INSPEÇÃO DO TRABALHO E ABUSO DE AUTORIDADE: CASO DO ATO MÉDICO INSEGURO

Opiniões de leigos, avaliações subjetivas, artimanhas interpretativas, descrição de quadros clínicos de estresse e ansiedade sem lastro em avaliação médica.

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08/10/2019 às 00:48
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A interdição do exercício profissional de médicos não se insere nas competências das autoridades da Inspeção do Trabalho. Essa competência é reservada aos Conselhos Regionais de Medicina.

                   “Com grande poder para fazer o bem vem o poder para abusar.” (Eric Posner)[1]

RESUMO: Auditores-fiscais do Trabalho (AFTs) interditaram atividades de médicos e de enfermeiros e a farmácia do Hospital Estadual de Urgências de Goiânia (Hugo). Os motivos foram o estresse e a ansiedade dos profissionais de saúde causados pela falta de medicamentos, de insumos e de médicos, condições essas que comprometeriam o ato médico seguro. As interdições afetaram os atendimentos nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) e no Centro Cirúrgico. Os AFTs determinaram ainda a redução nos atendimentos de urgência e emergência e a adoção de protocolos de atendimentos dos pacientes internados. O caso será analisado na perspectiva das competências de órgãos e instituições. Restará demonstrada a ilegalidade das medidas determinadas pelos agentes fiscais. Vislumbra-se, no plano abstrato, abuso de poder e usurpação de competências.

INTRODUÇÃO

Este ensaio não questiona a existência de problemas de saúde mental relacionados ao trabalho[3] e tampouco a competência da Inspeção do Trabalho na matéria. A crítica é dirigida à ilegalidade da interdição de atividades de profissionais por parte de AFTs. O art. 161 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) autoriza o embargo de obras de construção civil e a interdição de áreas físicas, máquinas e equipamentos, mas não de pessoas ou de suas atividades profissionais.

Se não fosse o bastante, o caso em exame também revela a inexistência de dados técnicos que demonstrem riscos graves e iminentes nos locais ou condições de trabalho que justificassem a medida extrema. O que se vê são opiniões de leigos, avaliações subjetivas e artimanhas interpretativas. Mais grave é a descrição de quadros clínicos de estresse e ansiedade sem lastro em avaliação médica. Não menos importante é a irracionalidade da medida interventiva que expôs os pacientes hospitalizados e as pessoas que buscassem atendimento médico de urgência a potenciais riscos graves à sua saúde. No plano abstrato, cogita-se caso de abuso de poder, na modalidade excesso de poder, apta a atrair medidas sancionadoras por parte das autoridades do então Ministério do Trabalho, atual Ministério da Economia, as quais, no entanto, aparentaram omissão.

Não se trata de caso isolado. Em outras ocasiões, os mesmos AFTs interditaram motoristas rodoviários de cargas e de passageiros que excediam o limite de horas de viagem, o que será objeto de outro artigo.

Em virtude disso, o presente ensaio assume a natureza de controle social das atividades da Inspeção do Trabalho, como forma de preservar a legitimidade da instituição, já afetada por ações questionáveis. 

A análise parte dos marcos normativos aplicáveis ao caso.

Da Inspeção do Trabalho

O ato administrativo de interdição vinculada à Inspeção do Trabalho está previsto no art. 161 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ele admite a interdição de estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento diante de risco grave e iminente para o trabalhador. Outro ato extremo é o embargo de obra. A CLT atribui aos delegados regionais do trabalho, atuais superintendentes, a decisão pela decretação dos atos extremos à luz de laudo técnico do serviço competente. Todavia, uma decisão da 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região autoriza o próprio AFT a decretar as medidas, sem a necessidade de autorização prévia[4].

Segundo a Norma Regulamentadora n.º 3 (NR-03), na versão da época, grave e iminente risco é toda condição ou situação de trabalho que possa causar acidente ou doença relacionada ao trabalho com lesão grave à integridade física do trabalhador[5]. A ameaça de lesão grave à integridade física do trabalhador é, portanto, o critério que deflagra a medida interventiva. Não havendo ameaça de lesão grave, a medida extrema não é aplicável. Em que pese a norma fixar o critério de lesão à integridade física, alguns pretendem que fatores ou condições ensejadores de doenças também sejam passíveis de interdição. Ainda que se possa admitir tal hipótese, a condição de gravidade iminente em razão de doença exige um diagnóstico médico. Não há tolerância para opiniões de leigos ou profissionais sem competência para tal diagnóstico.

O conceito da NR-03 define a condição de gravidade, não a condição de iminente. Embora pareça trivial o sentido de iminente, a interpretação da norma não é tão pacífica no âmbito da auditoria-fiscal do trabalho, ao menos. Alguns entendem que a iminência diz respeito ao risco, e outros sustentam que se refere aos efeitos do risco.  

As NRs se destinam a prevenir os riscos, não as suas consequências. As consequências se prestam para determinar quais as medidas necessárias para reduzi-las ou mesmo eliminá-las.

Uma lesão grave pode surgir de imediato ou ao longo de um tempo. O risco de uma queda iminente certamente causará lesão grave e imediata ao trabalhador. O mesmo ocorrerá com o manuseio de fios energizados sem os equipamentos de proteção individual (EPI) apropriados. Idem com a inalação de gases tóxicos letais. Ou o risco de contaminação por doença grave em ambiente hospitalar ou de atendimento de urgência nas vias públicas ou outro local. Por outro lado, e a título exemplificativo, trabalho com movimentos repetitivos sem adequadas medidas ergonômicas preventivas poderá gerar adoecimento gradual do trabalhador, que pode assumir condição de gravidade ao longo do tempo. A depressão pode apresentar diferentes graus de intensidade e gravidade, podendo, em casos extremos, levar ao suicídio.

Em que pese haver entendimentos de que é possível interditar a interface humana diante de situações de grave e iminente risco, traduzindo uma possibilidade de determinar a interrupção do trabalho humano sob risco, tal hipótese, ainda que, no plano abstrato, se mostre aceitável, não se aplica ao caso concreto. Nele, a impossibilidade do exercício profissional não resultou da interdição da sala de cirurgia, por exemplo, mas sim da interdição da própria atividade profissional no hospital. Se fosse o caso de interdição da sala de cirurgia, tem-se, de fato, a interrupção da interface humana nas atividades executadas naquela sala. Mas não em outros ambientes do estabelecimento de saúde, como no atendimento ambulatorial. Não há que se confundir a interdição de serviço de saúde com a proibição de o profissional de medicina exercer seu trabalho. A proibição de exercer a profissão médica constitui a interdição ética, privativa dos conselhos regionais de medicina, como será visto.

Em prosseguimento, afirma-se que as atribuições dos AFTs estão elencadas no art. 18 da Lei n.º 10.593/2002. Conforme seu inciso I, a eles cabe assegurar o cumprimento das disposições legais e regulamentares relacionadas à segurança e à saúde do trabalho. As condições de segurança e saúde no trabalho estão detalhadas nas Normas Regulamentadoras (NR)[6] aprovadas pelo Ministério do Trabalho, agora Ministério da Economia. Dentre elas, destaca-se a NR-32, que trata justamente sobre as condições de segurança e saúde no trabalho em serviços de saúde. Seus temas abarcam riscos biológicos, riscos químicos, radiações ionizantes, resíduos, condições de conforto para refeições, lavanderias, limpeza e conservação e manutenção de máquinas e equipamentos, bem como sobre os requisitos a serem contemplados no Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e no Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional (PCMSO) em estabelecimentos de saúde. Tal norma é que deve nortear a atuação da Inspeção do Trabalho no caso concreto, devendo ser aplicada em conjunto com o PPRA e o PCMSO do hospital fiscalizado. Isso, porém, não impede que outras NRs possam ser aplicadas aos estabelecimentos de saúde, em especial a NR-07, sobre Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional.

O Regulamento da Inspeção do Trabalho (RIT), aprovado pelo Decreto n.º 4.552/2002, é mais minudente quanto às atribuições dos AFTs (art. 18). No caso concreto, incumbia aos AFTs determinar as medidas preventivas necessárias diante de situações com risco potencial de gerar doenças ocupacionais e acidentes de trabalho (art. 18, X). Quando constatado grave e iminente risco para a saúde ou segurança dos trabalhadores, cabe ao AFT expedir notificação de que trata o inciso X, “determinando a adoção de medidas de imediata aplicação” (art. 18, XI). Convém notar que nesses casos de grave e iminente risco, a notificação para correção implica em atendimento imediato. E essas medidas de imediata aplicação são aquelas medidas técnicas corretivas que eliminem ou ao menos reduzam a gravidade do risco. E, por fim, em situação de risco grave e iminente em que a notificação para cumprimento imediato se mostrar, por si só, inadequada ou insuficiente, cabe ao AFT propor embargo ou interdição mediante laudo técnico com a descrição da situação de risco verificada e com a indicação das medidas corretivas a serem adotadas pelas pessoas sujeitas à inspeção do trabalho (inciso XIII). Saliente-se que esse inciso XIII encontra-se afetado pela decisão liminar do TRT da 14ª Região que autoriza o próprio AFT a determinar a interdição ou embargo sem necessidade de autorização prévia. Os atos extremos de interdição e embargo são medidas administrativas cautelares que vedam a realização de trabalho sob aquelas condições enquanto as medidas técnicas corretivas não estejam implementadas e aprovadas pela autoridade fiscal competente.

Esses instrumentos legais revelam uma gradação de sua utilização, de modo que a situação de grave e iminente risco reclama, primeiramente, a expedição de notificação para execução imediata de medidas saneadoras (inc. XI). Se desatendida a notificação ou se as condições técnicas reclamarem não apenas a notificação prévia para cumprimento imediato, mas também a interdição ou embargo, então essas medidas extremas deverão ser impostas pelo AFT.  

A análise detida desses diplomas legais revela que não é atribuição do AFT fiscalizar o exercício da profissão de médico e tampouco o ato médico em si. Tais situações são competências exclusivas dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs). Isso também vale para o exercício da profissão de enfermeiro, cujo exercício profissional se submete à fiscalização dos Conselhos Regionais de Enfermagem (Corens), e de enfermeiros, a cargo dos Conselhos Regionais de Farmácia (CRFs).

A fiscalização de estoques de medicamentos em farmácias hospitalares e as suas finalidades terapêuticas também não se inserem nas atribuições do AFT. Porém, é atribuição do AFT fiscalizar a manutenção da rotulagem dos produtos químicos (NR-32, subitem 32.3.1), onde se inserem os medicamentos, os radiofármacos, os quimioterápicos, além daqueles utilizados para desinfecção, descontaminação, entre outros. O inventário de medicamentos exigido no PPRA (subitem 32.3.4.1 da NR-32) não se presta a averiguar se o estoque é adequado às finalidades médicas, mas sim a sua relação com os riscos para os trabalhadores. Para esse fim, o subitem 32.3.9 da NR-32 aborda os medicamentos e as drogas de risco que possam causar genotoxicidade, carcinogenicidade, teratogenicidade e toxicidade séria e seletiva sobre órgãos e sistemas. Tais características se destinam à preservação da saúde e segurança dos trabalhadores em saúde, atribuição afeta à Inspeção do Trabalho e, em relação aos médicos, também do CRM, conforme será visto. Obviamente que os efeitos desses medicamentos e drogas acima mencionados também afetam os pacientes, mas também é óbvio que os efeitos sobre os pacientes não são objeto das atribuições dos AFTs. 

A salubridade dos estabelecimentos de saúde ganha relevância nos anexos I e II da NR-32. O anexo I contém a tabela de classes dos riscos dos agentes biológicos[7], classificados quanto grau de risco para o trabalhador e probabilidade de disseminação para a coletividade, bem como quanto aos meios eficazes de profilaxia e tratamento. Os graus de risco 3 e 4 ensejam riscos graves. O anexo II trata da classificação dos agentes biológicos, identificando as bactérias, os vírus, os príons, os parasitas e os fungos, com seus respectivos graus de risco. Esses parâmetros são de extrema importância para a identificação de riscos de infeção hospitalar. Ainda que as precauções da NR-32 visem à proteção do trabalhador, é inconteste que, em certa medida e em alguns casos, beneficiam também os pacientes. Mas isso não autoriza o AFT a se imiscuir nos cuidados aos pacientes.  

A constatação de grave e iminente risco à saúde e/ou à integridade física do trabalhador deve se dar com base em critérios técnicos. É o que determina a NR-28, subitem 28.2.1. E critérios técnicos pertencem ao domínio da ciência e de seus profissionais especializados.

Da Anvisa

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi criada pela Lei n.º 9.782/1999 (art. 3º). Entre as suas variadas competências estabelecidas no art. 7º está a de “interditar, como medida de vigilância sanitária, os locais (...) de prestação de serviços relativos à saúde, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde” (inc. XIV). Também é competência da Anvisa “estabelecer, coordenar e monitorar os sistemas de vigilância toxicológica e farmacológica” (inc. XVIII).

O art. 8º, caput, atribui ainda à Anvisa controlar e fiscalizar os serviços que envolvam riscos à saúde. O seu § 1º define os bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária da Agência. Entre eles estão os “medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologia” (inc. I), “conjuntos, reagentes e insumos destinados a diagnóstico” (inc. V) e “radioisótopos para uso diagnóstico in vivo de radiofármacos e produtos radioativos utilizados em diagnóstico e terapia” (inc. IX). 

Nos termos do seu § 2º do art. 8º, consideram-se serviços submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência aqueles voltados para a atenção ambulatorial, seja de rotina ou emergência, os realizados em regime de internação e os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico.

Depreende-se, assim, que a Anvisa projeta suas competências sobre serviços de saúde, aí incluídas as farmácias.

A missão precípua da Anvisa é proteger a saúde da população. Se ela detectar circunstância especial que gere riscos para os trabalhadores em saúde, deve representar junto ao órgão competente da Inspeção do Trabalho para que seus agentes exerçam o poder de polícia que lhes é conferido em caráter privativo.

A Anvisa ou os Serviços de Vigilância Sanitária dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios não podem exercer poder de polícia administrativa privativo da Inspeção do Trabalho. Tome-se como paradigmas os acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) quando julgou a constitucionalidade de leis estaduais que estendiam o poder de fiscalização trabalhista a órgãos estaduais[8].

Dos requisitos para UTIs

A Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa n.° 7/2010 (RDC n.º 7/2010) estabelece os requisitos mínimos para funcionamento de Unidades de  Tratamento Intensivo (UTIs) [9].  Segundo seu art. 7º, a direção do hospital onde há UTI deve garantir “o provimento de recursos humanos e materiais necessários ao funcionamento da unidade e à continuidade da atenção, em conformidade com as disposições desta RDC” (inc. I), bem como “a segurança e proteção dos pacientes, profissionais e visitantes, inclusive fornecendo equipamentos de proteção individual e coletiva” (inc. II).

O art. 9º da RDC referida determina que a unidade deve dispor de registro de normas institucionais e das rotinas relacionadas à biossegurança, contemplando, no mínimo, as “condutas de segurança biológica, química, física, ocupacional e ambiental” (inc. I), “instruções de uso para os equipamentos de proteção individual (EPI)” (inc. II), “procedimentos em caso de acidentes” (inc. III) e “manuseio e transporte de material e amostra biológica” (inc. IV).

O art. 14 trata da equipe multiprofissional, inclusive quanto ao dimensionamento em termos qualitativo e quantitativo. E o art. 16 prescreve que todos os profissionais devem estar imunizados contra tétano, difteria, hepatite B e outros imunobiológicos, de acordo com a NR-32 – Segurança e Saúde no Trabalho em Serviços de Saúde estabelecida pelo Ministério do Trabalho.

Segundo o art. 73 da Resolução n.º 7/2010 da Anvisa, “o descumprimento das disposições contidas nesta Resolução constitui infração sanitária, nos termos da Lei n. 6.437, de 20 de agosto de 1977 [art. 1º], sem prejuízo das responsabilidades civil, administrativa e penal cabíveis” (grifei).

É certo que há uma zona de intersecção entre as competências da Anvisa e da Inspeção do Trabalho no que diz respeito à segurança e saúde ocupacional dos profissionais que trabalham em estabelecimentos de saúde. Mas deve-se ter em conta que as normas sanitárias e trabalhistas se revestem da qualidade de normas especiais em seus respectivos campos de aplicações. Significa que o poder de polícia deve ser exercido nos limites dos agentes funcionais respectivos. O AFT pode autuar um estabelecimento de saúde por descumprimento da NR-07, sobre equipamentos de proteção individual e coletiva, ou da NR-32 antes citada. Todavia, não é lícito ao AFT exercer o poder de polícia por infração sanitária. É vedado ao AFT, por exemplo, exercer o poder de polícia administrativo-trabalhista ante o fato de o estabelecimento de saúde não dispor de medicamentos ou de insumos farmacêuticos, ou mesmo por não manter o dimensionamento correto da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares.

Do controle de infecções hospitalares

O controle de infecções hospitalares é objeto da Lei n.º 9.431/1997, cujo inciso I do art. 2º impõe aos hospitais o dever de constituir Comissão de Controle de Infecções Hospitalares (CCIH). Conforme o art. 9º dessa Lei, as infrações aos seus dispositivos serão aplicadas as penalidades previstas na Lei n.º 6.437/1977, que configura as infrações à legislação sanitária federal e estabelece as sanções respectivas.

Por sua vez, o Ministério da Saúde editou a Portaria n.º 2.616/1998 para estabelecer as diretrizes e normas para a prevenção e controle das infecções hospitalares. Conforme suas considerações preambulares, as infecções hospitalares constituem risco significativo à saúde dos usuários dos hospitais, e sua prevenção e controle envolvem medidas de qualificação de assistência hospitalar, da vigilância sanitária e outras. O Anexo I da Portaria trata da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares, prevendo regras para a sua composição, entre outras.

Compreende-se que o descumprimento de regras sobre a composição das CCIHs constitui infração à legislação sanitária federal, atraindo as penalidades previstas na Lei n.º 9.431/1977. Entre as penalidades está a interdição parcial ou total do estabelecimento (art. 2º, inciso VIII) a cargo dos órgãos estaduais, distrital ou municipais de vigilância sanitária. Não é atribuição dos AFTs fiscalizar e exercer o poder de polícia quanto aos requisitos que conformam as CCIHs.

Do prognóstico de doenças

A determinação do prognóstico relativo a doenças é ato privativo de médico, conforme a Lei n.º 12.842/2013, art. 4º, inciso X, e § 1º. O § 3º esclarece que as doenças, para efeitos da Lei, encontram-se referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). O estresse está associado ao código F43 da CID-10[10]. E a ansiedade vincula-se a quatro códigos da mesma classificação[11]. Admite-se a hipótese, portanto, de os relatos colhidos pelos AFTs indicarem adoecimento de profissionais de saúde do Hugo.

Da segurança do ato médico

No contexto da medicina, não havendo condições seguras para a realização do ato médico nos estabelecimentos de saúde, é cabível a interdição ética, cuja decisão é da competência do CRM. O procedimento está previsto na Resolução CFM n.º 2.062/2013[12], do Conselho Federal de Medicina. Seu art. 1º define “interdição ética do trabalho do médico (IEM), a proibição, pelo respectivo Conselho Regional de Medicina, de o profissional exercer seu trabalho em estabelecimentos de assistência médica e hospitalização por falta de condições mínimas para a segurança do ato médico” (destaquei). Convém repetir: a interdição ética visa a garantir a segurança do ato médico. Não tem relação com a garantia da vida, da integridade física, mental e psicológica dos profissionais da medicina. Por se constituir em medida restritiva de direito, sua aplicação deve decorrer de interpretação estrita. Nas lições de Carlos Maximiliano, as disposições repressivas interpretam-se estritamente porque, além de serem preceitos de ordem pública, mandam fazer ou proíbem que se faça. Não se dilatam, nem se restringem seus termos[13]. Também leciona o hermeneuta que competência não se presume. E se o legislador não dispôs sobre competências concorrentes, presume-se que elas são exclusivas[14]. Isso implica em dizer que a interdição das atividades profissionais de médicos é competência exclusiva do CRM. Sendo vedada a interpretação extensiva, a medida extrema não pode ser estendida a outro órgão ou autoridade, como é o caso dos AFTs.

As condições mínimas para a segurança do ato médico são definidas pelos requisitos contidos no art. 2º, parágrafo único, da Resolução CFM n.º 2.062/2013. Alguns deles são comuns às atribuições tanto do médico fiscal do CRM quanto do AFT. São os casos da adequação física do ambiente e de edificações, salubridade e segurança, equipamentos e infraestrutura. Não obstante, o descumprimento de condições seguras em torno desses requisitos não implica, para o AFT, a interdição de atividades profissionais, mas sim das áreas físicas ou de equipamentos. Por sua vez, o fiscal médico do CRM não tem atribuição para interditar máquina, equipamento ou área hospitalar. E deve ser lembrado que tais condições mínimas se destinam primordialmente à segurança do ato médico.

Em contrapartida, os requisitos mínimos para a segurança do ato médicos relativos à “inviolabilidade do sigilo profissional” e aos “insumos em quantidade e qualidade compatíveis com a segurança propedêutica compatíveis e complexidade dos procedimentos investigativos, terapêuticos e reabilitadores” destinam-se exclusivamente ao atendimento ao paciente. Por essa razão, estão excluídos das competências da Inspeção do Trabalho. Por certo, não é atribuição do AFT notificar o empregador a repor estoques de medicamentos e muito menos indicar quais medicamentos deverão ser repostos ou quais são mais adequados a quadros clínicos dos pacientes.  

Do enfermeiro

A lei não confere aos conselhos regionais de enfermagem a competência para decretar a interdição ética das atividades dos profissionais em casos que comprometam o ato de enfermagem, assim considerado em analogia ao ato médico.

Todavia, o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, em seu art. 13, assegura ao enfermeiro o direito de “suspender as atividades, individuais ou coletivas, quando o local de trabalho não oferecer condições seguras para o exercício profissional e/ou desrespeitar a legislação vigente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo formalizar imediatamente sua decisão por escrito e/ou por meio eletrônico à instituição e ao Conselho Regional de Enfermagem.”

Por outra perspectiva, o art. 76 do Código de Ética proíbe ao enfermeiro “negar assistência de enfermagem em situações de urgência, emergência, epidemia, desastre e catástrofe, desde que não ofereça risco para a integridade física do profissional.” 

Não obstante isso, o enfermeiro Marcus Vinicius José Ribeiro, Coren/GO n.º 244059, assinou o Relatório Técnico de Manutenção de Interdição que manteve a interdição das atividades dos enfermeiros nas UTIs e no Centro Cirúrgico do Hugo.

O enfermeiro tem atribuição legal para realizar consulta de enfermagem e prescrição da assistência de enfermagem, nos termos da alínea i e j do inciso I, do art. 11 da Lei n.º 7.498/1986. A mesma Lei, em seu art. 11, inciso II, confere ao enfermeiro, na condição de integrante de equipe de saúde, a atribuição para prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde (alínea c).

As atribuições para a realização de consulta de enfermagem e a prescrição de exames de rotina e complementares são tratadas na Resolução Cofen n.º 194/1997. No entanto, cabe assinalar que a realização de consultas e prescrições estão limitadas aos programas de saúde pública do Ministério da Saúde.

Nesse sentido, menciona-se a Portaria n.º 2.488, de 21/10/2011, do Ministério da Saúde, que institui a Política Nacional de Saúde. O seu Anexo I, que dispõe sobre a atenção básica á saúde, também confere ao enfermeiro a atribuição de realizar consulta de enfermagem, solicitar exames complementares e prescrever medicações. Mas vale ressaltar que essa atribuição só é admitida nos programas de atenção básica à saúde. Não se cogita que possam fazê-lo em unidades de tratamento intensivo ou de emergência hospitalares.

Do farmacêutico

O Conselho Federal de Farmácia (CFF) não prevê o instrumento da interdição ética para preservar a segurança dos atos profissionais dos farmacêuticos.

Porém, o Código de Ética do Farmacêutico, aprovado  pela Resolução n.º 596, de 21/02/2014, prescreve em seu art. 11, inciso V, o direito de o profissional “opor-se a exercer a profissão ou suspender a sua atividade em instituição pública ou privada sem remuneração ou condições dignar de trabalho, ressalvadas as situações de urgência e emergência, defendo comunicá-las imediatamente às autoridades sanitárias e profissionais.” E o inciso VII assegura ao profissional o direito de “ser fiscalizado no âmbito profissional ou sanitário, obrigatoriamente por farmacêutico.” A fiscalização sanitária cabe à Anvisa.

É bom frisar que o farmacêutico submetido a condições indignas de trabalho não pode suspender suas atividades em situações de urgência e emergência. Ou seja, no caso concreto analisado, por se tratar de estabelecimento de saúde destinado a atender casos de urgência e emergência, o farmacêutico não poderia suspender suas atividades.

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No contexto objeto desta análise, também merece atenção o art. 12, inciso VII, do Código de Ética da Profissão Farmacêutica. Segundo esse dispositivo, é dever do farmacêutico “respeitar a vida, jamais cooperando com atos que intencionalmente atentem contra ela ou que coloquem em risco a integridade do ser humano ou da coletividade.” Convém por ora precisar, para desenvolvimento posterior, que a interdição da Farmácia do Hugo expôs a saúde dos pacientes a graves riscos, sejam os que estavam hospitalizados, sejam os que buscavam os serviços de urgência e emergência do hospital. Apesar da determinação do CFF, os farmacêuticos Rejany Machado Pena (CRF/GO 2553) e Lucas Cunha Ribeiro (CRF/GO - 5902) assinaram o relatório de interdição trabalhista das atividades médicas, de enfermagem e Farmácia do Hugo.

Da responsabilidade do agente público

Por fim, cabe assinalar que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, conforme prevê o art. 28 do Decreto-Lei n.º 4.657 (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB), dispositivo esse incluído pela Lei n.º 13.655, de 25/04/2018.

Do crime de abuso de autoridade

A Lei n.º 4.898, de 09/12/1965 (Lei do , regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal nos casos de abuso de autoridade. Conforme seu art. 3º, constitui abuso de autoridade qualquer atentado “aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional” (alínea j). O art. 4º também conceitua como abuso de autoridade “o ato lesivo da honra e ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal” (alínea h). Segundo o art. 6º, “o abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção, administrativa, civil e penal.”

Saliente-se, contudo, que a Lei n.º 4.898/65 foi revogada pela recente Lei n.º 13.869, de 05/09/2019, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade. Dá-se destaque ao disposto no seu art. 33, caput, segundo o qual, constitui crime “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal.”

É certo que, conforme o § 1° do art. 1º, configura-se o crime de abuso de autoridade quando praticados pelo agente “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.” Do mesmo modo, merece ressalva que nos termos do § 2º do art. 1º, “a divergência de interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.”

Alguns agentes públicos promovem certas medidas de impacto com o intuito de ganhar espaços midiáticos. Seria o caso de enquadramento da conduta de mero capricho ou satisfação pessoal, apta para atrair o tipo penal.

Nas lições de Galba Velloso, o excesso de poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, vai além do permitido e exorbita no uso de suas faculdades administrativas[15]. No caso concreto, a CLT autoriza a interdição de estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, mas não do exercício regular de profissões.

 

Dos fatos

Expostos os parâmetros legais que incidem no caso concreto, parte-se para o exame dos fatos.

Em face de denúncia, os AFTs Jaqueline Ramos Silva Carrijo e Ricardo Oliveira[16], acompanhados de representantes do Conselho Regional de Farmácia de Goiás (CRF/GO), empreenderam ação fiscal no Hospital Estadual de Urgências de Goiânia (Hugo) no período de 20 a 23/09/2018, quando inspecionaram locais de trabalho e entrevistaram dirigentes, profissionais e examinaram documentos da farmácia e da área financeira. Diante do quadro encontrado, na data de 24/09/2018 emitiram o “Termo de Interdição n.º 02026557/2018 de Paralisação de Atividades”[17] (na verdade, se trata de laudo técnico de interdição), e também o Termo de Interdição n.º 4.022.911-4[18].

Depois de prolegômenos que buscam justificar a atuação da Inspeção do Trabalho no caso concreto, a AFT Jaqueline Carrijo relata no laudo: “Recebemos denúncias de falta de medicamentos e insumos que prejudicam o ato médico, da enfermagem, da farmácia e que colocam em risco a segurança dos profissionais e dos pacientes.” E continua: “Denúncia de aumento alarmante de estresse ocupacional, sofrimento mental, ansiedade, medo em razão do exercício profissional sem condições de trabalho seguro e dignas.”

Dessa narrativa podemos extrair a sequência da cadeia de fatos encontrados na auditoria trabalhista e que levaram os AFTs a decretar a medida extrema: falta de medicamentos e insumos à prejuízo ao ato médico à risco para segurança dos profissionais e pacientes à exercício profissional sem condições seguras à aumento alarmante de estresse ocupacional, sofrimento mental, ansiedade e medo. Vale lembrar que possíveis efeitos sobre pacientes não são da alçada da Inspeção do Trabalho.

A ocorrência de doenças como o estresse e a ansiedade em função do trabalho certamente atrai as atribuições dos AFTs. Não obstante, a medida de interdição conferida aos AFTs pelo art. 161 da CLT exige a identificação de risco grave e iminente para a integridade física dos trabalhadores, no caso, médicos e enfermeiros que trabalham nas UTIs e no Centro Cirúrgico do Hugo. Mas a caracterização de grave e iminente risco exige a apresentação de dados técnicos objetivos, conforme subitem 28.2.1 da NR-28.

No caso concreto, critérios técnicos exigem, primeiramente, a comprovação médica do estresse e da ansiedade. E tal quadro reclama o prognóstico relativo a esse diagnóstico nosológico, ato da competência privativa de médico. Na perspectiva do que se está argumentando, é preciso ter em conta que as atividades médica e de enfermagem, por si só, já envolvem certo grau de estresse[19], em especial nos atendimentos de urgência e emergência e atos cirúrgicos (o mesmo ocorre com outras profissões, como policiais militares, controladores de voos, entre outras). Ademais, se mostrava necessário também demonstrar, com dados técnicos, que o grau de estresse e ansiedade era de tal monta que estavam presentes riscos graves e iminentes para a saúde e segurança dos profissionais. Algumas questões deveriam ser investigadas: haveria casos de estresse e ansiedade que evoluíram ou poderiam evoluir para quadro clínico de depressão? E se havia casos de depressão, quais os graus de gravidade? Quais as consequências para a saúde dos profissionais em razão da gravidade da doença?  Eram graves a ponto de atrair o risco de suicídio? 

No aspecto temporal, era necessária a demonstração de que o tal aumento “alarmante” nos diagnósticos ocorreu após a situação da falta de repasses das verbas públicas, o que permitiria afirmar que foi a falta de medicamentos e de insumos a causa determinante para o “aumento alarmante” dos diagnósticos de estresse e ansiedade. Essa condição deflagrava outra demanda: a quantificação dos casos de adoecimentos mentais antes e após a crise financeira que afetou o hospital. De fato, impunha-se a demonstração de que o grau de estresse e de ansiedade de cada médico ou enfermeiro individualmente cresceu de modo importante ao longo do tempo.

Assim, a demonstração clínica de estresse ocupacional e de ansiedade e a auditoria dos quantitativos de adoecimentos dessa natureza constituem os dados técnicos necessários para demonstrar a existência de risco grave e iminente para a segurança e saúde dos profissionais de saúde. Mesmo que tivessem sido demonstrados objetivamente, impunha-se, aos AFTs, demonstrar porque a notificação prévia em caso de risco grave e iminente determinada pelo inciso XI do art. 18 do RIT era insuficiente ou inviável para mitigar os supostos efeitos nocivos para os trabalhadores a ponto de a interdição das atividades dos médicos e dos enfermeiros ser a única medida cabível naquelas circunstâncias.

No que diz respeito à interdição da Farmácia, a situação não é diferente. A norma trabalhista exigia a comprovação de violações às normas de segurança e saúde baixadas pelo então Ministério do Trabalho naquele local específico que expunham os profissionais a riscos graves e iminentes para a sua segurança e saúde.

Destoando desses requisitos, a AFT Carrijo não aponta qualquer irregularidade trabalhista na Farmácia que expunha os trabalhadores a riscos graves e iminentes. Obviamente que a falta de estoque de medicamentos e insumos não constitui esse risco grave e iminente. Ao menos para os trabalhadores. E mesmo que cogitássemos dessa condição, pergunta-se: qual o efeito prático de interditar a Farmácia?

Quanto ao mais, a AFT descreve um “aumento alarmante” de estresse ocupacional e ansiedade. Porém, sequer sugere um marco zero de número de diagnósticos e o acréscimo que sobreveio no tempo para demonstrar o tal aumento e o estágio alarmante. A ausência de dados quantitativos dessa avaliação subjetiva revela justamente a falta de técnica. Mas não apenas isso. Não há qualquer menção a diagnósticos médicos no laudo de interdição.

Com efeito, no alto da página 6 do laudo, a agente-fiscal Jaqueline Carrijo relata “que todos os trabalhadores abordados, além dos nomes citados neste documento, confirmaram falta de medicamentos e insumos assim como fizeram relatos de estresse, preocupação, medo.” (grifo acrescentado). 

Se todos os trabalhadores abordados relataram problemas dessa natureza, e de fato são nominados vários profissionais no laudo de interdição, nada mais lógico que fossem destacados os relatos de médicos, pois são os profissionais que têm a competência legal para fazer o prognóstico de doenças. Não obstante, os alegados problemas de saúde foram “diagnosticados” por enfermeiras e farmacêuticas. Os únicos relatos que indicam entrevista com médicos ocorreram nas UTIs 1 e 2 (fls. 6/7), mas a narrativa usa o verbo na terceira pessoa do singular sem identificar quem se manifesta (sujeito oculto), o que impede averiguar fonte da avaliação. Deveras, na UTI 1, uma enfermeira, uma médica e um trabalhador de plantão responderam a entrevista da AFT, mas nenhuma resposta é individualizada. Foi relatado que “têm  faltado antibióticos, e quando há falta de um tipo ajustam para outro similar; (...);que sofre insônia, que fica pensando no paciente [quem?]; (...).” Na UTI 2, foram entrevistados uma enfermeira e um médico, e novamente os relatos não são individualizados. Na parte final do relato, consta que “pagamentos atrasados de médicos aumentam o estresse em razão das contas atrasadas; médico, enfermagem relatam dores de cabeça, estresse, ansiedade, medo de entrar no plantão em razão da falta de medicamentos, insumos.”

As condições na UTI 3 foram colhidas de uma enfermeira. “faltam antibióticos, (...); ansiedade, nervosismo, insônia por causa da preocupação com os pacientes, faltam médicos na UTI.” Na UTI 4 foi ouvida outra enfermeira, que disse faltarem antibióticos, insumos ou medicamentos, o que gera atraso nos procedimentos da UTI porque os trabalhadores “precisam ficar correndo atrás para conseguir cuidar dos pacientes.” No Centro Cirúrgico, outra enfermeira foi a autora dos relatos. Detalha os medicamentos e insumos faltantes, as dificuldades junto à Farmácia, o que limita o fornecimento em razão do baixo estoque, segundo ela. E relata também que há risco de aumentar a infecção, “que os médicos e anestesistas estão muito preocupados e com medo em razão da responsabilidade do ato médico.”

A situação na Farmácia foi apresentada por uma farmacêutica, que descreveu os problemas com a falta de insumos e de medicamentos; as alternativas utilizadas; indica precisamente alguns medicamentos faltantes, os procedimentos que estavam adotando, a necessidade urgente de antibióticos, o que compromete o controle de infecção no Hospital; que médicos ficam irritados, frustrados porque precisam mudar a prescrição ante a falta do medicamento; que médicos infectologistas pediram remoção do Hospital; que chegou uma infectologista para atender 400 leitos, o que é muito pouco, “que estão sobre forte pressão, estresse buscando de todas as formas garantir o melhor para o paciente; que estão muito tristes, frustrados, indignados com essa situação; sofrem dores de cabeça, insônia, nervosismo, preocupação constante com os pacientes.” Nesse último trecho, a narrativa usa sujeitos ocultos, o que não permite saber se todos os trabalhadores estão sob essa situação ou os médicos infectologistas, pois a narrativa de sofrimentos segue a sequência do relato sobre os médicos infectologistas.

Desse quadro descritivo emerge outra indagação: como diferenciar estados de preocupação, medo ou insegurança de um quadro clínico de doença, como estresse ou ansiedade? Somente um médico pode fazer essa distinção. O fato de um enfermeiro ter a atribuição de observar, reconhecer e descrever sintomas não o autoriza a formular o diagnóstico de doenças.

Como se veio de dizer, se todos os trabalhadores foram ouvidos na auditora trabalhista, por que não destacar os relatos dos médicos? Alguns fatos podem explicar essa omissão.

Segundo narrado no laudo de interdição, houve denúncia formal de médicos do Hugo ao Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego), denúncia essa que foi “recebida pela Auditoria do Trabalho”. Porém, não foi anexada ao laudo técnico. Ainda segundo o laudo fiscal, a denúncia dos médicos “também é reveladora dos graves riscos ocupacionais que incluem além da incapacidade de exercer a medicina em razão da falta de medicamentos, insumos, a insegurança em razão da falta de mão de obra, falta de rouparia.” A partir desse quadro extraído da denúncia, a AFT conclui que “está em risco grave, iminente, recorrente a segurança do trabalho e a segurança do cuidado com o paciente em razão da falta de medicamentos, insumos, mão de obra.”

Perceba-se que a denúncia dos médicos feita ao Cremego não reporta quadro grave de ansiedade ou estresse entre os médicos. São apresentados riscos para o ato médico. Ainda que riscos para o ato médico possam desencadear quadros de estresse e ansiedade nos profissionais de saúde, a denúncia, como já dito, não reporta casos médicos dessa natureza. Ademais, o quadro fático descrito na denúncia não autoriza a Inspeção do Trabalho a se imiscuir nos cuidados aos pacientes.

Uma circunstância não deve ser menosprezada nesse quadro. A denúncia foi dirigida ao Cremego, não à Inspeção do Trabalho. Por essa razão, ela, a denúncia, reporta situações circunscritas à segurança do ato médico. E isso tem uma explicação lógica e jurídica: quem tem competência para fiscalizar a segurança do ato médico é o Conselho Regional de Medicina. Ignorando essa premissa, os AFTs goianos se apropriaram da denúncia e se lançaram na fiscalização do seu objeto: a segurança do ato médico. O desastre estava armado.

Ouro fato relevante é que o Cremego já inspecionava o Hospital de Urgências de Goiânia antes da entrada em cena da Inspeção do Trabalho, conforme entrevista do presidente do Conselho à rádio CBN de Goiânia[20] levada ao ar em 21/09/2018 (a ação fiscal da Inspeção do Trabalho havia iniciado no dia anterior). A falta de médicos e de medicamentos básicos foi uma das constatações do Conselho profissional, segundo o seu presidente. Ele não menciona casos graves de ansiedade e estresse entre os médicos. Perguntado sobre a possibilidade de interdição do Hospital, ele disse que estava em curso um prazo concedido aos dirigentes para que saneassem as não conformidades, ao fim do qual iria avaliar a possibilidade de uma conduta mais dramática. Mas ressaltou que “não se concebe um hospital trabalhando sem médicos e sem antibióticos”. Todavia, com precaução, ponderou que é necessário medir se o risco é maior do que o benefício que ele traz, quando poderá ser encaminhado um processo de interdição. Os AFTs Jaqueline Carrijo e Ricardo Oliveira fizeram o cálculo do risco, e o resultado não foi bom para os pacientes.

A interdição aventada pelo presidente do Cremego é aquela interdição ética do trabalho dos médicos por conta da falta de segurança para a realização do ato médico, que visa não apenas evitar erro médico com risco para o paciente como, sobretudo, afastar possíveis responsabilidades éticas, cíveis e criminais em desfavor dos profissionais da medicina. E por profissionais da Medicina não se entende os enfermeiros e farmacêuticos.

O fato de problemas de ansiedade e de estresse não terem sido relatados na denúncia ao Cremego e na entrevista de seu presidente pode explicar a ausência de manifestações de médicos nas entrevistas retratadas no laudo técnico de interdição da Inspeção do Trabalho. Se os médicos nada disseram, os AFTs resolveram ouvir as opiniões de enfermeiras e farmacêuticas.

Nesse mesmo contexto, sublinhe-se que o Cremego não acompanhou as diligências da Inspeção do Trabalho no Hospital. Outro fato relevante é que o Cremego também esteve ausente de uma audiência na tarde do dia 24/09/2018 na Procuradoria Regional da República em Goiás[21], conduzida pelo procurador da República Ailton Benedito de Souza para tratar dos problemas no Hospital. Representantes do Conselho Regional de Farmácia estiveram presentes nos dois episódios. A ata não registra que houve o convite ao Cremego.

A circunstância da ausência chama a atenção. Primeiramente, como já dito, o presidente do Conselho concedeu entrevista à Rádio CBN em Goiânia no dia 21/09/2018, o que denota um potencial conhecimento público de sua fala. O laudo técnico de interdição encaminhado ao MPF noticiava a denúncia de médicos ao Cremego. Como os médicos são os profissionais legalmente habilitados e com competência para prestar o atendimento médico de urgência e emergência aos pacientes, era de se esperar que fossem ouvidos pelo procurador da República. É fato que o diretor geral, o diretor técnico e o diretor clínico do Hugo – todos presumivelmente médicos –, estiveram presentes na audiência. Mas é bom lembrar que eles representaram o Estado empregador responsável pelas supostas irregularidades. Os médicos, enquanto profissionais, não estiveram representados. Mas será que foram convidados?

Indagado, o procurador da República Ailton Benedito de Souza, por seu Gabinete, disse que “o Conselho Regional de Medicina de Goiás (CREMEGO) não foi convidado/notificado à (sic) comparecer na audiência extrajudicial do dia 24/9/2018”.[22]

Necessário dizer, na circunstância, que no item 5.7 do laudo técnico de interdição, a AFT Jaqueline Carrijo determina a elaboração do “Plano de Emergência com critérios técnicos para início da redução de entrada de novos pacientes e definição de condutas em relação aos pacientes internados” (minha ênfase). E essa determinação é escoltada por outra, com a ênfase agora incluída: “Esse plano de emergência deverá ser apresentado no dia 26/09/2018, às 15:00 à Auditoria do Trabalho (sic), Fiscais do Conselho de Farmácia e ao Procurador da República Ailton Benedito (...).”  A par disso, mais adiante haveria ainda um laudo de manutenção da interdição, desta feita assinado pelos AFTs, por fiscais do CRF e com a inclusão de fiscais do Conselho Regional de Enfermagem (Coren).

Do ponto de vista que se está discutindo, há uma complicação a ser enfrentada quanto à avaliação dos critérios técnicos dos tais planos de emergência. Conforme o inciso XI do art. 4º da Lei n.º 12.842/2013, que dispõe sobre o exercício da Medicina, é ato privativo do médico “indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde.” E não apenas isso. Conforme o mesmo artigo da Lei em questão, também são atos privativos do médico a “indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios” (inc. II), a “indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias” (inc. III), e etc. Por tais razões, não podemos deixar de nos inclinar ante a evidência de que o dito plano de emergência com critérios técnicos para admissão de novos pacientes e para atendimento aos pacientes internados deveria ser apresentado, obviamente, a fiscais do Conselho Regional de Medicina, e não do Conselho de Farmácia. Qual a finalidade de um farmacêutico avaliar os tais planos de emergência de internações e de protocolos de atendimentos aos pacientes já internados se não é da sua atribuição legal manifestar-se sobre casos de internações e tratamentos indicados a cada paciente?

Se farmacêuticos endossaram os critérios técnicos para a redução da internação de novos pacientes e as definições de condutas quantos aos pacientes já internados, se teria, no plano abstrato, usurpação de competências médicas. E não apenas isso: em tese, teriam incorrido em descumprimento de dever ético, pois concorreram para a interrupção de atendimento profissional em serviços de urgência e emergência (Código de Ética, art. 11, V).

Por esse enfoque, esse modo de proceder da AFT Jaqueline Carrijo, que não possui formação em Medicina, lança sombras sobre as circunstâncias que cercam o aparente desprestígio ao Cremego.

Outra instituição que também ficou alijada nos primeiros momentos foi a Vigilância Sanitária, que também é competente para interditar estabelecimentos de saúde quando há falta de médicos ou de medicamentos[23]. Em verdade, foi somente após a interdição que a auditora-fiscal Jaqueline Carrijo determinou à Secretaria Estadual de Saúde de Goiás que comunicasse os fatos aos serviços de vigilância sanitária estadual e municipal.

Sem o Cremego e a Vigilância Sanitária e com o Conselho Regional de Farmácia e o Conselho Regional de Enfermagem de coadjuvantes, o protagonismo dos AFTs estava garantido[24].

Pois bem. Se o “diagnóstico” de ansiedade e estresse foi baseado em relatos de enfermeiras e farmacêuticas, e não de médicos, então esses relatos descritivos de adoecimento mental vertidos no termo de interdição carecem de validade jurídica, sendo imprestáveis para justificar a medida interventiva extrema. E se a medida extremada é juridicamente inválida, sobrevém a potencial responsabilização dos agentes que cometeram ato ilegal.

Em outro ponto, o laudo de interdição informa que o “HUGO tem usado do critério de substituição de medicamentos e insumos para continuar prestando serviço para a população. (...).” Mas a auditora-fiscal Jaqueline Carrijo não concorda com isso. À fl. 11 de seu laudo técnico ela dá lições: “Sabemos que esse critério é muito arriscado, ainda mais quando usado com a frequência com está sendo utilizado (...). Estão usando produtos que não trazem segurança para os trabalhadores e nem para os pacientes. (...). As substituições comprometem a padronização por que causam danos à melhor terapêutica para o paciente. (...). Cabe assinalar que há itens que são insubstituíveis.” Resta indagar quem é o sujeito indeterminado em “sabemos”.

Essa breve descrição conduz a algumas assertivas: não é atribuição do AFT fiscalizar a qualidade dos medicamentos destinados aos pacientes. Também não é sua atribuição verificar se a terapêutica aplicada aos pacientes é a melhor ou mesmo se a substituição de medicamentos ministrados a eles é adequada ou não.

Além disso, restam várias indagações: quais medicamentos destinados aos pacientes representam riscos aos trabalhadores? Quais são esses riscos? Quais “itens” são insubstituíveis e por quê? Quais são os equipamentos de proteção individual que não foram fornecidos? O relato da auditora-fiscal Jaqueline Carrijo é eloquentemente omisso nesses pontos, o que corrobora a escassez de critérios técnicos justificadores da medida extrema.

A narrativa sobre dados técnicos pertencentes a áreas do conhecimento que não são da competência dos AFTs pode ter resultado de outra ilegalidade: fiscais do Conselho Regional de Farmácia assinaram o laudo técnico de interdição conjuntamente com a AFT Jaqueline Carrijo. O mesmo ocorreu com o laudo técnico de manutenção de interdição, que também foi assinado por enfermeiros fiscais do Conselho Regional de Enfermagem. Tal fato viola o ato privativo do auditor-fiscal do trabalho para interditar, conforme inciso XIII do art. 18 do Regulamento da Inspeção do Trabalho, bem como pela decisão judicial já mencionada alhures. Na perspectiva dos Conselhos coadjuvantes, nenhum de seus fiscais detém atribuição para interditar atividades ou estabelecimentos[25].

Mas tudo isso tem um propósito. Essa narrativa conjunta confunde as competências legais de cada agente e, ao mesmo tempo, mas justamente por isso, camufla as incompetências de cada um. Tal quadro impede que o destinatário do ato extremo verifique as competências individuais de cada agente público, dificultando o próprio controle da legalidade do ato administrativo. A consequência jurídica é a nulidade do laudo técnico de interdição e de sua manutenção.

Sob outro enfoque, causa estranheza o fato de a AFT não ter mencionado em seu laudo de interdição que tenha examinado o PPRA e o PCMSO do Hospital. A razão parece bem simples: é que tais documentos não tratam das condições adversas relatadas no laudo e que levaram a agente fiscal a interditar as atividades de profissionas da área da saúde. Excetuam-se os EPIs, que, como já dito, não foram especificados no laudo. Mas há outra explicação: segundo a especiosa visão da AFT Carrijo, examinar PPRA e PCMSO é “fiscalização de papel”, o que não deixa de ser uma crítica aos AFTs que se debruçam sobre tais documentos.

A única situação concreta que é objeto de um PPRA e de PCMSO relaciona-se à infecção hospitalar. A questão é tratada no subitem 32.10.2 da NR-32, que prescreve: “no processo de elaboração e implementação do PPRA e do PCMSO devem ser consideradas as atividades desenvolvidas pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar - CCIH do estabelecimento ou comissão equivalente.” Isso significa que as informações coletadas e custodiadas pela CCIH em razão de suas atividades de identificação, monitoramento e controle de agentes biológicos devem ser consideradas para efeitos da elaboração e implementação dos programas aludidos. Mas o PPRA e o PCMSO não exigem o número de médicos infectologistas, já que nenhuma norma de natureza trabalhista trata desse quantitativo. A única NR que prescreve número de profissionais como garantia para os direitos fundamentais à segurança e à saúde dos trabalhadores é a NR-04, sobre o Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho (Sesmt), onde são estabelecidos os quantitativos de médicos do trabalho, engenheiros do trabalho, enfermeiros do trabalho e técnicos de segurança do trabalho que determinadas empresas devem contratar para compor seu Sesmt. Não há qualquer alusão a médicos infectologistas.

No contexto de infecção hospitalar objeto do laudo de interdição e tendo em conta as prescrições da NR-32, era necessário que a AFT responsável indicasse um caso concreto de agente biológico detectado no ambiente de trabalho e classificado como classe de risco 3 ou 4, a fim de auditar se as medidas preconizadas no PPRA e no PCMSO estavam sendo aplicadas adequadamente. Se algum agente biológico de classe de risco 3 ou 4 fosse detectado e se as condições ambientais potencializassem risco grave e iminente de contaminação, aí sim estaria presente uma razão objetiva para, primeiramente, expedir notificação para cumprimento imediato prevista no inciso XI do art. 18 do RIT, e, se essa medida não fosse suficiente, aplicar medida extrema de interdição de UTI ou outro setor de serviço. Mas nada disso foi relatado. Como foi exposto, a AFT não informa que tenha solicitado e examinado aqueles documentos referidos, que são imprescindíveis em toda e qualquer auditoria das condições de segurança e saúde no trabalho que siga os parâmetros legais.

Montado o quadro gravoso com todas essas deficiências e ilegalidades, a AFT Jaqueline Carrijo decidiu “DETERMINAR a interdição de atividades médicas, enfermagem e farmácia do Hospital de Urgências de Goiânia (HUGO).” Seguem várias determinações, avaliações e justificativas, expostas de um modo um tanto desordenado. A AFT  determina, entre outras medidas, que fosse criado “um plano de emergência para a redução de entrada de novos pacientes, bem como criem protocolos emergenciais para pacientes internados” (item 5.2). Notifica a Coordenação de Farmácia a exibir um “plano corretivo preventivo de abastecimento da FARMÁCIA DO HUGO” (item 5.4). Segundo o laudo técnico, com o abastecimento integral “ficará suspensa a interdição das atividades médicas e da enfermagem.” Ou seja, o estoque da farmácia foi o motivo determinante da sua interdição. Notifica também a Comissão de Infecção Hospitalar “para apresentar relatórios semanais do controle de infecção, de 04/2018 a 09/2018” (item 5.5). Assevera que “o trabalho inseguro em razão da falta de medicamentos e insumos coloca em risco os profissionais médicos, da enfermagem, da farmácia que são os responsáveis técnicos pelo ato médico, da enfermagem, da farmácia. Isso significa que há possibilidade de serem responsabilizados por negligência em caso de ocorrências danosas para pacientes em razão da falta de medicamentos e insumos” (item 5.59). E a AFT arremata no mesmo item 5.9: “Essa medida de urgência é necessária para a garantia da vida, da integridade física, mental e psicológica dos trabalhadores.” Ela se mostra convicta ainda de que “a confiabilidade dos procedimentos médicos e de enfermagem estão gravemente ameaçados em razão das condições de trabalho precárias. As denúncias formais de médicos ao CREMEGO revelam esse problema” (item 5.10). E, como de costume, finaliza com a advertência de violações aos tipos penais dos artigos 205 e 330 do Código Penal.

A AFT só não consignou no laudo técnico de interdição como superar uma contradição: se as atividades de médicos e enfermeiros estavam interditadas, quem executaria as medidas do plano de emergência e dos protocolos para os pacientes internos?

Tenha-se presente que o cerne da questão está descrito no item 5.10 do laudo de interdição: “a confiabilidade dos procedimentos médicos e de enfermagem estão gravemente ameaçados em razão das condições de trabalho precárias.” Em verdade, é desse quadro subjetivo que se origina o suposto “aumento alarmante de estresse ocupacional, sofrimento mental, ansiedade, medo em razão do exercício profissional sem condições de trabalho seguro e dignas.” Emerge então a artimanha fiscal: apropriar-se ilegalmente da atribuição de aquilatar a confiabilidade dos atos médicos e dos procedimentos de enfermagem para, em sequência, interditar o exercício dos profissionais respectivos.

De fato, esse quadro fático remete para as condições objetivas que ensejam a interdição ética preconizada pela Resolução CFM n.º 2.062/2013. E se trata de ato extremo da competência dos conselhos regionais de medicina, a ser deliberado pelos conselheiros. O que se tem, ao fim, no plano abstrato, é a usurpação de competência do Cremego por parte de AFTs goianos.

Em que pesem as determinações heterodoxas dos AFTs, a medida extrema parece não ter surtido os efeitos esperados. Posteriormente, na data de 11/10/2018, foi emitido laudo técnico de manutenção da interdição[26]. E nele aparecem outras razões para interdição que também são impropriedades. Abre-se um parêntese para dizer que a continuidade da medida interventiva sugere que as autoridades da Secretaria de Inspeção do Trabalho teriam ficado inertes diante dos fatos[27], ou, se atuaram no sentido de controle previsto na Convenção 81 da OIT, art. 4º, parágrafo 1, a medida teria sido inócua, sugerindo ter havido resistência por parte dos AFTs goianos, o que não seria surpresa.

No laudo de manutenção da interdição, uma das razões assinaladas foi a falta de medicamentos e insumos, fato que foi enquadrado no item 32.2.4.7 da NR-32. Porém, esse item se refere unicamente a EPIs. E medicamentos e insumos não são EPIs. No plano abstrato, a inserção indevida de medicamentos e insumos como sendo EPIs poderia ser enquadrada como erro grosseiro – para não classificar em outro tipo de conduta –, cuja finalidade seria camuflar em meio a norma trabalhista algo que é ilegal.

Outro motivo novo apontado para manter a interdição foi a falta de médico infectologista na Comissão de Controle de Infecção Hospitalar, que foi enquadrada no subitem 32.10.2 da NR-32. Todavia, como já esclarecido, o subitem mencionado estabelece, na verdade, que “no processo de elaboração e implementação do PPRA e do PCMSO devem ser consideradas as atividades desenvolvidas pela Comissão de Controle de Infecção.” Considerar as atividades da Comissão não autoriza que se exija o número de médicos nela indicada. O que a NR preconiza é que sejam considerados os dados quantitativos e qualitativos do ambiente de trabalho coletados nas fases de detecção, identificação, controle e eliminação de riscos de infecção hospitalar. A NR-32 não trata de número de médicos em comissões de controle de infecções. Nesse ponto se vislumbra novamente uma tentativa de encobrir uma irregularidade com o manto da normativa trabalhista.

O terceiro fato que justificou a manutenção da medida interventiva foi o dimensionamento incorreto de médicos nas UTIs. Nesse caso, não foi indicado item da NR-32, justamente porque ela não trata disso, pois não é atribuição dos AFTs fiscalizar esse requisito. Cabe ao CRM e à Anvisa essa atribuição.

A redução da equipe de limpeza e conservação foi outro motivo novo para manter a interdição, o que, por si só, não configura risco grave e iminente, embora seja classificado como risco de grau 3. Anota-se que sequer o percentual de redução foi indicado. E não está descrito se a redução afetou de modo importante as condições de salubridade nas UTIs e no Centro Cirúrgico.

Injetar medicamentos e insumos no item 32.2.4.7 da NR-32 como se fossem EPIs e acomodar médicos infectologistas no item da mesma NR que não os comporta revela uma artimanha. Quem se vale delas não encontrou outros meios para expor os fatos com embasamento legal.

Em que pesem as ilegalidades apontadas, a Secretaria Estadual de Saúde elaborou um plano de emergência e adotou medidas para a redução da taxa de ocupação, como o encaminhamento de pacientes para outras unidades de saúde. No entanto, outras determinações teriam sido descumpridas. Em face disso, um grupo de AFTs de Goiás emitiu uma Nota à Imprensa[28] informando que encaminharam representação criminal ao Ministério Público Federal em desfavor da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia e da Secretaria de Estado de Saúde de Goiás, para responderem pelas “infrações” previstas nos artigos 205 e 330 do Código Penal (CP), pelo fato de não terem cumprido o Termo de Interdição e notificações. 

A Nota tem a mesma precariedade redacional dos relatórios de interdições. Curiosamente, ela contém um apelo: “solicitamos que as autoridades competentes tenham conhecimento dos fatos provados na REPRESENTAÇÃO, QUE tomem as providências necessárias para garantir a segurança dos trabalhadores, segurança dos pacientes e segurança do meio ambiente. É URGENTE que sejam tomadas medidas de segurança.” E na parte final da referida Nota à Imprensa, uma espécie de capitulação: “Agora compete aos outros órgãos que tomem as providências de urgência necessárias em razão da continuidade e persistência dos problemas flagrados até 18/10/2018.” Ou seja, como os problemas persistiram, os AFTs se sentiram impotentes e passaram a responsabilidade para outras autoridades. E eram justamente as autoridades que deveriam ter tido uma participação ativa desde o início. Ou para quem já estava atuando no caso, como o Cremego.

Considerado em seu contexto, o caso pode ser resumido assim: enquanto o Cremego seguia os trâmites determinados pela Resolução CFM n.º 2.062/2013 para efeitos da interdição ética das atividades de médicos, interagido com a direção do Hospital de Urgências de Goiânia para contornar as graves deficiências que afetavam os serviços médicos, inclusive concedendo prazo para medidas saneadoras, os auditores-fiscais do trabalho, instruídos por profissionais dos conselhos profissionais de enfermagem e farmácia, mas casuisticamente dispensando o papel institucional do Cremego, surfaram na onda: entraram em cena, atropelaram as competências do Cremego e da Vigilância Sanitária,  interditaram as atividades médicas e de enfermagem e a farmácia do Hospital de Urgências de Goiânia, e alteraram a rotina de internações de pacientes impondo um plano hospitalar. Ao fim, de forma espantosa, ante o fracasso das medidas, fizeram um apelo às autoridades que foram alijadas do processo para que tomassem, urgentemente, as providências necessárias para salvaguardar a segurança dos trabalhadores, dos pacientes e do meio ambiente. E não contentes com isso, lavaram as mãos, pois imputaram a essas autoridades a responsabilidade pela tomada de providências urgentes em face da continuidade e persistência dos problemas. É uma situação inaudita. Jamais se teve conhecimento de que algum AFT tenha interditado máquina, equipamento ou serviço ou embargado obra e depois tenha passado a responsabilidade para que outro órgão desse cabo do problema. Parido Mateus, outros foram chamados para embalá-lo.

Visto de outro ângulo, os AFTs goianos assumiram o protagonismo diante da sociedade goiana e dos órgãos do Ministério Público Federal e Estadual com ampla cobertura na mídia. É um estilo consagrado.

Em um grupo virtual privativo de auditores-fiscais do trabalho, onde o laudo técnico foi orgulhosamente divulgado, a interdição gerou apoios e críticas acerca da competência dos auditores no caso concreto. Um dos auditores, ao contrapor uma das ponderações favoráveis à interdição, disse, em tom metafórico: “não vou bater palmas pra louco dançar”. Isso revela em boa medida a percepção interna corporis da ilegalidade perpetrada.

A representação criminal também não se sustenta.

O art. 205 do CP veda “exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa”. Nesse tipo penal, o sujeito ativo só pode ser a pessoa impedida de exercer a atividade[29]. No caso concreto, foram os médicos e os enfermeiros que exercem a profissão de modo regular e cujo exercício foi impedido pelo ato extremo da interdição de suas atividades. Ocorre que o termo de interdição foi recebido pelo Diretor do Hospital, não pelos médicos individualmente. Logo, eles não podem ser responsabilizados por um ato do qual não tiveram conhecimento. E como a interdição não afetou a atividade do diretor, ele também não pode sofrer qualquer reprimenda. Além disso, e como já foi dito, a interdição das atividades profissionais de médicos e enfermeiros é ilegal porque tal medida restritiva é estranha às atribuições dos auditores-fiscais do trabalho.

Por seu turno, o art. 330 do CP pune aquele que “desobedecer a ordem legal de funcionário público.” No caso concreto, a interdição não se trata de ordem legal porque eivada de nulidades. Além disso, é preciso que a ordem dada seja do conhecimento direto de quem necessita cumpri-la. Guilherme Nucci cita precedente do STJ: “O crime de desobediência (CP, art. 330) só se configura se a ordem legal é endereçada diretamente a quem tem o dever legal de cumpri-la”[30]. Como a prática criminal é imputada pelos AFTs à Secretaria Estadual de Saúde de Goiás e à Superintendência de Regulação e Políticas de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, sem nominar as autoridades responsáveis e que tenham tido conhecimento direto da interdição, ela perde sua eficácia.

Na cronologia dos eventos, e em prestígio aos fatos, menciona-se que a Procuradoria Regional da República em Goiás ajuizou ação civil pública[31] na Justiça Federal em desfavor da União e do Estado de Goiás para garantir as condições adequadas de funcionamento do Hugo, em especial a obrigação do Estado de Goiás de repassar mensalmente os recursos financeiros para a manutenção das atividades do hospital. O juiz federal acolheu pedido de antecipação de tutela de evidência e determinou o bloqueio de R$ 27.500.000,00 do Estado de Goiás, além de impor a obrigação ao Estado de manter os repasses de forma regular e integral para o Instituto Gerir, que administra o hospital[32].

A ação civil pública menciona a ação fiscal da Inspeção do Trabalho, mas a ilicitude da interdição não afeta a medida judicial. A razão é que o Parquet federal recebeu dos AFTs um “Relatório Informativo para o MPF”, que nada mais é que a reprodução do laudo técnico de interdição. Dele o procurador da República Ailton Benedito de Souza extraiu as informações sobre a falta de medicamentos e de insumos, bem como as dificuldades para a administração de medicamentos apropriados, a falta de médicos, e outras carências que comprometiam o funcionamento do hospital. Ele promoveu então uma audiência extrajudicial para instrução do procedimento preparatório instaurado, ocasião em que obteve informações mais objetivas acerca dos problemas financeiros que levaram ao estado de dificuldades que afetou os serviços de saúde do Hugo.

Olhando em perspectiva, constata-se que o Estado de Goiás enfrentava quadro deficitário que levou o atual governador do Estado a decretar estado de calamidade financeira[33]. Esse tema já era objeto da campanha eleitoral, inclusive os problemas enfrentados pela Organização Social Gerir com o Hospital de Urgências de Goiânia[34]. Certamente que outros hospitais públicos do Estado de Goiás enfrentavam a mesma situação.

A resposta mais adequada para preservar a saúde de médicos e enfermeiros ante o suposto “aumento alarmante” de estresse e ansiedade e assegurar o atendimento da população deveria levar em conta dois princípios impostos expressamente pelo art. 2º, caput, da Lei n.º 9.784/99: o princípio da proporcionalidade e o princípio do interesse público. Era justamente o que o Cremego estava fazendo quando os AFTs atravessaram o caminho.  

A situação em que se encontrava o Hugo não era isolada. Em junho de 2018, o Cremego havia decretado a interdição ética do Hospital Adonai, estabelecimento privado localizado em Goiânia, por conta de deficiências na estrutura física, falta de materiais e de medicamentos na unidade, tendo sido determinado ainda que não poderiam ser admitidos novos pacientes[35].

Anos antes, no período de outubro a dezembro de 2014, o Cremego havia fiscalizado 27 Unidades Básicas de Saúde e postos de saúde em Goiânia e cidades do interior, onde foram encontradas irregularidades que poderiam ensejar a interdição médica[36]. As principais irregularidades foram deficit de pessoal, escassez de medicamentos, remédios vencidos, falta de material para curativos e falta de alvará sanitário. É um Conselho atuante nas suas prerrogativas legais. E é possível notar que as irregularidades que levaram os AFTs goianos a interditar as atividades médicas no Hugo foram alvo da atuação do Cremego nos estabelecimentos de saúde no Estado de Goiás.

Ainda a esse propósito, menciona-se que, no ano de 2004, o Conselho Federal de Medicina (CFM) fez um levantamento abarcando 952 unidades básicas de saúde vistoriadas. O quadro revelou o sucateamento dos postos de saúde da rede pública. Entre os resultados, verificou-se que 295 das unidades que deveriam oferecer tratamento emergencial não contavam com seringas, agulhas e equipos para aplicações endovenosas, 25% não possuíam sala de expurgo ou esterilização, entre outras irregularidades[37]. Mas não consta que algumas dessas unidades tenham sofrido a interdição ética do trabalho dos médicos.

Se houver concordância que o estresse e a ansiedade são motivos para que a Inspeção do Trabalho interdite setores de serviços ou mesmo a atividade de profissionais, então podemos dizer que a Inspeção pode ser a panaceia para vários problemas que afetam a sociedade brasileira. Nesse caso, poderão ser interditadas também as atividades dos agentes penitenciários, dos policiais, dos controladores de tráfego aéreo, e de tantos outros profissionais em que o estresse ocupacional é inerente à profissão.

O Poder Judiciário padece dos mesmos males. Em 2016, o Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez um levantamento e constatou que ansiedade e depressão são as principais doenças relatadas por servidores e magistrados. Transtornos mentais e comportamentais foi o quarto grupo de doenças mais expressivo nas ausências ao trabalho naquele ano, com mais de 17 mil ocorrências, o que corresponde a 11,8%.[38] Talvez não corram o risco de haver uma interdição das atividades de magistrados e servidores.

E não apenas isso. Considerando que vários Estados estão sem recursos para pagamento dos vencimentos dos seus servidores, parece certo que esses servidores estão suportando o mesmo estresse e ansiedade diante das mais comezinhas necessidades humanas, além do dano moral de se verem na condição de inadimplentes com obrigações particulares e públicas. Não seria o caso de os AFTs de Goiás interditarem as atividades dos servidores e imporem aos governadores a obrigação de fazer um plano de emergência para pagamento dos vencimentos em atraso?

Considerações finais

Exposto o quadro fático e as normas que regem a matéria, bem como as circunstâncias que cercaram o caso, conclui-se que os AFTs goianos extrapolaram suas atribuições legais, pois a lei não lhes dá amparo para auditar estoques de farmácias para verificar se estão adequados às necessidades do hospital, para investigar se os medicamentos corretos estão sendo ministrados aos pacientes, para averiguar se o número de médicos de UTIs ou de comissões de controle de infecção hospitalar está adequado ao número de leitos, e, o mais grave, para avaliar a confiabilidade do ato médico a ponto de interditar o exercício profissional de médicos. As impropriedades chegaram ao ponto de eles, os agentes fiscais, se valerem de “opiniões médicas” emitidas por quem não tem competência legal para diagnosticar doenças e, a partir delas, decretar a interdição de atividade de profissionais da saúde, acarretando sérios riscos à saúde dos pacientes hospitalizados.

A interdição de atividade médica implica obstáculo ao exercício da profissão. Tanto é verdade que os AFTs impuseram à direção do Hospital a redução dos atendimentos de urgência e emergência. No plano abstrato, essa é a principal ilegalidade cometida pelos agentes da Inspeção do Trabalho. Em vista do que foi argumentado, os AFTs responsáveis correm o risco de se verem incursos na alínea j do art. 3º da Lei n.º 4.898/65 (praticar qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional), bem como na alínea h do art. 4º da mesma Lei (ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal), tipos que caracterizam o abuso de autoridade. Quem representou criminalmente corre o risco de se ver no polo oposto. Como diz a sabedoria popular, pau que bate em Chico, bate em Francisco.

As extravagâncias perpetradas pela equipe de AFTs resultam de uma peculiar visão jurídica. Eles são inspirados pela máxima de que a proteção ao trabalhador vai além de portarias, decretos, leis ou da Constituição Federal. E que o enfrentamento de problemas reais e complexos que afetam a vida e integridade de trabalhadores reais deve fugir da lógica alienante, de “check-lists”, protocolos e ritos infralegais vergonhosos. Intitulam-se “guerreiros”. Nessa perspectiva, apresentar dados técnicos parece ser, para eles, um rito infralegal vergonhoso. E respeitar atribuições de outras autoridades e órgãos faz parte de uma lógica alienante.

É assim que o ativismo judicial veio bater às portas da Inspeção do Trabalho, dando origem ao que se poderia chamar de ativismo administrativo.

Nesse contexto, são válidas as inúmeras críticas a esse desvio. Por ora, transcrevo a visão incisiva do magistrado federal Roberto Wanderley Nogueira expressa no artigo Ativismo judicial destrói o Estado Democrático de Direito, publicado na Revista Eletrônica Conjur[39]. Diz ele:

“A propósito disto, toda falta de consciência de limites é vício radical que torna imprestável o agente de Estado quanto ao exercício das atribuições de competência que lhe foram confiadas igualmente. Um tal exercício é, no sentido de Norberto Bobbio (“Teoria do Ordenamento Jurídico”), antinônimo da ordem jurídica e atenta contra a estabilidade das Instituições da República, quer a atuação resulte de ignorância técnica, quer provenha de motivação decidida nessa mesma direção antinômica da ordem constitucional e legal.”

Episódios desse tipo põem em xeque a legitimidade da instituição Inspeção do Trabalho. A legitimidade aqui é aquela caracterizada pelo magistrado e professor George Marmelstein em A Judicialização da Ética[40]. Ele chama a atenção para a discussão sobre a legitimidade democrática dos juízes para decidirem questões sensíveis, e anota o sentido de legitimidade para se referir ao grau de respeito, confiança, aceitação e aprovação da sociedade em relação ao poder heterômano. E mais adiante, lembra que quando se fala em poder, fala-se em seu efeito narcótico: quanto mais se tem, mais se quer. “O abuso, com boas ou más intenções, é inevitável”, diz ele[41].

Pois é sob esse mesmo marco da legitimidade que se pode afirmar que a legitimidade da Inspeção do Trabalho vem sendo afetada negativamente por conta de excessos e abusos derivados de entusiasmos desgovernados embalados por subjetivismos ativistas e egos napoleônicos. Vale lembrar o episódio em torno da caracterização de trabalho degradante pela falta de suporte para sabonete e cabide para toalhas próximos ao chuveiro em um alojamento[42], em meio a outras infrações mais graves que não mereceram atenção da mídia. A isso se soma agora a interdição, por AFTs, de atividades médicas e de enfermagem em hospital público de urgências em Goiás, o diagnóstico de doenças com base em avaliações de enfermeiras e farmacêuticas, a ingerência de auditores-fiscais em estoques de farmácias, sobre os medicamentos mais apropriados aos pacientes e absurdos do tipo. Além, é claro, da potencialização de riscos para os cidadãos que necessitassem dos serviços de urgência e emergência e dos pacientes já internados, situação que revela um paradoxo: para afastar médicos e enfermeiros de condições de riscos graves e iminentes abstratos que lhes causavam ansiedade e estresse, os auditores-fiscais do trabalho decidiram que era melhor o estresse e a ansiedade serem suportados pelo pacientes e cidadãos que necessitassem de atendimentos de urgência.

A medida despropositada e irracional, adornada com subterfúgios de aparente legalidade, pode até impressionar leigos da mídia e autoridades republicanas que nada sabem dos meandros da atividade da inspeção laboral. Mas, ao fim, afeta negativamente o respeito, a confiança e a aprovação da Inspeção do Trabalho junto à sociedade e às demais instituições públicas envolvidas com a questão, como os conselhos regionais de profissões, a Vigilância Sanitária e o Ministério Público. Não será por meio de ações extravagantes e tresloucadas que a Inspeção do Trabalho terá sua legitimidade fortalecida. Ocorre justamente o contrário. Condutas personalistas acabam por confirmar discursos generalistas de que “servidores fazem o que querem”. O caso aqui narrado corrobora essa narrativa.

No caso concreto, essa percepção negativa resulta também do olhar complacente de dirigentes da Inspeção do Trabalho. Essas autoridades têm o dever de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo (Lei 8.112/90, art. 116, I), em especial a vigilância e o controle[43] dos procedimentos fiscais como forma de preservar a legalidade e a moralidade na atuação dos AFTs, estado funcional que garante, ao fim, a legitimidade da instituição junto à sociedade. Na época dos fatos aqui relatados, o cargo de secretário de Inspeção do Trabalho era exercido pelo AFT Claudio Secchin. E em matéria de segurança e saúde no trabalho, a tarefa incumbia ao então Diretor do Departamento de Segurança e Saúde da Secretaria de Inspeção do Trabalho, o AFT Kleber Pereira de Araújo e Silva[44].

Essa complacência deu curso à saga. Nos últimos dias de abril de 2019, os AFTs goianos determinaram a interdição total do Hospital Materno Infantil de Goiânia. Matéria jornalística sobre o fato revela algumas situações que, em tese, ensejariam a interdição de áreas e de equipamentos[45]. Porém, o inusitado nesse caso é que a interdição foi decretada após quatro meses de auditoria fiscal trabalhista naquele estabelecimento de saúde. Se existiam situações de grave e iminente risco para a segurança e saúde dos trabalhadores, elas pairaram como ameaças a esses trabalhadores sem que algum AFT envolvido na ação fiscal tivesse a iniciativa de expedir uma notificação para adoção de medidas técnicas de cumprimento imediato conforme determina o inciso XI do art. 18 do RIT ante cada irregularidade grave encontrada.

Essa foi uma das razões que a juíza do Trabalho da 10ª Vara do Trabalho de Goiânia suspendeu a interdição, segundo noticiado pela imprensa[46]. Em conformidade com a notícia, a magistrada ponderou que a determinação da interdição só foi feita após meses de instalação da auditoria realizada, o que geraria dúvida sobre a urgência. Além disso, ela teria argumentado que não havia documentos que demonstrassem que o Estado tivesse sido notificado, no prazo, para mudanças nas condições indicadas.

Podemos inferir a razão para tal disparate: notificação para cumprimento imediato não rende repercussão na mídia; interdição, sim.

Como dito, este ensaio crítico é uma forma de exercer o controle social sobre a Inspeção do Trabalho, apontando os erros e excessos que precisam ser combatidos. Espera-se que na gestão atual a disciplina seja uma componente importante para preservar a legitimidade da Inspeção do Trabalho e o Direito. Um passo importante é a conscientização das autoridades e dos AFTs de que os agentes da Inspeção do Trabalho não têm a tão propalada “independência funcional”. A independência que advogam é submissa à vigilância e ao controle por parte da autoridade central da Inspeção do Trabalho, conforme preconiza a própria Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em seu art. 4º, item 1[47].  

A resposta cabe à nova gestão da Inspeção do Trabalho no Brasil. E a depender dela, corre-se o risco de o Brasil adotar o modelo da Inspeção do Trabalho Tabajara, aquela que usa soluções mirabolantes ou gambiarras jurídicas como soluções para problemas do mundo do trabalho.

Certamente surgirão opiniões acolhendo a iniciativa dos AFTs sob a justificativa de que a ação surtiu efeito, pois o MPF, comunicado do fato pela Inspeção do Trabalho, agiu na esfera judicial e obteve medida judicial que garantiu recursos públicos do Estado de Goiás para que o Hospital voltasse a prestar serviços de saúde para a população. Todavia, é preciso rememorar a observação do jurista e professor George Marmelstein quando chama a atenção para o efeito narcótico do poder e a inevitabilidade do abuso do poder, com boas ou más intenções. Em um Estado Democrático de Direito, não se deve ceder espaços para o abuso de poder com boas intenções. A ação dos AFTs deveria ter se limitado à auditoria das condições de trabalho dos médicos, enfermeiros, farmacêuticos e demais trabalhadores no estabelecimento de saúde, mas jamais ter ultrapassado esse limite e avançar para estado de coisas que não são da competência da Inspeção do Trabalho, especialmente a interdição de atividades de profissionais, usurpando prerrogativa do Cremego. Eventual omissão do Cremego – que, diga-se, é contrariada pelos fatos –  não constitui motivação para o abuso de poder com boas intenções.

 

Sobre o autor
José Adelar Cuty da Silva

Auditor-Fiscal do Trabalho, aposentado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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