A desvinculação de receitas da União e o pacto federativo

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Analisaremos, neste texto, a DRU, que se trata de um mecanismo adotado pelo Governo, inicialmente, de forma transitória, com a finalidade de desvincular parte das receitas arrecadadas pelo Estado, destinando-as a diversas outras áreas, e sua possível ofensa ao Pacto Federativo.

I. VINCULAÇÃO DE RECEITAS DA UNIÃO:

Antes de adentrar ao tema propriamente dito, é necessária a compreensão, pelo leitor, do princípio adotado pela Constituição Federal de 1988, previsto em seu artigo 167, inciso IV1, nominado de Princípio da Não Afetação, ou da Não Vinculação de Receitas de Impostos.

Este princípio reza, em síntese, que os impostos arrecadados pelo Governo, independentemente de sua espera (estadual, municipal, nacional), não podem ser vinculados a fundos, órgãos ou despesas, de forma a possibilitar a flexibilidade na administração, ou seja, os impostos pagos diariamente por toda a sociedade não obrigam o Gestor Público a aplicá-los em favor do bem coletivo.

Desta forma, fica a critério do administrador público a utilização, ou não, das arrecadações estatais em favor dos anseios da sociedade.

Por outro lado, o constituinte, já desconfiado dos critérios de “importância” a serem discricionariamente adotados por cada gestor, preferiu retirar desta regra de não vinculação, ou não afetação, algumas despesas, órgãos, ou fundos, tidos como primordiais ao efetivo exercício dos Direitos Sociais, bem como ao bem-estar da população. Assim, a Carta Magna brasileira estabeleceu que este princípio não poderá alcançar os investimentos na saúde, na educação, bem como o repasse aos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios.

Há, também, vinculação de receitas à administração do próprio sistema tributário nacional, ou seja, o Governo utiliza-se dos impostos arrecadados para garantir uma arrecadação cada vez maior.

Entretanto, o Governo brasileiro necessitava, pelo menos em tese, de parte desses recursos aplicados às áreas constitucionalmente estabelecidas, por menor que fosse. Não supridas todas as precisões estatais, teve-se que sacrificar um pouco das receitas destinadas à saúde e educação, por exemplo, para atender a pontos “mais urgentes”.

Desta forma, por serem dispositivos constitucionais os que tratam da exceção ao princípio da não afetação, foi criada a Emenda Constitucional nº 27/2000, que permitiu, no Brasil, o surgimento do mecanismo chamado Desvinculação de Receitas da União, que trabalharemos a seguir.


II. DESVINCULAÇÃO DE RECEITAS DA UNIÃO – DRU:

Em um mundo totalmente globalizado, a força econômica dos Estados é algo que gera bastante preocupação aos seus governantes. Buscam-se, cada vez mais, melhorias orçamentárias, possibilitando o crescimento do país, e no Brasil não poderia ser diferente. Mas, como se sabe, a economia brasileira sempre foi carente, se comparada com grandes potências mundiais.

Portanto, se fazem necessárias medidas, muitas vezes, um tanto quanto radicais, a fim de buscar melhorias econômicas, equilibrando, pelo menos em tese, o sistema financeiro nacional.

A desvinculação das receitas da união, também chamada de DRU, é uma dessas medidas tomadas pelo Estado com a finalidade de melhorar o investimento e o orçamento interno, balanceando os gastos de acordo com a necessidade individual de cada segmento público, tendo em vista que o “excesso” de vinculação de receitas previsto na Constituição Federal, as quais geram um elevado nível de despesas obrigatórias, dificultava o trabalho do administrador público, que muitas vezes se via, ou se vê, preso a estas vinculações, impedindo o atendimento a outras demandas da sociedade.

A DRU foi criada no ano de 2000, através da Emenda Constitucional nº 27/2000, que incluiu o art.76, aos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, baseando-se em uma medida já adotada anteriormente no Brasil, chamada de Fundo Social de Emergência, ou FSE, criada em 1994, no governo de Itamar Franco.

Em tese, a função deste mecanismo é desobrigar a aplicação de parte das arrecadações públicas destinadas aos órgãos, fundos ou despesas, como a saúde, a educação e a previdência social. Assim, os impostos, as contribuições sociais, e demais intervenções do domínio econômico arrecadados pelo Estado são passíveis de aplicação de acordo com os critérios do administrador, proporcionando maior flexibilidade no uso do orçamento em despesas entendidas como prioritárias. Sua criação visa, em tese, gerar superávit nas contas do Estado, de forma a ajudar no controle da inflação.

Este mecanismo, na verdade, foi idealizado como uma medida temporária, com um prazo final estabelecido. Todavia, o que tem ocorrido é sua renovação através de novas Emendas Constitucionais que sempre prorrogam a data final para esta permissão de desvinculação dos impostos e contribuições sociais.

Inicialmente, com as Emendas Constitucionais nº 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011, foi permitida a desvinculação de 20% (vinte por cento) das arrecadações estatais, colocando totalmente a disposição da administração pública a forma de aplicá-las. Entretanto, a Emenda Constitucional nº 93/2016 ampliou esta desvinculação, aumentando para 30% (trinta por cento) a disponibilidade do Governo sobre as receitas.


III. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 93/2016:

Embora trate de um mecanismo já utilizado pelo governo, a Emenda Constitucional nº93/2016 trouxe novidades quanto à aplicação da DRU.

Inicialmente, como já foi dito, a Desvinculação de Receitas da União, que antes se limitava a 20% de todas as arrecadações do Estado, advindas de impostos ou contribuições sociais, passou a limitar-se em 30%.

Outra novidade marcante desta Emenda à Constituição em relação a suas anteriores foi a revogação do §1º, do art. 76, do ADCT, que excluíam os Estados, Distrito Federal e Municípios da desvinculação de receitas, o que passou a desobrigar a União de cumprir parcialmente com a repartição de receitas prevista nos artigos. 157 e seguintes, da Constituição Federal. Assim, tanto os Estados, quanto os Municípios, estão passíveis de redução em seus Fundos de Participação (FPE e FPM).

Por outro lado, a referida Emenda preferiu incluir ao ADCT os artigos 76-A e 76-B, que estenderam a desvinculação de receitas aos Estados, Distrito Federal e Municípios, permitindo, agora, que estes outros entes federativos retirem, na mesma quantidade de 30%, receitas destinadas a órgãos, fundos ou despesas de sua competência, que poderão ser aplicadas a critério do administrador, de acordo com as necessidades específicas da sociedade. Vejamos:

"Art. 76-A. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento) das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes
Art. 76-B. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento) das receitas dos Municípios relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes”.

Diante desta reforma, o mecanismo, até então chamado de Desvinculação de Receitas da União, agora pode ser visto como Desvinculação de Receitas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

A nova Emenda foi mais rígida no que diz respeito à exclusão de determinados órgãos que não seriam atingidos com a desvinculação de receitas. Porém, o constituinte resguardou aqueles órgãos ditos como essenciais à justiça, tais como o Ministério Público e Defensoria Pública, inovando no sentido de acrescentar a esta lista as Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, que não sofrerão diminuições em seu orçamento.


IV. DRU E O PACTO FEDERATIVO:

A Constituição Federal de 1998 optou por consagrar o Brasil como uma federação2, por entender que esta seria a melhor forma de igualar os estados brasileiros e possibilitar que a União atendesse, de forma específica, as necessidades particulares de cada ente federativo.

No Estado Federativo, que é composto por entidades públicas autônomas indissoluvelmente vinculadas, é desenvolvida a descentralização no exercício do poder político, permitindo que cada ente federativo se autoadministre e autogoverne.

A ideia de federação no Brasil se efetiva, principalmente, com o Pacto Federativo, também chamado de Federalismo Fiscal. Este Pacto se resume na divisão de atribuições de cada ente, estados, municípios etc. Desta forma, é gerada uma distribuição de “tarefas”, impedindo que a União fique sobrecarregada e responsabilizando diretamente os entes federativos por suas atribuições, bem como possibilitando que o cidadão saiba a quem recorrer quando determinado serviço não estiver sendo prestado.

Um exemplo muito claro dessa divisão de atribuições é a educação. No Brasil, decidiu-se atribuir aos estados e aos municípios o dever de fornecer educação de base, ensino fundamental e médio, enquanto a União será responsável apenas pelo ensino superior, em concorrência com os estados. O que não se pode esquecer é que, mesmo que a União descentralize certas atribuições como esta, cabe a ela repassar as receitas aos entes encarregados, viabilizando a efetivação da prestação do serviço à sociedade.

Entretanto, a Desvinculação de Receitas, notadamente após a aprovação da Emenda Constitucional nº 93/2016, que retirou os Estados, Distrito Federal e Municípios da lista de exceções, onde não eram atingidos por este mecanismo, tornou-se uma grande vilã para todos estes entes, e isso se explica pelo fato de que, agora, a verba oriunda do Governo Federal com a finalidade de auxiliar aos estados e municípios no cumprimento de suas atribuições também está passível de reduções, como os demais órgãos, fundos e despesas.

Portanto, dependendo do entendimento do gestor federal, os estados e municípios, que sempre receberam o mesmo valor em contribuição, como forma de manter todas as escolas públicas, pagar aos professores, funcionários, e todos os segmentos relacionados à educação, poderão contar com receitas 30% (trinta por cento) menores. Note-se que o Pacto Federativo não trata apenas das contribuições relativas à educação, mas, sim, de diversas áreas.

A nova Emenda gerou bastante repercussão entre os governadores dos estados e os deputados estaduais, pois estes alegam que haverá uma sobrecarga dos estados, que não conseguirá atender a toda a demanda da população por carência econômica, já que sofrerão uma redução considerável de suas receitas. Consequentemente, a população exigirá de quem está mais próximo e acessível, ou seja, a união não sofrerá pressão popular, enquanto os estados e municípios, sim.

Não obstante, a União tem demonstrado a intenção de descentralizar novas atribuições, desobrigando-se mais em relação à sociedade e, inevitavelmente, sobrecarregando, ainda mais, os orçamentos estaduais, distritais e municipais.

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Pode-se entender, então, que a desvinculação de receitas é uma das grandes culpadas da carência orçamentária dos Estados, Distrito Federal e Municípios, pois permite a discricionariedade no repasse de receitas a estes entes, descumprindo parte da obrigatoriedade prevista na Constituição Federal.


Notas

1 Art. 167. São Vedados: (...) IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo.

2 Constituição Federal de 1988. “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (...)”.


REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 27, de 21 de março de 2000. Acrescenta o art. 76 ao ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo a desvinculação de arrecadação de impostos e contribuições sociais da União.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 56, de 20 de dezembro de 2007. Prorroga o prazo previsto no caput do art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 68, de 21 de dezembro de 2011. Altera o art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 93, de 08 de setembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para prorrogar a desvinculação de receitas da União e estabelecer a desvinculação de receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2016.

ALVES, Raquel de Andrade Vieira. A “nova” desvinculação de Receitas da União e o Pacto Federativo. Consultor Jurídico – Conjur, setembro de 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-set-15/raquel-alves-dru-pacto-federativo. Acesso em: 13 de maio de 2017.

SERAFIN, Gabriela Pietsch. O princípio federativo e a autonomia dos entes federados. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 58, fev. 2014. Disponível em:http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao058/Gabriela_Serafin.html. Acesso em: 14 de maio 2017.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DOS ESTADOS E DO DF. Ec. 93 é promulgada e preserva fundos das PGEs e PGDF. Disponível em: http://anape.org.br/site/ec-93-e-promulgada-e-preserva-fundos-das-pges-e-da-pgdf/. Acesso em: 14 de maio de 2017.

ÁLVARES, Fernando. O que é e para que serve a desvinculação de receitas da União (DRU)?. Brasil, Economia e Governo. Novembro de 2011. Disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2011/12/05/o-que-e-e-para-que-serve-a-desvinculacao-de-receitas-da-uniao-dru/. Acessado em: 14 de maio de 2017.

SENADO FEDERAL. DRU. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/dru. Acessado em: 14 de maio de 2017.

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Sobre os autores
Rubens Tavares Quental Cruz Junior

Acadêmico de direito, 8º semestre, Faculdade Paraíso do Ceará

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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