Perspectivas a respeito da multipropriedade imobiliária

01/07/2022 às 10:46
Leia nesta página:

Antes de ser definida nos tribunais superiores e na lei, a natureza jurídica da Multipropriedade Imobiliária ou time-sharing constituiu-se em aspecto de forte divergência doutrinária. O instituto diz respeito ao direito perpétuo e dotado de periodicidade de uso e fruição da propriedade. Ou ainda, conforme o artigo do 1.358-C, caput, Código Civil:

Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um

mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de

uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos

proprietários de forma alternada. (Brasil, 2018).

Assim, a multipropriedade diz respeito, por exemplo, à divisão de um chalé na praia em 52 semanas anuais de uso, sendo cada parte adquirida por um indivíduo. Com isso, cada um dos multiproprietários possui o direito de na sua semana usar e gozar do chalé, devendo se ausentar dele quando for esgotado o seu período de posse, podendo retornar no ano seguinte em igual época.

Nesse contexto, a doutrina divergia de maneira que, por um lado, alguns defendiam tratar-se de direito obrigacional. Por isso, não se revestiria o instituto das prerrogativas dos direitos reais. Sendo possível, por exemplo, penhorar um imóvel, sob o regime de time sharing, de seu suposto proprietário, independentemente de direitos de terceiros decorrentes da multipropriedade. Por outro lado, havia também o ponto de vista de que se tratava a multipropriedade de direito real, o que impediria qualquer penhora integral sobre imóvel submetido a esse regime, em razão de dívida contraída por apenas um dos multiproprietários.

À vista disso, chegou ao STJ o recurso especial 1.546.165, no qual se debatia exatamente a questão de o time sharing se tratar de direito obrigacional ou real. No caso em questão, um condomínio havia movido execução perante a totalidade de um imóvel, em virtude de dívida condominial contraída por Jorge Karam Incorporações e Negócios LTDA. Ocorre que o imóvel estava sob o regime de time sharing, o que fez que terceiros os quais não tinham relação imediata com a dívida fossem atingidos pela execução. Em razão disso, a Magnus Landmann Consultoria Empresarial S.C LTDA detentora de uma fração de 2/52 avos (2 semanas no decorrer do ano) do imóvel foi à justiça alegar que a execução não poderia ser contra ela oposta já que a sua parcela de propriedade se revestia de caráter de direito real. Ao chegar o caso para o juiz de primeira instância, ele considerou que a penhora poderia, sim, ser feita, porquanto a multiprorpiedade seria pertencente ao âmbito dos direitos obrigacionais. Em secunda instância, a apelação não foi provida; chegando-se, por último, a questão para o STJ.

No julgamento, o primeiro a votar foi o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (relator). O magistrado iniciou seu voto debruçando-se sobre a alegação de que teria havido revelia no caso. No entanto, como a questão principal do caso era a da natureza jurídica da multipropriedade, a qual se caracteriza por ser matéria de direito, não incidiria a revelia, visto que essa somente produz efeito sobre matéria de fato. Prosseguindo em seu voto e passando a se ater ao instituto da multipropriedade, o ministro tratou de sua origem francesa, de sua expansão para outros países e como é divergente nos ordenamentos alienígenas a tratativa da natureza jurídica da multipropriedade havendo nações, como França e Inglaterra, as quais a consideram ser direito obrigacional e outras, como Áustria, Portugal e Espanha, os quais veem nela um direito real.

Diante do exposto, iniciou-se uma análise acerca das distinções entre esse instituto e os direitos reais. Nessa perspectiva, é citado que, opostamente ao que ocorre com os direitos reais: as faculdades de gozo, uso e disposição são temporalmente limitadas; há impossibilidade de fazer qualquer modificação no bem, nem ainda a título de benfeitoria; o bem é dotado de destinação (turismo, por exemplo), impossibilitando o proprietário de utilizá-lo para fim diverso do preestabelecido. Além de diferenças como essas, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva expõe o fato de os direitos reais serem numerus clausus no direito brasileiro. Com isso, quer-se dizer que o rol de direitos reais é fechado e taxativamente previsto em lei.

A esse respeito, o ministro relator, partindo daquilo que cunhou Frederico Henrique Viegas de Lima, justificou que não é sem razão serem eles assim caracterizados. Ou melhor, serem numerus clausus constitui-se em garantia aos particulares. Isso se deve ao fato de permitir que eles conheçam previamente sobre quais bens incidem as características dos direitos reais, impedindo o aumento desmedido desse rol de direitos, já que isso ocasionaria insegurança jurídica. À vista disso, concluiu o relator que diante da inviabilidade de criação de um novo direito real por convenção privada, inafastável a conclusão de que o contrato de time-sharing possui a natureza jurídica de direito pessoal (STJ, 2016, online). Portanto, não haveria óbice à penhora da totalidade do imóvel sujeito ao regime de time sharing.

Contrariamente ao que havia proposto o relator, o voto-vista do Ministro João Otávio de Noronha vencedor caminhou no sentido de conferir ao instituto a natureza jurídica de direito real. Em suas palavras:

Isso porque, extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais,

a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos,

detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for a sua própria expressão,

como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não

se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da

preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.

(STJ, 2016, online).

Em sua argumentação, o ministro expôs não haver, em sua visão, inviabilidade

alguma em se dotar o time sharing da natureza de direito real. Assim, ressaltou que

com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a

um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel,

detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que

objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de

tempo. (STJ, 2016, online).

Além disso, pontuou-se que não há vedação legal a se atribuir a qualidade de direitos reais a novas situações jurídicas não regulamentadas.

Dessa maneira, o STJ nos termos do voto do Ministro João Otávio de Noronha deu provimento ao recurso especial e retificou o acórdão da segunda instância, considerando ser, cada titular de parcela de multipropriedade, titular de direito real. Por isso, não seria possível se penhorar a totalidade de um imóvel sob o regime de multipropriedade, em razão de dívida de apenas um dos multiproprietários.

É possível observar que um dos pontos fulcrais nesse julgamento é a questão dos numerus clausus dos direitos das coisas. Diante disso, nota-se que muito bem andou a corte em mitigar a taxatividade desses direitos, haja vista dever-se coadunar esse ramo jurídico com o princípio da autonomia da vontade, o qual vem se fortalecendo cada vez mais no ordenamento jurídico brasileiro.

Ou seja, com a cada vez mais veloz evolução das relações mercantis e o surgimento, por exemplo, de novas formas de se lidar com os negócios imobiliários, não é viável a limitação dos direitos reais aos que estão previstos legalmente. Isso se consubstanciaria em entrave ao avanço econômico e à liberdade comercial, impedindo o avanço do mercado de bens, como o time sharing, por ausência de devida proteção legal. Assim, deve ser possível a criação de novos direitos reais, desde que não se contrariem normas cogentes e se esteja de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Exemplo disso, é a questão do time sharing, o qual se originou de mutações na maneira de lidar com o mercado imobiliário e, conquanto se pudesse a princípio enquadrá-lo nos direitos reais, não o era por ausência de previsão legal expressa. Em síntese, deve-se dar uma maior valoração à autonomia da vontade frente aos numerus clausus dos direitos das coisas e permitir, dentro de certos limites, a criação de direitos reais não expressos em lei. Nesse diapasão, tem-se o que cunhou Flávio Tartuce:

A influência da autonomia privada para o Direito das Coisas, do mesmo

modo, pode trazer a conclusão de que o rol constante do art. 1.225 do

CC/2002 não é taxativo, mas exemplificativo, eis que a vontade humana

pode criar novos direitos reais. Isso está de acordo com o próprio espírito

da atual codificação privada, que adota um sistema aberto, baseado em

cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, o que fundamenta o

princípio da operabilidade, na busca de um Direito Civil mais concreto e

efetivo. (TARTUCE, 2021, p. 1484).

Com o intuito de disciplinar essa matéria, o Congresso Nacional instituiu a Lei nº 13.777 de 2018, a qual inseriu no Código Civil os artigos 1.358-B a 1.358-U, além de alterações na lei de registros públicos. A legislação abrangeu somente a multipropriedade imobiliária, deixando para posteriores legislações apreciar aquilo que diz respeito à mobiliária. Desse modo, no Código civil foram colocadas: disposições gerais (artigos 1.358-B a 1.358-E), tais como a definição do instituto e o prazo mínimo de 7 dias para cada fração de multipropriedade; normas a respeito da instituição da multipropriedade (artigos 1.358-F a 1.358-H), tais como a necessidadede inscrição em cartório de registro de imóveis, além de uma série de faculdades deixadas para serem decididas a partir da autonomia da vontade; uma série de direitos e obrigações do multiproprietário, fora os previstos na convenção de condomínio em multipropriedade ou no instrumento de instituição (artigos 1.358-I a 1.358-K); um artigo, a dizer o 1.358-L, tratando da transferência do time sharing; os artigos 1.358-M e 1.358-N, disciplinando a administração da multiprorpiedade e, por último, a disposição de que mesmo um condomínio edilício poderá adotar o regime de multipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas, a teor dos arts. 1.358-O a 1.358-U (GAGLIANO, 2020, p.1666).

Nesse sentido nota-se o esforço do legislador em melhor disciplinar o instituto ora em apreço, haja vista sua indubitável relevância pelo fato tornar possível incentivar a economia pois permite a pessoas de classes menos abastadas a realização de investimento com menor custo e o turismo porquanto tem especial aplicação em empreendimentos como flats e hotéis (GAGLIANO, 2020, p.1665). Assim, avançou a lei em relação ao julgado do STJ, o qual corretamente não se dispôs a disciplinar o time sharing, o que se constituiria em indevido exercício de atividade legislativa e feriria os princípios da separação dos poderes, da inércia e o da congruência ou adstrição.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Não obstante a disciplina legislativa da multipropriedade imobiliária ter sido mais minuciosa do que a judicial, fato é que a lei teve como ponto de partida aquilo que decidiu o STJ. Isto é, o legislativo atento à decisão que colocou ter o time sharing a natureza de direito real, já no segundo artigo que trata do tema no Código Civil, expôs que: cada um dos que adquirem uma fração de tempo para uso do imóvel são proprietários de um igual imóvel. Logo, titulares de um direito real. Destarte, tanto o STJ no REsp 1546165, quanto o Congresso Nacional na lei 13.777 de 2018 colaboraram para a melhor compreensão e disciplina do instituto da multipropriedade no direito brasileiro. Afastando-se, assim, incertezas decorrentes de insegurança jurídica e promovendo um ambiente mais adequado para este nicho do mercado imobiliário.

Por fim, vale ressaltar que a matéria ainda não está plenamente clara, ainda necessitando-se de leis posteriores para uma melhor compreensão do tema. Ou ainda, nas palavras de Flávio Tartuce: parece-me que o legislador pecou por falta de técnica e a regulamentação legislativa traz muitas dúvidas e poucas soluções, o que deve repercutir diretamente na prática (TARTUCE, 2021, p. 1806). Justificando essa crítica, o autor aponta para o fato de a legislação ter focado no time sharing profissional e relegado o amador, em que, por exemplo, conhecidos adquirem juntos um imóvel para usarem (e não para fins comerciais). No entanto, apesar das eventuais falhas e atecnias, é inegável que, em relação à época anterior ao julgado do STJ, teve-se um enorme avanço da disciplina dessa modalidade de comércio, o que sem dúvida contribuiu para uma maior segurança jurídica dos particulares e, por conseguinte, para avanços no comércio.

Referências bibliográficas:

- TARTUCE , Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11ª edição. Rio de

Janeiro: Forense; Método. 2021.

- GAGLIANO, Pablo; FILHO, Pamplona. Manual de Direito Civil: volume único.

4ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

- Brasil. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código

Civil. Brasília, DF. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em:

31 de outubro de 2021.

- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1546165/SP.

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO.

MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE

DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO

DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO.

PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.

Relator: Ministro João Otávio de Noronha. DJe 06/09/2016. Disponível em:

https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201403082061

&dt_publicacao=06/09/2016. Acesso em: 31 de outubro de 2021.

Sobre o autor
Felipe de Castro Santos

Graduando de direito na Universidade de Brasília (UnB) Instagram: castrosantosfelipe0809 email: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos