VITIMOLOGIA.

REDESCOBRINDO A VÍTIMA DO CRIME.

27/06/2021 às 14:37
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Ensaio crítico acerca do papel contemporâneo de vítima do delito.

A vitimologia pode ser definida como o estudo do papel da vítima na dinâmica do fato delituoso, bem como dos processos de vitimização, com vistas a se definir formas de se evitar a vitimização e como desenvolver politicas públicas capazes de proteger e ressarcir as pessoas atingidas direta ou indiretamente pelo fenômeno criminal (Burke, 2019).

Da definição acima podemos notar que o resultado dos estudos criminológicos, baseados no método empírico (tendo em vista que a vitimologia é um capitulo da criminologia ou uma ciência autônoma que se originou da criminologia para alguns autores), visam obter dados para informar politicas públicas amplas capazes de evitar ou diminuir a patamares aceitáveis a vitimização, ou a prescrever normas penais que contemplem o papel da vítima no fenômeno criminal (trazendo maior justiça nas decisões criminais, e se afastando da antiga visão de que a vítima não tem qualquer papel em sua vitimização), bem como trazer institutos jurídicos que visem garantir os direitos da vítima.

É evidente assim que na criminalidade tradicional (crime de homicídio e roubo, por exemplo) a vítima tem papel importante na ocorrência ilícita, papel que merece ser estudado posto que a vítima divide com o criminoso o protagonismo do fenômeno criminal, onde o estudo da contribuição do ofendido acaba sendo importante tanto para a investigação de casos criminais, como para desenvolver politicas que visem diminuir os índices de criminalidade.

Contudo, não obstante a importância da vítima nesse fenômeno, há séculos a vitima foi removida do seu papel de protagonista no fenômeno criminal, sendo relegada a segunda plano no palco do processo criminal (Moraes e Neto, 2019, p. p. 63 e 64).

Se em um primeiro momento a vítima era a grande protagonista na resolução do fenômeno criminal (o que chamados de idade de ouro da vítima penal), onde a mesma por si só resolvia esse conflito, o que muitas vezes acabava se tornando uma vingança privada e ilimitada, sem qualquer razoabilidade, em um segundo momento o Estado chamou para si o dever de solucionar os conflitos de interesses que surgiam na sociedade (antes do Estado tivemos a Igreja como protagonista, é bom salientar), e nessa nova dinâmica a vítima acabou sendo marginalizada dentro do processo penal moderno, se limitando a ser uma fonte probatória, mas negando-se a mesma qualquer voz no sentido de se buscar o ressarcimento dos danos pela mesma suportada, bem como de se indagar a esta qual o desejo dela dentro do processo criminal (Viana, 2020, p. p. 159 a 161).

Essa visão da vítima como mera fonte probatória apenas começou a ser contestada no período pós-segunda guerra mundial quando o mundo, horrorizado, foi confrontado com o holocausto provocado pelo nazi-fascismo, que fez com que os estudiosos das ciências criminais (incluso aqui os criminólogos) voltassem a sua atenção para as vítimas e os interesses das mesmas dentro do processo penal.

Se na segunda fase da vítima no processo penal o Estado se mostrou como o único vitimizado pela conduta penal (fase da neutralização onde o Estado manteve o monopólio do jus puniendi), posto que esse comportamento era uma violação da ordem jurídica do citado ente, nessa nova fase do redescobrimento da vítima passamos a entender que dentro do fenômeno criminoso a vítima é sim a principal ofendida pela conduta desviante, e os interesses e anseios dela devem ser ouvidos e dentro do possível atendidos.

Assim um empoderamento maior da vítima dentro do processo penal é bastante salutar como forma de dirimir os conflitos de interesses, e ressarcir ou minorar os danos suportados pelo polo passivo da conduta criminosa.

Dessa forma, uma maior discricionariedade da vítima na opção de processar ou não criminalmente o ofensor é importante, bem como meios procedimentais que garantam que, uma vez ressarcidos os danos sofridos pela vítima esta pode, se desejar, por fim ao processo criminal, como, por exemplo, no caso de crimes contra o patrimônio sem violência ou grave ameaça (como no furto ou estelionato), o que garantiria uma possibilidade maior do ofensor ressarcir a vítima, pois seria mais interessante para ele compensar o prejuízo cometido do que ser encarcerado, o que também privilegiaria toda a sociedade, posto que o nosso sistema carcerário é extremamente criminógeno.

Ora não existe razão para que crimes tributários (é o caso da sonegação fiscal), que ofendem o Estado e toda a sociedade que depende do recolhimento de impostos para a garantia de programas públicos necessários (como saúde e educação) prevejam que uma vez pago o tributo devido se extingue a punibilidade do delinquente, enquanto crimes contra o patrimônio particular (Gonzaga, 2019, p. 109), sem violência ou grave ameaça à pessoa, não se estimule, a exemplo dos citados crimes tributários, meios para fazer com que o prejuízo da vítima seja ressarcido, cabendo salientar que em nossa experiência profissional como policial civil por diversas vezes mostrou-se comum a vítima de delitos de furto desejar tão somente ver seu dano patrimonial reparado pelo autor, encerrando, após essa compensação, o conflito instaurado.

Outra forma de privilegiar a vítima seria deferir à mesma outros modos de compor o conflito de forma mais célere e humana do que o processo criminal, como já ocorre nos processos de crimes de pequeno potencial ofensivo (regidos pela Lei 9.099/1995) onde o ressarcimento da vítima pode por fim ao processo criminal (Gonzaga, 2019, p. p. 182 e 183), bem como no caso da justiça restaurativa que consiste em preparar a vítima e o agressor para juntos chegarem a um consenso de como superarem o conflito existente entre os mesmos (Burke, 2019, p. p. 168 a 179).

Políticas públicas que evitem a vitimização, como campanhas informativas acerca de como não se tornar uma vítima, ou politicas dirigidas principalmente em favor de públicos vulneráveis, como as mulheres e idosos, o que foi realizado com a promulgação das leis 11.340/06 (lei Maria da Penha) e  lei 10.741/03 (Estatuto do idoso), que mais do que prever crimes e instrumentos jurídicos para defesa desses vulneráveis prevê politicas publicas que visam evitar que ocorra o processo de vitimização, e acabam contribuindo para evitar ou minorar os efeitos da vitimização desses grupos específicos de vítimas.

Mas não apenas a vitimização primaria deve ser o foco, devendo a vitimização secundária (revitimização ou sobrevitimização) e a vitimização terciária também fazer parte do foco do Poder Público para auxiliar a vítima no pós-cometimento do crime.

No que concerne à vitimização secundária seria importante preparar os profissionais do nosso sistema de justiça criminal (membros da polícia, Ministério Público e Judiciário) para proporcionarem um atendimento qualificado desse público, bem como na previsão de procedimentos investigativos ou judiciais que não exponham as vítimas ao constrangimento e a procedimentos que acabam sendo tão traumáticos quanto a própria vitimização primaria.

Já em relação a vitimização terciaria é importante que o Estado, após o fim do processo, não abandone essa vítima à sua própria sorte, mas proporcione a esta a possibilidade de se restabelecer, com políticas de assistência social, psicológica e de saúde, garantindo que a mesma possa seguir sua vida, pois o crime não deve ser o fim da história daquela pessoa.

Outro ponto que merece ser destacado é a necessidade de uma reformulação do próprio sistema prisional, posto que este é extremamente importante para a vitimologia, tendo em vista que a reincidência no nosso sistema prisional é assustadora, onde, atualmente, em torno de 42% dos presos soltos voltam a delinquir (Angelo, 2020),  e claro, se existe reincidência existe novamente o processo de vitimização.

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Nesse contexto, um tratamento mais humano da população carcerária e programas nestes estabelecimentos que promovam efetivamente a ressocialização, como qualificação profissional, educação e tratamento/ acompanhamento psicológico dos presos são ferramentas importantíssimas para evitar que pessoas no futuro venham a se tornar vitimas das condutas  dos libertos do nosso sistema prisional.

Não basta, para superarmos nossa realidade criminal, nos limitarmos a criar normas penais mais gravosas, pois prender mais não é a solução, isso já parece bem claro, o importante é uma reformulação de toda a política criminal brasileira, seja com investimento em ações policiais, como mapeamento de áreas vulneráveis ao crime, com vistas a distribuir melhor os recursos materiais e humanos repressivos estatais (polícia ostensiva e investigativa), mas também prever políticas públicas que garantam a integração de comunidades tradicionalmente marginalizadas, cuja falta de Estado e de uma perspectiva de evolução pessoal ou social acabam sendo fatores crimonegênicos importantes da conduta desviante.

Um problema complexo, como a criminalidade em nosso país, não pode ser resolvido com uma solução “mágica”, mas sim com várias frentes trabalhando em sintonia para compreender e enfrentar essa problemática, seja com politicas sociais (educação, saúde, emprego), seja na melhoria do aparelho repressivo estatal, bem como na reforma do nosso próprio sistema carcerário, mas jamais esquecendo de se promover os interesses da vítima como a principal ofendida pela conduta criminosa. 

REFERÊNCIAS:

1. ANGELO, T. Taxa de retorno ao sistema prisional entre adultos é de 42%, aponta pesquisa. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/42-adultos-retornam-sistema-prisional-aponta-pesquisa. Acesso em: 09 de jun. 2021.

2. ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS MINEIROS. Pensamento Jurídico – vitimologia. Youtube, 05 de out. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zo6aZ2HHvZY. Acesso em: 09 de jun. 2021.

3. BRASIL. Lei ordinária 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em: 10 de jun. 2021.

4. BRASIL. Lei ordinária 10.740, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.741.htm. Acesso em: 09 de jun. 2021.

5. BRASIL. Lei ordinária 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 09 de jun. 2021.

6. BURKE, Q. Vitimologia: manual da vítima penal. Salvador: Juspodivm, 2019.

7. GONZAGA, C. Manual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2018.

8. INACREDITÁVEL (minissérie). Direção: Lisa Cholodenko, Michael Dinner e Susannah Grant. Produção: CBs Televisio Studios. Estados Unidos: Netflix, 2019. 8 vídeos (385 min.). Disponível em: https://www.netflix.com/watch/80153467?trackId=13752289&tctx=0%2C1%2C0a3f9b067ab8d8add9d03a8e54f4911bc129a5b3%3A4dfaf1fc85efcb21ef6068257b55d685ac1c8f44%2C0a3f9b067ab8d8add9d03a8e54f4911bc129a5b3%3A4dfaf1fc85efcb21ef6068257b55d685ac1c8f44%2C%2C. Acesso em: 11 jun. 2021.

9. MORAES, A. R. A.; e NETO, R. F. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2019.

10. PELUSO, V. T. P. Introdução às ciências criminais. Salvador: Juspodivm, 2020.

11. PAULINO, M. et al. Profiling, vitimologia e ciência forenses. Lisboa: Pactor, 2013.

12. VIANA, E. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2020.

Sobre o autor
Jonathan Dantas Pessoa

Policial civil do Estado de Pernambuco, formado em direito pela Universidade Osman da Costa Lins - UNIFACOL/ Vitória de Santo Antão. Pós - graduado em direito civil e processo civil pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes - ESA/OAB/PE - Recife/PE. Mestre em Psicologia Criminal com Especialização em Psicologia Forense pela Universidad Europea del Atlántico - Santander/ES. Pós graduado em Criminologia pela Faculdade Unyleya. Pós graduado em Psicologia Criminal Forense pelo Instituto Facuminas. Membro do Centre for Criminology Research - University of South Walles. Membro do Laboratório de estudos de Cognição e Justiça - Cogjus.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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