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Estupro marital: abordagem histórica, jurídica e contemporânea

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O estudo aborda a construção histórica e tratamento contemporâneo do estupro marital, destacando a submissão da mulher e a falta de consciência da vítima.

Resumo: O presente trabalho busca esclarecer a construção da figura jurídica do estupro marital desde sua construção histórica até abordagem jurídica e o tratamento contemporâneo na doutrina. A ideia surge a partir de notícias e publicações de pesquisas do ainda subnotificado crime, onde foca claro que a vítima quase sempre não tem consciência de sua condição de vulnerabilidade, sendo que a construção histórica do papel da mulher nos relacionamentos conjugais ainda é vista como uma posição de submissão as vontades do parceiro, tornando-as vítimas principais desse tipo de delito.


1. BREVE RELATO HISTÓRICO DA FIGURA DA MULHER E A RELAÇÃO COM A IDÉIA DE LEGITIMAÇÃO DO ESTUPRO MARITAL

O estupro é sem dúvida um dos crimes mais reprovados pela sociedade atualmente. No imaginário popular, o cometimento desse tipo de crime causa repulsa e revolta, e, embora possam ser vítimas desse crime qualquer pessoa de qualquer gênero, a que se ressaltar que a grande maioria das vítimas registradas são do sexo feminino.

A motivação para que as taxas de estupro contra mulheres sejam exorbitantemente maiores do que contra as do sexo oposto pode ser explicado, mas não justificado, com base na construção da figura da mulher ao longo da história. Essa mesma construção histórica pode vir a explicar como a posição da mulher, como figura inferiorizada dentro das relações conjugais, influencia na subnotificação de estupros praticados pelos próprios parceiros, mostrando ainda que muito disso se deve a falta de consciência da mulher do ilícito que o seu companheiro pratica, vendo-se muitas vezes obrigada a cumprir com seu papel de conjunção carnal naquilo que outrora foi conhecido como débito conjugal.

Embora hoje com as várias ondas de movimentos feministas as mulheres estejam recuperando o protagonismo de suas vidas, é certo afirmar que ainda vivemos em uma sociedade patriarcal em que o papel das mulheres ainda é diminuído, e para entender esse fenômeno que mesmo em nossos tempos ainda acompanha as relações humanas, é necessário voltar ao passado e entender como e quando o papel da mulher frente aos homens começou a ser comprimido, subjugando o poder feminino outrora tão importante na evolução da espécie.

A reconhecida escritora Rose Marie Muraro, quando da tradução para o português do livro "Malleus Maleficarum" ou "o Martelo das Feiticeiras" escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger em 1484, nos traz um resumo histórico da abordagem da figura da mulher ao longo das eras. Através desse pequeno resumo apresentado é possível ver que, inicialmente, a figura feminina se sobrepusesse a masculina em importância, e isso pode ser observado e mesmo através dos mitos da criação, que inicialmente na maioria das culturas se apresentava mormente através de uma divindade feminina.

A autora liga essa construção social aos mitos, os ilustrando e representando através de fases da história. Em uma primeira fase temos uma Deusa Mãe, poderosa, que cria tudo, e que reina sobre os demais, como defende a historiadora e antropóloga Norma Telles "a deusa não é aquela que só gera. Ela é também guerreira, doadora das artes da civilização, criadora do céu, do tecido e da cerâmica, entre muitas outras coisas. (ZANCHETTA, M.I.-2016)

Exemplificando esse período temos deusas como Pótnia, Astarte, Ísis, Amaterazu, Nu Gua, deusas de suma importância em suas respectivas culturas e que nos dão uma noção da representatividade feminina nessas sociedades primitivas que remontam a aproximadamente 10 mil anos. Muraro traça ainda um paralelo com culturas remanescentes que ainda mantem essas tradições, e sobre isso ela nos ensina:

[...] em nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como grupos Mahoris (Indonésia), Pigmeus e bosquímanos (África Central). Estes são os grupos mais primitivos que existem e ainda sobrevivem da coleta de frutos da terra e da pequena caça ou pesca. Nesses grupos, a mulher ainda é considerada um ser sagrada, por que pode dar a vida e, portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos animais. Nesses grupos, o principio masculino e feminino governam o mundo juntos. Havia Divisão de trabalho entre os sexos, mas não havia desigualdade. A vida corria mansa e paradisíaca. (KRAMER , H. e SPRENGER, J. 2015, p.5)

Não podemos discorrer com relação a ocorrência de estupro nessas sociedades, mas podemos apontar a importância da figura feminina para elas, e neste ponto é importante ressaltar como a desvalorização da figura da mulher na sociedade pode vir a influenciar até os dias de hoje nas relações de poder dentro do casamento, levando a uma justificativa psicológica de obrigação conjugal.

Fato é que após esse primeiro momento da figura feminina na sociedade primitiva, o que se seguiu foi a reiterada usurpação e rebaixamento até a extinção e demonização do poder feminino, principalmente no contexto da alta idade média com a produção dos textos que viriam nortear a Doutrina da Igreja. Mas até culminar nesse ponto o que se viu pode ser ilustrado na mitologia, tal qual nos apresenta Muraro.

Se na primeira fase uma deusa mãe cria tudo sem a ajuda de ninguém, em um segundo momento não se trata mais de uma deusa Mãe, mas de um deus andrógino, sendo citados pela autora o "yin e yang" chinês como princípios masculino e feminino equilibrados, e os deuses hindus que apesar de sexo definido, possuem em sua maioria características ambíguas.

Na terceira fase existe uma deusa que é usurpada por um deus macho, como exemplo Muraro nos traz a história de Siduri, da Suméria, "que inicialmente reinava no jardim das delicias e cujo o poder foi usurpado por um deus solar " (KRAMER, H. e SPRENGER, J.-, 2015, p.9). Essa mesma deusa aparece depois na história de Gigamesh como uma serva, uma atendente de taberna que tenta dissuadir o herói do mito de sua busca pela imortalidade. Se observamos, conforme a história avança, a figura da mulher vai perdendo seu status Protagonista e sendo subjugada pelo poder masculino, sendo relegada o papel de serva.

O ponto em que a figura feminina se torna totalmente usurpada de sua importância é o quarto e último momento do qual decorre a comparação de Muraro com a Mitologia. Neste último momento não existe mais nenhuma divindade feminina, apenas um deus macho que cria tudo. Esse mito se traduz através de crenças das Religiões Abraãmicas, originalmente pelos hebreus, posteriormente pelas várias vertentes do cristianismo, ainda pelo muçulmanismo e o judaísmo.

A partir do surgimento da mitologia dos hebreus, o papel da mulher é reduzido. Inicialmente o Deus macho cria o homem, como um primogênito, e aquele a quem relega a responsabilidade, ao passo que a mulher é criada a partir de uma parte do homem, dando a interpretação não só desta ser uma parte dele, mas de ser dependente, de existir em função daquele que contribuiu com sua própria carne para que ela viesse a existir.

Não é raro na bíblia sagrada passagens que versam sobre estupro e, a depender da interpretação, podem servir para legitimar uma cultura do estupro na nossa sociedade mesmo hoje. Segundo Katie Edwards, diretora do Instituto para Estudos Bíblicos Interdisciplinares da Universidade de Sheffield (SIIBS), no Reino Unido:

[...] como um documento profundamente influente sobre a cultura, a Bíblia tem muito a dizer quando se trata de atitudes em torno de sexo, vergonha e identidade de gênero. Estupro é endêmico na Bíblia, tanto literal quanto metaforicamente, e mais frequentemente do que não, funciona como um condutor para competição masculina e uma ferramenta para defender o patriarcado". (Mega Curioso - 2018)

O papel da religião é fundamental na construção de um imaginário que vai influenciar diretamente o comportamento humano no que se refere as relações conjugais. Esse desenvolvimento psicológico faz com que a vítima, majoritariamente do sexo feminino, se quer reconheça que está sendo abusada, pois como vimos até aqui a própria construção histórica da figura que a espelha tem sido usurpada e reduzida. Com o surgimento das religiões abraãmicas, esse contexto se agrava influenciando principalmente a sociedade ocidental que evoluiu em sua esmagadora maioria com base no pensamento cristão.

No período em que a Igreja passa a dominar o pensamento moral na sociedade ocidental, a figura do estupro passa a ter maior controle da Igreja do que do Estado na perspectiva de controle comportamental, e isso diz muito sobre a sociedade em que vivemos.

André Estefam em sua obra "Homossexualidade, prostituição e estupro: um estudo a luz da dignidade humana" materializa a forma como se tratava a questão do estupro na época. As punições da igreja contra práticas violentas ilícitas visavam mais prevenir casamentos forjados com objetivos patrimoniais do que a proteger a vítima da violência, ao passo que a legislação secular impunha apenas sanções pecuniárias a depender do status social do autor. Não obstante, ainda se considerava o fato de a vítima ter aquiescido de qualquer maneira para o ato, e caso não houvesse resistido suficientemente considerava-se que havia aceito tal pratica, o que não gerava punição para o acusado.

Outro fato narrado pelo autor que se torna pertinente relatar, é que caso o estupro resultasse gravidez, entendia-se que houve consentimento no ato, pois a gravidez, segundo a corrente doutrinaria da época, resultava do prazer de ambos os indivíduos envolvidos, ficando caracterizado então que houve proveito da relação de ambos os lados, não haveria de se falar em existência de estupro.

É com essa construção histórica, e nesse contexto social, que aparece na doutrina da igreja o Debitum Conjugalis, que infere a mulher a condição de objeto de controle do marido. No âmbito da relação conjugal, esta tem o dever de satisfazer as vontades do esposo, dando o direito a este de força-la ao ato sexual quando ela negasse sem que houvesse uma justificativa aceitável, sujeitando a mulher até mesmo a atos de violência afim de cumprir seu dever matrimonial.

O débito conjugal do direito canônico se arrasta até hoje em vertentes do pensamento jurídico, Caio Mario, por exemplo, traz a ideia da interpretação do artigo 1566 do Código Civil a luz do Direito Canônico quando diz:

Vida em comum no domicílio conjugal. O casamento sugere coabitação e esta requer comunidade de existência. É preciso deixar bem claro que a coabitação não se satisfaz com a moradia sob o mesmo teto. Requer intimidade de convivência, que se apelida de débito conjugal, segundo terminologia advinda do Direito Canônico, para exprimir as relações sexuais. (PEREIRA, C.M., 2020- p.194)

Não afirmamos aqui que o autor pretende justificar a violência ao interpretar a norma a partir da ideia do direito canônico, uma vez que o mesmo menciona este fato apenas como justificativa para ensejar um possível processo de divórcio perante a negativa de cumprimento do debito conjugal. Porém, entendemos que devemos abandonar esse tipo de influência no direito contemporâneo, pois existem posições de diversos autores que já abandonaram a interpretação do débito conjugal em vista do direito canônico, e passaram a defender a tese da afetividade para interpretar o artigo 1566 do Código Civil.

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É patente a necessidade do abandono de teses legitimadoras do débito conjugal, pois esta passa os valores históricos construídos até aqui, e que influenciam o não reconhecimento da pessoa em situação vulnerável nas relações conjugais. Notadamente, embora possa ocorrer situações diversas, as mulheres são as maiores vítimas dessa condição, justamente pelas transmissões de valores ligados ao pensamento cristão, o qual, como vimos, exerce grande influência no papel de submissão das mulheres a figura masculina no relacionamento.

Os dados levantados através do SINAN - Sistema de Informação de Agravos de Notificação, aponta que dos 20.085 estupros relatados no ano de 2014, 34,4% foram cometidos por namorado ou cônjuge, e o que agrava ainda mais a situação é que muito provavelmente esses números são subnotificados, pois na maioria dos casos a vítima não tem a noção de que está vivendo na condição estupro marital.

Essa situação é um claro reflexo da construção do imaginário que envolve a figura da mulher e sua sexualidade, como aponta o pensamento de Agostinho de Hipona quando diz que "a genitália remanescia de impassível e absoluto controle, como herança do pecado original" (ESTEFAM, A. - 2016, p.249).

Esse controle passa pelo poder da igreja ao regular as obrigações matrimoniais, sobre isso Estefam ainda ensina que:

As cortes eclesiásticas cuidavam de grande parte das disputas envolvendo aspectos matrimoniais durante a Idade Média. Permitia‐se, por exemplo, que o marido ajuizasse uma demanda compelindo sua esposa, a qual não mais desejava manter com ele o concurso carnal, a fazê‐lo. Mesmo se alteradas as condições futuras, subsistia o dever, tendo, inclusive, o Papa Alexandre III (1159‐1181) decretado que uma mulher continuaria sujeita ao débito conjugal mesmo que seu esposo contraísse lepra (e assim reciprocamente). (ESTEFAM, A. - 2016, p.249)

Outra prática que surgiu na idade média e que, ainda que não encontrasse previsão expressamente legal, foi incorporada consuetudinariamente à maioria dos países europeus no medievo, é o Direito do Senhorio, ou Direito à primeira noite. Este consistia no direito do senhorio de usufruir da noite de núpcias do servo, ou seja, o senhor em mais alta posição tinha o direito de possuir a esposa do servo na primeira noite após o matrimônio.

Culturalmente falando, essas práticas reiteradas ao longo do tempo, mais do que a satisfação sexual, tem relação com a desvalorização e repressão da figura feminina, sempre com o objetivo de se colocar a mulher em valor inferior ao homem. Isso se mostra também através da perseguição sofrida pelas mulheres no que tange a inquisição, como lembra Muraro:

Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração em geração. [...]. Mais tarde elas vieram a representar uma ameaça. Em primeiro lugar, ao poder médico, que vinha tomando corpo através das universidades [...]. Em segundo lugar, por que formavam organizações pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, formavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos da cura do corpo e muitas vezes da alma. (KRAMER, H. e SPRENGER, J.-, 2015, p.14)

O ciclo histórico de repressão ao feminino se fecha através de vários modelos postos e defendidos pela sociedade hoje, como a defesa da família tradicional, a figura da dona de casa submissa ao marido e a defesa de teses religiosas que colocam a mulher em situação inferior. Essas premissas vêm se perpetrando pela sociedade através dos costumes e da tradição, construindo e mantendo as amarras psicológicas que fazem com que vítimas não se enxerguem como vítimas. No que se refere ao Direito, é necessário o abandono de teses legitimadoras, ao exemplo de Flavio Tartuce e Carlos Roberto Gonçalves, que ao trabalhar o mesmo tema, o artigo 1566 do Código Civil, divergem do argumento de Caio Mario quando interpretam a obrigação conjugal a partir de uma teoria do afeto:

[...]a vida em comum, no domicílio conjugal, antigo dever de coabitação, constitui expressamente outro dever decorrente do casamento (art. 1.566, II), o que inclui o débito conjugal (dever de manter relações sexuais), de acordo com a doutrina tradicional (RODRIGUES, Silvio. Comentários..., 2003, p. 126).

Atualmente, o conceito de coabitação tem sido analisado tendo em vista a realidade social, de modo a admitir-se a coabitação fracionada. Nessa realidade, é possível que cônjuges mantenham-se distantes, em lares distintos, por boa parte do tempo, sem que haja o rompimento do afeto, do amor existente entre eles, vínculo mais forte a manter a união. Anote-se, ainda, que é possível que os cônjuges até durmam em camas separadas, sem que isso seja motivo para a separação do casal. O que vale, em suma, é o afeto entre eles, o compartilhamento do amor fraterno com o objetivo de manutenção do casamento. (TARTUCE, F.- 2020, p.127, grifos nossos)

Este é o afeto que define a família: é o afeto conjugal os demais objetivos, embora também importantes, são secundários, não essenciais, como a procriação, a educação dos filhos e a satisfação sexual [...] (GONÇALVES, C.R. -2019, p 349)


2. O TRATAMENTO JURIDICO E ESTATAL CONTEMPORANÊO DOS CASOS DE ESTUPRO MARITAL

No código penal, os crimes de estupro encontram-se no Título VI, Capitulo I, que trata dos crimes contra a Liberdade Sexual. O Tipo Penal que se refere a figura do Estupro Marital surge da combinação entre o artigo 123 com o inciso II do artigo 226:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele pratique outro ato libidinoso.

Pena -Reclusão, de 6 a 10 anos.

Art. 226. A pena é aumentada:

II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela (Grifos nossos)

Embora qualquer pessoa possa ser o sujeito ativo ou passivo dos crimes de estupro, é muito mais comum que as vítimas sejam mulheres, principalmente quando se trata do crime cometido nas relações conjugais. Muitas mulheres têm sido estupradas dentro de seus lares, mas não sabem disso, muitas vezes identificam que sofrem algum maltrato, mas não identificam este maltrato como um estupro.

Os referidos artigos deixam claro que o estupro acontece pela ação ativa do cônjuge, o que por sua vez nos leva a pensar a motivação por traz do cometimento de um crime no qual o criminoso e a vítima deveriam ter uma relação conjugal de afeto e respeito.

Bem, nossa sociedade entende majoritariamente que mulheres devem ser criadas com a ideia de dever de satisfação relacionado aos maridos. Parte dessa criação influencia fortemente o sentimento de posse da parte masculina da relação, muitos homens entendem que a satisfação sexual é uma obrigação da mulher, e deve acontecer do jeito, na hora e da forma que eles querem.

É justamente neste momento que muitas mulheres são violentadas emocional e sexualmente. O sexo faz parte do casamento, mas a violência para se conseguir o sexo não. Portanto, obrigar alguém a praticar algo que de alguma forma não é da sua vontade, talvez não naquele momento ou não daquele jeito, é crime, e a sociedade precisa ser orientada sobre isso. As mulheres precisam ser ensinadas sobre isso.

Muitas mulheres carregam essa obrigação a vida toda, e são torturadas física e emocionalmente durante anos e anos. Se a lei indica que essa obrigação não existe, e o estupro marital é crime, por que encontramos problemas na aplicação da lei tanto no seu caráter punitivo quanto no preventivo?

Algumas dessa respostas podem estar ligadas a dificuldade de identificação do crime. Primeiro, esse crime acontece em um local muito íntimo e particular, o lar. O ambiente em que ocorre o crime pode levar a vítima a manter segredo, sofrendo calada afim de manter a estrutura da família de pé, ou mesmo por sentimento de vergonha de não estar cumprindo seu papel na relação, e como já afirmamos, culturalmente existe uma predisposição a acreditar no dever conjugal, o que leva a vítima a imaginar inclusive que possa ser um exagero judicializar o acontecimento. Desses motivos:

[...] os mais comuns são: medo de ameaças de morte; vergonha de procurar ajuda; esperança de que o companheiro mude; dependência econômica; dependência emocional, também pelo descrédito da população no poder judiciário e segurança pública, entre outras. Pelo fato do agressor ser seu companheiro, muitas mulheres não compreendem que o ato sexual forçado é considerado uma violência, uma vez que o veem como um dever conjugal, devido a uma visão conservadora instituindo estereótipos do comportamento feminino que leva a submissão da mulher, interferindo em sua autoestima causando sentimento de impotência que bloqueia sua personalidade. (GOMINHO, L.B.F.; SIQUEIRA, J.S. apud CARVALHO; FERREIRA; SANTOS, 2010, s.p.).

Em segundo lugar, temos a questão do conjunto probatório, vez que vítima e agressor mantem vinculo conjugal, a dificuldade de se provar o estupro aumenta, pois ainda que a palavra da vítima seja de grande importância no standard probatório, ainda há a necessidade de confirmação do relato da vítima através de outros métodos. Isso relacionado ao ambiente doméstico, torna difícil a obtenção de testemunhas, que muitas das vezes não estão dispostas a se meter no relacionamento alheio, ou mesmo a dificuldade no exame de corpo de delito, pois mesmo que se comprove vestígios da coabitação, ainda persiste o pensamento relacionado ao débito conjugal. E por último ainda temos toda a pressão que a vítima tende a passar durante todo o processo da denúncia, abertura do inquérito e finalmente o julgamento como ilustrado abaixo:

Além do quesito credibilidade/confiança que a mulher deve atender, para que seja comprovado efetivamente que ela foi vítima de estupro, a vítima ainda é submetida a rigorosos testes de resistência, tais como longas audiências, confrontações com o agressor, longas esperas nos corredores de delegacia e fórum, etc. Todos estes testes ou situações de resistência, são criados inconscientemente no intuito de verificar se a vítima poderá levar seu caso adiante, e caso positivo, isto talvez signifique que ela fala a verdade, porque resistiu. (GOMINHO, L.B.F.; SIQUEIRA, J.S. apud BARROS e BIROL, 2007, p. 8).

A Organização Mundial da Saúde, estima que mais de um terço das mulheres vivenciam pelo menos um episódio de violência no decorrer da sua vida. Sabemos que os casos são subnotificados e são muito maiores, quando pensamos que muitas mulheres também são violentadas sexualmente, mas não sabem disso. Não identificam a violência, portanto não fazem a comunicação.

Em nossa constituição, chamada de cidadã, a dignidade humana é um dos princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito, Bruno Cunha Weyner, nos ensina que o princípio da dignidade humana não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem pública, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional. (Weyne, B. C. 2012, p. 91). A condição da mulher em situação de vulnerabilidade nos relacionamentos precisa ser tratada com maior seriedade tanto no que se refere a produção de leis, quanto nas políticas públicas do Estado, sob a pena de ofensa a um dos maiores princípios que deveria rege-lo.

Ainda hoje temos poucas informações de qualidade quanto ao estupro, os dados policiais são desencontrados, na área da saúde, as informações são inexistentes. A falta de conhecimento sobre o assunto agrava essa situação, que faz com que mulheres continuem a conviver com homens que entendem estar apenas exigindo uma situação que é sua por direito ser satisfeito por sua esposa. É necessário um trabalho maior de conscientização com a sociedade.

Vivemos em um tempo com maior possibilidade de disseminação de informações, as mulheres tem o direito de escolherem com quem se casarão e com quem manterão um relacionamento. Não estamos mais na era em que a mulher era vista como um objeto, que tinha sua voz emudecida pelos pais e que apenas aceitava um casamento tratado por um dote, interesses políticos ou acordos entre as partes. Nesta época a mulher era apenas uma moeda de troca. Vivia seus primeiros anos servindo ao pai e depois, por um acordo, servia a um marido que não tinha escolhido.

Com o passar dos anos, as mulheres entenderam seu valor. O mundo também mudou, começou a entender que todos são dignos, começou a se falar em dignidade humana. A dignidade humana é um valor atribuído a pessoa pela simples condição de ser humano, é inerente a sua existência, não é valor que possa ser conquistado, ele simplesmente existe, e ele é quem justifica os demais direitos fundamentais. É um valor transcendental e verdadeiro sobreprincípio. (ESTEFAM, A. -2016, p. 68).

Após muita luta, as mulheres puderam ser reconhecidas como iguais aos homens em direitos e obrigações. Após conquistar o direito de voto, a mulher foi recuperando seu espaço na sociedade. É verdade que a luta continua, ainda temos diariamente mulheres morrendo, sendo assediadas, humilhadas. Por isso a necessidade de conscientizar a sociedade, principalmente as meninas e mulheres sobre seus valores e direitos, ensinar ainda sobre o estupro não só fora de casa, por desconhecidos, mas dentro de seus lares. É necessário fazer com que reconheçam esse crime e se isso infelizmente acontecer, incentivar que gritem, que procurem ajuda.

Embora possamos encontrar resquícios do direito canônico na doutrina civilista, a doutrina penal é, em nosso entendimento, unânime quando se fala em relação sexual não consensual mesmo dentro do matrimonio sendo caracterizado como estupro, esses são os dizeres de Cezar Roberto Bitencourt:

O bem jurídico protegido, a partir da reação determinada pela lei n 12.015/2009 é a liberdade sexual da mulher e do homem, ou seja, a faculdade que ambos têm de escolher livremente seus parceiros sexuais, podendo recusar inclusive o próprio cônjuge, se assim o desejarem. Na realidade, também nos crimes sexuais, especialmente naqueles praticados sem o consenso da vítima, o bem jurídico protegido continua sendo a liberdade individual, na sua expressão mais elementar: a intimidade e a privacidade, que são aspectos a liberdade individual esta última assume dimensão superior quando se trata da liberdade sexual, atingindo sua plenitude quando se cuida da inviolabilidade carnal, que deve ser respeitada inclusive pelo próprio cônjuge, que, o nosso juízo, também pode ser sujeito ativo do crime de estupro. (GOMINHO, L.B.F.; SIQUEIRA, J.S. apud BITENCOURT, 2012, p. 2.327).

O casamento proporciona aos cônjuges o direito de manter relacionamento sexual, mas o homem não pode seguir pensando que esse direito quer dizer que será na hora que ele bem entender. Ele precisa lembrar que se casou com alguém que também tem sentimentos, vontades e que as vezes serão diferentes das dele. Rogério Greco também deixa claro esse pensamento:

[...] o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela (GOMINHO, L.B.F.; SIQUEIRA, J.S. apud GRECO, 2010, p. 466)

Bárbara Martins Lopes, compartilha do mesmo pensamento:

Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro, não fica a mulher, com o casamento, sujeita a caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. (GOMINHO, L.B.F.; SIQUEIRA, J.S. apud LOPES, 2005, s.p)

Como temos dito, parte considerável da jurisprudência e muitos doutrinadores de Direito das Famílias, muito por influência do direito canônico, consideram que a falta de justificativa para satisfação dessa obrigação pode levar a separação conjugal, porem em nenhum caso o cônjuge tem o direito de obrigar a esposa a ter relação sexual com ele. Caso siga desta forma, estará cometendo crime de estupro.

Caio Mário da Silva Pereira, se posiciona da seguinte forma:

[...] a recusa injustificada à satisfação do debitum conjugale, como descumprimento do dever de coabitação, pode fundamentar a separação sob o qualificativo de violação dos deveres do casamento ou ruptura da vida em comum posto que não encontre na lei cominação específica, (GOMINHO, L.B.F.; SIQUEIRA, J.S. apud PEREIRA, 2014, p. 159)

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Sobre os autores
Renan Mariano da Silva

Estudante de Direito Pela Universidade Cruzeiro do Sul Estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Execução Criminal

Bruna Fleuri Costa

Graduanda em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul

Bruna Grazielli de Freitas Cintra

Graduanda em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul

Jaqueline Silva Viana

Graduanda em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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