Crime organizado: aspectos históricos e jusfilosóficos, nacionais e internacionais

31/08/2016 às 03:42
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Análise sociológica do crime organizado no Brasil e no mundo e como evoluíram internacionalmente as diretrizes que inspiraram os diplomas nacionais de combate ao tipo de crime analisado. Há então análise crítica de como tratamos sua persecução aqui.


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a legislação que trata do crime organizado em nosso ordenamento interno e refletir criticamente acerca de que rumos o processo penal vem se inclinando a seguir em relação a uma criminalidade tão, e por vezes até mais, bem estruturada que o próprio aparelho repressivo estatal. Aborda os desafios, tanto no plano doméstico quanto no externo, do esforço do direito em aprisionar o fenômeno da criminalidade organizada num tipo penal que exaurisse todos os seus caracteres ontológicos, de forma a não conceder um processo penal mais gravoso a crimes associativos de menor importância, nem de não abranger casos de criminalidade organizada verdadeira, mas que tenham algum caractere limítrofe, excludente da tutela penal diferenciada. Serão abordados argumentos a favor de uma maior invasão das liberdades individuais constitucionais e, em seguida, sua refutação à luz de dados empíricos, localização de falhas na argumentação eficientista em tela e reforço da importância dos limites principiológicos no processo legislativo criminal, de forma a não incorrermos num direito penal de exceção que só tende a ganhar força perante o medo generalizado. 

Palavras-chave: crime organizado, lei 12.850/13, lei 9.034/95, meios de prova, devido processo legal

Sumário    
0.    Introdução
1.    A legislação acerca do crime organizado: trajetória e atual estado
1.1    – O fenômeno da criminalidade organizada
1.2    – A evolução da tipificação
1.3    – Os meios de prova na Lei 12.850/13


0.    INTRODUÇÃO
    Em meados de 2013, foi promulgada a lei 12.850, que tutela os instrumentos legais de repressão a uma forma de criminalidade completamente diferenciada, composta de verdadeiros empreendimentos delituosos, que se mantêm estáveis e lucrativos por décadas em nosso país. A inspiração vinda do Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004, que trouxe ao plano interno o acordado por ocasião da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado (da qual o Brasil foi signatário), finalmente pôde penetrar um diploma legal com o instrumental consagrado por outros países em suas próprias lidas contra suas respectivas associações criminosas, não raro até mais poderosas que as que conhecemos internamente. A lei anterior, a 9.034, por datar de 1995, ainda estava em desarmonia com as diretrizes internacionais de combate ao crime organizado.
    Além disso, ao dispor sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, padecia de atecnias teratológicas que obrigaram a jurisprudência a dobrar-se num exercício de criatividade, em detrimento dos princípios da legalidade e da taxatividade. Seu próprio âmbito de incidência estava disposto de forma a quase inutilizar o diploma inteiro, como abordaremos no primeiro capítulo do texto; o sigilo que instituiu ao longo do processo era completamente alienígena ao que conhecemos e permitimos em nosso ordenamento; algumas armas essenciais para uma atuação policial marcada pela inteligência e pela organização estavam tão mal aparelhadas que eram desencorajadoras para os delegados e membros do Ministério Público, por conta de previsíveis consequências perigosas na relação entra a função acusatória e a investigativa.
    É interessante notar como demoramos a nos municiar contra um fenômeno que adquiriu a feição que comumente associamos a ele em nosso país já por volta dos anos de 1970, com fortalecimento das atividades e inflação das organizações criminosas do Rio de Janeiro e de São Paulo até o ponto que se desmembraram ao longo dos anos de 1980.  Não obstante algumas legislações esparsas que encaravam ângulos específicos da criminalidade “de grande porte”, como a revogada lei nº 6.368 de 1976, antiga Lei de Tóxicos, nosso legislador somou décadas de atraso para tipificar uma espécie de associação diferente da presente no art. 288 do Código Penal, com institutos de persecução criminal à altura do desafio que objetivava.
    Talvez por isso mesmo, por deparar-se com a morosidade e o tempo perdido, o Congresso aprovou algo de tão questionável operacionalidade. A doutrina mobilizou-se para suprir as lacunas do texto da lei 9.034/95, a jurisprudência seguiu no mesmo sentido, mas, nesse caso, felizmente, uma providencial lucidez de nossos tribunais superiores impediu que expedientes de induvidosa inconstitucionalidade tivessem vida mais longa em nosso Judiciário.
    Ao longo da presente obra, primeiro seguiremos o percurso histórico do desafio da tipificação do crime organizado. De que natureza foram as dificuldades encontradas (e ainda enfrentadas), por quais caracteres difere da criminalidade de massa, que especificidades sua natureza deve ensejar na legislação que a ela se opõe, quais as etapas comuns das atividades empreendidas por essas organizações. Quais são as tendências encampadas pelo legislador ao produzir leis acerca do assunto em comento, no que resultam e em que se baseiam para conseguir legitimidade tais ideologias subjacentes ao processo legiferante. 
Na segunda parte, analisaremos criticamente os principais pontos (porque o presente texto não se pretende um manual, senão um comentário crítico) da aplicação da lei em vigência até 2013: quais novidades trouxe para a fase pré-processual e processual, como integrou o trabalho da polícia com o do Ministério Público, quem eram os legitimados para requerer e executar as exceções mais gravosas à investigação ordinária, em que pontos cometeu excrecências em relação à estrutura do devido processo criminal previsto na Constituição de 1988. Em todos os pontos citados, em seguida, abordar-se-á o tratamento que lhes foi dado pelo texto legal vigente depois da metade de 2013: como enfrentou as lacunas, se incorporou ou rejeitou o que a doutrina produziu a título de crítica anteriormente, se prevaleceu o eficientismo ou o garantismo em cada solução buscada.


1.    A LEGISLAÇÃO ACERCA DO CRIME ORGANIZADO: TRAJETÓRIA E ATUAL ESTADO
1.1    O FENÔMENO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA
O fenômeno em tela tem origens difíceis de perscrutar. Duas são as razões. Primeiro, porque sua definição depende de um raciocínio indutivo cujo substrato é o conjunto das ocorrências do fenômeno na história.  Entretanto, ele comporta-se de forma diferente de acordo com cada país, florescendo de atividades distintas em cada um, o que torna traçar seus caracteres essenciais um desafio (tanto para quem se ocupa de analisá-lo, quanto, principalmente, para quem precisa “aprisioná-lo” num tipo penal, como veremos a seguir). Depois, porque um dos poucos traços ontológicos pacíficos da criminalidade organizada é sua aptidão para nublar sua magnitude, seus mentores e suas atividades. 
Outro denominador comum presente na literatura é o de que as associações organizadas para a realização de atividades ilícitas originaram-se, historicamente, como movimentos populares de proteção contra arbitrariedades praticadas por poderosos e pelo Estado, via de regra em áreas não-urbanas e desassistidas dos serviços públicos. Interessante notar que, igualmente, tais movimentações contavam com a conivência de líderes estatais corruptos de suas localidades e, em certo sentido, com a da população, quando conseguiam estabelecer com os habitantes uma relação de mutualismo alicerçada nas lacunas que a prestação pública deixava. Do contrário, a população colaborava mediante o medo da violência que sempre caracterizou o crime organizado (SILVA, 2014, p. 3- 4).
A mais antiga dentre as que existem até hoje são as Tríades chinesas, que datam da primeira metade do século XVII, formada quando da expulsão dos invasores do império Ming. No século XIX, quando Hong Kong passou a ser uma colônia britânica, as Tríades transferiram-se para lá e estimularam os camponeses a cultivarem papoula e ópio. Em 40 anos, 20 milhões de chineses já estavam empregados no cultivo desses gêneros. Uma situação ainda mais favorável, em certa medida, ocorreu quando, um século depois, foi proibido o comércio de ópio em todas as suas formas: as Tríades ficaram sozinhas no topo do lucrativo mercado da venda de heroína. (SILVA, 2014, p.4)
No Japão, a famigerada Yakuza é uma organização criminosa que atua, dentro e fora do país, através de ramificações relativamente independentes (Yamaguchigumi, Toa Yuai Jigio Kumiai, Inagawakai, etc.) que integram a sua rede básica de operações nos Estados Unidos, na Alemanha, na Rússia, na China, na Colômbia e no Brasil. Datam dos tempos do feudalismo japonês, o shogunato, ainda no século XVIII. Longe dos olhos das autoridades, explorava cassinos, prostíbulos, turismo pornográfico, tráfico de mulheres, drogas, armas, lavagem de dinheiro e usura, além de atividades legalizadas, como casas noturnas, agências de teatro, cinemas e publicidade, eventos esportivos, etc., usadas principalmente para dar publicidade à organização e torná-la “palatável” ao povo. Com a rápida industrialização, no século XX, que o país experimentou no pós-Guerra, algo ilustrativo de como funciona a criminalidade organizada ocorreu: a Yakuza criou um ramo novo, adaptado às mudanças nos meios de produção do país. Agentes foram designados para atuar na prática das chamadas “chantagens corporativas”, recebendo treinamento para tornarem-se sokaiya (chantagistas profissionais), que, após adquirirem ações de empresas, exigiam lucros exorbitantes em troca da manutenção de segredos corporativos em face das concorrentes. Aproveitaram-se, inclusive, de curioso traço cultural dos japoneses, especialmente envergonhados de estar no polo passivo de uma chantagem, o que, aliado ao temor gerado da própria Yakuza, vem garantindo um baixo índice de notícia desse braço especializado da criminalidade organizada para as autoridades policiais. (MAIEROVITCH, 1995, p. 74 apud FERRO, 2012, p.3)
Na Itália, a organização que conhecemos modernamente como Máfia, elevada a um arquétipo, quase um sinônimo do fenômeno plural da criminalidade organizada, começou como um movimento rural de resistência a um decreto do rei de Nápoles, que abalou privilégios dos príncipes feudais e desorganizou a estrutura agrária da Sicília. Os príncipes contrataram uomini d’onore para proteger-se das investidas reais contra a região. Eles constituíram organizações secretas denominadas mafias. Em 1865, com a unificação forçada da Itália, episódio conhecido como Risorgimiento, esses homens passaram a resistir contra as forças invasoras, na luta pela independência da região em face da unificação central, o que lhes possibilitou amealhar a simpatia dos camponeses pela ligação à sua identidade regional. A partir da segunda metade do século XX, somente, é que seus membros passaram a se dedicar a atividades criminosas, e o movimento do sul da Itália dividiu-se em algumas facções: a Cosa Nostra da Sicília, considerada o mais poderoso agrupamento, em número de clãs e ligações com as autoridades; a Camorra, do interior de Nápoles, conhecida por sua truculência, em oposição à premeditação e relativa sutileza da primeira, a Sacra Corona Unita, que atua na costa do mar Adriático, e a N’Dranghetta, considerada a menor. O núcleo da primeira remonta a uma associação de umoni d’onore chamada I Beati Paoli, que lutava pela independência da Sicília, marginalizada pelo governo, situado em Roma, de forma que até quem nada tinha a ver com suas atividades acostumou-se a ter a Justiça da máfia em mais alta conta que a do Estado. Tal fato evidencia, novamente, o traço comum de abandono do poder público que estimula o surgimento de germes da criminalidade organizada (FERNANDES; FERNANDES apud ENDO, 2014, p. 2-3) (PELLEGRINI; COSTA JR., 2008, p.5 a 17).
O terrorismo é tema obviamente conexo com o assunto. No Oriente Médio e em parte do continente africano, a força adquirida por movimentos islâmicos radicais corporificou-se no surgimento de diversas organizações terroristas nas décadas recentes, com finalidades que variam da criação de Estados Islâmicos independentes (Turquia, Argélia, Sri Lanka e Egito) até a indiscriminada aversão à influência ocidental na cultura de seus países, em especial aos Estados Unidos da América. Tais grupos protagonizaram uma escalada do terrorismo desde 1973, e foram responsáveis pelo atentado de 11 de setembro de 2001, em Manhattan e no Pentágono, que vitimaram milhares de pessoas.
Alguns dos principais nomes associados a essa modalidade de crime organizado no mundo islâmico são: o Hezbollah (Partido de Deus), organização islâmica libanesa que luta pela criação de um Estado islâmico no Líbano e pela expulsão completa da influência ocidental do país, figurando como suspeita da autoria de um atentado contra a embaixada israelense e uma entidade judaica argentina em 1994, considerado o pior ataque terrorista da história do país, tendo deixado 85 mortos; o Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), organização palestina que data do meio dos anos 80 e tem um braço armado, de nome Al-Qassam, responsável por vários atentados em Israel. Não aceita os acordos de Oslo, pelo qual os principais líderes palestinos reconheceram a existência do Estado de Israel; o GIA (Grupo Armado Islâmico) – surgiu em 1992, depois que o governo argelino recusou-se a reconhecer a vitória da Frente de Salvação Islâmica nas eleições legislativas, e tem o objetivo de instaurar um Estado Islâmico na Argélia, realizando massacres civis e atentados contra intelectuais e estrangeiros. Por fim, cite-se a Al Qaeda, fundada em 1990 pelo milionário saudita Osama Bin Laden, auxiliado anteriormente pelo governo norte-americano, tanto militar quanto financeiramente, quando da Guerra do Afeganistão, uma década antes. Tem como objetivo, ironicamente, lutar contra a influência dos Estados Unidos no mundo islâmico como um todo, e é o principal suspeito pelos atentados de 11 de setembro, a Washington e Nova York. (WELLAUSEN, 2002, p.12-13)
    Mais próxima da realidade do crime organizado do nosso país, é possível analisar a criminalidade organizada dos Estados Unidos, interessante para o realce de elementos pertinentes ao surgimento e crescimento desse fenômeno na América. A proibição irrestrita da comercialização do álcool, na década de 1920 e 1930, tratando-se de um produto com demanda tão alta e generalizada, logo ensejou o surgimento de grupos (gangs) dedicados ao contrabando da bebida, de forma organizada e estável, primeiro mediante chantagem de empresários, e com o enriquecimento dos grupos, mediante corrupção de autoridades da alfândega, de prefeituras e departamentos de polícia.  Com o passar dos anos, tais associações passaram a explorar outras atividades ilícitas, como os jogos e os prostíbulos, e ficaram especialmente fortes no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos do pós-Guerra.  A migração de alguns clãs da Cosa Nostra, vindos da Sicília e com expertise nas atividades já desenvolvidas em solo americano, instalou a máfia ítalo-americana no país, que passou a atuar em todos os ramos que as gangs originais trabalhavam, além de introduzir o tráfico de entorpecentes à lista (SILVA, 2014, p.7-8).
    Por fim, após o excurso histórico e análise dos caracteres internacionais do fenômeno, podemos voltar a atenção à realidade brasileira. A primeira ocorrência de infração penal organizada em nosso país, porém, data da metade do século passado e tem uma origem pouco usual, em comparação com as outras organizações que abordamos anteriormente: o Barão de Drumond criou um jogo de azar para arrecadar dinheiro em prol dos animais do Jardim Zoológico do Estado do Rio de Janeiro.  A iniciativa, porém, foi imitada por grupos organizados, posteriormente, que passaram a monopolizar o jogo mediante a corrupção de políticos e policiais. Nos anos 80, os donos do esquema chegaram a movimentar meio milhão de dólares por dia, e uma parte considerável do faturamento ia para banqueiros associados.
    Mais recentes e violentas são as surgidas em penitenciárias do Rio de Janeiro, nos anos de 1970 e 1980: a “Falange Vermelha”, berço das vindouras, formada por quadrilhas de roubo a banco, nascida no presídio de Ilha Grande, que deu origem ao Comando Vermelho, mais voltado ao narcotráfico, que tomou corpo em Bangu 1, por volta de meados dos anos 70. O Terceiro Comando, dissidência do Comando Vermelho, foi formado por presos que não concordavam com a prática de determinados crimes por parte do grupo e queriam a “especialização funcional” deste.
    Em São Paulo, nos anos 90, surgiu num presídio de Taubaté a organização criminosa conhecida como PCC – Primeiro Comando da Capital, que logo expandiu sua atuação criminosa para outros estados. Patrocinava a fuga de presos, roubava bancos, extorquia mediante sequestro e traficava substâncias entorpecentes, com conexões internacionais. Ficou famosa pelos métodos extremamente violentos de manutenção do poder, com o assassínio de membros de facções rivais de formas completamente cruéis dentro dos estabelecimentos prisionais, sua marca registrada. (SILVA, 2014, p.7-8)
    A análise das plurais e diversas manifestações açambarcadas pela tarja de “crime organizado”, em diferentes contextos culturais e históricos, é imprescindível na tarefa de pôr em relevo os pontos constantes da criminalidade organizada, percorrendo o caminho mais lógico e empírico para conceituá-la. Depois dessa tarefa inicial, podemos passar a uma tarefa mais técnico-jurídica, que é a de analisar os desafios que cercam a tipificação desse crime, comparar as leis que se propuseram a tal e compreender os avanços ou retrocessos que eventualmente foram positivados em nossa trajetória legislativa no tema.
    Num rol introdutório, a partir da análise empreendida anteriormente, podemos citar alguns traços comuns entre as diversas organizações criminosas: a maioria originou-se de agitações populares contra o Estado, o que já, de antemão, põe sua natureza mais próxima do povo do que o poder público o é, e isso facilitou, em geral, sua aceitação nas respectivas comunidades locais. Tal proximidade é mantida por meio do uso de seu poderio econômico e sua intimidação para prover o que o Estado negligencia a áreas de pouca visibilidade, em geral, coletividades pobres. Acerca desse aspecto, Carlos Amorim narra:
O processo de conscientização das comunidades pobres, que conta com o incentivo governamental para a organização de entidades representativas, permitiu que o Comando Vermelho, agindo à sombra do processo legal, obtivesse a liderança de cerca de 35% de todas as instituições desse tipo na cidade do Rio de Janeiro. Pelo voto direto. (...) nos anos 1980/90, o crime organizado havia encontrado uma forma de expressão política aberta. Os líderes comunitários apresentavam junto ao poder público aquelas reivindicações que interessavam às populações, enquanto que os chefes do tráfico ficavam com a fama de terem resolvido os problemas, relacionados ao abastecimento de água, luz, à colocação de asfalto, à instalação de creches etc. Ou seja: tudo o que os governantes deveriam ter resolvido por iniciativa própria. (2010, p.120)
Além disso, as organizações atuam sobre vácuos criados por proibições estatais (exploração de prostituição, jogos de azar, venda de entorpecentes, de armas sofisticadas ou mesmo de álcool); combinado a isso, contam com a conivência dos agentes fiscalizadores do Estado para manter suas atividades. O poder de corrupção é consequência direta do acúmulo de poder econômico, que tem como alvo as várias autoridades dos três poderes do Estado: a Polícia Judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário, altas esferas do Poder Executivo e os responsáveis pelo processo legislativo. Eles contribuem não apenas com a paralisação seletiva do aparelho voltado à repressão criminal, mas também com um fluxo privilegiado de informações, especialmente de ordem econômica, financeira e legislativa.  Em outro trecho de sua obra “Assalto ao Poder”, Carlos Amorim prossegue:
Na segunda-feira, 25 de junho de 2007, o governo mexicano afastou 284 chefes de polícia de suas funções, todos ligados à área de atuação federal. Eram suspeitos de ligação com o tráfico. O expurgo “temporário” visava garantir a lisura da investigação. (...) O México parece naufragar também em denúncias contra políticos e autoridades, como aqui, nas terras brasileiras.(2010, p.177)
    A acumulação de poder econômico é um traço definidor da criminalidade organizada, corolário do fato de atuarem no vácuo de uma proibição estatal, o que resulta em lucros extraordinários. A relação capital/lucro sobre o comércio proibido, como afirma José de Faria Costa, é incrivelmente favorável em relação ao lucro, pois de um capital relativamente pequeno há a expectativa dum lucro fabulosamente alto. Segundo o relatório divulgado em 2008 pela Agência para Drogas e Crime Organizado das Nações Unidos, só a renda obtida com o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, uma das muitas fontes de renda do crime organizado, corresponde a cerca de US$ 322 bilhões por ano. (2001, p.11 apud SILVA, 2014, p.14)
     Uma necessidade comum a todas as atividades ilícitas e, sobremaneira, ao crime organizado, é a de “legalizar” o lucro obtido de fontes proibidas. O processo de “lavar” o dinheiro para que volte ao mercado financeiro sem traços de sua origem é considerada a parte mais vulnerável do esquema inteiro, pois os processos de “reciclagem” do dinheiro são os de mais fácil percepção pelas autoridades que se dedicam a combater o crime organizado. Consiste, em geral, em colocar o dinheiro ilícito no mercado econômico por meio de depósitos, compra de instrumentos negociáveis ou de bens; através de formas sutis de não alarmar fiscalizações, como o fracionamento dos valores que transitam pelo mercado; a utilização de estabelecimentos que trabalham com dinheiro em espécie e a interposição de pessoas físicas insuspeitas ou sociedades comercias entre o dono do dinheiro “sujo” e os depósitos. Seguido disso, há procedimentos de ocultação para dificultar a identificação do rastro contábil dos recursos e, por último, investimentos em empreendimentos que facilitem as atividades criminosas da organização. Jean Ziegler descreve alguns dos “segredos” que protegiam a identidade dos criminosos correntistas dos bancos suíços:
1.    Primeiro segredo: o agente da morte desejoso de lavar seu dinheiro na Suíça dirige-se primeiro ao escritório de um advogado. Este abre uma conta sob mandato, fiduciariamente. O que quer dizer isto? É o advogado que assina o documento de abertura da conta com seu próprio nome, sem deixar de indicar que age por conta de um cliente. Recusará identificar esse cliente invocando o segredo profissional. (...)
2.    Segundo segredo: o agente da morte, já protegido pelo segredo profissional de seu advogado, rejeita fazer o depósito de sua riqueza na conta numerada de um banco. Desconfiado por natureza, prefere interpor uma barreira suplementar entre o advogado e o banco: o que lhe proporcionará uma sociedade fiduciária ou um administrador de riquezas reconhecido. Também nesse caso, os recentes escândalos – e, mais ainda, um sadio temor de concorrência – levaram a associação Suíça dos Bancos a exigir de seus interlocutores a assinatura de um formulário garantindo a proveniência legal dos fundos. A “Declaração por Ocasião da Abertura de uma Conta ou de um Depósito”, cuja assinatura a Associação Suíça dos Bancos sugere aos fiduciários a aos administradores de riquezas, é formulada em termos próximos aos enunciados anteriormente. Infelizmente, inúmeros administradores de riquezas e sociedades fiduciárias recusam-se a assiná-la.
3.    Terceiro segredo: o segredo bancário (artigo 47 da lei federal sobre os bancos e as caixas econômicas). Protege com um muro dificilmente transponível a riqueza ensanguentada dos agentes da morte. (1990, p.86-88)

  A dificuldade diante da lavagem de dinheiro no exterior é ainda maior, pois, quando ela segue um procedimento formal-jurídico legitimador desde seu início, os meios de provas tradicionais da processualística penal são ainda mais ineficazes para debelar esse ponto do esquema geral. Dificuldades assim motivaram a admissão e regulamentação nos ordenamentos jurídicos mais modernos das interceptações de comunicação telefônica, postal e escutas ambientais. A quebra dos sigilos bancário e fiscal, pela mesma razão, é autorizada em certas ocasiões previstas em lei, mas apenas com a anuência do juiz, pelo enorme grau de invasão da intimidade de uma pessoa que não foi ainda condenada pelo delito em análise.
    O poder de intimidação é outra marca registrada do crime organizado. A “lei do silêncio” (a omertà das máfias italianas), uma imposição a qualquer um que se relacione eventualmente com a organização, é mantida mediante violência cruenta e divulgada, tanto contra delatores, quanto contra testemunhas e membros de grupos rivais, estendendo-se, não raro, aos familiares destes. É um dogma capital dos códigos regentes dessas atividades ilícitas, e data, em geral de suas próprias origens, embora hoje em dia, alerta José de Faria Costa, os códigos de honra são somente um passado romântico. Em razão dos lucros exorbitantes, a própria segurança dos membros entre si é posta em cheque, transformando o empreendimento da criminalidade organizada num “negócio de risco”. Para organizações poderosas, a intimidação é executada mesmo contra figuras centrais do poder político:
Virgilio Barco, apoiado por George Bush, recusa apoio a Pablo Escobar. Atrás de Barco encontra-se uma mulher excepcionalmente inteligente, determinada e audaciosa: Monica de Grieff, trinta e seis anos, ministra da Justiça. Ela é o sexto ministro de Justiça desde 1986, início do mandato de Barco. Um de seus predecessores, Lara Bonnillo, foi assassinado pelos sicarios; outro, Enrique Parijo, gravemente ferido. Os outros ministros da Justiça – com pouca vocação para camicases- cederam sucessivamente à chantagem: o cartel tem o delicioso costume de enviar uma foto de família e um pequeno caixão de madeira preto a suas futuras vítimas. Um após outro, os ministros se demitiram. (ZIEGLER, 1990, p. 85)
    Por último, a propriedade organizacional das atividades em tela, sua estrutura piramidal, à maneira de uma empresa, distingue sua atuação escalonada da do crime atomizado: contam com um elevado número de soldados, um boss e alguns intermediários entre os dois polos. Não raro, dispõem de recursos tecnológicos para integrar todos os seus membros com segurança, diminuindo a possibilidade de interceptação pelas autoridades investigativas (GOMES, 1997, p. 72)

1.2    A EVOLUÇÃO DA TIPIFICAÇÃO
A dogmática penal moderna foi pensada para a repressão de delitos de eventos pontuais, no sentido de possuírem marcos inicial e final claros e prolação no tempo definida, lesivos de bens jurídicos individuais. Uma lida rápida em nosso Código Penal e na doutrina pode asseverar tal tendência. O crime organizado, porém, é um crime associativo, que, nas altas esferas dos grupos que o praticam, pouco se exterioriza por comportamentos agressivos de interesses meramente individuais (e sim supraindividuais), com início de difícil especificação e encerramento incerto, posto que permanece funcionando com a mesma estrutura, mesmo diante do isolamento de seus mentores. Constitui-se, pois, em desafio à tipificação do Direito Penal do século recém-chegado, e nossa técnica jurídico-legislativa vem sendo burilada para conseguir apreender os caracteres fáticos do fenômeno em estudo.
Busca-se um tipo penal que não estenda a tutela penal mais severa a atividades delituosas que não justifiquem tal tratamento, mas que também não deixe ao largo de sua severidade ocorrências dignas da tarja de periculosidade distinta da do crime “comum” por conta de algum elemento do tipo que não reste devidamente satisfeito.
No Brasil, a trajetória legislativa no sentido duma tipificação que enfrentasse o problema aqui abordado começou com a lei 9.034, de 3 de maio de 1995.  Foi unânime a doutrina em considerá-la insuficiente. Porquanto editada como instrumento dispondo “sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”, na contramão da tendência contemporânea de separar as diversas modalidades de agrupamento criminoso para reservar apenas às mais graves uma tutela mais invasiva, logo em seu art. 1º, dispõe: “Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando”. Igualou, portanto, a organização criminosa aos atos das quadrilhas e bandos; igualou o tratamento processual e investigativo dispensado a uma gangue que furta fios de cobre com contumácia e o dado ao Primeiro Comando da Capital, por exemplo.     O desacordo com o princípio da proporcionalidade era patente:
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já exigia expressamente que se observasse a proporcionalidade entre a gravidade do crime praticado e a sanção a ser aplicada, in verbis: “a lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito” (art. 15). No entanto, o princípio da proporcionalidade é uma consagração do constitucionalismo moderno (embora já fosse reclamado por Beccaria), sendo recepcionado, como acabamos de referir, pela Constituição Federal brasileira, em vários dispositivos, tais como: exigência da individualização da pena (art. 5º, XLVI), proibição de determinadas modalidades de sanções penais (art. 5º, XLVII), admissão de maior rigor para infrações mais graves (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV). Exige-se moderação, contudo, como destacam Edilson Bonfim e Fernando Capez, para infrações de menor potencial ofensivo (art. 98, I). (...) Para concluir, com base no princípio da proporcionalidade é que se pode afirmar que um sistema penal somente estará justificado quando a soma das violências — crimes, vinganças e punições arbitrárias — que ele pode prevenir for superior à das violências constituídas pelas penas que cominar. Enfim, é indispensável que os direitos fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis (e intocáveis), afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los, deve garanti-los (BITENCOURT, 2012, p. 54).
Posteriormente, foi editada a lei 10.217, em 11 de abril de 2001, que modificou o art. 1º da lei 9034/95 para a seguinte redação: “Esta lei define e regula os meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. Visível que em vez de eliminar o problema, manteve o erro e criou mais uma questão: 
De início, chama a atenção o surgimento da diferenciação entre “associações” e “organizações”. Eduardo Araujo da Silva especula que tal binômio se deva ao termo presente na então vigente lei 6.368/76 (antecessora direta da atual lei de Drogas, que só viria em 2006), art.14, que previa o crime de associação para fins de praticar infrações previstas na Lei de Tóxico. Diferença inócua: nem na doutrina, nem na jurisprudência, essa cisão é levada a efeito por meio de duas definições diferentes. 
Apesar de diferenciar “quadrilha” e “bando” de “organizações ou associações de qualquer tipo”, eximiu-se de conceituar as últimas. Dentro do Direito Penal, por conta do princípio da legalidade, manejar essa categoria postulada sem nenhuma definição estrita positivada seria de controversa legalidade. Erro, inclusive, evitável por exemplos no campo do Direito Comparado, aparentemente ignorados pelo legislador. Sobre a Espanha, por exemplo:
A ausência, até recentemente, do crime organizado como um tópico independente nas descobertas dos relatórios oficiais se deve também à razão da tradicional inexistência duma definição legal positivada na legislação interna da Espanha. Pertencer a uma organização criminosa é visto pelo Código Penal espanhol como uma circunstância agravante de certos crimes, mas nenhuma definição do que seja isso é dada. É trabalho da jurisprudência estabelecer o conceito de “organização criminosa”, em particular, em conexão com o tráfico de drogas, onde desde 1983 ser o mentor de uma organização – mesmo que só parcialmente ou ocasionalmente dedicada ao tráfico ou só transitoriamente constituída – tem sido considerado uma circunstância agravante pelo Código espanhol. (...) Fora do Código Penal, participação numa organização criminosa (com uma disciplina interna) é também considerada pela legislação carcerária para fins de classificar internos no regime fechado. Mas, aqui também, definição alguma é fornecida (Tradução livre) (CUESTA, 2004, p. 796-797).

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    A nova lei de Drogas, 11.343/06, no art. 33, parágrafo quarto, faz menção ao termo e, novamente, não define o fenômeno: 
Nos delitos definidos no caput e no §1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização.
    As tentativas de definir juridicamente o fenômeno estudado neste trabalho vinham, há décadas, buscando socorro em outras searas do conhecimento, em especial, a criminologia e a história, que disputavam a capacidade de fornecer a análise mais satisfatória. Observou-se, entretanto, que a adoção isolada das respostas de cada um desses campos de conhecimento não supriria a demanda do Direito por um conceito instrumental. A mescla dessas respostas, porém, guarda, em geral, três aspectos que se repetem: um aspecto estrutural (número mínimo de pessoas integrantes), finalístico (rol de crimes a ser considerado como de criminalidade organizada) e temporal (extensão temporal do vínculo de associação criminosa). (BORRALLO, 1999 apud CUESTA, 2004, p. 797).
    Em completo acordo com o ensinamento de Enrique Anarte Borrallo, a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, adotado em Nova Iorque, em 15 de novembro de 2000, mais conhecido como Tratado de Palermo (que foi ratificado pelo decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004), classificou como “grupo organizado” aquele que é: 
Para efeitos da presente Convenção, entende-se por: a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material; b) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior; c) "Grupo estruturado" - grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada. 

    Perceptíveis são os traços sumarizados pelo autor: o estrutural (“três ou mais pessoas”), o temporal (“existente há algum tempo”) e finalístico (“com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente convenção”).
Apenas em 2012, no bojo da Lei 12.694, que dispunha sobre o processo e julgamento em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organização criminosa, pela primeira vez no ordenamento doméstico, definiu-se organização criminosa:
Associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.
        Não criou, porém, uma figura típica específica para apenar a participação.
        Esta veio com a lei 12.850/13. Ela define organização criminosa e dispõe sobre a organização criminal, os meios de obtenção de prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Nasceu das discussões duma parte específica da Comissão Especial Mista do Congresso Nacional para levantar e diagnosticar as causas e os efeitos da violência. O sub-relator dos grupos de discussão do tema crime organizado, narcotráfico e lavagem de dinheiro foi o Deputado Federal Magno Malta, auxiliado por um grupo de trabalho organizado pelo CNPJ – Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça.
        O legislador brasileiro assim definiu crime organizado, na lei em estudo:
§1º. Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. 
        A lei, portanto, contempla o entendimento citado anteriormente, constante do art. 2º da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a Delinquência Organizada Transnacional, mesmo porque já estava ela incorporada em nosso ordenamento pelo decreto 5.015, de 12 de março de 2004.
        No requisito estrutural houve, por parte da lei 12.850/13, em relação à 12.694/12, uma inovação restritiva: só quatro ou mais pessoas configuram crime organizado. A anterior redação do art. 288 do Código Penal foi alterada para evitar colisão, exigindo para o crime de associação o conluio de três ou mais pessoas (antes eram apenas mais de três), tratando-se nesse ponto de novatio legis in pejus, não podendo retroagir para prejudicar o réu. 
        Além disso, deve haver certo grau de organização, ainda que informal (não necessariamente algo meticulosamente definido e com significativo grau de especialização dos membros em algumas tarefas), com atribuição de tarefas diferentes aos membros nas ações. O intuito aqui foi separar o tratamento dispensado ao crime organizado, nesta lei, do dado a bandos desorganizados, sem mentores definidos, que praticam todos o mesmo crime de forma coletiva e indiferenciada. 
        Assim como o crime de associação, sucessor do de quadrilha ou bando, porém, o crime que está previsto no artigo também é crime formal. Mesmo que o bando, se estável e duradouro, não tenha cometido nenhuma das infrações previstas na lei, já o crime de participação na organização resta perfeito. A mera intenção, como reza a redação do artigo, o objetivo de obter qualquer vantagem, é suficiente para o tipo.
        No requisito temporal, apesar de não ter feito menção expressa à estabilidade do vínculo que se desejou tutelar na figura típica, é mister aplicá-lo como necessário, por duas razões. Primeiramente, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado aponta para essa direção, e tal diploma foi trazido para o ordenamento interno por meio do Decreto 5.015 de 2004. Outra razão é que a jurisprudência já havia criado o mesmo viés interpretativo para o modificado artigo 288 do Código Penal, para evitar que se punisse a título de tipo penal independente o mero concurso de agentes. (SILVA, 2014, p. 26)
        Quanto ao requisito finalístico, a lei optou por expressar gravidade através das penas intentadas ou praticadas pela organização: quando o máximo da pena for superior a quatro anos ou quando tiver caráter transnacional. 
        Ilícitos penais de pena máxima menor que 4 anos, inclusive contravenções (englobadas pelo gênero “infrações”, que tem como espécies o crime e a contravenção), podem ser punidos, pois, em duas circunstâncias: quando aplicável a lei brasileira segundo as regras de territorialidade e extraterritorialidade (arts. 5º, 6º e 7º do Código Penal) e quando a soma dos delitos pretendidos alcançar o patamar mínimo de 4 anos. Decorre esta possibilidade da redação do §1º, art. 1º da Lei 12.850/13. É importante lembrar a razão de ser da criminalização de práticas contravencionais pela lei 12.850/13, visto que a exploração de redes de jogos de azar está na própria gênese do fenômeno do crime organizado em nosso território, como analisamos em ponto pretérito deste texto.
        O Art. 2º tipifica, finalmente, o crime de participação em organização criminosa. 
Art. 2o  Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.§ 1o  Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.§ 2o  As penas aumentam-se até a metade se na atuação da organização criminosa houver emprego de arma de fogo.§ 3o  A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução.§ 4o  A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços):I - se há participação de criança ou adolescente; II - se há concurso de funcionário público, valendo-se a organização criminosa dessa condição para a prática de infração penal; III - se o produto ou proveito da infração penal destinar-se, no todo ou em parte, ao exterior; IV - se a organização criminosa mantém conexão com outras organizações criminosas independentes; V - se as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização. § 5o  Se houver indícios suficientes de que o funcionário público integra organização criminosa, poderá o juiz determinar seu afastamento cautelar do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à investigação ou instrução processual. § 6o A condenação com trânsito em julgado acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequentes ao cumprimento da pena. § 7o  Se houver indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta Lei, a Corregedoria de Polícia instaurará inquérito policial e comunicará ao Ministério Público, que designará membro para acompanhar o feito até a sua conclusão.

Os bens jurídicos tutelados por esses crimes são a paz pública e a segurança interna do Estado. As organizações criminosas infiltram-se na máquina estatal, inutilizam e cooptam as instâncias que, de outra forma, serviriam para coibir sua forma de obter lucros. Jean Ziegler escreveu, com propriedade, que “o dinheiro da droga (...) corrompe os homens e arruína suas instituições” (1990, p.18). Além disso, a eventual violência perpetrada por elas não se assemelha às desencontradas ocorrências de crimes contra a vida ou contra a pessoa, frutos de episódios fatídicos, mas do cotidiano: é uma violência sistêmica, propagandeada para evitar que se tenha coragem de enfrentar seus autores, pensada estrategicamente e estável ao longo do tempo.
Os verbos nucleares da conduta proibida são promover, constituir, financiar ou integrar organização criminosa. “Promover” significa estimular de qualquer forma, ainda que não componha os quadros da organização, pois para esta ação há um verbo específico (“integrar organização criminosa”). “Constituir” é iniciar a organização, fazê-la existir; “financiar” é fornecê-la dinheiro ou bens para seu funcionamento.
    Trata-se de crime de perigo presumido, uma vez que não é necessário provar o dano à paz pública ou à segurança interna do Estado. Também é crime comum, uma vez que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo dele, não exigindo qualquer condição especial do seu agente. Seus eventuais sujeitos passivos são a coletividade, o Estado e as pessoas lesadas pelas atividades da organização. Admite-se tentativa nas modalidades típicas de promover e financiar a rede criminosa, caso a finalidade do ato não se consume (depositar dinheiro numa conta e a soma não houver caído, ou não conseguir distribuir panfleto elogioso com a história da organização porque o encarregado de sua divulgação foi interceptado, por exemplo). Para os outros verbos, não se vislumbra situação em que o momento consumativo não seja imediato. (SILVA, 2014, p. 28)
    Questão interessante cerca o §1º do art. 2º, que incrimina igualmente o agente que incorre nas condutas do caput e aquele que impede, ou de qualquer forma embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. Impedir é inviabilizar o prosseguimento do ato investigatório, embaraçar é criar dificuldades à atuação da Polícia Civil ou do Ministério Público na apuração dos fatos em questão.
    É de constitucionalidade controversa, porém, que a pena aplicada a alguém que obstrui de alguma forma a investigação em curso deva ser a mesma de alguém que chegou a integrar a organização. A primeira conduta é visivelmente menos gravosa que a segunda, e deveria estar disposta em outra seção da lei, a de “Crimes Ocorridos na Investigação e na Obtenção da Prova”, cujas penas cominadas são inferiores à do delito disposto no art. 2º. Outro aspecto importante desse parágrafo é não confundí-lo com a destruição de provas contra si próprio, corolário do direito à não autoincriminação, que pode até justificar um decreto cautelar de prisão, mas não o crime específico referido acima (SILVA, 2014, p. 30).
    O objeto jurídico do crime é a administração da Justiça, pois o Estado está interessado em elucidar os crimes cuja investigação foi obstaculizada pelo agente. A tentativa é admitida quando alguém pratica ato tendente à obstrução do procedimento e não alcança o fim pretendido.
    
1.3    OS MEIOS DE PROVA NA LEI 12.850/13
Em decorrência das características supracitadas, algumas formas de obtenção de prova do procedimento criminal comum, se mantidas iguais ao padrão vigente, não surtem efeito no combate ao crime organizado.
Decorre tal nuance da própria natureza diferenciada do seu objeto, por seu alto poder de intimidação, fruto da propaganda de violência destinada a intimidar os populares das cercanias de atuação dos grupos. Completamente diferente da violência pontual urbana, como roubos desencontrados, tentativas de homicídio em eventos entre conhecidos, com frequente consumo de álcool, brigas de torcidas organizadas inteiras entre si, onde nenhum dos agressores tem rosto ou expertise, o crime organizado é sistemático e até previsível em suas represálias, embora também implacável e brutal.
Por essa razão, é lugar comum na história da repressão legal ao crime organizado que as possíveis testemunhas nada digam à polícia, não deponham em juízo; se depõem no inquérito, na fase processual alteram completamente o que disseram, por medo da vingança dos criminosos ou porque já foram, de fato, subornadas ou ameaçadas. 
Sobre o assunto, o jornalista Carlos Amorim, que devotou vinte e cinco anos à pesquisa de como se desenvolve o narcotráfico em São Paulo e no Rio de Janeiro, além de observar até onde vai seu poder, escreve:
Várias declarações citadas neste volume partem de pessoas que não são identificadas – ou que são designadas apenas por apelidos ou iniciais. Hoje é praticamente impossível obter declarações de viva voz, acompanhadas de um nome completo. Os telejornais nos mostram toda noite aquelas vozes tecnicamente distorcidas e aqueles rostos cobertos por retículas eletrônicas. Somos um país com medo, que mergulha mais e mais na clandestinidade. Mesmo no banal, no vulgar das coisas. A vítima de um assalto sai da delegacia cobrindo o rosto com a camiseta. A vítima. Ela teme a represália que pode vir do mundo do crime. O bandido é vizinho, é a pior ameaça. Está no mesmo bairro. A poucos quilômetros de distância (...) (AMORIM, 2010, p. 26)
    Se é assim na situação descrita, que dirá em sede de audiência de instrução e julgamento, que, caso seja seguido o procedimento penal tradicional, comportará vítima, testemunha e réu na mesma sala, aquela estando obrigada a contar o que sabe dos delitos de um acusado de participar de esquemas criminosos sofisticados e poderosos. 
    Mesmo os magistrados estão submetidos a risco quando se trata de réus tão poderosos, com influência dentro da máquina estatal e que não temem mesmo as altas instâncias da Justiça. Jean Ziegler, sobre a atuação do Cartel de Medellín, nosso vizinho latino-americano, conta:
Desde 1982, a Colômbia é o maior exportador de cocaína do mundo. Os barões da droga formam um Estado dentro do Estado. Suas armas: plata y plomo (dinheiro e chumbo). Ou corrompem, ou matam. Desde 1982, mandaram assassinar (...) 221 juízes e mais de dois mil policiais. (1990, p. 66)
    Por essa razão, a Lei Estadual 6.806/2007, de Alagoas, que criou a 17ª Vara Criminal da Capital, com competência exclusiva para processar e julgar delitos praticados pelo crime organizado naquele estado, um dos mais violentos do nordeste, previa os julgamentos colegiados em primeira instância. Um dos dispositivos dessa lei, que foi inteira objeto da ADI 4414, foi a criação de colegiados de juízes em primeira instância para proferir decisões em processos sobre a matéria aqui analisada, de forma a tornar o juiz “invisível” (FONSECA, 2012).
    Os ministros do Supremo entenderam que há lacuna em nossa carta constitucional quanto à criação de juízos colegiados em primeira instância, e que Alagoas não a estaria contrariando ao exercer sua prerrogativa de legislar complementarmente à Constituição. A decisão do tribunal teve repercussão para o resto do país, abrindo caminho para a disseminação das estruturas especializadas. Posteriormente, a lei 12.694/12 consagrou esse entendimento, dispondo, entre outras matérias, de garantias de segurança ao juiz que julga réus acusados de integrar o crime organizado.
    No Brasil, em 2011, a juíza Patrícia Acioli, reconhecida no meio jurídico por emitir sentenças contundentes contra o crime organizado do Rio, foi assassinada com vinte e um tiros em uma emboscada na porta de casa, em Niterói. De acordo com o inquérito da polícia, a magistrada estava em uma lista de pessoas marcadas para morrer. Tendo em vista casos como esse que a decisão sobre o caso de Alagoas foi dada pelo STF. 
Argumenta-se em parte da doutrina que há a vulneração de garantias individuais no direito penal, processual penal e constitucional com tais medidas de produção de provas. A Lei 12.850, diante das realidades que pretende tutelar, disponibiliza aos órgãos investigativo e acusatório os seguintes meios de obtenção de prova:
Art. 3o  Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: I - colaboração premiada; II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; III - ação controlada; IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica, VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica, VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11; VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.
    Nota-se, então, que no plano processual penal, uma inegável tendência restritiva de certos direitos fundamentais dos investigados e réus perpassa a legislação em tela. 
    Parte da doutrina argumenta que não está o diploma, porém, à margem da Constituição e das garantias construídas historicamente para os indivíduos. Começa-se por evidenciar o comando implícito através do texto constitucional, na medida em que o legislador originário prescreveu tratamentos diferenciados para matérias de natureza díspar: tornou inafiançáveis algumas formas de crimes graves (art. 5º, XLIII), enquanto para outros tantos, pinçados pela quantidade de pena máxima abstratamente cominada ao tipo penal, admitiu procedimento mais célere e transação penal, nominando-os de “delitos de menor potencial ofensivo”. Consentiu a violabilidade das comunicações telefônicas, para fins de investigação e processo penal, uma vez que o juiz as tenha permitido (art. 5º, incisos XI e XII), em que pese a regra ser a preservação da intimidade e a vida privada dos cidadãos. É visível que o diploma norteador de nosso ordenamento jurídico enxergou a necessidade da diferenciação dos procedimentos persecutórios penais em relação ao que está sendo apurado, ainda que, logicamente, não se tenha chegado à condenação definitiva (SILVA, 2014, p.46).
    Por fim, analisa Lênio Streck, acerca da hierarquia axiológica que defendem os penalistas pátrios. A visão de que o Estado só exerceria o princípio da proporcionalidade negativamente, ou seja, excluindo penas para que se compatibilizem com outras de mesma natureza mas de mais branda quantidade, é um cacoete liberal que não mais se coaduna com os desafios de proteção a bens jurídicos transindividuais que nossos ordenamentos enfrentam:
Sendo um texto jurídico (cujo sentido, repita-se, estará sempre contido em uma norma que é produto de uma atribuição de sentido2 - Sinngebung) válido tão-somente se estiver em conformidade com a Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma pré-compreensão (Vorverständnis) acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se encontra, em face do processo de antecipação de sentido, numa co-pertença “faticidade-historicidade do intérprete e Constituição-texto infraconstitucional”. Um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) jamais é interpretado desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição. (...) Estando isto claro, vale registrar, no particular, a existência de uma grave controvérsia acerca da extensão e das funções desse conceito (bem jurídico) a partir do dissenso surgido entre a postura dos penalistas liberais, que defendem uma compreensão demasiadamente restrita do conceito, e aqueles que defendem o reconhecimento jurídico-penal de valores supra-individuais, cuja posição quanto à funcionalidade dessa instituição jurídica assenta-se em uma concepção organizativa, interventiva e atenta à realidade social. Essa contenda não foi ainda suficientemente percebida e apreendida pelo conceito dogmático de bem jurídico, e este conflito acarreta uma confusão quanto aos bens que devem prevalecer numa escala hierárquica axiológica, para fins de serem relevantes penalmente e, portanto, merecedores de tutela dessa natureza. A transferência desta – ainda não resolvida – controvérsia para as práticas legislativas e judiciais faz com que surjam leis (v.g., Leis 10.259/01 e 10.741/03) em que bens jurídicos que claramente traduzem interesses de grandes camadas sociais são rebaixados axiologicamente e equiparados a outros bens de relevância individual, privilegiando-se o individual em detrimento do coletivo, questão sutilmente presente, por exemplo, na legislação que trata dos crimes d sonegação fiscal no Brasil, como é possível perceber até mesmo na recente Lei 10.684/03, sancionada já no governo Luis Inácio Lula da Silva, e que será objeto de análise mais adiante. O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao aquecimento do debate entre penalistas de apego exarcerbado ao liberalismo e os que buscam a guarida penal de bens supra-individuais, é que estes buscam introjetar na concepção de bem jurídico penal a ideia de que uma série de valores constitucionais de feição coletiva necessitam de proteção penal, enquanto aqueles (apegados à concepções do liberalismo clássico), resistem a tanto, obstaculizando a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade, sob o argumento de que tal concepção implicaria uma “indesejada ampliação das barreiras do direito penal”. De certo modo, continuam a pensar o direito a partir da ideia segundo a qual haveria uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e indivíduo. Para eles, o Estado é necessariamente mau, opressor, e o direito (penal) teria a função de “proteger” o Aliás, parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas brasileiros de orientação crítica fazem essa leitura do garantismo tão-somente pelo viés negativo. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve (sempre) ser examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal. indivíduo dessa opressão. Por isso, em pleno século XXI e sob os auspícios do Estado Democrático de Direito – no interior do qual o Estado e o Direito assumem (um)a função transformadora – continuam a falar na mítica figura do Leviatã, repristinando – para mim de forma equivocada – antiga problemática que contrapõe o Estado (mau) à (boa) sociedade (sic).

Exposta tal posição, não é difícil ver que há pelo menos um salto argumentativo indevido em seu seio. A disposição implícita que nos autoriza a dispor do procedimento judicial de acordo com a natureza do tipo penal investigado, porquanto exista, não é, obviamente, o mesmo que dar carta branca ao legislador infraconstitucional para positivar qualquer grau de invasão aos direitos fundamentais. 
Esse tipo de solução, que se vende como uma enérgica resposta das leis penais e processuais penais a uma criminalidade crescente, encontra legitimação popular por meio de um mecanismo de populismo alarmista midiático. A criminalidade de massa, desorganizada, acéfala e pontual, propagandeada pelos meios de comunicação, é motivo de um sentimento de insegurança desproporcional na população que acaba sendo saciada em reações contra criminalidades até de natureza diferente da que infundiu o medo no povo, como a criminalidade organizada. (BITENCOURT, 2013, p. 6 a 10).  Nasce aí a legitimidade popular do direito de exceção.
Por direito penal de exceção devemos compreender uma legislação penal excepcional frente à Constituição. Caracteriza-se por algumas características dentre as listadas: ampliação dos poderes da polícia, pelo interrogatório sem a presença do defensor, flexibilização dos requisitos para concessão de interceptação telefônica, tipos penais semanticamente abertos, prisões cautelares praticamente compulsórias dos imputados, ampliação do tempo destas, premiação dos delatores, valor de prova plena aos depoimentos colhidos na investigação, a imparcialidade judiciária é substituída pelo princípio inquisitivo e a lógica amigo/inimigo, entre outras. Foram adotados, por exemplo, na Itália, notadamente entre 1974 e até os anos 90, transformando o processo penal numa máquina incontrolável e distante das garantias tradicionais em favor dos investigados e réus, em nome da repressão às organizações mafiosas que existem ao longo do país. A base dela foi a substituição das razões do Direito pelas razões de Estado, de legitimação política em vez de jurídica. A primeira subordina os fins políticos aos meios juridicamente possíveis, fruto da evolução das garantias a tão duras penas conquistadas durante a Idade Moderna; a segunda, subordina os meios jurídicos aos fins políticos por quem detém o poder. A crise de legalidade então, seria mero corolário, facilmente previsível.  No caso citado, não tardaram as críticas aos abusos dos juízes italianos ao longo da famigerada Operação Mãos Limpas, em razão do abuso (amparado legalmente) da prisão cautelar, que fez que o povo a conhecesse como “Operação Algemas Fáceis” e uma onda de suicídios explodisse entre os investigados cautelarmente detidos. (GOMES e CERVINI, 1995, p.42 a 44).
Essa reação é completamente simbólica, visto que os mecanismos reativos citados, possibilitados a órgãos repressivos, não surtem efeitos concretos na normalização de um incremento de violência que, por vezes, sequer existe fora da propaganda. Não têm nenhum sentido empiricamente e o legislador, que sabe que essa política criminal é ineficaz, passa por inquieto e cioso ao grande problema na segurança pública. É uma política desonesta que retira credibilidade do Direito Penal. (HASSEMER apud GOMES e CERVINI, 1995, p.45).
Para ilustrar o ponto de que o argumento da permissão constitucional à diferenciação dos procedimentos penais em relação a crimes mais graves é usado de forma abusiva em nosso ordenamento, podemos citar exemplos da Lei 9.034/95.
Como já discutido, o texto legal iniciava por definir o âmbito de sua incidência sobre os imputados segundo o art. 288 do Código Penal, o crime de quadrilha ou bando, um delito bastante comum e de complexidade inferior para o aparelho repressivo estatal, o que feria o princípio da proporcionalidade. A questão é que, mesmo entre aqueles juízes que se negavam a aplicar a lei da forma em que expressamente se encontrava, o artifício usado feria um princípio ainda mais caro ao constitucionalismo: o da legalidade. 
Nenhuma interpretação jurídica deve deixar de ser sistemática. Afirmar o contrário seria supor que, da forma com que saem do processo legislativo, as leis estão perfeitamente adequadas às normas que lhe são superiores e harmonizadas com as que estão hierarquicamente equivalentes. Portanto, os artigos iniciais, (Art. 1º Esta lei define e regula os meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando. Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas.) eram interpretados como tendo criado uma figura jurídica nova, a organização criminosa, de âmbito diferente do da quadrilha ou bando, mas consistiria ela na soma do já definido art. 288 do Código Penal (pois, por óbvio, alguma ligação o legislador postulou entre as figuras) e um plus que a lei não descreveu, e que caracterizaria uma norma penal em branco (expediente tão caro ao direito penal de exceção), que caberia ao intérprete autorizado preencher:
É certo que o juiz não pode se encarregar de criar o âmbito do proibido por sua conta. Há limites ao judicial law-making. Não se questiona que o juiz não pode jamais criar ex novo um tipo penal (só o legislador pode fazê-lo). A discussão, no entanto, é deveras interessante quando o legislador só “enuncia” um conceito tipológico penal e deixa para o juiz a total liberdade de lhe delimitar o âmbito de incidência (isto é, daquilo que é proibido). Há ainda uma outra possibilidade: o legislador “define” de modo incompleto o tipo penal e passa ao juiz a tarefa de completa-lo. Ou lhe outorga a tarefa de dar sentido para expressões normativas. Podemos, de modo nada científico, sintetizar assim: os tipos penais fechados (os que não exigem nenhum complemento do juiz) não se confundem com os tipos penais abertos. Estes, encarados em sentido lato sensu, possuem uma graduação: há tipos abertos que definem o delito, mas contêm requisitos normativos ou conceitos jurídicos indeterminados (ex: CP, art. 219 – mulher “honesta”; crime culposo; imperícia, imprudência e negligência; posição de garante, art. 13, §2º, do CP, etc.). Tais tipos penais só exigem do juiz um “complemento valorativo ou conceitual. Há tipos abertos em sentido estrito que “definem” o delito mas de modo incompleto (aborto, uso de documento falso, etc.). Estes exigem do juiz um complemento definitorial (a lei dá uma parte, o juiz concretiza o âmbito do injusto). Há, por fim, tipos completamente abertos, que só “enunciam” o delito, sem dar-lhe nenhum princípio de “definição” – são meras cláusulas gerais (ex.: o adultério do CP, o ato obsceno do CP, a tortura prevista no ECA). Estes últimos exigem do juiz não só uma atividade complementar, senão a tarefa elementar de delimitar totalmente o âmbito de incidência (é o juiz que dirá o que é proibido e o que é permitido). Do ponto de vista de um direito penal garantista, é evidente que o ideal seria o legislador só estabelecer em lei de tipos penais fechados. (...) Qual seria o limite extremo dos tipos abertos? A resposta a essa indagação tem que partir do que está estatuído no art. 5º, inc. XXXIX, da CF: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” (...) Em síntese, a lei penal precisa “definir” o crime, isto é, não basta enuncia-lo. Como o texto constitucional não exige que a definição seja “completa” (o que seria o ideal), pode-se até admitir a constitucionalidade dos tipos penais abertos “incompletos”, desde que haja um “princípio de definição” por parte do legislador. (...) Estamos diante de um tipo aberto em sentido estrito, onde está totalmente definida. Mas, pelo menos, há um princípio, razão pela qual a tarefa do juiz será somente complementar, não elementar. (GOMES, 1995, p. 79 a 83)

    
Parece-nos, ao contrário do malabarismo conceitual empreendido pelo eminente penalista, que a permissão judicial de definir o plus elementar que separa um tipo apenas “enunciado” no ordenamento de outro “definido”, ainda que aquele parta deste, não deixa de ser a decisão acerca dos elementos da figura criada no âmbito penal. Ao juiz, em nossa Constituição, não foi dado essa atribuição, que fere frontalmente o inc. XXXIX do art. 5º (curiosamente, citado por Luiz Flávio Gomes) e a tripartição de poderes.
Outra saída para contornar o déficit conceitual da lei 9.034/95 foi aplicar a definição constante no Tratado de Palermo, que cuida da criminalidade organizada transnacional. Mais uma patente forma de burlar o princípio da legalidade para salvar a aplicação da lei então aprovada, o que ficou claro na lúcida argumentação exposta no julgamento do HC 97.006, pelo STF. Afirmava-se, antes, que o referido tratado passou a vigorar no Brasil por meio do Decreto nº 5.015/04, logo, restaria satisfeito o princípio da legalidade. Pelos seguintes motivos, porém, isso não poderia prosperar: (a) Só se pode criar crime e pena por meio de uma lei formal (aprovada pelo Parlamento, consoante o procedimento legislativo constitucional); (b) o decreto viola a garantia da lex Populi, ou seja, lei aprovada pelo Parlamento (decreto não é lei); (c) quando o Congresso aprova um Tratado ele o ratifica, mas ratificar não é aprovar uma lei; (d) ainda que o tratado tivesse legitimidade formal para criar no Brasil o crime organizado, ainda assim ele não contempla nenhuma pena, e não há crime sem pena. Por último, (e) o Tratado foi pensado para o crime organizado transnacional. Para ser aplicado a crimes internos, deveria ser usado o expediente interpretativo da analogia in malam partem, o que é proibido. (BITENCOURT, 2013, p. 22). Além disso, Luiz Flávio Gomes levantou que a definição da Convenção de Palermo era ampla, genérica e viola a garantia da taxatividade. (GOMES apud CUNHA e PINTO, 2014, p.12). Vê-se que, nesse escrito de 2009, felizmente, o penalista adotou entendimento diferente a respeito da importância da taxatividade quanto à definição do crime organizado.
É sintomático o fato de que uma lei não tenha uma só saída interpretativa quanto a seu âmbito de aplicação que goze de inconteste constitucionalidade. Fruto de uma tendência de law and order que a fez vir à luz antes de ser gestada responsavelmente, a 9.034/95 sofria de atecnias outras que serão explicitadas no próximo capítulo. 
Por fim, quanto à passagem de Lênio Streck, que insinua a desnecessidade do apego tão firme à proteção dos bens jurídicos de Primeira Geração, primeiros frutos do liberalismo aos ordenamentos jurídicos, em detrimento da garantia de bens transindividuais (a que poderíamos, por outro lado, chamar de “razões de Estado”, e não bens transindividuais), basta-nos pensar que para uma enorme parcela de tutelados do sistema penal e carcerário, a demanda por esses bens não está nada ultrapassada. A seletividade do sistema penal e os abusos cometidos no tocante à atuação policial  e judiciária – as prisões cautelares que se estendem por anos sem que nada aconteça no processo correspondente, prisões preventivas decretadas com fundamento em interpretações bastante voluntariosas dos requisitos do art. 312 do CPP – contra crimes característicos da criminalidade de massa,  nos ensinam que ainda não é hora – supondo que essa hora chegará em algum momento – de adotarmos uma “axiologia diferente” na nossa produção legislativa penal.     
 

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Sobre o autor
Oberdan Costa

Advogado residente em Brasília. Formado em Direito pela FD-UnB e pós-graduado em Direito Público pelo IMP-Brasília.

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