Aborto: o que significa ser contra a descriminalização (Tradução)

15/07/2019 às 14:09
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Tradução do artigo “Aborto: qué implica estar en contra de ladespenalización” de autoria de FlorenciaRuíz y Aimé Silva, de língua espanhola para portuguesa.Link do texto original: https://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2018/03/doctrina46414.pdf

Aborto: o que significa ser contra a descriminalização

¹Florencia Ruíz e Aimé Silva

² Tradução por Matheus Maciel

Por ser a sétima vez no Congresso Nacional que se debate a sanção daLei da Interrupção Voluntária da Gravidez, devemos estar cientes de que estar contra a descriminalização do aborto implica ser a favor de:

Mortes evitáveis de mulheres

Segundo a Direção de Estatísticas do Ministério da Saúde, em 2016 – último dado disponível – morreram 245 mulheres gestantes; em 43 desses casos figura diretamente "aborto" como causa da morte. 

No entanto, sabe-se que há uma enorme cifra negra. A comunidade científica internacional diz que paracadaaborto que se interna, em países onde o aborto é penalizado, há mais dez que foram feitos, mas que não se complicaram.  Na Argentina temos cerca de 60 mil internações em hospitais públicos por abortos inseguros.Só temos que fazer o cálculo ", diz Mario Sebastianique explica que"a estatística se baseia nas certidões de óbito, que os médicos assinam. Muitas vezes as instituições enganam, com bom senso, essascertidões omitindo a palavra aborto para não criminalizar o caso. As mulheres que chegam aos hospitais devido a um aborto inseguro também morrem de sepse, hemorragias ou falência de múltiplos órgãos. Isso é o que chamamos de sub-registro.O próprio Ministério reconhece que os possui. Juntos, eles confirmam que o aborto é a principal causa de morte materna em nosso país ".

Criminalização da ação

O código penal, em seus artigos 85, 86, 87 e 88, estabelece penas de até quatro anos de prisão para quem praticar o aborto. 

Excede o objeto dessa análise o aprofundamento de temasrelativos ao Direito e o sistema penal, porém, a grosso modo, - como exemplo o casoBelén – se deduz que nada faz campo penal  para reduzir os casos de aborto, senão que amplia a discrição do Estado para exercer uma seletividade que quase sempre se torna revitimizante. 

Por sua vez, se todos os abortos fossem criminalizados, o sistema não estaria preparado para ser capaz de dar uma resposta punitiva, muito menos para aprisioná-los quandoconhecido é o estado das prisões e o resultado de sua passagem por esses tipos de instituições.

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¹ Politologa e Advogada da UBA respectivamente.

² Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.

- Continuidade da ação clandestina

Atualmente existe um mercado ilegal em torno dessa prática que inclui laboratórios e profissionais de saúde cujo trabalho é desenvolvido em consultórios

clandestinos que não  têm habilitação, equipamento ou condições de higiene suficientes para realização deuma prática seguraonde a vida das mulheres não seja colocada em risco.

A ilegalidade deu lugar a clandestinidade, e a clandestinidade transformou o aborto em um negócio milionário, um negócio no qual cerca de 15 bilhões de pesos são movimentados anualmente, frutos de 500.000 práticas realizadas no mesmo período. No entanto, essa cifra não leva em conta outro setor que é altamente beneficiado,que é a indústria farmacêutica que coleta aproximadamente 1.000 milhões. Obviamente, a mesma ilegalidade permite a implementação de um mercado paralelo (onde cada prática varia entre dez mil e trinta mil pesos) e, por sua vez, permite a sua sobrevivência. 

O slogan do Aborto Legal, Seguro e Gratuitoaponta para o desmantelamento dessa economia criminosa. Se o direito ao aborto fosse legal, se cortaria pela raiz essa negociação, que se beneficia da impossibilidadede as mulherespodereminterromper a gravidez sem que sua decisão seja punível. Seguro, para evitar a morte dessas mulheres, que por falta de recursos não têm outra opção senão recorrer a esses consultórios clandestinos, colocando em risco suaspróprias vidas, sabendo que não é o melhor lugar devido à falta decondições médicas e higiênicasnecessárias. Gratuito, garantiria a todas as mulheres o acesso para poderem fazer um aborto independentemente de sua posição econômica.

Analisado a partir deste ponto de vista o aborto, além de ser atualmente uma prática punível, é discriminatória, segmenta as mulheres entre aquelas que podem ou não pagar por sua realização. Aqueles que não têm recursos suficientes devem recorrer a um consultório clandestino ou devem levar adiante uma gravidez que não desejam.Em poucas palavras, as mulheres pobres não têm soberania sobre seu próprio corpo.

É a própriapunição do abortoque permite o crescimento de consultórios clandestinos, o que resulta em um paradoxo.Sem dúvida, a mesma ilegalidade possibilita um paralelo mercado negro. Não é crível a ignorância do Estado sobre este mercado ilegal montado. A omissão sobre o assunto não esconde o que está acontecendo, o torna invisível.

-Imposição da moral / Persistência de mitos

A sociedade argentina, apesar de haver passado por uma fase em que as políticas públicas concederam direitos a setores excluídos e vulneráveis, continua sendo composta por um setor com posição conservadora em relação aos direitos conquistados. Grande parte dos que se opõem ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito o fazem de uma perspectiva conservadora com uma forte carga moral, recorrendo a argumentos relacionados à ética, a moral, o que deve e não deve ser feito. Esses argumentos,sãoevidentemente distorcidos e não só têm a ver com preconceitos, mas com a profundidade que o patriarcado estabeleceu às consciências.

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​Aqueles que mantêm uma posição contra a descriminalização para argumentar sua posição recorrem à reprodução de mitos. O mito social contém uma verdade inquestionável, uma afirmação imutável, um fato ou conjunto de fatos que configuram uma narração impossível de ser posta em dúvida para aqueles que pertencem a essa sociedade.Às vezes, é verdade, os mitos ancoram ou se originam em determinados setores dessa comunidade mostrando certas fraturas ou subculturas diferenciadas .

​Anteriormente, no debate sobre o divórcio argumentava-se que, a partir dele, todos os casais se divorciariam e que o casamento desapareceria como instituição. Sem dúvida, o que se ocultava com esse argumento era a negação de que as separações já estavam acontecendo, e a não aprovação do divórcio se tornava um obstáculo para que cada membro pudesse se casar novamente, ou desenvolver sua vida sem necessidade de recorrer ao outro por estar legalmente vinculado.

Levando em conta o exemplo citado acima, aqueles que são contra a legalização da prática usam o mesmo dispositivo para justificar sua posição: com o aborto legalizado, as mulheres não teriam problema em engravidar porque teriam livre acesso a um hospital público sem serem punidas por isso. Esse argumento carece de empatia e está carregado de preconceito e ignorância.Um aborto não deixa de ser uma prática médica que precisa estudos, controles antes e depois e tem efeitos secundários como vômitos, tonturas, sangramento, diarreia, febre. É impossível, portanto, pensar que seria algo que poderia ser feito periodicamente, tal como tenta sustentar esse setor da sociedade. 

É imperativo entender, através de uma visão deordem psicológica, que "as mulheres abortam devido ànecessidade de interromper uma gravidez indesejada ou problemática. É um erro acreditar que elas fazem isso por prazer “.

Outro mito é a ideia de que a realização de mulheres como tais viria através da maternidade.Os que estão a favor desta postura esquecem que da maternidade forçada se fala muito menos que do aborto. Os grupos contrários ao direito das mulheres de decidirem ter ou não filhos muitas vezes ignoram as consequências na vida das mulheres – e,com frequência, na vida de seus filhos–o fato de obrigá-las a continuar uma gravidez não desejada.

Violência obstétrica

Não se deve subestimar a importância de outros elementos pouco levados em conta ao propor a legalidade do aborto, como a violência obstétrica. Embora este tipo de casos tenha começado a ser denunciado desde 2014, são voxpopuliossofrimentos de que são vítimas as mulheresao recorrer à emergência de um hospital público, ante a suspeita do profissionalmédico por um aborto auto provocado.

A violência obstétrica está definida na Lei Nacional 26.485 de Proteção Integral das Mulheres como "aquela que exerce o profissional de saúde sobre corpo e os processos reprodutivos das mulheres, expressada em um tratamento desumanizado, abuso de medicação e patologização de processos naturais".

A curetagem sem anestesia é uma das formas mais frequentes que médicas e médicos utilizam como forma de castigo para que as mulheres sintam dor.No entanto, as vítimas omitem a denúncia desses fatos por medo de serem elas mesmas denunciadas, consequência da criminalização do aborto. 

Continuar com a criminalização do aborto é continuar garantindo a violência obstétrica. É, mais uma vez, governar sobre o corpo da mulher;negar-lhesoberania sobre si mesma. 

- Inconstitucionalidade da criminalização

Dentro do âmbito estritamente legalista, por império do art. 75, inc. 22, de nossa Constituição Nacional foi dada hierarquia a tratados internacionais e, em geral, há algum tempo, se tem dado preponderância ao direito internacional à hora de examinar nossa própria legislação.

​Assim, o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres das Nações Unidas (CEDAW), como uma organização criada pela ONU, em sua recomendação n ° 33 declara: "Os Estados Partes são obrigados, em virtude dosartigos 2 e 15 da Convenção, a assegurar que as mulheres contem com a proteção e os recursos oferecidos pelo direito penal e que não sejam expostas à discriminação no contexto desses mecanismos, seja como vítimas ou perpetuadoras de atos criminosos. Alguns códigos e leis penais e/ou códigos de processos penais discriminam contra as mulheres: a) criminalizando formas de comportamento que não são delitos nem são puníveis com o mesmo rigor como se fossem executadas por homens; b) criminalizando comportamentos que só podem ser praticados por mulheres, como o aborto; (...) ". 

Sendo que nessa inteligência caberia se perguntar se a sanção da Lei não seria de fato adequar-se às recomendações que desde o Direito internacional lhe estão recomendando ao Estado Argentino.

​Por fim, convidamos à reflexão sobre os pontos delineados anteriormente, a manifestar-se sobre a Lei que será discutida nos próximos dias, já que sua aprovação implicaria a possibilidade da cessação das práticas que hoje afligem as mulheres que, em sua maioria, já se encontram em situação de vulnerabilidade e que merecem do Estado uma resposta justa, livre e democrática.

Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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