Alterações no Código defesa do Consumidor em relação ao crédito e superendividamento.

A Lei 14.181/2021, lei do superendividado, vai permitir a recuperação mais rápida do crédito e proteger contra abusos causados ao consumidor.

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05/07/2021 às 22:53
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Esta lei é voltada para aqueles consumidores que compram produtos ou contratam crédito em instituições financeiras, mas ficam impossibilitados de honrar as parcelas, por desemprego, doença ou outra razão.

 

Estudando a norma recém-publicada que tanto esperávamos, que vem conter a gulodice do mercado capitalista e alienado, descompromissado com o consumidor, aliás, da forma como estava indo, chegaríamos fácil em 90% de endividados, mesmo com benefícios assistenciais e redução do desemprego.

O marketing das empresas que ofertam crédito, atingia subliminar e rasteiramente a todos os consumidores, exagerando na oferta, ancorada naquilo que está estabelecido no contrato e assinado pelas partes deve ser cumprido, regurgitando proposta de renegociação.

A radicalização do consumismo, possibilitada pela democratização do crédito, ampliou o acesso desses sujeitos ao mercado, sem que houvesse uma educação financeira adequada. As políticas de promoção do consumo, aliadas ao uso de mecanismos de marketing, promoveram uma sociedade que se consubstancia pelo consumo de bens e serviços, sem a devida regulamentação pelo Poder Público. A chamada pós-modernidade, nesse contexto, é adotada para representar essa nova fase comportamental dos consumidores, inseridos num contexto de promoção e exploração do crédito ao consumo[1].

Pois bem, a norma 14.181/2021 veio em boa hora, especialmente neste momento excepcional de pandemia, onde 70% das famílias se encontram com dívida[2] e a PEIC aponta que o percentual de brasileiros com dívidas chegou a 67,5% no mês de março/2021[3].

Evidente que os percentuais acima não são dos superendividados, mas, se cogita que a Lei do superendividado vai atingir mais de 60 milhões de brasileiros[4].

Inicialmente, bom trazer de forma simples e direta os significados nucleares do tema:

Dignidade da pessoa humana, é o valor-fonte de todos os direitos fundamentais. Esse valor, que deve ser considerado fundamento e fim último de toda a ordem política, busca reconhecer não apenas que a pessoa é sujeito de direitos e créditos, mas que é um ser individual e social ao mesmo tempo. No espaço privado, reino da satisfação das necessidades, a pessoa humana é indivíduo, isto é, mostra-se voltada para a realização de suas necessidades biológicas. Já no espaço público, a pessoa é um ser social[5].

No direito português, Jorge Miranda, partindo dos direitos fundamentais da liberdade e da autonomia, sistematiza as diretrizes básicas do princípio da dignidade da pessoa humana, mercê da seguinte enumeração:

  1. A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; b) A dignidade da pessoa humana refere-se à pessoa desde a concepção, e não só desde o nascimento; c) A dignidade é da pessoa enquanto homem e enquanto mulher; d) Cada pessoa vive em relação comunitária, o que implica o reconhecimento por cada pessoa da igual dignidade das demais pessoas; e) Cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da situação em si; f) O primado da pessoa é o de ser, não o de ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade; g) Só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida; h) A proteção da dignidade das pessoas está para além da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição dos direitos; i) A dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas.

O princípio jurídico da dignidade fundamenta-se na pessoa humana e na pessoa humana pressupõe, antes de mais nada, uma condição objetiva, a vida. A dignidade impõe, portanto, um primeiro dever, um dever básico, o de reconhecer a intangibilidade da vida humana.

Enfim, a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em sequência hierárquica, aos seguintes preceitos:

1- respeito à integridade física e psíquica das pessoas;

2 – consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida;

3 – respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária.

Mínimo existencial é o conjunto básico de direitos fundamentais que assegura a cada pessoa uma vida digna, como saúde, alimentação e educação.  Portanto, aquele que não tenha condições por si só ou por sua família de sustentar-se deverá receber auxílio do Estado e da sociedade.

A definição de “mínimo existencial” surgiu na Alemanha, em 1954, por meio de uma decisão do Tribunal Federal Administrativo. Tal decisão possuía um caráter pragmático, ou seja, determinava que o Estado deveria dar auxílio material ao indivíduo carente e que isso seria um direito subjetivo. Em suma, uniu a dignidade da pessoa humana, a liberdade material e o estado social[6].

No Brasil, a noção de mínimo existencial foi usada pela primeira vez na medida cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 45 MC/DF de 29 de abril de 2004, de relatoria do Ministro Celso de Mello. A medida discutia a constitucionalidade do veto presidencial na fixação das diretrizes de elaboração da lei orçamentária anual de 2004, entretanto deu-se a prejudicialidade da ação por perda do objeto[7].

É bom deixar claro que nem todos os direitos fundamentais sociais compõem o mínimo existencial, apenas o núcleo essencial desses direitos forma o mínimo existencial - saúde, alimentação e educação.

Logo, aquele que se vir prejudicado em seu direito do mínimo existencial poderá entrar com as medidas judiciais pertinentes para garantir que seu direito fundamental seja garantido, mesmo com o princípio da reserva do possível.

Superendividamento é a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação (artigo 54-A do CDC).

Princípio do crédito responsável visa, dessa maneira, estabelecer novos contornos as operações econômicas que envolvam a tomada de crédito, impondo uma regulação que seja suficiente para tutelar essas novas demandas surgidas em virtude dos fatores sociais, políticos e econômicos analisados[8].

Neste princípio a pactuação deve ser primada de boa-fé, transparência, levando em conta a questão socioeconômica que percorre e as perspectivas do amanhã. Aliás, a parte mais forte dessa relação de consumo pode primar e orientar o consumidor e não pode colocar cláusula condicional que venha prejudicar ou por em risco o consumidor.

Doutro lado, “o princípio do crédito responsável exige do devedor um comportamento prudente e em consonância com a boa-fé objetiva ao assumir dívidas para evitar futura inadimplência”[9].

 

Claudia Lima Marques[10], diz que a Lei 14.181/2021 atualiza o Código de Defesa do Consumidor, incluindo dois novos capítulos, um com parâmetros para um crédito responsável, com mais informação para os consumidores, com avaliação do crédito e com menos assédio de consumo no mercado brasileiro (intitulado "Da prevenção e do tratamento do superendividamento") e um sobre a conciliação em bloco do consumidor de boa-fé com todos os seus credores, para elaboração de um plano de pagamento das dívidas e retirada do nome do consumidor dos bancos de dados negativos, incentivando o pagamento das dívidas e superando a cultura da exclusão social de mais de 30 milhões de consumidores do mercado (intitulado "Da Conciliação no superendividamento").

A aprovação da Lei do Superendividamento proporcionará aos consumidores, além da recuperação financeira, o resgate do seu poder de compra e sua dignidade, interrompendo o ciclo de cobranças constrangedoras e obtendo maior consciência sobre uso do crédito e educação financeira"[11].

Para Dra. Cláudia Lima Marques, a lei do superendividamento muda o CDC para:  

1) Prevenir o superendividamento dos consumidores através de práticas de crédito responsável, através de novas regras sobre: "a garantia de práticas de crédito responsável (artigo 4°X, 6°, XI e 54-D do CDC), com informações obrigatórias prévias e manutenção da oferta por 48 horas (artigo 54-B), com controle da publicidade "para não ocultar os ônus e riscos da contratação de crédito e venda a crédito" e combate ao assédio de consumo no crédito, em especial ao "consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio" (artigo 54-C) e sanção para o descumprimento deste novo paradigma de crédito responsável, recomendado pela OECD (artigo 54-D e seu parágrafo único).

2) Melhorar a lealdade e boa-fé na concessão e cobrança de dívidas, através de regras que impõe: práticas de boa-fé dos fornecedores e intermediários do crédito durante a contratação e na cobrança de dívidas, por exemplo, na entrega voluntária da cópia do contrato para o consumidor e fiador, de facilitar o bloqueio e realizar a correção em caso de caso de utilização fraudulenta dos cartões de crédito (artigo 54-G). E a conexão entre o contrato principal de consumo e acessório de crédito (artigo 54-F), inclusive reforçando o direito de arrependimento de crédito à distância forte no artigo 49 do CDC e no novo artigo 54-F, §1°.

3) Assegurar a preservação do mínimo existencial tanto na repactuação de dívidas, como na concessão de crédito (artigo 6, XIII) para a pessoa natural ou física (artigo 5, VI). Apesar do veto presidencial a um limite do crédito ao crédito consignado a uma porcentagem do salário (vetado artigo 54-E), resta o direito ao mínimo existencial em todos os créditos, que será determinado por regulamentação. A própria definição de superendividamento frisa como elemento principal e não a insolvência, mas sim o comprometimento ao mínimo existencial, noção constitucional sobre um mínimo de sobrevivência e dignidade do consumidor pessoa natural, que aqui se incorpora ao CDC: "Art. 54-A § 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação".

4) Assegurar um novo direito do consumidor de boa-fé ao tratamento do superendividamento através da revisão e da repactuação da dívida na forma de uma conciliação em bloco e um plano de pagamento, sem perdão de dívidas. Trata-se da chamada "exceção da ruína", que é baseada no dever anexo de boa-fé de cooperar com o devedor de boa-fé em caso de ruína pessoal (Art. 6, XI e XII, 104-A), valorizando os Procons e os demais órgãos públicos do SNDC, que poderão fazer tais conciliações em bloco ou convênios com as academias (artigo 104-C).

5) Instituir mecanismos de tratamento judicial do superendividamento (artigo 5, VI) e a criação de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento (artigo 5, VII), em especial de um juiz do superendividamento para impor um plano compulsório (artigo 104-B). Assim, se não houver conciliação voluntária, há recurso ao juiz em "processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes" através de um plano de pagamento judicial compulsório, com o cuidado que se pague o principal, mas somente após o plano conciliatório.

Concluindo, apesar dos vetos às regras sobre crédito consignado, que esperamos sejam revertidas pela sabedoria do Parlamento, as mudanças aprovadas após 10 anos de estudos e lutas atualizam o Código de Defesa do Consumidor de acordo com a vitória na ADI 1591, conhecida como Adin dos Bancos (as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitárias devem ser incluídas no conceito de serviço abrangido pelas relações de consumo), e segundo as melhores práticas mundiais (Banco Mundial e OECD). Saudando-se a sanção da Lei 14.181,2021 e o apoio recebido para esta aprovação, frise-se que ela evolui o mercado de crédito, bancário e financeiro para o paradigma do crédito responsável e reforçam a boa-fé que deve guiar as relações de consumo, valorizando o microssistema do CDC e a retomada da economia brasileira com mais dignidade do consumidor[12]!

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O bom de tudo, e eu ao contrário da Dra. Cláudia Marques, creio que o veto presidencial não afetará substancialmente na alma da norma, pois, o cerne é evitar o superendividamento. Primeiro porque a norma 14.131/2021 (Dispõe sobre o acréscimo de 5% (cinco por cento) ao percentual máximo para a contratação de operações de crédito com desconto automático em folha de pagamento até 31 de dezembro de 2021), ou seja, tem vida curta. Portanto, se haver necessidade de (judicialmente ou extrajudicialmente) equalizar a dívida de forma que o devedor possa pagar, o percentual de cada parcela pode até chegar a 40% até dezembro/2021 e a partir de janeiro/2022, a parcela não pode ir além de 35%.

Outra, indo ao parágrafo 1º, artigo 54-A do CDC, esse percentual – que seja de 35% ou 40% - não pode comprometer o mínimo existencial.

O veio, também, em boa hora, visando banir aquela história da pacta sunt servanda nos contratos de relação de consumo foi a possibilidade de renegociação.

Agora, desde que as partes agindo de boa-fé, conforme a lei, o juiz poderá, a pedido de consumidor superendividado, iniciar processo de repactuação das dívidas com a presença de todos os credores. Na audiência, o consumidor poderá apresentar plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos para quitação, preservado o "mínimo existencial". Um regulamento da lei vai definir a quantia mínima da renda do devedor que não poderá ser usada para pagar as dívidas.

Se for fechado acordo com algum credor, o juiz validará o trato, que poderá ser exigido no cartório de protesto (eficácia de título executivo). Devem constar do plano itens como suspensão de ações judiciais em andamento e data a partir da qual o nome sairá do cadastro negativo.

Não podem fazer parte dessa negociação as dívidas com garantia real (como um carro), os financiamentos imobiliários, os contratos de crédito rural e dívidas feitas sem a intenção de realizar o pagamento[13].

Arrematando, sem a afirmação de esgotar o tema, pois, noviço e receber ricos argumentos de outros juristas, a lei do superendividado, sinteticamente, que "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial"[14].

Portanto, esta lei é voltada para aqueles consumidores que compram produtos ou contratam crédito em instituições financeiras, mas ficam impossibilitados de honrar as parcelas, por desemprego, doença ou outra razão.

Direto ao ponto: lei prevê as seguintes medidas:

  • Torna direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial;
  • Torna nula cláusulas contratuais de produtos ou serviços que limitem o acesso ao Poder Judiciário ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento depois da quitação de juros de mora ou de acordo com os credores;
  • Obriga bancos, financiadoras e empresas que vendem a prazo a informar ao consumidor o custo efetivo total, a taxa mensal efetiva de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito de antecipar o pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos. As ofertas de empréstimo ou de venda a prazo deverão informar ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento;
  • Proíbe propagandas de empréstimos do tipo "sem consulta ao SPC" ou sem avaliação da situação financeira do consumidor;
  • Proíbe o assédio ou a pressão sobre consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente em caso de idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade;
  • Permite que o consumidor informe à administradora do cartão crédito, com dez dias de antecedência do vencimento da fatura, sobre parcela que está em disputa com o fornecedor. O valor não poderá ser cobrado enquanto não houver uma solução para a disputa[15].

 

 

Sobre o autor
Ademarcos Almeida Porto

Formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP Título de Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior de Advocacia - OABSP. Pós graduação em Direito Constitucional Cursos de extensão em: Direito imobiliário; Direito da Família e Sucessões; e Direito do Trabalho.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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