AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO SERVIÇO PÚBLICO

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6 CONSTITUCIONALIDADE

No que tange à constitucionalidade da norma em questão, apesar de não ser o debate proposto, não posso deixar de trazer à baila, mesmo porque, com o advento da legislação das cotas raciais para ingresso em cargos públicos, destaco novamente que ocorreu em diversos entes da federação, o debate acerca da constitucionalidade dessas normas se mostrou bastante acalorado.

Não só os entendimentos doutrinários, mas também as decisões dos Tribunais eram conflitantes, gerando uma grande insegurança jurídica acerca da matéria. Basta mencionar que, em controle concentrado de constitucionalidade, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que uma lei municipal que previa a cota racial era inconstitucional (ADI 1.0000.11.027006-3/000). Já o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, também em controle concentrado, entendeu que uma norma municipal com a previsão em comento seria constitucional (ADI 100130004417).

Contudo, referida divergência, bem como discussão acerca da constitucionalidade da reserva racial para cargos públicos, já restou superada. Isto porque o Supremo Tribunal Federal, em 08/06/2017, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, fixou a tese de que é constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta.

E, por tudo o que já foi dito aqui acerca das ações afirmativas, me parece este o entendimento mais acertado. Quando se trata de camadas da sociedade que são menosprezadas, “para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” (PIOVESAN, 2005, p. 49).

No entendimento de Dias (2005), a forma de dar efetividade ao preceito isonômico consagrado na Constituição é observando à igualdade mediante a eliminação das desigualdades e não meramente atentar à igualdade perante a lei. Ademais, é fundamento da nossa República a promoção do bem de todos, sem nenhuma forma de discriminação.

Nas palavras de Gomes (2000, p.2)

em lugar da concepção estática da igualdade extraída das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção dinâmica, militante de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade.

Não obstante entender que a norma como está hoje não atende sua eficácia e finalidade das ações afirmativas, o que será discorrido adiante, a tentativa de mitigar a desigualdade não afronta o princípio da isonomia, muito pelo contrário, o atende em seu grau mais aristotélico. Portanto, correto o posicionamento da nossa mais alta corte.


7 A INEFICÁCIA DA LEI E SUGESTÃO DE MUDANÇA

Conforme amplamente demonstrado, as ações afirmativas são um ótimo instrumento para a busca da igualdade material nos dias atuais, sendo certo que a população negra deve ser objeto destes programas, em virtude de todo o contexto histórico de discriminação. Contudo, se as ações afirmativas não forem aplicadas de maneira correta estarão fadadas ao insucesso.

Tendo isso em mente, deve ser levado em consideração que não apenas os negros, mas outros grupos da sociedade também são vítimas de discriminação e exclusão social, a exemplo dos índios, pobres, mulheres, imigrantes e comunidade LGBT, sendo que o fator renda pode ser determinante. “Em um país com tanta desigualdade como o Brasil, não são apenas os negros os excluídos, portanto há a necessidade de incluir outros segmentos da população” (DA SILVA, 2006, p. 145).

Instituir cotas apenas para um grupo desfavorecido, não tem a capacidade de mitigar a desigualdade, estabelecer o multiculturalismo, redistribuir renda e estabelecer uma justiça social, mas tende apenas a disseminar as diferenças entre as classes sociais. Por sua vez, determinar um percentual para cada grupo, considerando a alíquota dessas pessoas na sociedade, como é justificado no projeto que resultou na lei em análise, irá engessar e dificultar demasiadamente os certames públicos. Deve, portanto, ser estabelecido um fator comum.

Associado a isso se tem que, segundo Seekings e Natrass, Van den Bergue e Louw (apud DA SILVA, 2006, p. 150) num estudo realizado fora do Brasil, ficou constatado que após o fim do regime de apartheid, com a instituição de ações afirmativas que beneficiasse os negros, mas sem distinguir sua classe social, houve a diminuição da desigualdade social, entretanto, aumentou a desigualdade dentro do próprio grupo beneficiado.

Isso ocorre já que não se pode equiparar o negro da classe média alta, que sempre teve bons estudos, com o negro da classe baixa, que em alguns casos, vive a beira da miséria. A Lei 12.990/2014 beneficia justamente o negro da classe média alta, que, em regra, não está inserido na exclusão social. Em uma disputa dentro de um concurso é notório que o candidato negro que sempre estudou nas melhores instituições de ensino e fez cursos preparatórios caros para o certame tem uma larga vantagem em relação ao candidato negro oriundo do sistema público de ensino, pois sua renda é baixa.

“A exclusão de negros normalmente aparece como um problema socioeconômico, e se apoia na vinculação de raça e classe. (Logo) negros devem ser beneficiados pela sua exclusão aos recursos socioeconômicos: renda, educação e empregos” (DA SILVA, 2006, p. 145). Portanto, o negro de classe alta não deve ser tratado da mesma forma do negro de classe mais baixa, o qual realmente deve ser abrangido por ações afirmativas.

A tudo que já foi dito se soma o fato de que, é certo que o país tem uma dívida histórica com os negros devido ao período escravocata, entretanto, devido a miscigenação, bem como a todos os anos em que já se passaram, hoje não apenas os negros sofrem com a herança desse período triste da história brasileira. Deve ser observado que, conforme Telles e Bailey (apud DA SILVA, 2006, p. 150)

os altos índices de miscigenação e as fronteiras raciais imprecisas dificultam a determinação de quem é descendente de escravos: de acordo com uma pesquisa no estado do Rio de Janeiro, 37% dos brancos declararam ter ascendentes negros, enquanto 80% dos pardos e 59% dos pretos declararam ter descendentes brancos.

Desse modo, é totalmente possível afirmar que existem negros que hoje não sofrem com nenhum reflexo do período da escravidão, e que existem brancos que são abarcados por esses reflexos negativos. Logo, não parece adequada uma ação afirmativa em concursos públicos, os quais são demasiadamente disputados, destinada apenas à comunidade negra.

Destarte, tendo em vista os diversos grupos sociais discriminados, a irregular distribuição de renda, inclusive dentro da própria comunidade negra, bem como que o legado da escravidão hoje alcança várias raças devido à miscigenação. Desta forma, a Lei 12.990/2014 deve ser modificada, pois pode não atingir suas finalidades.

Uma boa solução seria associar a cota racial à cota social, ou seja, estipular o critério raça concomitantemente com o critério renda, a exemplo do que é feito na Lei 12.711/2012, que disciplina o sistema de cota nas Universidades e Instituições de Ensino Federais.

Isso porque

o Brasil tem uma das mais perversas distribuições de renda, as desigualdades sociais se dão tanto pelo aumento dos pobres como pela manutenção ou ampliação dos privilégios dos ricos. Segundo estudiosos de políticas públicas, grande parte dos programas com dotação orçamentária não necessariamente beneficiam os mais pobres. (CASTRO, 2004, p. 4). 

Diante disto, um sistema que seria mais equânime e diminuiria tanto a exclusão social como a discriminação racial traria um misto de cotas raciais com cotas sociais. O percentual de 20% das vagas dos concursos pode ser mantido, mas destinados às pessoas de baixa renda, por exemplo, até 1,5 salários mínimos por pessoa na família, como já é mensurado em outros programas do governo. Dentro destas vagas já reservadas, poderia haver uma nova reserva de 50% para negros, atendendo ao multiculturalismo.

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Na prática, 10% de todas as vagas do concurso seriam destinadas às pessoas mais pobres, nelas estando incluídos diversos grupos que hoje vivem às margens da sociedade, inclusive os negros, e outros 10% seriam exclusivos dos negros, mas que também preencham ao requisito socioeconômico.

Nestes termos, acredita-se que a lei se enquadraria melhor na realidade brasileira, atendendo diversos grupos discriminados, com uma chance muito maior de atender seus objetivos, mitigando a desigualdade, estimulando a diversidade e redistribuindo renda.

O fato de que “a meta da ação afirmativa não seria apenas melhorar os índices socioeconômicos da população negra, mas também reforçar a identidade negra e aumentar a consciência da discriminação e da desigualdade raciais” (DA SILVA, 2006, p. 147-148), poderia ter totalmente atingido se reservada uma cota racial dentro da cota social, como foi sugerido, já que a cota unicamente racial tem o condão de aumentar ainda mais a desigualdade, inclusive, entre a própria comunidade negra, e a cota racial não foi excluída, mas reformulada, dando a devida visibilidade e reconhecimento à comunidade negra.


8 CONCLUSÃO

Como visto, as ações afirmativas são um instrumento de grande importância na mitigação da desigualdade, tanto social como racial, sendo amplamente utilizadas por diversos países das mais variadas formas. Por mais que seja polêmica, tal política, quando corretamente aplicada, não malfere o direito de igualdade, mas pelo contrário, o prestigia em seu grau material.

A possibilidade de conferir a determinados grupos sociais a possibilidade de concorrerem em iguais condições com os grupos privilegiados justificam as ações afirmativas, sendo um respeitável meio de igual distribuição de oportunidades em virtude do mérito individual.

O Brasil vem se utilizando dessa prática gradualmente, sendo a cota racial no serviço público sua última implantação até os dias de hoje. Contudo, não se nota uma uniformidade nas variadas formas de incrementação das ações afirmativas, podendo esse fato ser contrário aos próprios objetivos do programa.

Conforme sugerido, seria mais viável a Lei 12.990/2014 (cotas em concursos públicos) se aproximar do teor da Lei 12.711/2012 (cotas na educação), mesclando as cotas raciais às sociais, até mesmo por coerência normativa. Ademais, como mencionado, as cotas se enquadrariam melhor na realidade brasileira, atendendo a uma pluralidade de grupos discriminados.

Logo, os objetivos da lei em comento poderiam ser alcançados de forma mais eficiente, haja vista que mitigaria a desigualdade, estimularia a diversidade e redistribuiria renda. Portanto, atingiria tanto a desigualdade racial como a social.


REFERÊNCIAS

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______. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade100130004417, Relator: Ronaldo Gonçalves de Sousa, Tribunal Pleno, julgamento em 21/11/2013, publicação em 04/12/2013.

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CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JÚNIOR, João. Ação afirmativa no Brasil:multiculturalismo ou justiça social?. Lua Nova, São Paulo, 99,p.257-293, 2016.

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GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Instrumentos e métodos de mitigação da desigualdade em direito constitucional e internacional. Disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31989-37507-1-PB.pdf>, acesso em 20/08/2019.

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PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 43-55, jan./abr. 2005.

______. Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Estudos Feministas, v. 16, n.3, p. 887-896,setembro-dezembro/2008.

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