Análise de dados estatísticos de homicídios e o impacto do Estatuto do Desarmamento

(NOTA TÉCNICA)

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28/06/2020 às 01:04
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Nota técnica redigida através da análise e revisão dos dados estatísticos sobre homicídios no país, coletados por organismos nacionais e internacionais, e sua correlação com a promulgação de leis que tentaram reduzir a disponibilidade de armas de fogo.

EMENTA

Desarmamento civil – Controle do acesso às armas – Estudos da ONU – Percentual de uso de armas de fogo em homicídios – Evolução da utilização de arma de fogo em homicídios no Brasil – Relação entre desarmamento e número de homicídios por arma de fogo – Efetividade em termos de redução da criminalidade – Aumento do uso de armas em crimes contra a vida – Relação entre porte velado civil e crimes violentos – Análise de dados estatísticos e discussão – Referências.

1. Revisão bibliográfica prévia.

 

Em primeiro lugar, é necessário realizar-se uma breve revisão de alguns estudos sobre o tema. A Organização das Nações Unidas já produziu diversos estudos através da análise de estatísticas produzidas pelos países sobre a posse e o porte de armas, e os homicídios ocorridos nos últimos anos.

 

No Estudo Global sobre Homicídios, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, em 2011[1], tal órgão da ONU chegou a conclusões interessantes sobre a incidência de homicídios no mundo, e especificamente no Brasil, e sua relação com a disponibilidade de armas de fogo[2]. O estudo concluiu que:

 

De uma perspectiva teorética, não existe nenhuma teoria que seja dominante que explique a relação entre a posse legal de armas de fogo e homicídios ou, de fato, a relação entre posse de armas e criminalidade em geral, porque armas podem conferir simultaneamente poder a um potencial agressor e a uma potencial vítima que procura resistir à agressão.”[3]

 

Dessa forma, contrariamente ao propalado como verdade absoluta por alguns meios de comunicação, a ONU reconhece explicitamente que não existe nenhuma teoria aceita pela comunidade científica internacional que informe ou explique uma relação entre aumento dos índices de posse e porte de armas pela população civil e aumento dos índices de criminalidade, especialmente porque, reconhece o estudo, a posse de uma arma de fogo confere poder à vítima de uma agressão injusta que procura se defender, o que evidentemente possui um efeito dissuasório da empreitada criminosa. O referido estudo da ONU continua da seguinte forma:

 

A provisão de dados quantitativos que apoiem essas hipóteses é uma das mais difíceis áreas da pesquisa sobre homicídios, com vários problemas metodológicos, incluindo: identificação confiável de dados quantitativos sobre a propriedade de armas, sua disponibilidade e uso; necessidade de diferenciar entre proprietários de armas (famílias, indivíduos, integrantes do crime organizado ou gangues, etc.) e os diferentes tipos de armas (armas curtas, espingardas, fuzis, etc.); o cálculo para as correlações que aparecem entre a disponibilidade de armas de fogo e as taxas de homicídios podem ser causados por outros fatores (como o aumento do número de homicídios em virtude da presença do crime organizado); a dificuldade em estabelecer relações causais entre mudanças na disponibilidade de armas de fogo e as correspondentes mudanças nos níveis de homicídios (o que vem primeiro?); a dificuldade de considerar sistemas jurídicos diversos sobre armas de fogo e a capacidade de o Estado fazer cumprir as leis quando da realização de estudos comparativos.”[4]

 

Nesse sentido, a própria ONU considera que resultados confiáveis provenientes de pesquisas atuais sobre a suposta relação de causalidade entre a disponibilidade de armas e um pretenso suposto impacto nas variações dos índices de homicídios são extremamente difíceis de serem encontrados, devido aos vários problemas metodológicos apontados e, por isso, pode-se concluir que se nem a ONU conseguiu identificar uma relação de causalidade de forma efetiva nos dados informados, não seriam os institutos de pesquisa do país que conseguiriam chegar a alguma conclusão confiável sobre uma possível relação de causalidade entre os dados informados.

 

Além disso, fica evidenciada a fragilidade de pesquisas que tentam relacionar a disponibilidade de armas de fogo e o aumento dos índices de homicídios porque, como demonstrado, o aumento desses índices pode estar relacionado a outros fatores, como a presença de estruturas do crime organizado. E mais ainda, tentar relacionar a posse e o porte legais de armas de fogo com esses índices afigura-se ainda mais temerário e incorreto. É precisamente isso o que informa o estudo da ONU em questão, ao analisar a evolução dos dados referentes à disponibilidade de armas na sociedade e os índices de homicídios, da seguinte forma:

 

Esses dados não provam a relação de causalidade entre a disponibilidade de armas e o uso criminoso delas (em teoria, níveis mais altos de posse de armas poderiam ser também a consequência de índices de criminalidade mais altos ainda, ou seja, seria uma estratégia defensiva dos cidadãos para se defender de potenciais agressores)”.[5]

 

A ONU reconhece ainda, após analisar os dados relativos à posse legítima de armas de fogo e suas repercussões nos índices de criminalidade, que não existe relação entre a posse legal de armas de fogo e o crescimento dos índices de crimes violentos, especialmente porque os dados analisados indicam que a maioria das armas de fogo na posse de civis não são usadas para a realização de crimes, além de serem possuídas por razões legítimas, da seguinte maneira:

 

Além disso, de uma perspectiva global, a diferença significativa da magnitude entre estimativas globais de níveis de propriedade de armas de fogo por civis (centenas de milhões, de acordo com a pesquisa sobre armas curtas de 2007), e os níveis anuais de homicídios (centenas de milhares) indicam que a maioria das armas de fogo na posse de cidadãos não é usada para fins ilícitos e estão em sua posse por razões legítimas.”[6]

 

A pesquisa comenta, ainda, o caso da África do Sul, que do ano 1994 ao ano 2007, conseguiu reduzir em mais de um terço os níveis de homicídios que encontrados no país (de mais de 60 homicídios a cada 100 mil habitantes em 1994, para menos de 40 homicídios por 100 mil habitantes em 2007), índice este cuja redução, afirma a ONU “não parece ter sido causada por nenhuma redução específica de crimes praticados com armas de fogo em si, porém, em virtude de mudanças sociais que resultaram em uma baixa geral dos níveis de homicídios, tanto nos causados por armas de fogo quantos nos causados por outros meios[7].

 

Em relação à América Latina, o referido estudo da ONU faz uma observação interessante, ao correlacionar os altos índices de homicídios nessa parte do continente não com um suposto alto índice de armas de fogo na posse de civis, mas à forte atividade do crime organizado, o que faz da seguinte maneira:

 

A correspondência entre uma alta proporção de homicídios com armas de fogo nas Américas e uma alta proporção de homicídios relacionados a gangues/crime organizado sugere que, naqueles países onde há maior taxa de homicídios, a porcentagem de homicídios com armas de fogo também é maior e frequentemente está associada às altas taxas de homicídios cometidos pelo crime organizado ou gangues, de acordo com as estatísticas policiais.”[8]

 

Da mesma forma, no Estudo sobre Armas de Fogo, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, em 2015[9], esse órgão da ONU chegou a algumas conclusões parecidas com as informações constantes do estudo até agora citado. Em primeiro lugar, tal pesquisa concluiu que o tráfico de armas está associado à prática de outros crimes, especialmente os delitos relacionados às atividades típicas da criminalidade organizada, da seguinte forma:

 

As respostas dos países sobre os crimes associados às armas de fogo apreendidas sugerem que as armas de fogo ilícitas são traficadas em grande parte para finalidades específicas. As armas de fogo em geral foram apreendidas de pessoas envolvidas em outras formas de atividade criminosa, principalmente o tráfico de drogas e outros produtos, bem como envolvida com a criminalidade organizada e violenta.[10]

 

Isso exclui, evidentemente, a suposição de que sejam as armas disponíveis no mercado interno, para aquisição lícita por cidadãos, as que estejam relacionadas à atividade de organizações criminosas, o que, por sua vez, acrescido do fato de serem esses tipos de criminalidade os maiores responsáveis pelas altas taxas de homicídios nos países americanos, conforme estudo da ONU já citado, invalida qualquer relação de causalidade possível entre os níveis de disponibilidade de armas para a posse legítima por parte de cidadãos com os níveis de homicídios encontrados nesses países.

 

Tal conclusão, referente à inexistência de causalidade entre o número de armas disponíveis ao acesso da população civil e os números de homicídios realizados com arma de fogo, também sustentada pelo estudo anterior, foi confirmada quando da análise das estatísticas de apreensão de armas de fogo nos países estudados, o que levou a concluir que a aquisição ilícita de armas de fogo está vinculada a uma finalidade específica, referente à atividade do crime organizado – o maior responsável pelos homicídios nos países latino-americanos – e não à população civil em geral, conforme se depreende:

 

A associação de armas de fogo apreendidas com outras formas de atividade do crime organizado (outras que não sejam simplesmente os crimes de posse e porte de arma) também apoia a conclusão de que, nos países que responderam a este estudo, a aquisição ilícita de armas de fogo está em grande parte ligada a grupos criminosos, ao invés de ser generalizada na população em geral.”[11]

 

Dessa forma, fica esclarecido que, de acordo com os estudos realizados pela ONU, a real origem do alto número de homicídios nos países da América Latina não é a posse ou o porte legítimos de armas de fogo por parte dos civis não envolvidos em atividades típicas de criminalidade organizada ou gangues. Isso permite concluir, por sua vez, que a priori é, no mínimo, altamente questionável a probabilidade de que a redução do número de armas disponíveis ao cidadão não envolvido com a criminalidade organizada, ou o desarmamento da população, tenha algum impacto real na redução do número de homicídios realizados com armas de fogo nesses países.

 

Além disso, há que reconhecer-se que, informa a ONU[12], ainda quando há a correlação informada, referente a altos índices de armas legais em poder da população civil – fato que não ocorre no Brasil – e altos índices de homicídios, é possível que o armamento da população seja uma estratégia lícita de defesa, o que impede que se configure uma possível relação de causalidade entre homicídios e armas legais sem que se isole essa variável referente ao comportamento defensivo (isolamento este impossível de realizar-se, no país, porque inexistem dados sobre o uso defensivo de armas de fogo). No entanto, o desarmamento da população civil tem sim o efeito de impedir o uso dessa estratégia de defesa reconhecida pelo referido órgão internacional.

 

2. Apresentação dos dados utilizados.

Gráficos: percentual dos homicídios praticados com arma de fogo, do total de homicídios ocorridos no país, entre 1995 e 2012 (as linhas verticais representam a introdução de legislação de controle de armas).

 

 

 

Tabela: relação entre o número total de homicídios e o número de homicídios realizados com o uso de arma de fogo (cálculo do percentual de aumento relativo)[13].

 

 

3. Análise dos dados.

 

Em 1995, dos 41.595 homicídios ocorridos no Brasil, 22.306 (53,6%) foram realizados através do emprego de arma de fogo, e 19.289 (46,4%) através de outros meios. Em 2003, dos 60.121 homicídios ocorridos no Brasil, 36.115 (60,1%) foram realizados através do emprego de arma de fogo, e 24.006 (39,9%) através de outro meio. Contudo, em 2012, a situação passou a ser bem diferente. Nesse ano, dos 50.108 ocorridos, 40.077 (80%) dos homicídios perpetrados no país foram realizados por arma de fogo, enquanto 10.031 (33%) dos homicídios aqui ocorridos foram levados a cabo através de outros meios. 

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Dessa forma, note-se que em 1995, 53,6% dos homicídios praticados no Brasil foram realizados com o emprego de arma de fogo, já em 2012, 80% dos homicídios ocorridos no país foram perpetrados com o uso de arma de fogo. Pode-se constatar, assim, que durante o período analisado (entre os anos 1995 e 2012), houve um aumento do percentual de uso de arma de fogo nos homicídios praticados no país, ou seja, a porcentagem de homicídios praticados com arma de fogo, em relação ao número total de homicídios, apresentou um aumento de quase 80% no período analisado, considerando-se tal período como um todo.

 

No ano de 1997, 51,4% dos homicídios praticados no país foram realizados com arma de fogo. Já em 2001, quatro anos após a provação da Lei n. 9.437/97, subiu para 60,1% o índice de utilização de armas de fogo em homicídios no Brasil. Algo similar ocorreu quando da aprovação do Estatuto do Desarmamento, mas de forma muito mais radical. Em 2003, também 60,1% dos homicídios praticados no país foram perpetrado através de arma de fogo (índice que se manteve praticamente estável desde o ano 2000). Contudo, novamente, em 2007, quatro anos após a aprovação do Estatuto do Desarmamento, subiu para 76,5% o índice de utilização de armas de fogo em homicídios.

 

Assim, se comparados os índices iniciais e finais de homicídios, por modo de execução, no período analisado (de 1995 a 2003), quando foram introduzidas duas leis que visavam reduzir o acesso às armas (Lei n. 9.437/97 e Lei n. 10.826/2003), os homicídios perpetrados com arma de fogo tiveram um aumento de 79,7%, enquanto os homicídios realizados através de outros meios tiveram uma redução de 47%.

 

Percebe-se que, exatamente quatro anos após a aprovação de normas mais restritivas à posse e porte de armas de fogo no país (Lei n. 9.437/97 e Lei n. 10.826/03), tempo que se considera necessário para que as novas regras de aquisição e porte de armas surtissem efeito, ocorreram picos exponenciais de aumento da porcentagem do uso de armas de fogo em homicídios (aumentou-se o percentual de homicídios praticados com arma de fogo, em relação ao número total de homicídios).

 

Dessa forma, quatro anos após a promulgação de normas mais restritivas ao acesso às armas, o uso de armas de fogo em homicídios aumentou 19,8% (de 1997 a 2001), pela primeira vez, e aumentou novamente 27,3% (de 2003 a 2007) pela segunda vez, o que informa que há correlação/covariação entre a promulgação de normais mais restritivas ao acesso e porte de armas e o aumento do uso de armas de fogo em homicídios no país.

 

4. Discussão.

 

Ao comparar as taxas iniciais e finais de homicídios, por modo de execução, em exame de correlação que desconheça a real causalidade e complexidade de fatores criminogenéticos implicados, poderíamos atribuir ao Estatuto do Desarmamento, em nove anos de sua vigência, um aumento do número de homicídios perpetrados com arma de fogo em 33%, e uma redução em 58% dos homicídios realizados através de outros meios, com um aumento considerável no número total de homicídios praticados com arma de fogo (33%). Nesses termos, é evidente a existência de correlação/covariação entre a aprovação do Estatuto do Desarmamento e o aumento em 33% no número de homicídios praticados com arma de fogo, e a redução em 58% no número de homicídios praticados por outros meios.

 

Note-se que, até o ano de 1999, as taxas de homicídios praticados com arma de fogo e os índices de homicídios praticados por outros meios cresciam com paridade, e que, somente três ou quatro anos após a aprovação de legislação que visou recrudescer o controle de armas no país, tais índices começaram a variar de forma díspar, conforme já informado, com o aumento do número de homicídios realizados com arma de fogo e diminuição do número de homicídios praticados por outros meios. Tal fato se repetiu, conforme demonstrado, após a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003.

 

Essa informação fornece suporte a uma conclusão importante. Ela possibilita refutar a tese segundo a qual, com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, o número de armas que chegariam às mãos de criminosos diminuiria e, assim, caso eles quisessem praticar algum homicídio, deveriam fazê-lo através de outros meios. Assim, a tese que informa uma suposta inabilidade de criminoso terem acesso às armas de fogo, após a edição do Estatuto do Desarmamento, está evidentemente retirada, justamente porque os índices de homicídios praticados por outros meios diminuíram, no mesmo período em que os homicídios praticados com armas de fogo aumentaram. Tal tese, manifestamente invalidada pelos fatos é, inclusive, vez por outra, evocada para dar pretenso suporte a projetos de lei que visam reduzir ainda mais o acesso de cidadãos sem antecedentes criminais a armas de fogo no país.

 

Por consequência, se fosse verdadeira a tese que informa que os criminosos efetivamente encontrariam mais dificuldade de acesso a armas de fogo para praticar homicídios após a edição do Estatuto do Desarmamento, depois dele os índices de homicídios perpetrados por outros meios que não a arma poderiam aumentar, enquanto os índices de homicídios praticados com arma de fogo necessariamente diminuiriam. Ocorre que, como era de se esperar, os índices de homicídios por arma de fogo aumentaram, e as taxas de homicídios por outros meios diminuíram drasticamente, o que permite claramente refutar a hipótese que informa ter sido do Estatuto do Desarmamento, de fato, eficaz em diminuir o acesso que os criminosos têm a armas de fogo, quando querem praticar homicídios.

 

No entanto, com o Estatuto do desarmamento foi possível subir a taxa de utilização de armas de fogo em homicídios no país de 59,8% em 2004, para 80% em 2012, o que também prova manifestamente sua ineficácia para reduzir homicídios praticados com a utilização desse tipo de arma.

 

Se houvéssemos tido, no período analisado, uma redução drástica no índice de utilização de armas de fogo em homicídios, o que não ocorreu, poder-se-ia afirmar que poderia existir uma correlação/covariação entre a aprovação do Estatuto do Desarmamento e uma redução do número de homicídios com armas de fogo no país, porém, tal correlação é descartada liminarmente, justamente porque, ao contrário do que se desejava, o número de homicídios com arma de fogo continuou aumentando, conforme evidenciam os dados.

 

Portanto, se houvesse ocorrido uma redução drástica no índice de utilização de armas de fogo em homicídios, índice este que aumentou exponencialmente ao invés de reduzir, no período estudado, poderia ser possível identificar uma suposta (mas inexistente na realidade) relação de causalidade entre a promulgação do Estatuto do Desarmamento e uma pretensa desaceleração do aumento de homicídios no país, o que é descartado liminarmente, ante a ineficácia do referido Estatuto em reduzir o percentual de utilização de armas de fogo em homicídios, no período analisado.

 

Contudo, o que se viu é que, após a aprovação do Estatuto, em um período de quatro anos, o uso de armas de fogo em homicídios aumentou exponencialmente em 27,3%, algo que, de alguma forma, foi mera repetição da última tentativa de se aprovar regras mais restritivas ao acesso e porte de armas no país, mas de forma ainda mais radical.

 

Pode-se categoricamente afirmar que o Estatuto do Desarmamento está correlacionado ao aumento do percentual de uso de armas de fogo em homicídios e, por isso, ele não pode ter desacelerado o aumento de homicídios praticados por armas de fogo no país, o que deixa excluída a relação de causalidade que poderia existir entre a aprovação da Lei n. 10.826/03 e a suposta leve redução de um especulado aumento do número de homicídios no Brasil.

 

5. Conclusões.

 

Se o Estatuto do Desarmamento não foi capaz de reduzir o percentual de homicídios praticados com arma de fogo, no universo de homicídios praticados, mas ao contrário, após o início de sua vigência tal percentual aumentou exponencialmente, é evidente que não há qualquer causalidade entre a redução da disponibilidade de armas de fogo à população civil e uma suposta leve desaceleração de um especulado aumento dos índices de homicídios praticados com arma de fogo, conforme, inclusive, já apontavam os estudos da ONU citados.

 

Se o Estatuto do Desarmamento fosse realmente eficiente, ele haveria promovido a redução do percentual de uso de armas de fogo no total de homicídios que ocorreram após sua vigência, porque foi criado para reduzir o acesso às armas. Contudo, os dados demostram que houve um aumento estarrecedor de 27,% no uso de armas de fogo em homicídios no país, quatro anos após sua aprovação, em 2007, e um aumento ainda maior, de 41,4%, do uso de armas de fogo em homicídios, sete anos após o início de sua vigência, em 2010.

 

Após a promulgação do Estatuto do Desarmamento houve um aumento do índice de uso de armas de fogo em homicídios, o que indica que o desarmamento da população civil no Brasil foi ineficaz à finalidade de redução do número de homicídios por arma de fogo e pode ter dado causa ao aumento exponencial do percentual de uso de armas de fogo em homicídios no país.

 

Dada a evidente ineficácia do Estatuto do Desarmamento, em sentido oposto, é possível que a adoção de uma legislação que permita o porte velado de arma de fogo, por cidadãos sem antecedentes criminais em crimes dolosos, reduza efetivamente os índices de criminalidade violenta, como homicídios, roubos, latrocínios e estupros, como foi noticiado que já ocorreu em outras amostras, em pesquisas realizadas em lugares que passaram por esse processo de real empoderamento da população civil.[14]

 

Por fim, vale sempre lembrar a advertência dos pesquisadores do Direito Penal. O precursor desse ramo do pensamento, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, já no ano de 1764 intuíra que a proibição da posse e porte de armas pela população civil é um sofisma, cuja falsa ideia de utilidade que lhe dá origem sacrifica mil vantagens reais por um inconveniente imaginário[15]. Hoje, um dos maiores pesquisadores desse âmbito nos tempos atuais, Günther Jakobs, da mesma forma, indica que a referida proibição só tem sentido se tratamos o cidadão comum como criminoso e, assim, irrompemos todas as barreiras materiais para a punição de todos nós antes mesmo da mera possibilidade de existência de um pensamento delituoso futuro[16].

 

6. Fonte/referências bibliográficas dos dados utilizados nesta nota.

 

Números totais de homicídios:

 

Organização das Nações Unidas (ONU). United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). 2013 ‘Homicide in 207 Countries - Brazil.’ Global Study on Homicide 2011: Trends, Context, Data; Statistical Annex (with online datasets). Vienna: United Nations Office on Drugs and Crime. 26 June. Data for 1995-2010 were collated from three online UNODC spreadsheets: - Homicide data series to be used for trends analyses (Homicide_data_series.xls). <https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/Homicide/Homicide_data_series.xls>, acesso em 15/02/2018. Dados revisados em: <http://www.gunpolicy.org/firearms/citation/quotes/6339>, acesso em 15/02/2018. Os dados dos anos 2007 a 2011 estão repetidos e confirmados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 6, 2012, p. 28, disponível em < http://www.forumseguranca.org.br/storage/6_anuario_2012.pdf>, acesso 15/02/2018.

 

Números de homicídios realizados com o uso de arma de fogo:

 

Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Mortes Matadas por Arma de Fogo, Brasília, 2015, disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf>, p. 94. Obs.: Foram considerados apenas os números da tabela que se referem às mortes efetivamentes registradas, uma vez que a especulação sobre possíveis mortes por armas de fogo nos anos futuros foge a qualquer critério científico de análise.

 

Referências bibliográficas:

 

BECCARIA, Cesare Bonesana, Marqués de. De los delitos y de las penas. Ed. Heliasta S.R.L., Buenos Aires, 1993.

 

JAKOBS, Günther. “Criminalización en el estadio previo a la lesión de un bien jurídico” (1985), in: Estudios de Derecho Penal, UAM Ediciones, Editorial Civitas, Madrid, 1997.

 

LOTT JR, John R. More Guns, Less Crime: Understanding Crime and Gun-Control Laws, 3 ed., Chicago: The University of Chicago Press, 2010.

 

United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Global Study on Homicide 2011: Trends, Context, Data; Statistical Annex (with online datasets). United Nations Office on Drugs and Crime, Vienna, 2011.

 

 

United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Study on Firearms - A study on the transnational nature of and routes and modus operandi used in trafficking in firearms, Vienna, 2015.

 

Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Mortes Matadas por Arma de Fogo, Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf>. Acesso em 26 set. 2019.

 

Sobre o autor
André Pedrolli Serretti

Doutor em Direito Penal pela Universidad de Salamanca (Espanha), "cum laude". Doutor em "Diritto pubblico, teoria delle istituzioni nazionali ed europee e filosofia giuridica" pela Università degli Studi di Salerno (Itália). Bolsista da CAPES para Doutorado Pleno no Exterior. Mestre em Direito Penal pela Universidade de Salamanca. Bolsista de Mestrado pela Universidade de Salamanca/Banco Santander (Bolsa do Serviço de Relações Internacionais da Universidade de Salamanca para estudantes latino-americanos com perfil e produção acadêmicos destacados). Especialista em Direito Penal pela Universidade Paulista, São Paulo (SP). Especialista em Docência no Ensino Superior pela Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro (RJ). Graduado em Direito, com ênfase em Ciências Criminais, pela Faculdade de Direito Milton Campos, em Minas Gerais. Tecnólogo em Serviços Jurídicos pela UniFCV, Maringá (PR).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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