O direito de resistência e desobediência civil como instrumento da cidadania

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20/01/2019 às 15:48
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      A Importância do Artigo 5º parágrafo 2º da Constituição Federal Brasileira.

A Constituição Federal Brasileira apresenta em, seu bojo, diversos direitos e garantias fundamentais. A princípio, é importante diferenciar os direitos das garantias, que é explicada por Alexandre de Moraes (2002):

“Ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias [...]”. Os direitos fundamentais são basicamente os direitos humanos positivados na ordem constitucional. É exatamente a prerrogativa do cidadão de poder exercer sua liberdade e exigir condutas específicas do Estado. Já as garantias fundamentais atuam como forma de socorrer esses direitos em caso deles sofrerem alguma violação.

Segundo (GARCIA, 2004, p. 297) as garantias podem ser classificadas em defesas jurisdicionais ou não jurisdicionais.

Dentre os primeiros, a garantia de acesso aos tribunais, a garantia de recurso contencioso, o direito de acesso à justiça administrativa, o direito de suscitar a “questão” da inconstitucionalidade ou de ilegalidade, a ação de responsabilidade e o direito popular. Dentre os meios de defesa não jurisdicionais aos direitos fundamentais, refere o direito de resistência [...].

Assim, o instituto da desobediência civil, como evolução teórica e prática do direito de resistência, surge como um mecanismo para garantir aos seus cidadãos a aplicação de seus direitos constitucionais. O art. 5º § 2º da Constituição Federal Brasileira de 1988 consagra a seguinte disposição: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Este dispositivo demonstra que o enunciado dos direitos e garantias fundamentais não é completo, nem se apresenta como numerus clausus. Assim, para (GARCIA, 2004, p.236-239):

[...] os direitos e garantias a que se refere o art. 5º § 2º, são aqueles compreendidos ou contidos implicitamente, no regime nos princípios constitucionais ou que venham a constar dos tratados internacionais firmados. [...]- de tal sorte, pela dicção do § 2º do art. 5º tais direitos e garantias vêm integrar o elenco constante do texto constitucional, podendo ser exigidos ou exercidos, independentemente de norma expressa. Esses direitos e garantias têm existência assegurada, portanto, no universo constitucional, em consequência dos mesmos estarem inter-relacionados ao regime e princípios adotados pela constituição, todos consagrados no § 2º art. 5º, norma agasalhadora, ampla e protetiva do sistema constitucional.

Portanto, este dispositivo se refere a direitos e garantias que são contidos ou compreendidos como implícitos no regime, nos princípios e nos tratados internacionais firmados. É possível identificar dentro dessa magnitude, certos direitos ou garantias que se provem concebíveis dentro do sistema de regime e princípios adotados pela Constituição, sendo factível a adição, entre tais direitos e garantias fundamentais, o direito à desobediência civil.

O regime adotado pela Constituição é o republicano que, de acordo com Garcia (2004, p.236) compreende na realidade “[...] todo o quadro da estrutura estatal definida no artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal constituindo-se em Estado Democrático de Direito [...]”. O regime republicano significa aquele que é Res pública- coisa do povo- “[...] do qual emerge a cidadania e a participação popular nas decisões políticas [...]” Observa Monteiro (2003, p. 155). É esse regime com todos os seus significados que justificam a adoção de demais direitos e garantias, ainda que não expressos na Constituição.

Dentre estes outros direitos e garantias fundamentais que a Constituição permite, encontramos a desobediência civil, que é plenamente explicada através do regime republicano e dos princípios constitucionais, sobretudo pelo princípio da cidadania e soberania popular, cuja importância será abordada no próximo capítulo deste trabalho.

Brandão (2003, p.78) analisa que a ação desobediente representa a “[...] intervenção popular direta no exercício da autoridade pública [...]” com isso fica claro a efetividade do princípio da cidadania, e conclui ainda “[...] a desobediência civil é garantia (direito-garantia) que detém caráter eminentemente assecuratório e desempenha papel instrumental em relação aos direitos fundamentais [...]”.


A Injustiça das Leis e a Participação Política dos Cidadãos

A consciência sobre a injustiça da norma, bem como o direito e também dever de participação política do cidadão, além dos ideais de liberdade e cidadania, inspirou as reflexões acerca da desobediência civil.

Referindo-se ao pensamento de Hannah Arendt, Garcia (2004, p.241) menciona que o verdadeiro conteúdo da liberdade não está nas conquistas de igualdade, direito de reunião, de petição, ou as liberdades que associamos aos governos constitucionais. Isso constitui produto da libertação, mas não se confunde com o conteúdo da liberdade, que significa participação nas coisas públicas ou admissão ao mundo político.

Como opção política, a liberdade relaciona-se, na esteira do pensamento de Thoreau, ao convencimento ou convicção, e não à “servidão voluntária”.

Embora o homem seja “um ser destinado à liberdade”, refere Garcia (2004, p. 243), quando em sociedade defronta-se com a autoridade, com o poder do Estado, com a organização decorrente da coexistência social, com a própria lei.

Uma das características do constitucionalismo moderno e do regime democrático é a participação popular, direta ou indireta, no exercício do poder, o que efetiva o exercício da cidadania. A maneira indireta de participação popular envolve a eleição de representantes (artigo 1º, parágrafo único, C.F), os quais, dentre outras coisas, atuam no processo legislativo de modo que se presume que a lei decorre diretamente da soberania popular (artigo 14, C.F). A Constituição da República também contempla a iniciativa popular (artigo 14, inciso II, C.F). Em nossos dias, o Estado de Direito explica a supremacia do princípio da legalidade. Todavia, ao longo da história, as leis perderam o seu prestígio por se desvincularem do ideal da justiça, passando de instrumento de garantia do interesse público a mecanismo destinado à satisfação de interesse de grupos, classes ou partidos. Ressalte-se o que ocorreu durante o auge do positivismo jurídico quando, por exemplo, a Alemanha nazista em seu proposto terceiro reich, aprovou de modo “legítimo” as leis que determinavam a política social racial eugênica em nome de uma raça ariana “pura”, bem como as demais políticas que desencadearam o extermínio em massa denominado Holocausto.

Como refere Arendt (2003, p.64), tratando das vicissitudes do sistema político norte-americano na década de 1960 e que, mutatis mutandis, não deixam de ressoar em muitas nações nos dias atuais, “sintoma claro da desintegração é uma progressiva evasão da autoridade governamental [...] causada pela incapacidade do governo em funcionar adequadamente, de onde brotam as dúvidas dos cidadãos sobre sua legitimidade.” Com efeito, as constantes afrontas à Constituição pelo próprio poder público e a politização das leis, que conduziu a sua multiplicação irracional e a instabilidade do Direito, fizeram com que as normas perdessem credibilidade, já que são alteradas facilmente e sem qualquer preocupação com o bem comum e com a justiça (GARCIA, 2004, p. 246).

Garcia (2004, p.285) trata da perda de confiança nas leis ao longo da história, na medida em que o Parlamento sofreu mudanças significativas em sua estrutura, deixando de haver a representação do povo por pessoas independentes para surgira vinculação a partidos, desaparecendo a confiança na objetividade e neutralidade dos órgãos legislativos. Em consequência, em muitos casos as leis acabam não se aproximando da ideia de justiça ou até mesmo se convertendo em instrumento de injustiça.

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Segundo Arendt (2013, p.75 e 83), os cidadãos assumiram o compromisso moral, fundado no contrato social, de cumprir a lei, pois advém de seu próprio consentimento. Contudo, toda promessa é restringida por suas limitações essenciais: o não surgimento de uma circunstância inesperada e a manutenção da reciprocidade inerente a toda promessa. Assim, o fracasso das autoridades quanto à confecção de leis justas configuraria a quebra do compromisso, antes realizado, e autorizaria a desobediência civil.

Ressalte-se que, para a autora, a desobediência civil significativa é aquela praticada por certo número de pessoas com identidade de interesses, e não por um indivíduo apenas, que poderia ser considerado excêntrico. Afirma que os contestadores civis seriam “minorias organizadas, delimitadas mais pela opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razões para supor que ela é apoiada pela maioria.” (ARENDT, 2013, p.55).

A ideia de Arendt acerca da desobediência civil contrapõe, em certa medida, à de Thoreau, que pregava a desobediência civil “individual” como forma de oposição legítima frente a um estado injusto. No mesmo sentido, defende Garcia que o indivíduo, na qualidade de cidadão, com a garantia das prerrogativas de cidadania, poderia agir individualmente, como partícipe efetivo no exercício da decisão política.

Não obstante, a desobediência civil, ainda que seja classicamente um instrumento de minorias, realmente tem expressão quando praticada por um grupo, sendo improvável a efetividade da desobediência civil individual como forma de mudança da lei ou de preservação ou restauração do ordenamento.

Arendt faz, ainda, importantes distinções acerca da desobediência civil e da desobediência criminosa. A primeira consiste num ato público de descumprimento da lei, sem violência, em benefício de determinado grupo, que pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para a preservação e restauração dos direitos fundamentais e do equilíbrio dos poderes governamentais. A desobediência criminosa, de outro lado, é a violação clandestina muitas vezes violenta e motivada por interesses individualistas (ARENDT, 2013, p. 67-69).

A desobediência civil não se confunde, ainda, com a revolução, pois o contestador civil aceita a autoridade e a legitimidade das leis, enquanto o revolucionário rejeita esse sistema (ARENDT, 2003, p.70).

Segundo (LUCAS, 2003), posição também aceita neste trabalho, a desobediência civil é, de certa forma, contrária ao que propõe explicitamente a nossa legislação, mas não ao sistema, pois ela pode ocorrer indiretamente, como, por exemplo, no direito à liberdade de expressão e de pensamento amparada pela Constituição Federal de 1988. Mesmo diante de todo um estudo não é possível afirmar que esta modalidade se encontra no âmbito lícito ou ilícito, por isso cada caso deve ser analisado segundo suas particularidades para perceber se há realmente uma tentativa de desobedecer para modificar determinadas leis ou se há apenas anarquia e transgressão das leis, pretensamente justificadas sob o manto da desobediência civil.

Garcia (2004, p. 261-262) defende a desobediência civil como forma de participação popular, argumentando a insuficiência dos mecanismos existentes para a proteção da cidadania (expressão máxima do direito à liberdade), bem como a inviabilidade de intervenção direta do cidadão no processo legislativo e no controle de constitucionalidade da lei. Caracteriza-se pelo non agere diante da lei ou do ato emanado da autoridade, ou de ação, em desobediência ou de um agir em prol da participação política. Para a autora “o cumprimento das leis desarrazoadas, injustas, surrealistas, por vezes, não é obediência, mas servidão, degradação e envolve o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.”

Segundo Bobbio (1998, p. 335-336), a desobediência civil é uma forma particular de desobediência, que objetiva mostrar publicamente a injustiça da lei para induzir o legislador a mudá-la, caracterizando-se por se tratar de um fenômeno de grupo e marcado pela não-violência. O autor apresenta três circunstâncias que autorizariam a desobediência: a lei injusta, a lei ilegítima (emanada de autoridade incompetente) e a lei inválida ou inconstitucional. E conclui: “se é verdade que o legislador tem direito à obediência, também é verdade que o cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e com leis estabelecidas.”

Conclui-se, portanto, que a desobediência civil é uma forma de participação política, por meio de resistência ou de contraposição do cidadão à lei considerada injusta ou ofensiva aos direitos e garantias estabelecidos na ordem constitucional, objetivando a alteração da norma ou a restauração do ordenamento anterior.

Por sua vez, o exercício da desobediência civil se reveste das seguintes características:

{C}a)      {C}Trata-se de ato organizado, decorrente da convicção e reflexão de um grupo de cidadãos, ainda que constituam uma minoria; b) ato pacífico, não violento; c) ato público, expresso, em contraposição à violência clandestina da lei; d) tem por objetivo a alteração da norma ou a restauração do ordenamento anterior, e não a destruição do Estado.

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Sobre o autor
Elicio Nascimento

Sou bacharel em Direito e fui aprovado no XXVI exame da OAB. Em breve atuarei como advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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