A revisão judicial das decisões do Tribunal de Contas da União

29/07/2021 às 09:03
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Objetiva-se com o presente artigo analisar a necessidade de revisão pelo Poder Judiciário de decisões do Tribunais de Contas, em especial quando aplicadas penalidades e multas a servidores ou ordenadores de despesas.

INTRODUÇÃO

              O tema proposto tem como objetivo avaliar a possibilidade de revisão judicial das decisões proferidas pelo Tribunal de Contas, sob o enfoque do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, sem qualquer limitação nesta análise judicial, uma vez que os Tribunais de Contas não possuem poder jurisdicional e, por isso, suas decisões não fazem coisa julgada. Daí a possibilidade de outro órgão, que possui jurisdição, analisar e revisar tais decisões.

              Tal tema possui divergência doutrinária e jurisprudencial, na medida em que há duas correntes preponderantes no Brasil: uma, encabeçada por Jose dos Santos Carvalho Filho, defende que o Poder Judiciário possui legitimidade para revisar as decisões das Cortes de Contas apenas no que tange a existência de ilegalidades, sem analisar o mérito administrativo; a outra, defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello, entende que o Poder Judiciário poderá rever qualquer decisão do Tribunal de Contas, inclusive o mérito administrativo.

              Nessa toada, observa-se que, para analisar o debate entre as duas correntes doutrinárias, será estudada a teleologia do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e a sua restrição, bem como a aplicação do instituto da coisa julgada na esfera administrativa.

              O trabalho propõe essa avaliação da revisão judicial das decisões proferidas pelo Tribunal de Contas, tendo em vista que o administrador tem o direito constitucional de ter o mérito da decisão da Corte de Contas analisado pelo Judiciário, nos termos do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição 1988.

              De sorte, verifica-se a necessidade de reavaliar os posicionamentos da jurisprudência e da doutrina sobre a temática, tendo como base o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e direitos garantidos na Constituição de 1988.

              Ao lado desses problemas, emergem algumas questões jurídicas acessórias, mas igualmente relevantes, em especial, a identificação dos valores erigidos pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal ao analisar a possibilidade de revisão judicial da aplicação pelo Tribunal de Contas de penalidades e multas a servidores públicos ou ordenadores de despesas ou eventuais responsáveis.

1. DO CONTROLE JUDICIAL

              Como é cediço, o ordenamento jurídico brasileiro adota o modelo inglês da jurisdição una, segundo o qual todas as causas são decididas pelo Poder Judiciário, inclusive as questões de interesse da Administração Pública. Tal sistema também é conhecido como sistema do monopólio da jurisdição – una lex uma jurisdictio – em que somente os órgãos do Poder Judiciário exercem a função jurisdicional e proferem decisões que se acobertam pelo manto da coisa julgada.

              O fundamento de validade da adoção de tal sistema encontra-se esculpido na Constituição, em seu art. 5º, inciso XXXV, ao prever que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”. Tal inciso consagra o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional no ordenamento jurídico brasileiro.

              Em oposição a este sistema de jurisdição, há o sistema do contencioso administrativo, também chamado de sistema da dualidade de jurisdição ou sistema francês, em que, além do Poder Judiciário, há uma justiça administrativa, que julga os litígios em que uma das partes é necessariamente o Poder Público. Em tal jurisdição, tanto o Poder Judiciário quanto a Justiça Administrativa possuem jurisdição.

              Segundo José dos Santos Carvalho Filho, há vantagens na adoção do sistema do contencioso administrativo:

A vantagem desse sistema consiste na apreciação de conflitos de natureza essencialmente administrativa por uma Justiça composta de órgãos julgadores especializados, razão por que têm contribuído de forma significativa para o desenvolvimento do Direito Administrativo. Os que o criticam se baseiam no fato de que fica mitigada em favor dos litigantes privados a garantia de imparcialidade, já que na Justiça Administrativa o Estado, em tese, é parte e juiz do conflito[1].

              Não obstante o Brasil adotar o sistema de jurisdição una, vale observar que parte da doutrina e jurisprudência entende que há limitações no controle dos atos da Administração Pública, exercido pelo Poder Judiciário, sob o argumento que tal controle é exercido somente na legalidade do ato administrativo, na medida em que é vedado ao Judiciário apreciar o chamado mérito administrativo[2] [3].

              Inclusive, esse entendimento era perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o mandado de segurança nº 7280/ Rio de Janeiro, cuja relatoria era do Min. Henrique D´Avilla, em 20/06/1960.

              Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que a limitação do Poder Judiciário não se cinge apenas ao aspecto da legalidade, mas também sob o manto da moralidade, com base no art. 5º, inciso LXXIII e art. 37 da Constituição. Sobre a questão do mérito administrativo, a renomada doutrinadora afirma que não há invasão no mérito administrativo quando o Judiciário aprecia os motivos do ato, uma vez que a ausência ou falsidade do motivo caracteriza ilegalidade[4].

              Já Celso Antônio Bandeira de Mello deixa claro o seu entendimento no sentido de que o Judiciário pode e deve analisar amplamente as circunstâncias de fato que produziram o suposto ato discricionário, na medida em que há apenas a investigação da legalidade do seu comportamento, com a averiguação se houve correta subsunção do fato à hipótese ensejadora do poder discricionário, pois o ato só poderia persistir se estiver de acordo com a finalidade da lei. Nas palavras do autor:

Com efeito: a lei tanto pode ser ofendida à força aberta como à capucha. No primeiro caso o administrador expõe-se afoitamente à repulsa: no segundo, por ser mais sutil não é menos censurável Vale dizer: a ilegitimidade pode resultar de manifesta oposição aos cânones legais ou de violação menos transparente, porém tão viciada quanto a outra. Isto sucede exatamente quando a Administração, em nome do exercício da atividade discricionária, vai além do que a lei lhe permitia e, portanto, igualmente a ofende.

Essa forma de ilegalidade não é menos grave que a anterior. Pelo contrário. Revela maior grau de periculosidade para o sistema normativo e para a garantia da legalidade, justamente porque, não sendo tão perceptível, pode, às vezes, escapar das peias da lei, propiciando à Administração subtrair-se indevidamente ao crivo do Poder Judiciário, se este se mostrar menos atento às peculiaridades do Direito Administrativo ou cauteloso em demasia na investigação dos atos administrativos.

É, pois, precisamente em casos que comportam discrição administrativa que o socorro do Judiciário ganha foros de remédio mais valioso, mais ambicionado e mais necessário para os jurisdicionados, já que a pronúncia representa a garantia última para contenção do administrador dentro dos limites de liberdade efetivamente conferidos pelo sistema normativo.[5]

              Com efeito, observa-se que há um movimento na doutrina encabeçada por Celso Antônio Bandeira de Mello, com o objetivo de desmistificar a limitação do controle judicial do ato administrativo.

              Nesse sentido, com o objetivo de subsidiar o entendimento acima é importante observar que o ato administrativo não gera coisa julgada[6], isto porque, conforme já afirmado, a Administração Pública não é revestida de jurisdição, uma vez que o exercício da função jurisdicional somente compete aos órgãos do Judiciário, considerando o nosso sistema uno de jurisdição.

              Assim, a nomenclatura que a doutrina tem usado como referência para afirmar que a decisão dentro do âmbito administrativo é irretratável não se trata de coisa julgada, mas sim de uma mera preclusão administrativa. De sorte, o administrado sempre poderá recorrer ao Poder Judiciário e, assim, obter a definitividade e imutabilidade da decisão judicial[7].

              Acerca do tema, a Primeira Turma do TRF da 5ª Região afirma:

As decisões dos Tribunais de Contas podem ser objeto de controle judicial não apenas quanto à formalidade de que se revestem, mas inclusive quanto a sua legalidade, considerando-se que tais decisões não fazem coisa julgada, que é qualidade exclusiva das decisões judiciais como decorrência da unicidade de jurisdição de nosso sistema constitucional. Não há como eximir as decisões dos Tribunais de Contas da sindicabilidade judicial, quando a Constituição Federal impõe a inafastabilidade do controle judicial de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, como princípio.[8]

              Inclusive, o antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal tem se amoldado à ampliação do controle judicial dos atos administrativos, conforme se verifica da limitar concedida pelo STF, na análise do Mandado de Segurança nº 28745, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, que anulou o mérito do julgado do Tribunal de Contas da União. No caso em apreço, o TCU entendeu que a PETROBRAS não poderia utilizar o procedimento licitatório simplificado, de forma a exigir a realização de licitação, nos moldes da Lei 8.666/93. Todavia, o STF suspendeu a decisão do TCU e assegurou a realização dos Procedimentos Licitatórios Simplificados pela PETROBRAS[9].

              Ora, verifica-se que, se as decisões tomadas no âmbito administrativo não produzem coisa julgada, nada mais correto do que o Poder Judiciário analisar tal ato sem a limitação do suposto “mérito administrativo”, uma vez que o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional é princípio constitucional que garante a análise da demanda pelo Poder Judiciário. Além disso, o princípio da eficiência, também previsto na Constituição Federal, em seu art. 37, também denota a necessidade de o Poder Judiciário avaliar se, dentre as escolhas do Administrador, este optou pela alternativa mais eficiente para a Administração Pública. Isto porque, as escolhas feitas pelo Poder Público devem possuir uma forma de controle. Deixar de exercer o controle judicial de tais atos é permanecer no alvedrio e na incompetência de algumas medidas, que não possuem sanção, seja legal ou judicial.

              Não obstante o já exposto, vale esclarecer que a corrente defensora da limitação do controle judicial das decisões do Tribunal de Contas sustenta que legislador constitucional confere tutela jurisdicional a outros órgãos que não os do Poder Judiciário, como no art. 49, IX e 52, I e II da Carta Magna.

              Segundo tal corrente, o art. 71, II, da Constituição, ao determinar que compete ao Tribunal de Contas da União julgar as contas dos administradores gera dupla interpretação, de forma a dar a entender que tal competência está atrelado à função jurisdicional.

              Acerca do tema, José dos Santos Carvalho Filho leciona que o sentido do termo julgar não é mesmo exercício pelos juízos, mas “o sentido do termo é o de apreciar, examinar, analisar as contas, porque a função exercida pelo Tribunal de Contas na hipótese é de caráter eminentemente administrativo. ”[10]

              Marçal Justen Filho afirma que o Tribunal de Contas, no desempenho da sua função, possui regime jurídico equivalente ao da Magistratura, numa atuação “quase jurisdicional”. Todavia, o citado autor deixa claro que o referido Tribunal não possui competência jurisdicional, ainda que o art. 71,II, da Constituição utilize o verbo julgar.[11]

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              Sobre o tema, a professora Maria Sylvia Zanella di Pietro afirma que “(...) a função de julgar as contas não se trata de função jurisdicional, porque o Tribunal apenas examina as contas, tecnicamente, e não aprecia a responsabilidade do agente público, que é de competência exclusiva do Poder Judiciário”.[12]

              Ora, observa-se que terminologia processual utilizada na Constituição, em sua acepção corriqueira, foi um motivador da corrente defensora de que os Tribunais de Contas, assim como os Tribunais de Justiça, proferem julgamentos e exercem jurisdição, quando na realidade, tais Tribunais de Contas exercem, apenas, a atividade administrativa de fiscalização, de apreciação de contas, de concessão de aposentadorias, reformas e pensões.

              Acerca do tema, é importante salientar que Superior Tribunal de Justiça afirma em diversos julgados que a natureza do Tribunal de Contas é de órgão de controle auxiliar do Poder Legislativo, e sua atividade é meramente fiscalizatória, não exercendo atividade jurisdicional, com decisões técnico-administrativas, que não fazem coisa julgada e nem vinculam a atuação do Poder Judiciário, sendo passível de revisão por este, sob o fundamento do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional[13].

              Com base no exposto, de fato não se vislumbra a possibilidade de o legislador constituinte ter criado uma figura de jurisdição especial para julgar os administradores e demais responsáveis pelos bens, dinheiros e recursos públicos.

              Se fosse o caso, a Constituição, em seu art. 71, II, teria estabelecido competência privativa ao Tribunal de Contas no que se refere ao julgamento dos referidos responsáveis, tal qual ocorre no caso do julgamento de certos membros do Executivo e Legislativo, que são julgados pelo Legislativo Federal. Como exemplo, podemos citar o caso do Presidente da República, Ministros do Supremo Tribunal Federal, entre outros, que devem ser julgados exclusivamente pelo Senado Federal nos crimes de responsabilidade. Nesses casos, o Judiciário não tem competência para assumir tal julgamento, consoante prevê o art. 52, I e II da CF.

              Dessa forma, percebe-se que o Poder Judiciário poderá julgar os mesmos administradores públicos, irregularidades e ilegalidades já analisadas pelo Tribunal de Contas, tendo esta Corte exercido seu papel ou não.

2. DA REVISÃO PELO PODER JUDICIÁRIO DAS MULTAS APLICADAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO AOS RESPONSÁVEIS

              Traçado um panorama acerca do poder jurisdicional exercido pelo Poder Judiciário, bem como a sua competência para julgar os fatos analisados pelos Tribunais de Contas, torna-se imperioso avaliar, em especial, a situação em que o Tribunal de Contas comina multa aos ordenadores de despesas e servidores públicos e eventuais responsáveis, quando do exercício do seu mister[14].

              Com efeito, a força executiva dos Acórdãos provenientes do Tribunal de Contas decorre da própria Constituição Federal, a qual, além de definir a competência do referido órgão, atribui expressamente eficácia executiva às suas decisões que imputem débito ou multa. É o que se depreende da redação dada pelo art. 71, VIII, §3º, in verbis:

Seção IX

DA FISCALIZAÇÃO CONTÁBIL, FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

[...]

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

[...]

§ 3º - As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.

              O mencionado dispositivo constitucional também se encontra regulamentado pela Lei Federal nº 6.822/80, abaixo transcrita:

Lei 6.822/80

Art. 1º As decisões do Tribunal de Contas da União condenatórias de responsáveis em débito para com a Fazenda Pública tornam a dívida líquida e certa e têm força executiva, cumprindo ao Ministério Público Federal, ou, nos Estados e Municípios, a quem dele as vezes fizer, ou aos procuradores das entidades da administração indireta, promover a sua cobrança executiva, independentemente de quaisquer outras formalidades, na forma do disposto na alínea c do artigo 50 do Decreto-lei nº 199, de 25 de fevereiro de 1967.

Art. 2º Incluem-se entre os responsáveis mencionados no artigo anterior os da administração indireta, os das fundações instituídas ou mantidas pela União e os abrangidos pelos artigos 31, item X, e 43 do Decreto-lei nº 199, de 25 de fevereiro de 1967, e pelo artigo 183 do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, bem como os administradores de quaisquer recursos originários de transferências federais.

Art. 3º As multas impostas pelo Tribunal de Contas da União, nos casos previstos no artigo 53 do Decreto-lei nº 199, de 25 de fevereiro de 1967, após fixadas em decisão definitiva, serão, também, objeto de cobrança executiva, na forma estabelecida no artigo 1º.

              Ante o exposto, conclui-se que, por força normativa, o acórdão do Tribunal de Contas da União, ao imputar de débito ou cominar multa ao ordenador de despesa ou servidor público ou eventuais responsáveis, constitui título executivo extrajudicial, apresentando todos os elementos de liquidez, certeza e exigibilidade necessários para deflagrar uma execução.

              A esse respeito, o Código de Processo Civil disciplina em seu artigo 784, inciso XII, que possuem eficácia executiva todos os títulos que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva[15].

              Não obstante esta força executiva traçada pelo legislador constitucional, vale esclarecer que tais acórdãos não possuem limitação da análise do Poder Judiciário. Isto porque o legislador processual, ao dispor no Código de Processo Civil, no art. 917, inciso VI, que o executado, em sede de embargos, poderá alegar “qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento”, permite a ampla cognição pelo Poder Judiciário do mérito da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União.

              Tal tratamento legal corrobora ainda mais o entendimento de que não há limitação da revisão judicial dos atos das Cortes de Contas, de forma que as decisões proferidas por tais órgãos, ao cominar multas e imputar débitos devem ser revistas e apreciadas novamente pelo Poder Judiciário, por força do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, prevista no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição 1988.

              Nessa toada, é importante trazer à baila que o Superior Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de não existir mérito administrativo nos atos que determinem sanções aos administradores públicos, in verbis:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO

DISCIPLINAR. MÉRITO ADMINISTRATIVO. DISCRICIONARIEDADE.

INOCORRÊNCIA. PENA DE DEMISSÃO. DESPROPORCIONALIDADE. INADEQUAÇÃO.

INOCORRÊNCIA.

I - Inexiste discricionariedade (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar, razão pela qual o controle jurisdicional, nesses casos, é amplo e não se limita a aspectos formais (precedente: MS 12983/DF, 3ª Seção, de minha Relatoria, DJ de 15.2.2008).

II - Na hipótese dos autos, a aplicação da pena de demissão ao recorrente não se revela desproporcional ou inadequada, porquanto aplicada após regular procedimento administrativo, em que restaram comprovadas irregularidades de natureza grave. Recurso ordinário desprovido.[16]

              Acerca do tema, destaca-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

A jurisprudência desta Suprema Corte entende plenamente cabível o controle de constitucionalidade dos atos de imposição de penalidades, especialmente à luz da razoabilidade, da proporcionalidade e da vedação do uso de exações com efeito confiscatório (cf., e.g., a ADI 551 e a ADI 2.010). Portanto, como a relação entre a pena imposta e a motivação que a fundamenta não é imune ao controle de constitucionalidade e de legalidade, as correções eventualmente cabíveis não significam quebra da separação dos Poderes. De fato, essa calibração decorre diretamente do sistema de checks and counterchecks adotado pela Constituição de 1988, dado que a penalização não é ato discricionário da administração, aferível tão somente em termos de conveniência e de oportunidade.[17]

              Por todo exposto, conclui-se que a ratio decidendi tomada pelos Tribunais de Contas, ao ensejarem a condenação de ordenador de despesa, servidor público ou o mero responsável, são passíveis de revisão pelo Judiciário, com objetivo de se averiguar a existência de eventuais erros na aplicação de penas e multas por tais Cortes de Contas, em seus julgamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

              Conforme destacado no desenvolvimento do presente artigo, considerando que o ordenamento jurídico brasileiro adota o modelo de jurisdição una, conclui-se que o Poder Judiciário tem o poder de anular decisões oriundas das Cortes de Contas tanto por questões de mérito, quanto por vícios advindos durante o processo administrativo.

              No caso de vícios formais que brotam no transcorrer do processo administrativo, a doutrina e jurisprudência convergem no entendimento de que poderá a decisão ser anulada por determinação judicial.

              No que tange aos vícios materiais contidos nas decisões dos Tribunais de Contas, em outras palavras, as ilegalidades ou inconstitucionalidades que maculam o próprio mérito da decisão, escondidas sob o manto da “discricionariedade administrativa”, prevalecia na jurisprudência o entendimento de que o Poder Judiciário só poderia se manifestar em caso de ilegalidade manifesta, sem adentrar na conveniência e oportunidade da emissão do ato administrativo.

              Não obstante, os tribunais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal tem modificado tal entendimento, no sentido de que as decisões dos Tribunais de Contas podem ser objeto de controle judicial não apenas quanto à formalidade de que se revestem, mas inclusive quanto a legalidade do seu mérito, tendo em vista que tais decisões não fazem coisa julgada, que é qualidade exclusiva das decisões judiciais, bem como o fato de que a Constituição Federal determina a inafastabilidade do controle judicial de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, como princípio, consoante art. . 5º, inciso XXXV, da Constituição 1988.

              Dessa forma, conclui-se que o Poder Judiciário, com base no princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, pode rever decisões dos Tribunais de Contas analisando tanto aspectos formais, quanto materiais das referidas decisões.

              Assim, seguindo este raciocínio, as razões de decidir dos Tribunais de Contas, ao determinar a condenação de ordenador de despesa, servidor público ou o mero responsável, podem ser alvo de revisão pelo Judiciário, com objetivo de se averiguar a existência de eventuais erros na aplicação de penas e multas por tais Cortes de Contas, em seus julgamentos.

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[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.25ed.São Paulo: Atlas. 2012, p. 1003.

[2] Acerca do tema, vide decisão do STF no REsp nº 69.735 (6ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, publ. DJ de 15.4.1996. Em que sentido?

[3] Critérios de conveniência e oportunidade privativos do administrador público.

[4] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Atlas. 2013, p. 817.

[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 1007-1008.

[6] “Depois de ultrapassada a fase recursal, quer porque não se recorreu, quer porque o recurso não foi conhecido por intempestividade, quer porque forma esgotados todos os meios recursais, a sentença transita em julgado. Isso se dá a partir do momento em que a sentença não é mais impugnável.” NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação processual civil em vigor. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 677.

[7] O presente trabalho não adentrará na controvérsia doutrinária existente sobre o conceito de coisa julgada.

[8] TRF5 - Apelação Civel: AC 380126 PE 2005.83.02.000431-8. Relator(a): Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho (Substituto). Órgão Julgador: Primeira Turma. Julgamento: 11/07/2007.

[9] Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=151918. Acesso: 05/01/2016.

[10] CARVALHO FILHO, José dos Santos, ob.cit., p. 995.

[11] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.1211.

[12] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.639.

[13] Nesse sentido: REsp 1.032.732/CE, 1ªT., rel. Min. Luiz Fux, j. 19.11.2009, DJe 03.12.2009; REsp 285.305/DF, 1ª. T., rel. Min. Denise Arruda, j.20.11.2007. DJ 13.12.2007.

[14]  “Art. 70. [...] Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ...” (Constituição Federal de 1988)

[15] Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:

[...]

XII - todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva. (Código de Processo Civil de 2015)

[16] STJ - RMS 21259 / SP RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2006/0026257-4.

[17] RE 595.553-AgR-segundo, voto do rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 8-5-2012, Segunda Turma, DJE de 4-9-2012.

Sobre a autora
Carla Maia Matos

Mestre em Processo Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo Especialista em direito Administrativo Advogada sócia da Teles & Matos Advocacia Analista de controle interno

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

artigo elaborado para conclusão de curso em pós graduação em direito administrativo.

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