Justiça restaurativa no sistema socioeducativo:aplicabilidade na medida de internação

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19/05/2020 às 10:53
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O texto trata da aplicação da Justiça Restaurativa, no contexto dos adolescentes em conflito com a lei, através da prática de círculos no cumprimento da medida de internação como forma de promover uma cultura de paz no ambiente socioeducativo.

Introdução:

Este texto aborda a Justiça Restaurativa como instrumento de resgate da verdadeira Justiça, contrapondo-se ao atual modelo de Justiça centrado no Poder Judiciário por intermédio de operadores do direito em que impera a burocratização, isolamento entre as partes envolvidas e cultura punitiva para resolução de conflitos. Vislumbra-se a aplicabilidade da Justiça Restaurativa no sistema socioeducativo através da prática dos círculos, propriamente na medida socioeducativa de internação e as possíveis contribuições dessa prática para que o cumprimento da medida socioeducativa de internação seja o menos gravoso possível para a vida dos adolescentes e jovens que se encontram privados de liberdade nas unidades da FUNASE no Estado de Pernambuco. A JR desponta como alternativa face a emergência de se propagar a cultura de paz no ambiente socioeducativo, a fim de fortalecer as relações humanas dos participantes do sistema.

1. A Adolescência que Infraciona

Para se entender o fenômeno infracional na adolescência, necessário se faz, nos reportarmos ao histórico do desenvolvimento da infância e adolescência em nosso país. A partir deste contexto, podemos compreender como tal fenômeno se deu e quais fatores determinantes influenciam a prática infracionária entre adolescentes.

No período do Brasil Colonial, o pai era a autoridade máxima familiar, podendo castigar o filho de acordo com o seu entendimento, através de castigos físicos, capazes de causar lesões leves, graves e, inclusive, podendo levar a morte. Nesse período não havia preocupação relacionada a menoridade e maioridade. As crianças representavam um elemento a mais a serviço do poder paterno. O cuidado, amamentação e medicação das crianças em regra cabia às escravas, o que favoreceu entre as crianças e as escravas o surgimento de vínculos afetivos, muitas vezes inexistentes na relação destas crianças com seus pais. Com a chegada da família real Portuguesa ao Brasil algumas mudanças foram ocorrendo nessa relação. O distanciamento dos pais em relação aos filhos e a atribuição do cuidado da prole às escravas foram objeto de fortes críticas dos médicos sanitaristas, pedagogos e cientistas, que passaram a habitar a Corte, pois consideravam que tais ações contribuíam para a mortalidade e o abandono de crianças no Brasil1.

Passando para o período imperial surge a preocupação com a responsabilização de crianças e jovens que cometiam atos criminalizados não tolerados pela sociedade. Durante a vigência das ordenações Filipinas, a criança era responsabilizada a partir dos 07 aos 17 anos de idade, com uma leve atenuação na aplicação da pena em relação ao adulto. Entre 17 e 21 anos, a responsabilização era igual a de um adulto. Por intermédio do Código Penal do Império de 1830, menores de 14 anos eram inimputáveis, tendo sido inaugurado o critério biopsicológico para averiguação da imputabilidade que foi mantido até 1921, onde se realizava o exame subjetivo de capacidade de discernimento, sendo posteriormente substituído pelo critério objetivo de imputabilidade de acordo com a idade2.

Nesse período cresce a necessidade da construção de uma doutrina própria para lidar com as questões de direito da criança e adolescente o que se concretizou em 1912, através de uma visão amplamente influenciada pelos movimentos internacionais, afastando tais questões da área penal, a fim de tratá-las em um ramo a parte, denominado “Direito do Menor”, cuja sustentação encontrava-se no binômio “carência-delinquencia”. Trata-se dos primeiros passos para o surgimento da Doutrina da Situação Irregular que vigorou no Brasil durante muito tempo e considerava crianças e adolescentes como objetos de proteção. Tal doutrina foi oficializada em 1979 pelo Código de Menores, mas implicitamente já vigorava desde o Código Mello Matos, de 1927. Não era um sistema de garantia de direitos, tinha cunho protecionista e assistencial, buscando enquadrar aquelas crianças e adolescentes que se encontravam no conceito de situação irregular estabelecido no Código de Menores. Em situação irregular estava o menor privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, em razão da falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; as vítimas de maus-tratos; os que estavam em perigo moral; os autores de infração penal; os que apresentassem desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária3.

A doutrina da situação irregular contemplava uma atuação segregatória, pois as crianças e adolescentes eram levados para instituições, onde ficavam reclusas da família e da sociedade. Contudo, os menores considerados em situação irregular eram na sua maioria negros, pardos, filhos da pobreza.

Desde a substituição da Doutrina da Situação Irregular pela Doutrina da Proteção Integral, aspectos como marginalização, pobreza, analfabetismo, drogas, permanecem como verdadeiras “marcas” fazendo parte da vida da grande maioria dos adolescentes praticantes de atos infracionais que se encontram institucionalizados. Estes adolescentes têm acessado cada vez mais o sistema de Justiça Juvenil através da prática infracionária e não pela perspectiva de direito.

2. O Sistema de Atendimento Socioeducativo

O sistema socioeducativo reveste-se de características próprias, distinguindo-se do sistema carcerário – pelo menos no texto de lei - que é unicamente punitivo. No atendimento socioeducativo o que se busca é a ressocialização, através da aplicação de Medidas Socioeducativas, levando em consideração o caráter pedagógico destas medidas e a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, pois “[...] suas finalidades ultrapassam a prevenção especial e geral e alcançam o ser humano em desenvolvimento, de sorte que indicam uma interferência no processo de aquisição de valores e definição de comportamentos por meio da educação ou mesmo tratamento”.4

Sobre a palavra ressocialização, cabe alertar que alguns doutrinadores tecem críticas a este termo, principalmente ao se referir a pessoas que se encontram privadas de liberdade, uma vez que esta palavra significaria uma nova socialização, ou seja, a repetição de algo interrompido em dado momento. O que se contrapõe totalmente ao conceito de socialização, pois se trata de algo contínuo. O mais adequado seria falar de reintegração social.5

Apesar do ECA prever um sistema diferenciado de cunho pedagógico, a medida socioeducativa de internação vem sendo executada de forma similar a execução das penas privativas de liberdade do sistema carcerário. O atual modelo do sistema de justiça é baseado na cultura de guerra, especialmente por encontrar na retribuição do castigo(retributivo-punitivo) e na aplicação de sanções rígidas, degradantes, privativas de liberdade o seu fundamento. Esse modelo de encarceramento induz a falsa ideia de que a solução para o fenômeno da violência está nessa prática que há séculos vem sendo utilizada.

(...) Afinal, a despeito da promessa de eficácia das missões preventiva e repressiva, percebe-se um descompasso na realidade prática, na qual a punição não garante uma diminuição do número de crimes – isto é, não se logra preveni-los – e a retribuição, em si mesma, não constitui medida de efetivação da justiça.6

O atual modelo punitivo estatal fracassa em vários aspectos: superlotação, falta de estrutura, insalubridade, brigas, violência, principalmente ao olharmos a execução das penas privativas de liberdade nos cárceres brasileiros, tornando a passagem de qualquer pessoa por este sistema marcada por graves violações de direitos, principalmente ao tolher a Dignidade da Pessoa Humana. Historicamente, a punição serve para castigar, produzir dor e mais exclusão social. Faz-se necessário sair da lógica da relação de força, culpa e punição, que se apoia na ideia de ressocialização, propondo um paradoxo intransponível: inclusão social através da exclusão7.

Infelizmente, o sistema socioeducativo não conseguiu se manter imune a este modelo punitivo. Por essa razão, não têm obtido os efeitos esperados, sendo incapaz de atender as peculiaridades inerentes aos adolescentes e ao anseio social por pacificação.

E o que se falar da questão da redução da maioridade penal amplamente divulgada? Induzindo a falsa ideia de que a solução dos problemas da violência envolvendo adolescentes é resolvida simplesmente através do ato de puni-los e colocá-los temporariamente afastados da sociedade, sem nada a oferecer! Essa temática é utilizada muitas vezes de forma subversiva e para fins eleitoreiros. Dificilmente encontramos um político com um discurso de oposição à proposta de redução da maioridade penal. Em regra, eles discursam o que uma população negligenciada por seus governantes quer ouvir, principalmente porque a sociedade se encontra sob a perspectiva do medo. A criminalidade cada vez aumentando, a insegurança, violência e instalação do caos social. Todos esses fenômenos são solo fértil para as ideias de eliminação do inimigo social. O pior é que esse “inimigo” social em sua maioria é o pobre, negro, vítima do sistema capitalista e da omissão estatal.

Considerando que adultos que se encontram encarcerados nas prisões pernambucanas já passaram pelo sistema de atendimento socioeducativo, observamos que o objetivo reintegrador não está sendo alcançado, sendo necessária uma intervenção no sistema socioeducativo, especialmente na execução da medida de internação, capaz de englobar: estrutura física, humana, ações profissionalizantes, pedagógicas e política de atendimento, para que através do cumprimento dessa medida possam ser obtidos resultados positivos, cujos reflexos incidirão diretamente na sociedade, pois fortalecendo o sistema socioeducativo a reincidência enfraquecerá e esses adolescentes ao se tornarem adultos acessarão reduzidamente o sistema de justiça penal e consequentemente ocorrerá a diminuição da população carcerária, atenuando ainda, os gastos públicos, o que possibilitará a aplicação de recursos financeiros no fortalecimento de outras áreas, tais como: saúde e educação que notadamente necessitam cada vez mais de investimentos.

No entanto, vislumbramos que serão anos para se alcançar essa intervenção no sistema socioeducativo da forma acima proposta, principalmente porque boa parte das modificações dependem de uma prestação positiva do Estado (dever-fazer) que envolve orçamento público. E ao considerarmos a atual crise política de representação que o Brasil está passando, mais difícil será alcançar esses objetivos. Lembrando que tais objetivos surgem após a prática infracional quando o adolescente ou jovem já se encontra institucionalizado. É urgente a necessidade do Estado criar e executar políticas públicas de cunho preventivo. A iniciar pelo fortalecimento das políticas sociais e da educação.

Ressalte-se que implantar um sistema socioeducativo que seja capaz de promover e resguardar os direitos dos adolescentes em conflito com a lei é iniciativa fundamental para a efetivação dos direitos humanos que são reconhecidos em nossa Constituição Federal e no âmbito Internacional. A maior problemática que se enfrenta na atualidade em relação aos direitos humanos é a questão ligada a proteção de tais direitos, uma vez que a maioria destes direitos já foram reconhecidos. “[...] O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”.8

3. A Medida de Internação e suas Implicações

O cumprimento da medida socioeducativa de internação no estado de Pernambuco mostra-se degradante e marcado por violações de direitos. O adolescente ao entrar na instituição passa a depender inteiramente dela, inclusive, suas relações interpessoais se pautarão na convivência com os demais adolescentes, corpo de funcionários e técnicos destas instituições. Alguns adolescentes têm problemas sérios de convivência, notadamente, reflexo de rejeições anteriores, ausência de regras, mecanismo de autodefesa etc. Tais posturas devem ser identificadas para que se possa trabalhar objetivando uma convivência pacífica. Um desequilíbrio facilmente percebido se mostra na relação agente socioeducativo e adolescente, cada vez mais fragilizada, tendo tal fato influência direta nos constantes conflitos vivenciados na unidade de cumprimento da medida socioeducativa de internação. O agente socioeducativo é um dos profissionais que lida diariamente com os adolescentes em seus espaços de convivência, mais conhecidos como “alojamentos.”

De acordo com as atribuições previstas para a função de agente socioeducativo descritas no edital para o processo seletivo do ano de 2017 estão:

Recepcionar os adolescentes internos na unidade de atendimento, sempre com solicitude, orientando-os sobre seus direitos, deveres e normas disciplinaresgarantir a integridade física, psicológica e moral dos adolescentes; acompanhar os adolescentes em consultas médicas, exames, audiências e visitas domiciliares, conforme orientação recebida da direção da unidade de atendimento; acompanhar os adolescentes em suas atividades diárias de educação, esporte e lazer, tais como aulas, cursos, recreação, além de outras, dentro e fora das unidades de atendimento; conduzir os adolescentes ao atendimento por técnicos, coordenadores e direção das unidades; viabilizar a higiene pessoal dos adolescentes, assim como dos espaços por eles utilizados; sugerir atividades de educação, esporte e lazer para os adolescentes; zelar pela disciplina dos adolescentes, sua e de seus colegas, nas dependências da unidade onde exercerem suas atividades laboraisefetuar custódia dos adolescentes, quando solicitado pela direção da unidade; fazer relato diário, em livro de ocorrências, registrando as situações vivenciadas, providências adotadas e o comportamento dos adolescentes; intervir, nas dependências da unidade de atendimento, em situações de conflito e eventuais tumultos, visando pôr fim às mesmas, evitando violência de qualquer ordem, tais como agressões físicas e/ou morais; propor e cumprir, rigorosamente, as normas de segurança estabelecidas para a unidade em que exercerem suas atividades funcionais; participar de reuniões, emitindo suas opiniões, acerca do trabalho visando à interação e à unidade da ação; prestar socorro imediato aos adolescentes, em casos de emergência, encaminhando-os para o setor competente; auxiliar na elaboração do Plano Individual de Atendimento GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO do Adolescente – PIA; Realizar revistas nos alojamentos e demais dependências da Unidade Socioeducativa, visando recolher objetos ou substâncias proibidas; Participar das atividades relacionadas ao treinamento e à capacitação; participar do processo de integração interdisciplinar, para a elaboração, o acompanhamento e avaliação das ações; revistar os adolescentes e os locais por eles ocupados; executar outras atividades correlatas, sempre e em todas as suas atribuições, de forma satisfatória à prestação dos serviços cabíveis à FUNASE, observados aspectos funcionais tais como pontualidade, assiduidade e adequação ao próprio serviço”. 9

Ao se analisar tal descrição encontramos atribuições contraditórias para serem realizadas por uma mesma pessoa. Por exemplo, o agente socioeducativo deve recepcionar os adolescentes sempre com solicitude; garantir a integridade física, psicológica e moral dos mesmos; sugerir atividades de educação, esporte e lazer etc. Esse rol de ações se apresentam como benéficas, capazes de gerar vínculos de respeito e afeto entre agentes e adolescentes, todavia, também consta como atribuições do agente socioeducativo intervir, nas dependências da unidade de atendimento, em situações de conflito e eventuais tumultos; efetuar a custódia; revistar os adolescentes e os locais por eles ocupados etc. Já essas ações correspondem a área de segurança, cujos mecanismos de atuação requerem posturas diferenciadas. Ou seja, no cotidiano das atividades nas Unidades de Atendimento Socioeducativo ocorrerá sempre uma desconstrução de imagem, pois os agentes assumem papéis diferentes de acordo com cada situação exposta. Essa incoerência não é capaz de gerar vínculos reais positivos, agravando cada vez mais a relação interpessoal com os adolescentes.

Uma possível alternativa seria a separação de tais atribuições. O quadro de profissionais poderia ser formado por agentes socioeducativos responsáveis por ações pedagógicas, de acompanhamento e auxílio. De outro lado, teriam agentes socioeducativos responsáveis por ações de segurança, como custódia, revistas e intervenção em situações de conflitos e tumultos.

Infelizmente o que é vivenciado são agentes socioeducativos que acabam se perdendo também em suas atribuições e tomam para si o exercício de funções meramente carcerárias, tornando-se verdadeiros algozes desses adolescentes. Há de se ressaltar que o agir desses agentes socioeducativos é em sua maioria fruto da impropriedade das atividades atribuídas para o exercício de suas funções, além da baixa oferta de capacitações atrelada a falta de incentivos financeiros para que estes agentes exerçam suas atividades de forma satisfatória, agindo com presteza, zelo e dedicação.

O fato é que, graves violações de direitos vêm sendo praticadas nas Unidades de Internação, inclusive, a prática da tortura. Temos um vasto legado que a história nos apresenta sobre práticas degradantes. HUNT discute que “A tortura legalmente autorizada para obter confissões de culpa ou nome de cúmplices tornou-se uma questão de grande importância depois que Montesquieu atacou a prática no seu espírito das leis (1748)”.10 Pessoas foram torturadas por regimes totalitaristas no período ditatorial no Brasil, legado este que em pleno século XXI insiste em permanecer, conquanto, haja previsão constitucional coibindo esta prática. O mais estarrecedor é que os agentes de segurança são os que mais perpetuam tal prática.

Piovesan comenta a respeito da litigância em defesa dos Direitos Humanos: “Nota-se que 70% dos casos referem-se à violência da polícia, o que demonstra que o processo de democratização foi incapaz de romper com as práticas autoritárias do regime repressivo militar”.11

Há a necessidade do fortalecimento destes vínculos através da formação continuada desses profissionais no âmbito da educação em Direitos Humanos, tendo como arrimo o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, visto que contempla como área de atuação a formação de profissionais dos sistemas de segurança e Justiça.

A Educação em Direitos Humanos também poderá ocorrer por meio da (re) produção de conhecimentos voltados para a defesa e promoção dos Direitos Humanos.12 E é justamente a disseminação de tais conhecimentos e práticas restaurativas que farão a diferença dentro do sistema socioeducativo.

É extremamente necessário que as relações entre os agentes socioeducativos e os adolescentes possam ser restauradas. Há uma rivalidade concreta que diariamente toma enormes proporções. Evidentemente, a vida em um sistema institucionalizado com privação de liberdade por si já se mostra cruel, tanto em relação aos adolescentes que passam alguns dias, meses, anos de suas vidas em uma dependência total da instituição e de seus personagens - dependem dos técnicos das equipes para o atendimento de suas necessidades de objetos pessoais e de higiene, contato com familiares, queixas, informações sobre questões processuais, etc - como para os agentes socioeducativos que se deparam com adolescentes interpretando papéis até então inimagináveis – o adolescente que ameaça, propõe negócios ilícitos, descumpre regras, desrespeita, articula ações que subvertem a ordem, prática violência - não parece ser nada fácil. Lamentavelmente, essa fragilidade de relações não se mostra apenas entre os agentes socioeducativos e adolescentes. Também se mostra nas relações entre os Técnicos das Unidades. Os adolescentes, justamente pela perversão do sistema estabelecem uma relação de troca entre os técnicos, pois sabem que a única maneira de sair do sistema é cumprindo aquilo que se propõe. Contudo, não passam de simulações, cujo conteúdo de mudança real e reflexiva não ocorre.

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Pensando na precariedade das relações, a título de sugestão poderia ser desenvolvidas capacitações educativas e periódicas para os agentes socioeducativos por meio de exposição teórica sobre os seguintes temas: Infância e Adolescência, Fenômeno Infracional, Marginalização, Pobreza, Medida Socioeducativa de Internação, Cultura de Paz, Justiça Restaurativa, Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos. A emergência se revela na relação adolescente e agente socioeducativo, principalmente porque os adolescentes passam mais tempo com os agentes socioeducativos.

A capacitação poderá ser desenvolvida em 02 dias. No primeiro dia iniciar com um pequeno questionário que deverá ser respondido, contendo sugestivamente as seguintes perguntas: Quem sou? Quem são esses adolescentes? Como exerço meu trabalho? Sou capaz de colaborar no processo de reintegração desses adolescentes?

Após a socialização das respostas deve ser abordada a questão da infância e adolescência e do fenômeno infracional. Devem ser levantadas questões como marginalização, analfabetismo, pobreza e drogas através de reflexões e dados estatísticos.

No período da tarde poderá ser aplicada uma dinâmica para que os participantes invertam os papéis e passem a ser adolescentes infratores em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Obs.: Os aplicadores dessa dinâmica tratarão os participantes com a maior fidedignidade possível (gritos, xingamentos e apelidos - algo bastante comum nas unidades de internação). Após a aplicação da dinâmica deve ser inciada uma reflexão sobre o tipo de tratamento dado e como deve ser e técnicas de comunicação não-violenta.

No segundo dia, os assuntos tratados poderão ser: Medida Socioeducativa de Internação, introdução a Justiça Restaurativa, Cultura de Paz, Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos. Pela manhã poderá ser iniciada uma análise sobre o experimento de aprisionamento de Stanford (estudo realizado pela faculdade de psicologia de Stanford com 24 pessoas que se inscreveram voluntariamente e foram selecionadas para que assumissem papéis de guardas e prisioneiros e ficaram submetidas ao encarceramento. O estudo tinha por objetivo analisar os efeitos do encarceramento durante 02 semanas, mas teve que ser interrompido ao 6º dia, pois os participantes entraram em surto ao exercer tais papéis). O que poderá proporcionar uma verdadeira reflexão sobre o modelo de encarceramento e a medida socioeducativa de internação. Para finalizar poderá ser realizada a prática de círculos de cuidados, a fim de que os participantes exponham seus sentimentos e se conectem com sua humanidade.

4. O Adolescente em Conflito Legal e Social

Ao tratar do adolescente em conflito com a lei, a visão que se tem por grande parte da sociedade e de profissionais que atuam no próprio sistema socioeducativo é a mesma imputada a um adulto praticante de crime, a exclusão.

O criminoso comum é “por natureza” um outro, um ser distinto ou uma outra coisa, que se diferencia, por sua atividade transgressora, da espécie a que pertencemos nós, cidadãos honestos e seres humanos verdadeiros. Sua eliminação pura e simples, mais do que o sentenciamento judicial e penas retributivas, expurga a humanidade de impurezas corrosivas tanto mais ameaçadoras porque com a configuração falsamente humana13.

A promoção e difusão desta visão de exclusão, em que o indivíduo é visto apenas pela ótica da infração, como se ele por inteiro se resumisse ao ato criminoso é estimulada fortemente pela mídia que utiliza a força do poder simbólico para incutir naturalmente nas pessoas valores que diferenciam os seres humanos entre si e que sustentam o capitalismo exacerbado em nossos dias. A ênfase que se dá aos atos graves protagonizados por adolescentes é fonte de exploração da mídia para gerar grande clamor social e a aceitação do endurecimento dos meios punitivos como única salvação, contudo, as violações de direitos sofridas por estes adolescentes ao longo dos anos, especialmente pela omissão do Estado são invisibilizadas. Não se deve agir superficialmente, pois os fenômenos que envolvem a violência, normalmente estão ligados a questões muito mais profundas e que devem ser investigadas, não simplesmente se ater a configuração binária de bem e mal. A prática de qualquer ato infracional ou crime traz em si cargas multidimensionais capazes de influenciar o rompimento dos vínculos entre os indivíduos e a ordem estatal/legal. Justamente nessas cargas multidimensionais é que se escondem as necessidades. Quais necessidades esses adolescentes estão passando ou passaram durante sua trajetória de vida? O que o ato infracional revela sobre suas carências?

Homens/mulheres/crianças/adolescentes passam a ser vistos como “objetos” de manipulação de interesses das classes dominantes. Para ALVES14, tudo isso decorre de um fenômeno cultural, disseminado no Brasil e na maioria das sociedades ao longo de toda a História, que se propõe justificar o desrespeito aos direitos fundamentais de determinadas pessoas: a desumanização do humano.

5. Da Justiça Restaurativa

É nesse cenário que se faz necessário falar em Justiça Restaurativa para a construção de uma cultura de paz. Todos os envolvidos no sistema socioeducativo, principalmente aqueles que se encontram nas unidades de internação devem ser guiados a desenvolver empatia, alteridade, saber se encontrar no outro, pois isso é fundamental para a vida como um todo e para a solução dos conflitos a que estamos submetidos cotidianamente. Surge cada vez mais a necessidade de uma formação de pessoas voltada para o respeito às diferenças fundadas no reconhecimento do Princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana.

Justiça Restaurativa é um sistema baseado em práticas ancestrais cuja finalidade é auxiliar no resgate das potencialidades humanas, buscando alternativas para se lidar com os conflitos. As práticas da JR conduzem os indivíduos a verdadeira Justiça. Quando falo de Justiça não desejo que o leitor a entenda apenas pela ótica do Direito, pois trata-se de um conceito reducionista vinculado ao legalismo, burocracia e privilégios ditados pela ordem econômica, incapaz de alcançar o sentido real de Justiça enquanto valor e prática social inteligente. O Estado tomou para si o monopólio da resolução dos conflitos da vida humana, fez isto por meio de um sistema impositivo e que estimula em larga escala o conflito, a não conciliação, a rivalidade (partes em pólos antagônicos), a retribuição (vingança). Por mais que as leis, normas e regramentos sociais objetivem resguardar valores essenciais a vida humana, na maioria das vezes perdem seu sentido justamente por algumas normas/leis estarem destoantes da realidade social. Logo, a Justiça em uma de suas facetas poderá até surgir, desde que existam normas, leis que se entendam ser socialmente justas.

Observando o sistema de justiça, percebe-se o papel de grande importância exercido pelo juiz ao longo dos anos. Surgindo primeiramente como um representante de Deus para fazer cumprir a sua vontade e ditando como as coisas devem ser. Depois o juiz surge como verdadeiro aplicador do direito. Função esta bem mais técnica, sem valoração, apenas aplicando a norma/lei abstrata ao caso concreto posto para sua apreciação. Atualmente o juiz se mostra como solucionador de conflitos, em todo e qualquer tempo deve buscar a conciliação entre as partes. Todavia, nem sempre essa conciliação ocorre efetivamente em interesse das partes, que por sua vez, costumam sair insatisfeitas após passarem pelo processo judicial. Contudo, não podemos deixar de considerar o avanço nessa forma de atuação, o que nos aponta um sinal de que o envolvimento efetivo das partes para a resolução de seus conflitos é o caminho.

A JR não é uma forma de se extinguir conflitos, pois a dinâmica conflituosa faz parte da vida do ser humano.

O conflito traz consigo a possibilidade de mudança e transformação, seja para duas pessoas, para uma comunidade ou para uma nação. A questão central é como se resolvem os conflitos: se por meios violentos ou através de meios não violentos15.

A JR surgiu inicialmente no Canadá e na Nova Zelândia em 1970 foi se propagando em diversos países, tendo chegado ao Brasil no ano 2000, através de experiências pioneiras em Brasília, Rio Grande do Sul e São Paulo. A Justiça Restaurativa encontra um outro olhar para a prática punitiva e ações violentas, diferentemente da simples e pura condenação.

A Justiça Restaurativa, enfatizando estratégias de reciprocidade e de participação, permite situar a intervenção no conflito num campo mais além dos julgamentos, dos castigos e das premiações (...)a Justiça Restaurativa permite que os envolvidos se identifiquem e se conectem com sua própria humanidade e com a humanidade do outro. Eu te respeito na medida em que tu me respeitas, confio em ti na medida em que confias em mim, e assim por diante (…). 16

A JR traz uma amplitude da ótica sobre o fenômeno dos conflitos. A prática restaurativa vem sendo estimulada por diversos documentos internacionais, o que demonstra claramente a precariedade do modelo em vigor. Por exemplo, a Declaração de Salvador, de abril de 2010, aprovada no 12º Congresso das Nações Unidades para a Prevenção do Crime e Justiça Criminal recomenda:

21. Apoiamos o princípio que a privação da liberdade de crianças deve ser utilizado como uma medida do último recurso e para o menor período apropriado. Recomendamos a aplicação, quando apropriada, mais abrangente das alternativas ao aprisionamento, justiça restaurativa e outras medidas relevantes que promovem opções para manter jovens infratores fora do sistema de justiça criminal.17

No âmbito do direito interno, podemos destacar também, a Lei 12.594/12, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem atos infracionais. Essa lei em alguns de seus artigos traz claramente o viés restaurativo. Vejamos:

Art. 1o Esta Lei institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional.

§ 2o Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos:

I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;

(…) Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;

III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;

Quando a lei fala de responsabilização, traz um elemento importantíssimo das práticas restaurativas, pois a responsabilidade é algo que deve ser sentido. Sentir responsabilidade significa estar incluído, pertencer, participar, conseguir perceber o que afetou o outro e o que poderá ser feito para restaurar a ordem anterior, de forma livre, sem imposições. Ao tratar da reparação, a JR considera ser esse seu foco principal, por ser essencialmente curativa. A pessoa que está ligada aos seus valores fundamentais, de forma bastante espontânea, sentirá a necessidade de reparar de alguma forma o dano cometido, pois ela sabe que esse dano não é simplesmente pontual, mas que atinge a ordem natural das coisas – seres, ambiente, família, comunidade. A autocomposição de conflitos encontra respaldo nas ideias restaurativas, através da mediação de conflitos. Lembrando que a mediação deve ser realizada de forma mais aberta, sem os formalismos da mediação judicial, para que as pessoas possam se sentir acolhidas e tenham garantido o direito de participar de forma efetiva pelo encontro e diálogo. Quando se fala de necessidades das vítimas, significa que estão em relação de igualdade, sendo assegurado a estas a escuta, o diálogo, a integração e o pertencimento.

Observa-se que a legislação interna vem paulatinamente agregando conceitos, princípios de cunho restaurativo. É um bom começo. Entretanto, a JR e seus conceitos não podem ser resumidos a letra de lei. A JR deve ser praticada e vai além da legislação. Ocorre que, agregar tais valores a execução das medidas socioeducativas abre caminho para a efetivação dessas práticas restaurativas no âmbito socioeducativo.

O que se propõe é a resolução dos conflitos de forma pacífica, cujo caráter de responsabilização permanece, contudo, as partes envolvidas tornam-se protagonistas da solução dos seus conflitos através de ferramentas fundamentais como o diálogo e a escuta. É a partir dessas ferramentas que os mundos dos envolvidos podem ser penetrados, gerando assim, a compreensão, pois o que se busca nessa vida é a felicidade. E se porventura, alguns humanos não conseguem encontrar essa felicidade e reagem a essa frustração com ações violentas ou ações que vão de encontro a conceitos éticos e morais, não é resultado simplesmente do fato de serem bons ou maus, mas de um complexo de situações vividas, cargas emocionais, negação de sentimentos etc. Não se está dizendo que tais fatores são justificativas para tais ações, contudo, não devemos apenas nos ater nas ações - o que torna a visão reducionista - ao ponto de ignorarmos por completo o ser agente praticante destas ações.

Vivemos em um mundo em que as pessoas dificilmente conseguem ver a humanidade no ser julgado como errante, pelo contrário, esses “errantes” tornam-se invisíveis, cujo o único destino é seu isolamento juntamente com o estigma de errante carregado ad eternum. A JR atua conectando os sujeitos com a humanidade perdida, esquecida, mas que pulsa dentro de cada um, necessitando apenas de estímulos para que desabroche efervescente nos corações.

Assim sendo, entende-se que a JR deve germinar no sistema socioeducativo e de fato experiências pioneiras foram e estão sendo realizadas em varas da infância e juventude no âmbito do Poder Judiciário, contudo, sabe-se que o caminho a percorrer é longo, pois o atual modelo punitivo ainda persiste em nossos dias, ganhando força através de discursos políticos.

A grande proposta aqui é disseminar práticas restaurativas no cotidiano das unidades de internação com a participação de adolescentes e funcionários, fazendo com que tais práticas possam trazer luz àquele ambiente marcado de dores sobre humanas, principalmente na gestão de conflitos internos, que incidem cotidianamente e culminam em graves problemas como rebeliões, fugas, rixas e violência.

Espera-se que para os adolescentes os resultados possam ser alcançados no sentido de que eles possam vivenciar relações humanizadas fundadas no respeito, tanto em relação aos agentes socioeducativos e funcionários das unidades, como na relação e convivência destes entre si; a pacificação de comportamentos agressivos / prevenção de conflitos, ligado ao gerenciamento de emoções negativas; aumento da auto-estima; o autorreconhecimento como ser resiliente, capaz de superar as dificuldades e escrever uma nova história.

Em relação aos agentes socioeducativos se espera a pacificação de comportamentos agressivos / prevenção de conflitos, ligado ao gerenciamento de emoções negativas; olhar humanizado para o adolescente em conflito com a lei; autorreconhecimento como agente de transformação social.

Dos demais funcionários, Equipe Técnica e gestores das unidades socioeducativas, espera-se olhar humanizado para o adolescente em conflito com a lei e autorreconhecimento como agentes de transformação social.

6. Da Prática Restaurativa -Círculos Restaurativos

O que são círculos restaurativos? É uma prática que reproduz e reorganiza um mundo para o sujeito; cria uma metáfora de agregação e que dá um lugar social – em uma rede – ao sujeito que foi violentado ou violentou (...) os círculos restaurativos trabalham percepções na forma de valores e atratores – dimensões que são fundamentais para a vida humana, em geral, a família e a comunidade (...)Olha-se para estes fatores e se fenomenalizam as exclusões e inclusões através da palavra, dos sentimentos, do empoderamento, trazendo e reforçando o que foi esquecido, os laços – e são esses laços rompidos primordialmente que tem a ver (são afetados) com o crime e a transgressão.18

O círculo é formado por vários elementos contudo, o que considero mais importante no círculo é a oportunidade de diálogo entre as partes, o que dificilmente ocorre nos modelos convencionais para resolução de conflitos. Imaginemos uma sala de audiência, o juiz ao centro, o MP à direita, escrivão digitando, partes acompanhadas de advogados sentadas em lados opostos (direita e esquerda) intermediados por terceiros (advogados) e onde existe o mínimo diálogo possível. Conclui-se ser um ambiente bastante formal e nada agradável, lugar de várias tensões.

Para que o diálogo exista é necessário ouvir, mas esse ouvir tem uma dimensão muito mais profunda, refere-se a estar presente, o ato de escuta gera presença e atenção. Quando esse processo é realizado de maneira profunda, acontece uma transformação nos indivíduos envolvidos, ou seja, tais indivíduos conseguem se conectar um ao outro, sentir “empatia”, abrindo espaço para a alteridade. Além do ato de escuta, no diálogo é fundamental a pergunta, pois é a partir desta que o indivíduo poderá refletir sobre suas ações e comportamentos. Claro que me refiro a perguntas certas, não perguntas subliminares ou que já sinalizam algum pré-julgamento, mas perguntas queJá atingem o ponto certo! Eis a síntese da mecânica do Diálogo, escutar e perguntar; se não houver um desses elementos não se pode usar a palavra diálogo, não está correto tecnicamente. 19

Deve ser por isso que constata-se muita insatisfação das pessoas após passarem por processos judiciais, pois na maioria das vezes as resoluções são unilaterais, beneficiando apenas um dos lados. Diferentemente, no círculo os próprios envolvidos vão se abrir para o diálogo, a fim de chegarem as resoluções dos problemas mais difíceis. O simples fato de falar e ser ouvido faz toda a diferença, não importando em qual grupo se está, se é vítima ou ofensor, todos são tratados com igual valor. Esse é o diferencial. A disposição geométrica do círculo proporciona igualdade entre os participantes, proximidade e visão ampla de todos (frente a frente) possibilitando que todos possam observar a linguagem corporal dos participantes, extraindo assim, maior fidelidade de suas narrativas.

Para a realização de um círculo é necessário a figura de um facilitador, que é a pessoa que ajudará as partes para o diálogo, colaborando para a manutenção do respeito entre os participantes para que estes falem suas verdades sem desrespeitar ninguém. O facilitador que também é um participante do círculo é um zelador do momento do círculo, buscando o bem-estar dos envolvidos e não está ali para solucionar ou direcionar as partes para resolução do problema posto em discussão.

O procedimento restaurativo conta com três momentos: Pré-círculo – momento de preparação, onde o facilitador faz o planejamento, realiza os primeiros contatos com os participantes, podendo, inclusive, conversar com eles individualmente. O círculo – momento em que se realiza o encontro e Pós-círculo – que é o momento do acompanhamento.

É de fundamental importância para a dinâmica do círculo a escolha do objeto da palavra, representado concretamente por algum objeto de fácil manipulação e que possa significar simbolicamente algum valor importante para os participantes. Ex.: Uma ampulheta, que representa o tempo, mas que pode significar muito mais que um instrumento para a contagem do tempo, podendo ser extraído desse objeto profundas reflexões a cerca da vida. O objeto da fala tem função principal de coordenar o momento da fala, a medida que objeto vai circulando, quem está com ele fala e os outros escutam ou então, não tendo interesse em falar repassa o objeto. Assim, os participantes conseguem se concentrar em quem está falando e pouco a pouco vão livremente expressando sua vontade de falar a medida que o objeto vai circulando entre as mãos dos participantes. Outra questão é que nos círculos são trabalhados previamente os valores e sentimentos antes de adentrar propriamente nos problemas. Funciona como uma preparação visando o fortalecimento dos participantes para então resolverem seus problemas.

De fato, quando estamos diante de um círculo de conflito alguns participantes podem se encontram com suas emoções alteradas. De acordo com o Professor Ferdinand Rohr, ao tratar das dimensões básicas que constituem o ser humano (dimensão física, sensorial, emocional, mental e espiritual):

“(…) as realidades mais densas influenciam mais facilmente e quase que instantaneamente as mais sutis. Quando algo nos causa uma forte dor, por exemplo, o nosso humor, quer dizer, o nosso lado emocional, muda instantaneamente. (…) O estado emocional de ira pode impedir a conexão com valores éticos relacionados à dimensão espiritual.20

Ou seja, a dimensão emocional (densa) tende a influenciar as outras dimensões alterando as percepções e impedindo até resoluções pacíficas de conflitos, por isso a necessidade de se trabalhar os valores fazendo com que os participantes se conscientizem de sua humanidade.

Como já dito, não sabemos solucionar nossos conflitos de forma pacífica, imagine então como são resolvidos conflitos internos com adolescentes em conflito com a lei nas unidades de internação! Local em que as relações de convivência são totalmente destruídas e se encontram viciadas pelo próprio modelo de encarceramento. Já apontamos a dificuldade da relação entre os agentes socioeducativos e os adolescentes, as constantes brigas dos adolescentes entre si, mas também destacamos a relação fragilizada entre alguns integrantes do corpo de técnicos das unidades socioeducativas de internação com tais adolescentes. Ou seja, um ambiente difícil para resoluções consensuais e que não sejam marcadas pela hierarquização. A lei aponta a necessidade da adoção de regime disciplinar próprio pelas entidades de atendimento socioeducativo, é o que dispõe a Lei nº 12.594/12 nos arts.71 a 75, contudo, as disposições ali expostas traduzem um procedimento muito parecido com os processos judiciais, com formalidades e aplicação de sanções disciplinares.

Defendemos que a aplicação prática de círculos de conflito e de cuidado (círculos restaurativos) rotineiramente funcionaria como ferramenta fundamental para estabilização de emoções e também para a resolução pacífica de muitos conflitos que ocasionam problemas de grandes proporções justamente por serem potencializados por práticas nada eficientes. Além de ter o condão de aproximar as pessoas entre si, trazendo consigo uma gama de valores que são comuns a todos, fazendo que as pessoas possa se ver nas outras.

Para que os conflitos possam ser encarados de forma não violenta é necessário mudança de atitudes, crenças e comportamentos (...). O reconhecimento de que o conflito existe é o primeiro passo para ouvir o outro lado e começar um diálogo com respeito e igualdade. Para entender e facilitar conflitos é fundamental que as pessoas envolvidas entendam ‘o outro lado’ do problema e, na medida do possível, que tentem se ‘colocar no lugar do outro’.21

Por mais que se escreva sobre a dinâmica dos círculos e seu potencial curativo, emancipador, restaurador, somente é possível sentir toda a energia que circula de forma prática. A vivência do círculo é transformadora.

O bom é saber que a prática de círculos está sendo aplicada em Entidades que executam as medidas socioeducativas de semiliberdade e internação em outros Estados, como por exemplo, os Círculos Restaurativos Familiares que são desenvolvidos pelas equipes da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul – FASE, com vistas à utilização de práticas restaurativas também na qualificação do plano de atendimento dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.

Já em Pernambuco, a JR chegou na Funase em 2014 através de palestras, época em que foram lançadas as primeiras sementes. A prática de Círculos foi iniciada experimentalmente em 2016 com a participação de 10 adolescentes por Maria do Socorro Ferreira de Barros Quinamo e Vitória Barros na Casa de Semiliberdade de Areias, tendo sido realizados 10 círculos de construção de paz, obtendo resultados positivos. Após a realização desses círculos foi elaborado o projeto para a formação em JR e Comunicação Não Violenta, tendo sido formados 240 funcionários, incluindo, Equipe Técnica, Socioeducadores e Gestores.

No mesmo ano (2016) outras profissionais se juntaram na ideia de difusão da JR e da prática circular (Divone, Augusta e Thatiane). Outros 05 círculos foram realizados com a Equipe Técnica da Unidade de Internação de Abreu e Lima, em um período bem tumultuado e que infelizmente foi descontinuado devido as instabilidades na dinâmica da própria unidade, contudo, houve receptividade e sensibilização por parte dos participantes. Com os agentes socioeducativos também foram realizados círculos na capacitação inicial para ingresso na Unidade.

Atualmente, o projeto se encontra em construção, tendo seu marco inicial a realização do curso de formação dos 240 funcionários em Introdução à Justiça Restaurativa e Comunicação não violenta. No mês de março/2018 acontecerá o curso de formação de 80 facilitadores que serão selecionados dentre aqueles que já participaram do curso inicial. A partir desta formação será construído um plano de ação englobando as pessoas que fizeram o curso de facilitadores para que possa abranger um maior número de unidades, difundindo a prática, além de ser proposta a criação de um setor de supervisão dos trabalhos, a fim de acompanhar de forma mais efetiva o desenvolvimento de tais práticas nas unidades socioeducativas no estado de pernambuco. 22

Portanto, sonhar com uma vida e mundo melhor é algo que parece inerente à vida do seres humanos. Querer superar estruturas opressoras inaugurando uma convivência livre, fraterna e igualitária é algo que tem marcado a aventura humana. 23

7. Considerações Finais

A preocupação maior com esta temática está no fato de que a nova geração representa a geração futura. Deve-se parar e pensar sobre o futuro que se quer. Não se pode simplesmente fechar os olhos para uma realidade tão latente e que desponta a cada dia. A questão dos adolescentes praticantes de atos infracionais é um problema social multidimensional e que reflete em grande parte a omissão estatal na criação e execução de políticas públicas sociais voltadas para esse público.

Portanto, continuar tratando os adolescentes e jovens em conflito com a lei como seres irremediáveis, sem solução, é propiciar o desenvolvimento de problemas maiores. Quando se deixa de acreditar na pessoa humana, em sua capacidade de superação, resiliência, é muito mais difícil conseguir superar as dificuldades ou então, é muito mais fácil ser indiferente a tal realidade. A medida de internação é extremamente violadora de direitos, mas muitas pessoas não conseguem enxergar que esse instrumento não reintegra socialmente os indivíduos expostos a medida, na realidade ela fracassa em muitos aspectos.

Portanto, implantar nas pessoas que trabalham nesses modelos de privação de liberdade uma visão humanizada voltada ao respeito e dignidade da pessoa humana se torna um desafio, uma vez que os Direitos Humanos devem ser vivenciados; é de extrema necessidade a execução de políticas públicas voltadas para a formação humanizada, bem como a difusão de práticas restaurativas, a fim de serem propagados valores humanos fundamentais e que sejam capazes de romper com preconceitos e estruturas dominantes.

Com as práticas restaurativas os adolescentes serão apresentados ou reconectados aos valores humanos essenciais, e isto refletirá no cotidiano na unidade e nas perspectivas de futuro, fazendo com que possam não reincidir em atos infracionais, após cumprirem suas medidas socioeducativas. A prática de ações não-violentas torna-se ferramenta fundamental para a construção de uma cultura de paz no ambiente socioeducativo.

Nos filiamos a ideia de que por mais que as condições de desenvolvimento de um trabalho sejam precárias, é possível realizá-lo de forma produtiva e eficiente, desde que haja comprometimento pessoal e ético de cada um.

De acordo com PELIZZOLLI24, o modo como olhamos as coisas e pessoas determina muito dos resultados esperados. Ao se olhar o indivíduo infrator ou o preso como inimigo, como o lado que representa o mal, gera-se uma armadilha, pois a sombra dos que se consideram iluminados/incluídos vai parar nestes lugares, tornando atrator de mais sombra, enquanto na verdade ela o é do sistema todo.

Os agentes socioeducativos, técnicos das unidades e todo o corpo de funcionários devem ser estimulados a lançar um olhar diferente para o adolescente que se encontra privado de liberdade, um olhar humano e de solidariedade. Dessa forma, muita coisa pode ser transformada, isto não é uma utopia, é real e é possível através das práticas restaurativas capazes de conectar/reconectar as pessoas com valores éticos, humanizadores, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a solidariedade, a igualdade, a justiça, a paz, para que haja reflexão dos modos de ser e agir cotidianamente, de forma individual e coletiva.

10. REFERÊNCIAS

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1OLIVEIRA, Maria Cláudia Santos Lopes de (Coord.). Infância, Adolescência, Família e Sociedade. Capacitação para Operadores do SINASE (UNB e SDH), 2013, pág. 06.

2MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.

3MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008, pág. 54-56.

4SPOSATO, Karyna B. Imposição das Medidas Socioeducativas, RT 1ª edição, 2006, São Paulo. Pág. 35.

5 Disponível: http://booksambo.blogspot.com.br/2009/07/ressocializacao-ou-reintegracao-social.html. Acesso: 31.01.18

6ALMEIDA, Camila. Justiça Restaurativa: Caminhos da Pacificação Social. Recife/PE: UFPE, 2016. Pág. 168.

7 RIBEIRO, Natália Vilar Pinto. Justiça Restaurativa: Caminhos da Pacificação Social. Recife/PE: UFPE, 2016. Pág. 188

8BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 2004, pág. 11.

9https://www.pciconcursos.com.br/noticias/funase-pe-abre-processo-seletivo-com-100-vagas. Acesso em: 25.008.2017

10HUNT, Lynn A invenção dos direitos humanos; unia história / Lynn Hunt; tradução Rosaura Eichenberg.— São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

11PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 565.

12EDUCAÇÃO, Conselho Nacional. Despacho do Ministro, publicado no D.O.U, de 30/05/2012, Seção 1, Pág. 33

13 ALVES, J.A Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. Pág. 4.

14 ALVES, J.A Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. Pág. 3.

15 PRUDENTE, Neemias Moretti. Cultura de Paz: Restauração e Direitos. Recife: Ed. Universitárias da UFPE, 2010. P.83.

16Disponível em: https://www.ufpe.br/edr/artigos-e-textos. Iniciação em Justiça Restaurativa. p.17.Acesso em: 30.01.18.

17 http://www.observatorioseguranca.org/documentos/declaracao-de-salvador.pdf

18 PELIZZOLLI, Marcelo L. (org) in: Justiça Restaurativa: caminhos para a pacificação social. Caxias do Sul: Ed. DA UCS/Recife: Ed. Da UFPE, 2015. P.33-34.

19 PELIZZOLLI, Marcelo L. (org) in: Justiça Restaurativa: caminhos para a pacificação social. Caxias do Sul: Ed. DA UCS/Recife: Ed. Da UFPE, 2015. P.30-33.

20ROHR, Ferdinand. Educação e espiritualidade: contribuições para uma compreensão multidimensional da realidade, do homem e da educação. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2013. p. 28-29.

21 PRUDENTE, Neemias Moretti. Cultura de Paz: Restauração e Direitos. Recife: Ed. Universitárias da UFPE, 2010. P.83-84.

22Informações prestadas por Maria do Socorro Ferreira de Barros Quinamo – Pedagoga Funase.

23MATOS, Junot Cornélio. Direitos Humanos na Educação Superior: Subsídios para a Educação em Direitos Humanos nas Ciências Sociais/ Desenvolvimento, Emancipação e Exclusão. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010, p. 84.

24 PELIZZOLLI, Marcelo L. (org) in: Justiça Restaurativa: caminhos para a pacificação social. Caxias do Sul: Ed. DA UCS/Recife: Ed. Da UFPE, 2015.

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Sobre a autora
Daniele Medeiros Pereira

Advogada, com experiência no sistema socioeducativo, pós-graduada em direito civil, especialista em direitos humanos pela UFPE, mestranda em direito pela UNICAP.

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