As controvertidas interpretaçoes do art. 366 do Código de Processo Penal

Exibindo página 1 de 2
27/06/2016 às 15:43
Leia nesta página:

A nova redação do artigo 366 do Código de Processo Penal, por não prever limitação temporal para a nova causa suspensiva da prescrição, tem gerado inúmeras discussões na doutrina e jurisprudência.

A antiga redação do artigo 366, do Código de Processo Penal destoava, por completo, das garantias processuais insculpidas na Constituição Federal, quais sejam: a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal. O dispositivo em sua redação original instituía que o acusado, citado por edital, não comparecendo, ou não constituindo advogado, sem motivo justificado, seria condenado à revelia e o processo seguiria seu curso após a nomeação de defensor técnico.

Argumenta-se que até 1996, quando decretada a revelia, os processos seguiam em sistema similar ao inquisitorial, não sendo oportunizado ao réu condições reais de defesa pessoal ou técnica. Os processos tramitavam sem que os réus deles tivessem conhecimento e os defensores técnicos os nomeados, sem contato com o acusado, findavam inaptos a propiciar defesa eficiente[1].

Guilherme de Souza Nucci[2] informa que “ quando assim ocorria, muitos erros judiciais eram concretizados, pois não havia defesa efetiva, podendo a pessoa ser processada em lugar de outra”.

Mara Regina Trippo[3] afirma que os princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, em razão do disposto no texto original do artigo 366, do CPP, findavam desrespeitados e inefetivos, quando das condenações à revelia.

De acordo com Ada Pellegrini Grinover[4], o exame cauteloso do texto constitucional era suficiente para denunciar a incompatibilidade da condenação à revelia, sem a devida observância ao devido processo legal e às garantias constitucionais.

Ante a insustentável disciplina dada a matéria, a Lei 9.271/96, com o fim de “salvaguardar a mais ampla defesa do acusado[5], alterou o texto do artigo 366, do Código de Processo Penal.

Fernando Capez explica:

O fundamento de tal inovação reside no direito à informação. Derivado dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, tal direito encontra-se previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, a qual foi assinada em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, passando a ter força de lei. Referida Convenção, em seu art. 8°, b, assegura a todo acusado o direito à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada. Assim, não mais se admite o prosseguimento do feito, sem que o réu seja informado efetivamente, sem sombra de dúvida, da sua existência[6].

Após a reforma legal o dispositivo passou a ter a seguinte redação: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312[7][8].

Foi instituída não só uma causa suspensiva do processo, como também uma nova causa suspensiva da prescrição. A estipulação da suspensão do processo firmou-se como um benefício para o acusado e a suspensão do curso do prazo constitucional uma medida instituída a fim de recobrar o equilíbrio, posto que não haveria lógica sustar o curso do processo e autorizar o curso da prescrição, pois nessa situação haveria a contagem do prazo para o exercício do direito de punir estatal, ao mesmo tempo em que se impediria, em razão da suspensão do processo, que o Estado efetivamente fizesse uso desse poder.

Fernando da Costa Tourinho Filho[9] ensina que a suspensão simultânea do processo e do prazo prescricional foi uma medida encontrada pelo legislador para conciliar os interesses da sociedade, perturbada com a violação da ordem jurídico-penal, em razão do cometimento do ilícito, e a ampla defesa. Por isso, uma das justificativas para a suspensão simultânea do processo e da prescrição é justamente a promoção de equilíbrio.

Ademais, a criação da nova causa de suspensão da prescrição almeja, também, coibir que a suspensão do processo decorrente da “inatividade processual ficta”[10] incentive a impunidade[11].

Nesse ponto, importante registrar a crítica que Tourinho Filho[12] dirige a instituição dessa nova causa suspensiva da prescrição pois, embora entenda que a suspensão da prescrição consta no texto do artigo 366 do Código de Processo Penal para compensar a suspensão do processo e coibir a impunidade, o autor opina no sentido de que o legislador foi excessivamente severo, na medida em que poderia ter proposto outra solução mais adequada e proporcional.

Suscita-se, ainda, que a alteração legislativa também teve viés de política judiciária, partindo do pressuposto que a nova redação do artigo 366, do CPP, garante maior eficiência à provocação do judiciário. Antes da vigência da Lei 9.271/96, muitos casos de condenação à revelia findavam alcançados pela prescrição, ou seja, o Estado tinha todo um gasto com a persecução criminal, investigação, produção de provas e todos os demais custos decorrentes de um processo, para ao final esse findar inócuo com a extinção da punibilidade. Tendo estipulado a suspensão da prescrição, os novos contornos dados à situação buscam, também, evitar a movimentação inútil do judiciário[13]. Somado a isso, frisa-se que a atenção a ampla defesa, ao devido processo legal e ao contraditório também atendem ao interesse público ao passo em que garante sentenças mais justas.

Justificativas para alteração do dispositivo em exame existiam e a mudança era uma real necessidade do ordenamento pátrio, entretanto a omissão do poder legislativo em não fixar limite temporal para a suspensão do processo resultou no alastramento de discussões e divergências quanto a correta interpretação do texto legal, ainda não pacificadas.

As interpretações dadas ao texto do artigo 366, do CPP se dividem em três blocos, quais sejam: 1) O dos que acusam a inconstitucionalidade da previsão do dispositivo legal; 2) O dos que pregam que a interpretação teológica da Lei 9.271/96 sana a lacuna deixada pelo legislador e garantem a constitucionalidade da nova redação dada ao artigo 366 do Código de Processo Penal; 3) O dos que defendem que a interpretação literal da norma é constitucional, tendo em vista que condicionar o fim da suspensão a evento futuro e incerto não se equipara a imprescrição. Passa-se a análise de cada orientação.

Até meados de 1988, o ordenamento nacional não admitia a imprescritibilidade, assim, todo ato ilícito estava sujeito a ação do tempo, à prescrição. O panorama mudou quando a Constituição trouxe expressamente em seu texto dois casos nos quais o tempo não era hábil a limitar o poder de punir do Estado, assim, a Magna Carta, para uns inovou, para outros retrocedeu, ao instituir a imprescrição do crime de racismo (artigo 5º, inciso XLII, da CF/88) e do crime de ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Sendo a imprescritibilidade uma realidade a ser enfrentada pelo ordenamento do país, dos muitos questionamentos levantados sobre a questão, discute-se, até os dias atuais, sobre a possibilidade de ampliar as hipóteses de crimes imprescritíveis.

Para maior parte dos doutrinadores brasileiros, o rol de crimes imprescritíveis é taxativo, sendo inadmissível a criação de novas hipóteses. Assim, os autores que argumentam a inconstitucionalidade do artigo 366, o fazem por conceberem a nova causa de suspensão da prescrição como um camuflado modo de instituir novos casos de imprescritibilidades.

Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci[14] argumenta a impossibilidade de a prescrição ser suspensa indefinidamente, pois referida situação equivaleria a tornar o ato ilícito imprescritível.

O raciocínio é simples, quando a lei não fixa termo final para o fim da suspensão da prescrição, faz concluir que o prazo prescricional só voltará a transcorrer quando o réu comparecer ou constituir advogado, fato que pode nunca vir a acontecer. Caso o acusado nunca apareça, a prescrição ficará suspensa, o prazo prescricional não voltará a correr, e o processo poderá só ter termo quando extinta a punibilidade pelo óbito do réu.

Nesse sentido Damásio E. de Jesus afirma:

O prazo da suspensão da prescrição não pode ser eterno. Caso contrário, estaríamos criando uma causa de imprescritibilidade. As hipóteses que não admitem a prescrição estão enumeradas na Constituição Federal, não podendo ser alargadas ela lei ordinária. Ora, permitindo-se a suspensão da prescrição sem limite temporal, esta, não comparecendo o réu em juízo, jamais ocorreria, encerrando-se o processo somente com sua morte, causa extintiva da punibilidade (CP, art. 107, I)[15].

Ademais, defende-se que desse modo se experimentaria a ampliação da imprescritibilidade com uma agravante, qual seja: qualquer crime, incluídos os de menor potencial lesivo, poderiam ser abrangidos pela imprescrição, ao passo que a nova causa suspensiva trazida pelo artigo 366, do CPP, aplica-se a qualquer processo penal em curso no judiciário pátrio.

Por isso, além da violação aos preceitos constitucionais, os opositores da nova causa suspensiva da prescrição sustentam o desrespeito ao princípio da proporcionalidade, ao passo em que, possibilitando que a imprescrição atinja desde os tipos penais leves ao mais gravosos, gera excesso punitivo[16].

Convencido da inconstitucionalidade da suspensão por tempo indeterminado da prescrição, Mathias Coltro, em seus julgados, decidiu por aceitar apenas a constitucionalidade da suspensão do processo, tendo deixado de suspender o curso do prazo prescricional, embora tenham suspendido os processos[17].

No segundo bloco estão os jurisconsultos que defendem que a interpretação teológica da Lei n 9.271/96 garante a constitucionalidade da alteração legal. Para esses, a interpretação literal da redação do artigo 366, do CPP, em razão da inexistência de limitação temporal para a suspensão da prescrição, consubstancia a ampliação da imprescritibilidade, todavia, arguindo os fins a que a Lei n 9.271/96 se prestou, adequar o processo penal às garantias constitucionais, aduzem que o objetivo do legislador não foi instituir novas hipóteses de imprescritibilidade e que a melhor interpretação da norma é a que entende que a suspensão da prescrição será por tempo limitado.

Contrariamente, os opositores argumentam que a estipulação de limite temporal para a suspensão da prescrição e a consequente legitimação da contagem do prazo prescricional ante a suspensão do processo, nega o propósito da reforma legal, que criou a nova causa de suspensão da prescrição justamente para evitar que acusados se beneficiassem da sustação do processo para restar impunes.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Conforme Mara Regina Trippo[18], “ a coerência dos fins do diploma impõe a definição de termo final para a paralisação do jus puniendi, espancando a oblíqua imprescritibilidade”. Marcelo Roberto Ribeiro[19], opondo-se a esse entendimento, argumenta que seguindo a orientação predominante “estar-se instituindo a figura inusitada da prescrição da suspensão da prescrição e, o que é pior, sem respaldo legal algum”.

Os autores que sustentam a delimitação de um prazo para a suspensão da prescrição, embora concordem que a omissão do legislador, referente a fixação do prazo de duração da suspensão prescricional, não é suficiente para a caracterização da inconstitucionalidade da norma, divergem quanto aos parâmetros que deverão ser adotados para a delimitação temporal. Divergência que resultou em várias orientações das quais 3 se destacam.

A primeira e a segunda “estabelecem relação de proporcionalidade entre o tempo da suspensão e o prazo para a consumação da prescrição (artigo 109 do Código Penal) ”[20]. A primeira defende que os parâmetros para a fixação da duração da suspensão deveriam ter por base o prazo prescricional estipulado para a pena mínima em abstrato. A segunda pondera que a melhor interpretação é a que propõe a equivalência entre a suspensão da prescrição e o prazo prescricional para a pena máxima em abstrato.

Trippo[21] defende que a segunda orientação é a mais adequada, sendo a única que atende à proporcionalidade penal. Fernando Capez, partidário dessa orientação, diz que “o período máximo da suspensão deve ser o da prescrição calculada com base no máximo cominado abstratamente para a espécie”[22]. Do mesmo modo, Andrei Zenkner Schmidt[23] se posiciona no sentido de que é o prazo prescricional em abstrato que deverá determinar a duração da suspensão e que, consoante funciona para o prazo prescricional, para a estipulação do prazo da suspensão deverá ser considerado a pena máxima em abstrato.

Sidio Rosa de Mesquita Júnior[24], embora argumente que o melhor cenário seria a análise fática de cada caso, finda rendendo-se a orientação majoritária e sustenta que “a suspensão do lapso prescricional, decorrente da suspensão do processo, tomará por base o máximo da pena cominado na lei penal”. 

O Superior Tribunal de Justiça se posicionou a favor da delimitação do prazo de duração da suspensão da prescrição e, seguindo a tendência doutrinária majoritária, editou em 09 de dezembro de 2009 a Súmula 415[25] instituindo a máxima pena como parâmetro.

De outro lado, a terceira orientação é no sentido de que a melhor solução seria a delimitação de parâmetros fixos, “X” anos equivaleria ao tempo de duração da suspensão independente do tipo penal imputado ao acusado.

A terceira orientação sobre o texto do artigo 366 do Código de Processo Penal argumenta que a interpretação literal da norma é constitucional. Para os defensores dessa visão, a redação do aludido dispositivo nao pretende obliquamente instituir novos casos de imprescritibilidade, pois a definição de imprescrição não equivale a condicionar a prescrição a ocorrência de evento futuro e incerto.

Assim, esses autores concebem ser constitucional a suspensão do prazo prescricional por tempo ilimitado, ou seja, admitem a suspensão ter como termo final o dia em que o acusado comparecesse em juízo ou constituísse advogado.

Sustentam, ainda, que o entendimento majoritário, de que deverá ser fixado prazo para a duração da suspensão da prescrição, foi rejeitado pela reforma processual promovida pela Lei n 11.79/08, quando do veto integral do artigo 363, §2°, do Código de Processo Penal.

Opondo-se, Fernando Capez opina:

Poderia a prescrição ficar suspensa indefinidamente por trinta, quarenta, cinquenta anos, até que o acusado seja localizado? Não nos parece razoável este entendimento. As hipóteses de imprescritibilidade encontram-se elencadas taxativamente no Texto Constitucional no ar. 5°, XLII (racismo) e XLIV (ações de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o estado democrático), de modo que não se admite sejam ampliadas pela legislação infraconstitucional. É necessário buscar-se um período máximo, após o qual o processo continuaria suspenso, mas a prescrição voltaria a correr pelo tempo restante (estava apenas suspensa).[26]

Instado a manifestar-se sobre a matéria, o Supremo Tribunal Federal afirmou a constitucionalidade da suspensão da prescrição por prazo indeterminado, sob o fundamento de que ela não se confunde com a imprescritibilidade, não havendo impedimento a aplicação do artigo 366[27].

Contudo, a bem da verdade, a atual redação do artigo 366 do Código Penal, interpretada segundo a orientação do Supremo Tribunal Federal, cria novas hipóteses de crimes imprescritíveis, ao passo em que pode ser que no caso concreto, não havendo o comparecimento do réu, o processo nunca prescreva.

Nesse sentido, defende-se ser inconcebível a orientação que prega a suspensão da prescrição por tempo ilimitado, afinal admitir essa possibilidade encaminharia o ordenamento jurídico nacional a ampliação dos casos de crimes imprescritíveis sem a mínima atenção à proporcionalidade, ao princípio da segurança jurídica, ao princípio da razoável duração do processo e à vedação de penas perpétuas ou quaisquer outros critérios merecedores de exame quando se discute a imprescrição.

Ante tudo o que foi exposto, defende-se que a melhor solução é a “mudança legislativa que trate da questão com mais acerto” [28], pois enquanto o texto legal permanecer omisso, haverá espaço para entendimentos diferentes e a discussão persistirá.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos