Quilombos:um projeto político inacabado

11/04/2016 às 17:28
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Carregada de significados, a palavra Quilombo traz consigo uma luta secular política, cultural e social marcada por conquistas e impasses que se refletem de maneira evidente não só na vida das chamadas comunidades quilombolas (...)

RESUMO

Carregada de significados, a palavra Quilombo traz consigo uma luta secular política, cultural e social marcada por conquistas e impasses que se refletem de maneira evidente não só na vida das chamadas comunidades quilombolas, mas também na história de todas as outras parcelas da população brasileira que contribuíram para a expansão dos quilombos. A luta por transformar e dar auxílio a essas comunidades ainda se mostra ineficaz e insuficiente mesmo com as práticas inovadoras que o Estado vem oferecendo e a Legislação que assegura tais direitos para esses povos ainda apresenta uma lacuna em relação a sua aplicação que pode ser observada nos processos de expropriação e controle da terra. Os quilombos continuam sua batalha por um projeto político nacional que construa uma sociedade igualitária e justa.

Palavras Chave: Quilombo, identidade, território, territorialidade.

Quilombo e História

Apesar de ter sua origem etimológica nos termos "kilombo" (Quimbundo) ou "ochilombo" (umbundo), presente também em outras línguas faladas ainda hoje por diversos povos bantus e significando acampamento guerreiro na floresta, o termo “quilombo” adquiriu no decorrer da história diversos significados. No Brasil esse termo foi popularizado durante o período colonial e passou a designar agrupamentos de rebeldes fugidos de seus senhores que lutavam contra a escravidão. O termo quilombo foi adquirindo, no decorrer da trajetória dos que buscavam a liberdade, sobretudo após a abolição da escravatura, um significado multidimensional. A existência de muitos quilombos no território brasileiro é uma marca evidente. O mais conhecido foi o “Quilombo de Palmares”, instalado na Serra da Barriga (atual estado de Alagoas) que estabeleceu uma luta de oposição a

administração colonial que perdurou mais de um século. Em relação à organização interna, os quilombos eram em sua maioria afastados dos centros urbanos e em locais de difícil acesso. Embrenhados nas matas, montanhas e  selvas,  esses núcleos se transformaram em aldeias, dedicando-se à economia de subsistência e às vezes ao comércio, alguns tendo mesmo prosperado.

                 A marca principal dessas comunidades quilombolas eram as diversas lutas contra a escravidão e as inúmeras formas de rejeição aos domínios coloniais, desejos que se mostravam nas diversas rebeliões de escravos bem como em todas as outras lutas dos negros que surgiram após essa ruptura institucional. O Conselho Ultramarino de 1740 definiu quilombo por “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” o que nos faz refletir a cerca do nível de revolta contido na união dos escravos.

No século XIX ocorreu a quebra de laços coloniais paralelamente ao forte processo de industrialização que o país vinha sofrendo, o que possibilitou a expansão do quilombo para outras áreas da população, transitando da voz dos abolicionistas para outros movimentos sociais, acabando por tornar-se um projeto político em busca de uma igualdade e justiça social. Essa transitoriedade pode ser observada principalmente nas áreas rurais do Brasil, onde a unidade familiar que serviu de suporte para o modo de produção colonial passa por um processo produtivo de “acamponesamento’’ dessas famílias recém saídas da escravidão. Os quilombos passam então a fazer parte de um processo pós-abolicionista que deu uma nova “roupagem” aos conflitos dessas comunidades com as instituições pós-coloniais.

 Período pós-colonial, territorialização étnica e efeitos

Mesmo após a abolição da escravatura as práticas de expropriação e controle da terra continuaram a se estabelecer e conseqüentemente a situação marginalizada em que se encontravam os negros. Durante esse processo de dominação disfarçada os descendentes dos escravizados passam a ter sua vida dinamizada pelo processo de territorialização étnica, que consistia em posicionar as populações nativas, os africanos e seus descendentes, uma reorganização social que trazia práticas racialistas anteriormente implantadas. Em outras palavras, quando houve a abolição, não existiu uma preocupação por parte do Estado em ressarcir ou proteger o ex-escravo, como foi feito a partir da legislação com os indígenas (caso das reservas indígenas).

Em geral, a maneira em que as terras em todo o território brasileiro foram sendo ocupadas se deu por meio da lógica da expulsão dos indígenas e dos negros. A territorialidade negra foi desde o início, impulsionada pelas situações de tensão e conflito. Atualmente essa situação nos coloca em um debate sobre questões persistentes e nos motiva a exercitar um olhar retrospectivo e comparativo, capaz de revelar os aspectos constitutivos das situações com as quais nos defrontamos no presente. Neste sentido, tornam-se fundamentais os exemplos provenientes das realidades locais para se perceber o que está em jogo nas diversas situações analisadas, suas dimensões, articulações, formas e realces. E é sob esse prisma que a territorialidade negra pode ser referida não a uma realidade equívoca e distante, mas se reportando a uma dimensão simbólica da identidade na qual os negros se organizaram como coletividade nacional e articulações de grande complexidade.

Os negros, portanto, passam a ser integrantes de um segmento da sociedade altamente desqualificado e desvalorizado e ficam sempre dependendo das ofertas de trabalho nos setores em expansão da construção civil, principalmente na economia informal, fato que se repete também nas zonas rurais com a chegada das agroindústrias e com o esgotamento de terras. Em linhas gerais a chegada do capital proporcionou uma desigualdade social e econômica bem como uma segregação dos negros nos diversos espaços sociais – escolas, restaurantes, clubes – evidenciando uma lacuna na real fixação de uma democracia brasileira.

Os movimentos: negro e quilombola

 O movimento negro:

                O movimento negro contemporâneo é o movimento social identitário agregador de entidades, organizações não governamentais, núcleos de estudo universitários, fundações, associações culturais e varias outras entidades protetoras da cultura negra que atuam, para este fim, em várias frentes: nos partidos políticos, secretarias de administração governamentais tanto municipais, estaduais ou federais, participando de seus quadros técnicos como: o Conselho do Negro, a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), e outros.

Este movimento, também como movimento social negro está no contexto daquilo que se chama mundialmente de Novos Movimentos Sociais (NMSs), surgidos nos anos setenta quando do enfraquecimento da classe como elemento chave e agregador na definição identitária da luta dos grupos sociais.

As pressões exercidas por esse movimento são primeiramente observadas após a ditadura militar, refletidas na constituição de 1988 com a criminalização de qualquer prática de racismo, também neste mesmo ano com a criação da Fundação Cultural Palmares, e em 1995 com a institucionalização de Zumbi dos Palmares como herói nacional. Outras criações pela atuação dos movimentos negros são o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra, em 1995, e a criação da Secretaria Especial para Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 2003.

Entre as causas defendidas pelos movimentos negros atualmente, a mais conhecida e mais polêmica é a política de ações afirmativas, mais conhecidas como as cotas, muito criticadas pela mídia em geral, a qual defende a idéia de quem vivemos em uma democracia racial, onde a questão de cor não deveria fornecer privilégios. Os movimentos negros, porém, rebatem essa idéia, alegando que essa democracia racial é um conceito errôneo, pois os negros nunca sentiram estar numa sociedade igualitária em questão de raças, o que se pode observar quando, por exemplo, um negro recebe um salário menor por exercer o mesmo trabalho que exerce um branco, sendo assim, sempre havendo uma diferenciação.

O movimento quilombola:

O surgimento do movimento quilombola, no inicio dos anos noventa, introduziu uma questão que gerou novos temas a serem abordados no debate público nacional, trazendo um enfoque muito grande para si. A visibilização pública criou uma trama representativa de com a atuação de atores diferentes, como ONGs, universidades, agentes públicos ligados ao setor judiciário além dos próprios quilombolas, que possuíam diferentes formas de interação com o Estado. Nesse contexto, o movimento negro tem papel fundamental, podendo-se dizer, umbilical. A temática quilombola com os atores citados é complexa e atravessa a questão territorial, histórica e de mobilização local, podendo ter naturezas diferentes e desempenhar diversos papéis neste processo de direito a titulação.

As relações entre os dois movimentos é percebida quando da atuação localizada dos quilombolas em varias regiões do Brasil, com as entidades dos movimentos negros sendo suas principais fomentadoras, tendo como exemplos Centro de Cultura Negra (CCN/MA) e Centro de Defesa do Negro (CEDENPA), entidades articuladoras de uma organização estadual das lutas em defesa das comunidades negras.

Influência e organização:

Como exemplos de resultados da influência quilombola têm-se, na comemoração no ano de 1995 dos 300 anos de Zumbi dos Palmares, com a realização em Brasília do 1º Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais, seguido em maio do ano seguinte com a criação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), em Bom Jesus da Lapa (BA). Com a criação desta instância nacional, pode-se dizer que desde então o movimento está em processo de articulação. Ainda sobre esse aspecto, sobre o que o tem dificultado, existem dois pontos principais, sendo uma a falta de comunicação, devido a extensão do território brasileiro, sendo agravado pelo fato das comunidades negras de quilombos estarem principalmente na zona rural dos municípios. Outro empecilho é a falta de recursos econômicos que impede a intensificação da mobilização nacional.

Ainda sobre a organização do movimento, dois aspectos possuem mais relevância. O primeiro trata sobre o papel que as associações locais tem no processo do fortalecimento da instância estatal (CONAQ), e assim, consequentemente, a instância nacional.

Interação:

O segundo aspecto trata sobre a relação do movimento social negro e o movimento quilombola, e entre os exemplos citáveis para explicar tal relação está na área de atuação de cada um, sendo o primeiro de atividade urbana, enquanto o segundo esta focada principalmente na zona rural. As relações entre os dois grupos tem características diferentes em cada região do Brasil e, com o objetivo de indicar a diferença, citam-se o caso do Maranhão, onde o movimento social negro conseguiu construir sua legitimidade na formação do movimento quilombola com ajuda do Centro de Cultura Negra (CCN/MA) e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), através do Projeto Vida de Negro (PVN), desde 1988, o que mostra a intensidade de influencia dos movimento negros nos movimentos quilombolas, e o de Minas Gerais, onde a influência do movimento negro nos movimentos quilombolas foi o mais fraco e além disso, não consegue estabelecer um dialogo com este e dessa forma não existindo uma relação de parceria. 

Sendo assim, nas regiões onde há a forte relação entre ambos, esta se dá de forma intrínseca, mesmo que em cada uma exista uma dinâmica de interação diferente, cada qual com uma trajetória própria. Mas o maior exemplo da relação entre ambos esta na organização e viabilização do direito quilombola no espaço publico nacional e na organização na CONAQ.

Quilombos e as políticas públicas brasileiras

      Primeiramente, quilombos eram classificados apenas como um movimento racial e pertencentes a  história e cultura brasileira. Por causa da ABA( Associação Brasileira de Antropologia) o quilombo pertence aos movimentos sociais e econômicos do país. Dessa forma, é possível a elaboração e aplicação de políticas públicas voltadas a essa minoria.

     A principal reivindicação do movimento quilombola é  pelo direito ás terras.  Eles buscam o reconhecimento das terras pertencentes aos quilombolas e assim a emissão de títulos fundiários aos mesmos pelo INCRA. Apesar de mais de 3,5 mil quilombos já terem sido beneficiados os líderes creem que ainda é lento o processo.

    Baseado na Instrução Normativa 57, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o INCRA, as comunidades têm que encaminhar à superintendência  regional do órgão do seu estado em solicitação de abertura de procedimentos administrativos. A partir disso vai ocorrer a regularização fundiária, retirando do local não-quilombolas e/ou requerimento de indenização dos mesmos, concedendo o título aos quilombolas e registrando a terra no cartório sem nenhum ônus para a  comunidade.

   Em 2004, a PNATER ( Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural),  surge para melhorar o auxílio dos trabalhos agrícolas e não-agrícolas no meio rural, garantindo a segurança alimentar e nutricional sustentável, defendendo a participação popular e a cidadania. Incluindo aí minorias como os indígenas, ribeirinhos, extrativistas, quilombolas, pescadores artesanais e aquiculturas. Assegurando às comunidades rurais amparo técnico respeitando a etnia de cada e focalizando no desenvolvimento sustentável.

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    Outro programa foi criado em 2005 visando os quilombos. É o Programa Brasil Quilombola coordenado pela Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial, s SEPPIR, ela auxilia o desenvolvimento agrário dos quilombolas de acordo com as suas especificidades históricas e contemporâneas. O Brasil Quilombola garante também o direito à educação, alimentação, benefícios sociais, melhoria das condições socioeconômicas, esporte, amparo político, cultura e muitos outros.

    Infelizmente, há dificuldade para o reconhecimento das terras quilombolas e a garantia de outros direitos já citados. O preconceito e o sentido pejorativo que atribuíram para o quilombo são alguns exemplos. A falta de informação sobre os direitos legais também é outro. Outro agravante é a batalha entre grandes proprietários rurais e o movimento quilombola, pelo monopólio das terras. Mas é claro que isso não é regra.

    O primeiro quilombo a ser reconhecido e que recebeu o título foi o urbano Chácara das Rosas no Rio Grande do Sul. Até meados de 2009 não havia energia elétrica, moradias adequadas e terra regularizada. Com recursos federais as casas estão sendo construídas e pelos próprios moradores da comunidade, que negociaram tal fato com a construtora, gerando assim empregos e assim girando capital na área. De acordo com a líder comunitária, Isabel  Genelício, a participação do quilombo em acontecimentos culturais promovidos pela Seppir foi fundamental para o reconhecimento das terras.

Quilombo na ordem Jurídica

 

Garantias Constitucionais e Infra Constitucionais

Analisaremos agora quais são os direitos garantidos pela lei constitucional e infra constitucionais aos remanescentes de quilombos. A Assembléia Nacional Constituinte de 1988 veio restabelecer o Estado de Direito sobre novas bases. Essas novas bases decorreram da incorporação de sujeitos sociais e de direitos. Os negros adquirem com ela uma condição plena de direitos e passam a ser citados e incorporados à concepção de Nação. A Constituição lhes dá garantia da posse e do usufruto das riquezas do solo, do subsolo e das terras nas quais exercem uma ocupação há sucessivas gerações.

A problemática das terras de quilombos, portanto, foi, a partir de 1988, alvo de atenção e de forte pressão por parte dos movimentos sociais negros, desdobrando-se em várias ações e normas institucionais: administrativas e jurídicas, de âmbito estadual e federal.  O art. 68 do ADCT encerra um verdadeiro direito fundamental e desta sua natureza resultam conseqüências hermenêuticas extremamente relevantes, como será exposto mais adiante Neste ponto, cumpre recordar que o catálogo dos direitos fundamentais encartado no Título II do texto constitucional brasileiro é aberto, conforme se depreende do disposto no art. 5º, § 2º, da Carta, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Daí porque, é possível reconhecer a fundamentalidade de outros direitos presentes dentro ou fora do texto constitucional. E o principal critério para o reconhecimento dos direitos fundamentais não inseridos no católogo é a sua ligação ao princípio da dignidade da pessoa humana, da qual aqueles direitos são irradiações. Ora, o vínculo entre a dignidade da pessoa humana dos quilombolas e a garantia do art. 68 do ADCT é inequívoca. Primeiramente, porque se trata de um meio para a garantia do direito à moradia (art. 6º, CF) de pessoas carentes, que, na sua absoluta maioria, se desalojadas das terras que ocupam, não teriam onde morar. E o direito à moradia integra o mínimo existencial, sendo um componente importante do princípio da dignidade da pessoa humana. 

Mas não é só. Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental hegemônica. Não se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica. Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desaparecer, tragado pela sociedade envolvente. Portanto, não é só a terra que se perde, pois a identidade coletiva também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero afirmar que quando se retira a terra de uma comunidade quilombola, não se está apenas violando o direito à moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se está cometendo um verdadeiro etnocídio.

Por isso, o direito à terra dos remanescentes de quilombo pode ser identificado como um direito fundamental cultural (art. 215, CF), que se liga à própria identidade de cada membro da comunidade. Neste ponto, não é preciso enfatizar que o ser humano não é um ente abstrato e desenraizado, mas uma pessoa concreta, cuja identidade é também constituída por laços culturais, tradições e valores socialmente compartilhados. E nos grupos tradicionais, caracterizados por uma maior homogeneidade cultural e por uma ligação mais orgânica entre os seus membros, estes aspectos comunitários da identidade pessoal tendem a assumir uma importância ainda maior.

Por isso, a perda da identidade coletiva para os integrantes destes grupos costuma gerar crises profundas, intenso sofrimento e uma sensação de desamparo e de desorientação, que dificilmente encontram paralelo entre os integrantes da cultura capitalista de massas. Mutatis mutandis, romper os laços de um índio ou de um quilombola com o seu grupo étnico é muito mais do que impor o exílio do seu país para um típico ocidental.

Assim, é possível traçar com facilidade uma ligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana – epicentro axiológico da Constituição de 88 – com o art. 68 do ADCT, que almeja preservar a identidade étnica e cultural dos remanescentes de quilombos. Isto porque, a garantia da terra para o quilombola é pressuposto necessário para a garantia da sua própria identidade.

Não bastasse, não é apenas o direito dos membros de cada comunidade de remanescentes de quilombo que é violado quando se permite o desaparecimento de um grupo étnico. Perdem também todos os brasileiros, das presentes e futuras gerações, que ficam privados do acesso a um “modo de criar, fazer e viver”, que compunha o patrimônio cultural do país (art. 215, caput e inciso II, CF).

Neste ponto, cabe destacar que a proteção à cultura dispensada pela Constituição de 88 parte da premissa de que o pluralismo étnico e cultural é um objetivo da máxima importância a ser preservado e promovido, no interesse de toda a Nação.

Portanto, pode-se afirmar que o art. 68 do ADCT, além de proteger direitos fundamentais dos quilombolas, visa também à salvaguarda de interesses transindividuais de toda a população brasileira.

É a partir desse avanço que os legisladores concebem o âmbito normativo do artigo 68, transcendendo o próprio texto constitucional e alcançando desde um decreto-lei a dimensão unitária dos valores que regem a Constituição, que concebe o País como pluriétnico e multicultural. É o Decreto n. 4.887 que dá o passo interpretativo importante de desessencializar as práticas socioculturais negras em sua virtualidade política como marca de distintividade.

Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais sujeitam-se a um regime diferenciado em relação às demais normas da Constituição, que visa a reforçar a sua força normativa e a ampliar o seu potencial transformador. Este reforço resulta do reconhecimento da importância central dos direitos fundamentais no sistema constitucional, e da constatação dos riscos a que eles se sujeitam, sobretudo no contexto de sociedades desiguais e opressivas como a brasileira. Um dos traços característicos deste regime reforçado é a preocupação com a eficácia social dos direitos fundamentais. É verdade que há uma saudável tendência à busca da efetividade de todas as normas constitucionais. Contudo, em matéria de direitos fundamentais, esta tendência deve ser ainda mais pronunciada, e ela encontra respaldo em um princípio enunciado no próprio texto constitucional, no seu art. 5º, § 1º,que dispõe: “§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias individuais têm aplicabilidade imediata.”

Este princípio significa, em primeiro lugar, que os direitos fundamentais não dependem de concretização legislativa para surtirem os seus efeitos. Portanto, o próprio texto constitucional pode ser invocado diretamente como fundamento para a proteção de direitos subjetivos pelos indivíduos ou coletividades que os titularizem. Por outro lado, ele envolve também o dever do intérprete de buscar a máxima efetivação dos direitos fundamentais, de modo a retirá-los do campo das promessas constitucionais para torná-los reais na vida de pessoas de carne e osso. Nesta linha, entre várias exegeses e construções possíveis de um determinado instituto, o intérprete deve sempre buscar aquela que confira maior força normativa aos direitos fundamentais.

Propriedade Privada v. Direito à Terra dos Quilombolas

É corrente a afirmação de que os direitos fundamentais não são absolutos, já que concorrem freqüentemente com outros direitos fundamentais, ou bens jurídicos também revestidos de estatura constitucional.

           Esta situação se manifesta no caso em questão, em que se tem, de um lado, o direito de propriedade dos particulares cujos imóveis são ocupados por quilombolas, e, do outro, o direito à terra das comunidades de remanescentes de quilombos. Não seria legítimo, diante deste conflito, ignorar qualquer dos termos da equação. Pelo contrário, exige-se a busca de solução proporcional, que imponha restrições recíprocas aos bens jurídicos em litígio, atenta à importância relativa que eles possuem no sistema de valores sobre o qual se assenta a ordem constitucional.

Assim, cabe, inicialmente, valorar os interesses constitucionais em jogo. De um lado, tem-se o direito das comunidades quilombolas às terras que ocupam. Anteriormente já se demonstrou que este não é um simples direito patrimonial, pois a sua garantia é condição necessária para a existência da comunidade étnica. Por isso, tal direito encontra-se associado diretamente à própria identidade e dignidade humana de cada membro do grupo, ligando-se também, por outro lado, ao direito de todos os brasileiros à preservação do patrimônio histórico-cultural do país.

Do outro lado da balança figura o direito de propriedade das pessoas ou entidades privadas em cujos nomes as terras ocupadas pelos quilombolas estiverem registradas. Não há dúvida de que a propriedade privada é também um direito fundamental (art. 5º, inciso XXII, CF), configurando, ademais, um princípio essencial na ordem econômica do capitalismo.

Contudo, é importante destacar que o direito de propriedade não tem mais a primazia absoluta que desfrutava no regime constitucional do liberalismo-burguês. Com o advento do Estado Social, o direito de propriedade foi relativizado, em proveito da proteção de outros bens jurídicos essenciais, como os direitos dos não-proprietários, a tutela do meio ambiente e do patrimônio histórico-cultural.

Neste sentido, muitas constituições, e dentre elas a brasileira (art. 5º, inciso XXIII, e art. 170, inciso III, CF), passaram a impor o cumprimento da função social da propriedade. E neste novo contexto, alguns autores chegaram até a afirmar que a propriedade que não cumpre a sua função social deixa de ser tutelada pela ordem jurídica.

Neste quadro, pode-se avaliar o peso do direito à propriedade privada na nossa ponderação. Trata-se, no caso, não de uma propriedade qualquer, mas de uma propriedade cuja função social já foi pré-definida pela Constituição no art . 68 ADCT: a de servir para ocupação das comunidades de remanescentes de quilombos, possibilitando a existência de um grupo étnico e a reprodução da sua cultura. Portanto, qualquer outra finalidade que o proprietário privado queira dar à terra - ainda que relacionada a atividades economicamente produtivas – não significa atendimento à função social da propriedade, mas sim numa necessária violação a ela.

 Políticas voltadas para os quilombos

As instituições oficiais designadas por meio de Decreto Presidencial para implantar políticas voltadas para os quilombos revelam a abrangência do projeto oficial: quatro agências da Presidência da República, cujos titulares têm status de ministro; secretarias (Seppir/SDH, Casa Civil, Gabinete de Segurança Institucional); seis ministérios (Desenvolvimento Agrário, Saúde, Educação, Cultura, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Advocacia Geral da União); fundações (FCP e Funasa) e também autarquias, como o Incra, responsável direto pelas regularizações fundiárias. Além disso, o Governo Federal estabeleceu uma ampla rede administrativa de execução das políticas públicas nas comunidades quilombolas, além de programas como o chamado Brasil Quilombola.

A implementação dessas políticas, contudo, tem caminhado em descompasso com a titulação dos territórios, ficando as associações quilombolas cada vez mais dependentes do assistencialismo e com menos autonomia para gestionar o desenvolvimento autosustentado de seus territórios.

O quilombo no contexto atual

O movimento quilombola, como já descrito várias vezes durante o decurso deste documento, é um movimento social de resistência. É certo, no entanto, que essa resistência tem mudado sutilmente o seu sentido durante o passar do tempo. Se antes a resistência era contra uma massa de latifundiários que os obrigava a trabalhar, ou contra a própria miséria, no presente a “resistência” é contra vários proprietários, neste se incluindo instituições inclusive (como a Marinha, por exemplo), que clamam o direito pela sua terra, terra esta que os quilombolas já vivem há centenas de anos.

De acordo com o artigo 68 da Constituição Federal do Brasil, é reconhecida a propriedade, devendo o Estado emitir-lhes o título, aos reminiscentes das comunidades dos quilombos. Isso quer dizer que enfim se reconheceria, por lei, legitimando-se em direito o que já acontecia de fato. E a tantos conflitos se colocaria um fim.

Porém, dada a grande influência que os latifundiários e proprietários exercem sobre o poder estatal, é com grande dificuldade que se fazem progressos na obediência ao artigo 68, CF. Assim surge então o decreto n° 4887, que regulariza a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos. Esse decreto, que traz os processos burocráticos para que se chegue à titulação das terras, enfim, determinou a competência do INCRA em todas as regulamentações a que faz referência.

E assim foi editado a Instrução Normativa do INCRA n° 49/2008, que torna o processo mais lento, mais burocrático e mais oneroso, tornando assim praticamente impossível de ser obtida a titulação. Em 2009, porém, o órgão citado criou uma nova IN (Instrução Normativa) de n ° 56, que trazia diversos avanços nos quesitos em que a passada era ineficiente. No entanto, treze dias depois, a IN n° 57 vigorava, retrocedendo totalmente ao que era a Norma n °49.

Assim, o processo de identificação e classificação das terras como remanescentes de quilombos, o primeiro passo para a sua titulação, conta com entraves como o obrigatório reconhecimento, chamado certificado da condição quilombola, dado pela Fundação Cultural Palmares, que, inclusive, em 2007, tornou esse mesmo reconhecimento formal, necessário até mesmo para que se comece o processo de titulação, muito mais difícil de ser conseguido, tornando o procedimento mais rígido.

São também etapas conflituosas: a identificação do território, a restrição de contratos e convênios com antropólogos (que realizam os trabalhos de identificação dos territórios) que não sejam contratados do INCRA, a necessidade de notificação de órgãos públicos federais e estaduais sobre o processo (somando, por exemplo, no estado de São Paulo, nove instituições a serem notificadas) e, por último, a possibilidade de uma contestação ao relatório entregue ao INCRA, que tem nove meses como prazo, entre a apresentação da contestação e o julgamento, nos quais o procedimento de titulação fica em suspenso (todos estes entraves foram detectados e percebidos como os mais graves pela Comissão Pró-Índio de São Paulo).

Enfim, restam aos reminiscentes de quilombos as manifestações e protestos, de maioria pacífica, porém mal-recebidos pela população em geral, e a longa espera a qual são submetidos enquanto tentam, mais uma vez, provar a sua resistência.

ADI 3239

No dia 25 de junho de 2004, o ministro Cezar Peluso do partido DEM, antigo Partido de Frente Liberal (PFL), deu entrada à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que impugna o Decreto 4.887/2003 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art.68 do Ato das Disposições Transitórias (ADCT).

No entanto, o julgamento só se deu no dia 18 de abril deste ano e foi suspenso por um pedido de vista da Ministra Rosa Weber, ou seja, o caso ainda está no aguardo da decisão final do Supremo Tribunal Federal (STF).

O único voto proferido até agora foi o do Ministro Cezar Peluso, o próprio relator da ação direta de inconstitucionalidade, e ex-presidente da casa (ele ainda ocupava o cargo no dia do seu voto). As alegações por ele ressaltadas contra o decreto 4.887/03 são de que o mesmo invade esfera reservada à lei e estabelece procedimentos onerosos para o Estado, como o que determina a desapropriação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) de terras privadas para transferi-las a comunidades quilombolas. O Ministro destacou ainda que segundo o art.68 do ADCT o papel do Estado limita-se à emissão de títulos.

Quanto ao princípio da reserva legal, Peluso citou doutrinadores como José Afonso da Silva e outros para embasar a sua afirmação de que o dispositivo do art. 68 do ADCT não é norma de eficácia plena e aplicação imediata, ou seja, é uma norma de eficácia limitada, portanto, necessita de uma lei integrativa infraconstitucional regularmente produzida pelo Legislativo para surtir seus efeitos. Segundo palavras do relator da ADI, “a doutrina não admite que a administração possa, sem lei, impor obrigações a terceiros e restringir-lhes os direitos”. Portanto, um decreto produzido pelo Executivo foi uma medida desautorizada, visto que o decreto só pode regulamentar uma lei e nunca um dispositivo constitucional.

O ministro ainda complementa que “a atuação do legislativo teria trazido menos insatisfação e mais justiça, talvez, em menos tempo”. Visto que são muitas as dificuldades enfrentadas pelos remanescentes de quilombos para conseguir a titulação de suas terras pelos termos do decreto vigente, mais de 20 etapas. O ministro disse nem os que defendem os direitos dos quilombolas estão satisfeitos com a situação. A primeira titulação só ocorreu 7 anos após a promulgação e, atualmente, somente 192 comunidades possuem título de propriedade, número que representa 6% do total.

Peluso condenou ainda o critério demarcado pelo art. 2º do decreto para identificação dos remanescentes de quilombos, que se baseia na autoatribuição, ou seja, a pessoa deve se considerar quilombola e externar essa opinião, se autoidentificar; acompanhada, é claro, dos requisitos de ancestralidade negra e participação na trajetória histórica de resistência às opressões sofridas pelos quilombolas.

Ainda apontando imperfeições na atuação do decreto 4.887, o ministro relembrou a impossibilidade de apropriação de terras públicas por usucapião, vedada no artigo 183, parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988.

A decisão final do ministro foi a favor da inconstitucionalidade do decreto com modulações de efeitos a favor do princípio da segurança jurídica e interesse social, por respeito a boa-fé e legalidade com que estas pessoas conseguiram seus títulos, eles seriam considerados bons, firmes e valiosos, e não seriam extirpados pela decisão de inconstitucionalidade, em outra palavras, a lei não retroage. Por outro lado, novos títulos não seriam emitidos até devida regulamentação do caso pelo Legislativo.

A ADI 3239/03 tem causado bastante preocupação e mobilização pelos remanescentes quilombolas e pelos defensores da causa. O Presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), Eloi Ferreiro de Araújo, defende a constitucionalidade do decreto e diz que este seria uma compensação depois todos o destrato que esta comunidade sofreu historicamente. O maranhense Manuel do Charco, líder quilombola ameaçado de morte por latifundiários, disse, em reunião com Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que seria mais uma ação castradora da direita reacionária, representada partido DEM. Abaixo assinados já podem ser acessados no serviço gratuito do site Petição Pública Brasil, que utilizam como argumentos o de que “há uma dívida histórica com os remanescentes de comunidades quilombolas que há séculos sofrem com as injustiças e o racismo”.

     Para concluir, citamos mais palavras do Presidente do FCP, Eloi Ferreira de Araújo, que diz que “desde o fim da escravidão a polução negra brasileira aguarda políticas específicas que levem em consideração o dispositivo constitucional de igualdade entre negros e não negros”.

Referencias Bibliográficas

ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombos e as novas etnias. In: E. C. O’Dwyer. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. São Paulo: ABA/FGV, 2002.

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Quilombo: An Unfinished Political Project

ABSTRACT: Carried with meanings the word Quilombo brings with it a century political, cultural and social fight of conquests and impasses that are reflected on a clearly way not only at the named quilombola’s community life but also on the history of all the others portions of the Brazilian population which ones contributed for the expansion of the quilombos. The fight to transform and to auxiliate those communities still shows inefficacious and insufficient even with the newest praticles which the Estate come offering and the Legislation which ensure the rights for those people is showing gaps related with it’s application that can be observed on the process of expropriation and control of the land. The quilombos continue their battle for a national political project which will make an equality and fair society.

Keys Words: Quilombo; Identity; territory; territoriality

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