brasil. Considerando o contexto da pandemia do coronavírus, no qual a falta de insumos médicos como equipamentos de proteção individual (EPI’s), respiradores etc. pode trazer muitas mortes, há de se entender que esse fato prejudica diretamente o direito à saúde no Brasil. Dessa forma, é possível depreender que o surgimento de um comprador que oferece melhores condições para compra (EUA), prejudicou um contrato de fornecimento de insumos médicos básicos no Brasil em um cenário de pandemia. Ou seja, uma relação de compra e venda prejudicou o direito fundamental à saúde.

Nesse sentido, se dá a denúncia de Luiz Henrique Mandetta, ex-Ministro da Saúde, que exerceu o cargo no início da pandemia. A notícia acima mencionada expõe a seguinte fala de Mandetta, que reclamou das quebras de contrato por fornecedores que desejavam ganhar mais aproveitando a alta demanda trazida pelo contexto da pandemia:

Está havendo uma quebra entre o que você compra, assina e o que efetivamente você recebe. E isso está acontecendo porque, às vezes, chegam pessoas que falam pra quem vende: "Você vendeu por quanto? Vendeu por 10. E a multa? A multa é de 20%. Então eu te pago a multa, te pago os 10 e te pago mais tanto para você vender para mim".[45]

A reclamação de Mandetta evidência de forma clara o problema apontado por esta pesquisa. Pela fala do ex-Ministro é possível perceber justamente uma sobreposição das vontades do mercado aos direitos humanos, já que por maiores lucros os fornecedores vêm deixando países desabastecidos de insumos médicos, dentro dos quais respiradores.

Além desta acima mencionada, há também uma matéria, da BBC, que tem como manchete “Covid-19 expõe dependência de itens de saúde fabricados na China”[46]. Nesta, Antoine Bondaz, pesquisador da Fundação francesa para a Pesquisa Estratégica e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, discorre a respeito da dependência de diversos países na importação de insumos médicos. A matéria expõe que

"Em vez de ajudar, os países ricos estão acirrando a competição pelos equipamentos, tornando a situação mais difícil para os demais", afirma o pesquisador. Além disso, a forte demanda provocou a explosão dos preços.

Países da América Latina e África, diz ele, onde a pandemia chegou posteriormente, têm de concorrer com economias ricas que podem pagar mais pelos produtos, rapidamente e fazem encomendas gigantes - como os dois bilhões de máscaras comprados pela França.[47]

Estas colocações expostas acima, permitem a percepção de que a corrida internacional pela importação de insumos hospitalares teve maior atenção enquanto relação de compra e venda e não enquanto meio para garantir a efetivação do direito à saúde. Pelo que a situação revela, a vontade pelo lucro foi colocada em um patamar mais importante do que o direito fundamental à saúde que não prescinde de insumos médicos. A questão da aquisição de máscaras, respiradores etc. acabou por tomar um cunho muito mais capitalista do que de direitos humanos, já que a preocupação era com poder de compra. Isso fica mais uma vez evidente na seguinte colocação da matéria:

Uma saída apontada pelo pesquisador seria que o Brasil fizesse compras de máscaras e outros equipamentos em conjunto com países da América Latina para ter mais peso na disputa com economias ricas pelos produtos.[48]

Pode-se perceber que a recomendação se deu no sentido de fazer uma união que aumentasse o poder de compra, para que fosse possível a aquisição de insumos hospitalares, que são, mais uma vez seja ressaltado, indispensáveis para a garantia do direito fundamental à saúde. Ou seja, o foco se dá no mercado, em detrimento dos direitos humanos.

Em suma, o “caso dos respiradores” ressalta uma situação, na qual os direitos humanos não são colocados como prioridade. Muito pelo contrário, na verdade fica evidenciado que o lucro ou a política é considerado mais importante do que os direitos humanos. Neste caso, o mercado internacional globalizado mostra seu poder/ como é perigoso com discrição, já que, ao mesmo tempo em que deixa claro que pode prejudicar os direitos humanos, em nenhum momento foi mencionado diretamente que países deixariam de receber insumos por haver um comprador que paga mais ou algo assim.

Ainda é importante mencionar que este caso descrito acima não teve grande repercussão, a qual se limitou a notícias jornalísticas. Como se pode perceber com pesquisas, com o passar do tempo o caso perdeu sua importância e foi deixado de lado, sendo que não houve posicionamento da Organização das Nações Unidas (ONU) e tão pouco da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ou seja, não foi constatado grande problema no fato.

3.1.2 Importação de insumos para produção de vacinas contra o Covid-19

Uma situação similar à detalhada no tópico anterior se deu na aquisição de insumos para produção de vacinas contra o Covid-19. A vacina em questão é a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan de São Paulo em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Para a produção da vacina em São Paulo, é necessário o uso do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), o qual chega ao Brasil por meio de importação da China, ou seja, por meio do mercado internacional globalizado.

No dia 14 de maio de 2021, a Deutsche Welle publicou uma matéria em seu site, cuja manchete é “Sem insumos, Butantan interrompe produção da Coronavac”. A notícia aponta:

O Butantan divulgou que um lote de 10 mil litros de insumos da Coronavac está retido na China à espera de liberação para envio ao Brasil – essa quantidade é suficiente para produzir 18 milhões de doses da vacina.[49]

Ou seja, os insumos estão disponíveis e prontos para serem enviados, mas aguardam liberação para o efetivo envio. O então governador do Estado de São Paulo, João Doria, disse que as dificuldades na importação são decorrentes dos ataques à China feitos pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro. Como indica a reportagem supracitada,

Segundo Doria, a “ação agressiva” de Bolsonaro em relação a Pequim “dificulta as ações dos governos, assim como do governo de São Paulo, na relação diplomática com a China”[50].

A partir disso, e presumindo-se que a situação realmente se verifica, pode-se entender, que há um problema político interferindo numa relação no âmbito do mercado internacional globalizado, o qual tem atrapalhado o envio de insumos para a produção de vacinas que combatem o novo Coronavírus. Considerando que sem insumos não é possível a produção de vacinas, e sem vacinas mais pessoas morrerão por falta de acesso à saúde, há de se dizer que política está se sobrepondo aos direitos humanos e, mais especificamente, ao direito humano à saúde.

Da mesma forma que o caso anterior, este não teve grande repercussão. De fato, teve mais importância do que o anterior, já que chegou até a ser mencionado na CPI da Covid, na qual os senadores que a compõe questionaram o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sobre um suposto prejuízo na diplomacia entre Brasil e China. Uma reportagem da BBC, com manchete “CPI da Covid: Ernesto Araújo nega que Brasil tenha tido atritos com a China”[51], expõe os questionamentos e suspeitas dos senadores de que Ernesto Araújo teria prejudicado a relação entre Brasil e China. A preocupação dos senadores se dá justamente, porque a China é um dos principais produtores de remédios e insumos médicos, sendo que entre eles está o insumo para a produção da “Coronavac”, vacina produzida pelo Instituto Butantan, no Brasil.

De qualquer sorte, a repercussão não foi no sentido de se tecer uma crítica para o fato de política estar sendo colocada a frente da garantia dos Direitos Humanos, mas sim no sentido de punir aquele que causou o problema político que pode prejudicar a obtenção de insumos médicos. Em outras palavras, investiga-se quem causou o problema, mas não se percebe que este problema é fruto de outro maior: a sobreposição de política aos direitos humanos no mercado internacional globalizado, sem que seja tomada qualquer medida a respeito pelas organizações internacionais.

Colocados estes dois casos, que se procure agora algum mecanismo que atue no sentido de remediar este problema.

3.1.3 Um mecanismo existente: Os Princípios Ruggie

Em 16 de junho de 2011 o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou um novo grupo de princípios orientadores para empresas, no âmbito global, os quais ficaram conhecidos como Princípios Ruggie. John Ruggie é professor da Universidade de Harvard e, na condição de Representante Especial do Secretário-Geral para Empresas e Direitos Humanos, liderou a pesquisa que durou 6 anos. O conteúdo desses princípios é composto da seguinte maneira, conforme indicado em notícia no site da ONU:

A estrutura é baseada em três pilares: o dever do Estado de proteger contra abusos de direitos humanos por parte de terceiros, incluindo empresas, através de políticas, regulamentos e julgamentos; a responsabilidade corporativa de respeitar os direitos humanos, o que significa evitar infringir os direitos dos outros e abordar os impactos adversos que podem vir a ocorrer; e o maior acesso das vítimas a recursos efetivos, judiciais ou não.[52]

Como já mencionado neste trabalho, a problemática se dá justamente considerando a perda de poder do Estado perante grandes empresas ou considerando a falta de espaço para ação daquele contra estas. Dessa forma, os Princípios Ruggie são considerados como um mecanismo que combate o problema apresentado nessa pesquisa, apenas enquanto princípios que colocam a responsabilidade da empresa de respeitar os direitos humanos, com foco para a parte que responsabiliza a empresa pelos impactos causados pelas suas atividades aos Direitos Humanos. Entretanto, este mecanismo encontrado combate apenas, na verdade, parte do problema, que é aquela concernente a sobreposição dos interesses das empresas em relação aos Direitos Humanos no âmbito do mercado internacional globalizado.

A Conectas Direitos Humanos, uma organização não governamental internacional, cuja missão é promover a efetivação dos Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito, editou os Princípios Orientadores, acima mencionados, em português[53], documento que será utilizado para fins de análise e citação nessa pesquisa. Logo de início, nos princípios gerais, já é importante mencionar o princípio “B”. Este afirma que se reconhece “o papel das empresas como órgãos especializados da sociedade que desempenham funções especializadas e que devem cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos”[54]. Ou seja, já é atribuída às empresas a obrigação de respeitar os direitos humanos.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em seguida, do tópico “II”, “A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos”, é importante mencionar alguns princípios. Primeiramente, o princípio 11, o qual estabelece que

As empresas devem respeitar os direitos humanos. Isso significa que devem se abster de infringir os direitos humanos de terceiros e enfrentar os impactos negativos sobre os direitos humanos nos quais tenham algum envolvimento.[55]

Como exposto no comentário colocado no documento da Conectas Direitos Humanos, trata-se de uma norma de conduta. Convém ressaltar o trecho final: “enfrentar os impactos negativos sobre os direitos humanos nos quais tenham algum envolvimento”. Ou seja, se as atividades de uma empresa causam algum prejuízo aos direitos humanos, ela deverá remediar e corrigir o problema. Ademais, complementando o enunciado exposto acima, é importante mencionar que, de acordo com o princípio 12, essa responsabilidade de respeitar os direitos humanos se refere àqueles internacionalmente reconhecidos, de forma que se inclui o direito à saúde.

O princípio 13, por sua vez, traz um conteúdo no mesmo sentido do 11, mas de forma mais explicada, ou mais clara:

A responsabilidade de respeitar os direitos humanos exige que as empresas:

A. Evitem que suas próprias atividades gerem impactos negativos sobre os direitos humanos ou para estes contribuam, bem como enfrentem essas consequências quando vierem a ocorrer;

B. Busquem prevenir ou mitigar os impactos negativos sobre os direitos humanos diretamente relacionadas como operações, produtos ou serviços prestados por suas relações comerciais, inclusive quando não tenham contribuído para gerá-los.[56]

Dessa forma, fica mais claro em que sentido se dá a orientação. Esta foca os impactos trazidos justamente pelas relações comerciais, como explicitamente colocado, sendo que tanto fornecimento de produtos quanto prestação de serviços são abrangidos. Além disso, é importante ressaltar que o enunciado menciona que as empresas têm responsabilidade mesmo quando não tiverem contribuído para gerar os impactos negativos pontuados.

Tendo isso em vista, cumpre fazer um paralelo com o “caso dos respiradores”, acima exposto. Como explicado, houve problemas no fornecimento de respiradores em um contexto de pandemia, os quais, segundo denúncia do ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foram causados por assinaturas de novos contratos. Dessa forma, pode-se dizer que a empresa que prometeu o fornecimento deveria ser responsabilizada de acordo com os Princípios Ruggie, já que a atividade desta trouxe prejuízo ao direito à saúde, por conta da não entrega dos respiradores prometidos. Mais especificamente, pode-se perceber essa situação prevista no artigo 13 mencionado há pouco, já que há impactos negativos sobre os direitos humanos causado pelo fornecimento de produtos por uma empresa. De fato, a dependência de importação de insumos hospitalares não é um problema que a empresa necessariamente gerou, mas, dentro deste contexto, a empresa vem trazendo prejuízo, por não fornecer o produto prometido.

Posto esse paralelo como um “deveria ter acontecido”, pode-se perceber que o mecanismo não é eficiente. Isso se dá em grande parte, pelo fato de serem princípios orientadores que não tem força coercitiva, ou seja, trata-se de soft law, que pode ser entendido como um direito internacional não obrigatório, como expõe Marcelo Dias Varella em sua obra “Direito Internacional Público”[57]. Além disso, como foi possível perceber, a forma pela qual os prejuízos aos direitos humanos se dão nem sempre é perceptível, como aconteceu no “caso dos respiradores”, exposto acima. Neste caso, a empresa deixou de fornecer respiradores que haviam sido prometidos, porque, de acordo com a acusação do ex-Ministro Luiz Henrique Mandetta, foi fechado um contrato maior com outro país, de forma que a empresa ficou desabastecida por ter fornecido todos os produtos a outro comprador. Entretanto, a empresa justificou a ausência de fornecimento de forma vaga, apenas indicando que não havia estoque disponível e, por isso, não seria possível o fornecimento. Sendo assim, não foram aplicados os Princípios Ruggie e a empresa não foi responsabilizada pelo prejuízo causado ao direito à saúde.

Em conclusão, embora os Princípios Ruggie tragam um conteúdo muito importante, que orienta o comportamento das empresas em relação à proteção e respeito dos direitos humanos, acaba por não se tratar de um mecanismo eficiente, já que se trata de uma norma de soft law. Como se pôde perceber na exposição feita acima, houve um caso em que um dos princípios deveria ser aplicado, mas não houve efetivamente uma aplicação, o que aconteceu por conta da narrativa da empresa se dar de forma que não foi percebida sua participação no prejuízo aos direitos humanos. Entretanto, este prejuízo estava presente e houve participação da empresa, mas nada foi feito a respeito.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Álvaro. A (in)efetividade do direito humano e fundamental à saúde no mercado internacional globalizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7031, 1 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99525. Acesso em: 20 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos