O direito de morrer dignamente: uma abordagem sob diversas óticas

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O presente artigo tem por objetivo abordar o direito de morrer dignamente sob diversas óticas, discutindo o respeito à dignidade humana no caminho percorrido pelo indivíduo até a sua morte, mostrando que uma morte digna é direito de todo indivíduo.

1       INTRODUÇÃO

A inviolabilidade do direito à vida está prevista na Constituição Federal de 1988, no rol dos direitos fundamentais de primeira dimensão, figurados por aqueles que ostentam um caráter de status negativus, já que representam uma atividade negativa por parte da autoridade estatal de não violação da esfera individual, um afastamento do Estado das relações individuais e sociais. Ademais, o mesmo diploma legal elege a instituição do Estado Democrático de Direito, o qual se destina a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”. Assegura-se então o direito à vida, consubstanciado no princípio da dignidade da pessoa humana - valor supremo -, que está definido como fundamento da República logo no primeiro artigo da norma supra do ordenamento jurídico pátrio.

Preceituar que o direito à vida deve ser assegurado, de modo que não pode o Estado interferir na esfera do particular arrebatando-o, sendo esta máxima baseada na dignidade da pessoa humana, significa conferir à “vida humana” o conceito amplo, de maneira que não está se tratando apenas do simples fato de viver, uma vida nua, mas sim indica a forma ou a maneira de viver, própria ou qualificada de um indivíduo, a vida como um atributo, a vida em sua forma qualificada, a vida digna.

No dicionário Aurélio constam alguns significados para a palavra “dignidade”. Dentre eles constam a respeitabilidade, autoridade moral, honra, decência, honestidade. O Min. Celso de Mello, em decisão ao HC 85988-PA / STJ – 10.06.2005, defende ser a dignidade humana o princípio central de nosso ordenamento jurídico, sendo significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país, além de base para a fundamentação da ordem republicana e democrática.

Considerando que deve a dignidade conduzir todo o teor da Constituição da República, a mesma que preceitua a inviolabilidade ao direito à vida, analogamente infere-se o direito de morrer dignamente da pessoa humana. Uma morte sem suplício, sem martírio, indubitavelmente perpassa no sentido de conferir àquele que já está fadado à morte um caminho digno, indolor, desprovido de sofrimento.

Nesta acepção, há algumas veredas que, até alcançar a morte, afrontam o valor supremo da Constituição, a própria dignidade da vítima. A pena de morte, a qual aflige o condenado até o instante de sua execução, o homicídio qualificado pelo meio, que relata as hipóteses de o crime ser cometido de maneira bárbara, através de formas insidiosas ou cruéis, e por fim, a eutanásia, distanásia e ortotanásia, que levam à discussão se o que o ordenamento jurídico pátrio preceitua é o direito à vida ou o dever de viver, são vertentes que questionam o direito de morrer dignamente e a sua tutela pelo Estado brasileiro de Direito.

2       REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Direito à vida

As barbaridades frente à vida e à dignidade humana ao longo da história, especialmente aquilo que o mundo assistiu através dos movimentos nazistas e o período da Segunda Guerra Mundial, levaram a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, a aprovar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, preconizando que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (art. 1º), tendo “direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal" (art. 3º).

Esses acontecimentos trouxeram uma nova concepção às constituições de diversos países, assim como no Brasil, que passaram a enfatizar o interesse em proteger os direitos humanos e fundamentais, através da criação e assinatura de diversos Tratados de Direitos Humanos, muitos dos quais o Brasil é signatário, e da tutela de tais direitos em seus textos constitucionais.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, no resguardo dos direitos e garantias fundamentais, tutelou os mais relevantes direitos da personalidade, assegurando a inviolabilidade destes.Vejamos seu caput:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso)

Dentre os direitos fundamentais tutelados, o direito à vida ganha destaque, pois é um direito natural, que nasce com o homem, e por isso, revela-se como núcleo fundamental dos direitos humanos, consubstanciando-se em pressuposto indispensável para a aquisição e o exercício de todos os demais direitos.

É um direito essencial, porque dele dependem todos os outros direitos, razão pela qual a sua proteção se dá em todos os planos do ordenamento jurídico: no direito civil, penal, constitucional, internacional, dentre outros.

No Brasil, tal importância fica clara quando o legislador, muito além de conferir proteção à vida desde o momento do nascimento humano, concede também, proteção à vida intrauterina, quando estabelece como crime a prática do aborto, sendo permitido apenas o aborto terapêutico para salvar a vida da gestante ou o aborto humanitário quando a gestação tiver sido fruto de estupro.

Além disso, o direito à vida não se resume apenas ao direito de sobrevivência física, mas sim ao direito a uma vida digna, ou seja, direito a condições materiais e espirituais mínimas necessárias a uma existência condigna à natureza humana. Sem dignidade não há que se falar em direito à vida em seu sentido completo, uma vez que, a dignidade constitui substrato fundamental e indissociável do gênero humano. Assim, podemos dizer que vida e dignidade estão intimamente ligadas e dependem uma da outra para que se concretize o real significado desses valores fundamentais.

Quando se fala de direito à vida, por óbvio, reconhece-se que este é inerente a pessoa humana, personalíssimo, e, portanto, ninguém tem o direito de tirar a vida do outro. Em decorrência disto, o legislador pátrio tipificou os crimes contra a vida, além de ter proibido a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX.

Assim sendo, todo ser humano tem o direito de que se respeite sua vida, o direito de não ter o processo vital interrompido senão pela morte espontânea e inevitável, ou seja, ninguém pode ser desprovido de sua própria vida contra sua vontade. 

Todavia, é cediço que não se cuida de um direito absoluto, isto porque, mesmo a inviolabilidade do direito à vida sendo protegida pelos Direitos Humanos e pela Constituição Federal como bem supremo, nem sempre irá prevalecer quando em conflito com outros bens também constitucionalmente protegidos. Todos os princípios, positivados ou não no texto constitucional, podem ser limitados por outros princípios com os quais entrem em colisão, exigindo-se, portanto, que sejam submetidos a regras de ponderação e ao princípio da proporcionalidade.

Como já mencionado anteriormente, algumas exceções à regra da não inviolabilidade do direito à vida estão expressas na legislação pátria: a pena de morte em caso de guerra declarada pelo Presidente da República, quando houver agressão estrangeira, o aborto terapêutico e o aborto humanitário. Além destas, outro exemplo que excepciona a inviolabilidade do direito à vida, é o fato da legislação penal considerar lícita a conduta de matar alguém em legítima defesa ou em decorrência do estado de necessidade.

Todavia, o fato da própria legislação trazer tais exceções, não autoriza que a morte seja realizada de forma desumana e cruel. Muito pelo contrário, a própria Constituição Federal de 1988 considera como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a tortura e ainda, qualifica a prática de homicídio quando praticado por meio de tortura.  Isso porque, muito embora o direito à vida ocupe o topo dentre os demais direitos fundamentais tutelados pelo ordenamento jurídico, este está intimamente ligado ao princípio da dignidade humana, uma vez que, a vida não se resume apenas ao mero direto de sobrevivência física, mas ao direito de se viver dignamente, de modo que deve-se pensar também no direito à uma morte digna.

Portanto, já que o direito à vida, via de regra, não admite que o indivíduo seja privado desta contra sua vontade, em se tratando dos casos que mitigam essa regra, por óbvio, deve-se pensar que pelo menos tais mortes sejam realizadas da forma mais digna possível.

Ademais, o direito à vida não significa que o ser humano seja dono absoluto de sua vida ou de seu corpo a ponto de ter direito sobre a própria morte. Por esse motivo, alguns autores preferem o uso da expressão "direito de viver".

A cada pessoa não é conferido o poder de dispor da vida, sob pena de reduzir sua condição humana, razão pela qual, muito se discute sobre a eutanásia, ortotanásia e distanásia, assunto que será abordado mais adiante.

Assim sendo, devemos pensar no direito à vida como direito fundamental, transindividual, do qual se originam todos os demais direitos, e, portanto, inviolável e indisponível. Todavia, para os casos que a própria lei excepciona esta regra, impõe-se a aplicação do princípio da dignidade humana, o qual trataremos a seguir.

2.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio da dignidade humana, já consagrado no ordenamento jurídico dos estados democráticos de direito, abrange toda a gama de direitos que pertencem à categoria daqueles inerentes ao homem, sua personalidade e sua dignidade; possuem natureza de direito fundamental e, em última análise, de direitos humanos.

Conforme aduz Rizzato Nunes, a dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de já ser pessoa. Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet aponta a dignidade da pessoa humana como a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e está prevista no art. 1º, III, da CF/88. Sua finalidade, na qualidade de princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo Estado, colocando a pessoa como o centro do sistema jurídico.

Segundo Flavia Piovesan (2000, p. 54):

“A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos direitos e garantias fundamentais, como cânone constitucional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro.”

É inegável a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico pátrio, devendo ser observado até na hora da morte. Na verdade, a morte em si é a privação de todas as sensações, é o “não sentir nada”, logo o que deve ser examinado são os atos precedentes à morte, ou seja, o caminho até o fim do processo de viver.

Todos os atos precedentes ao fim da vida têm que respeitar os direitos básicos de um cidadão, não submetendo aquele à situação desumana ou degradante, devendo ser resguardadas sua integridade física, moral e psíquica.

Segundo a CF/88, todos têm o direito à liberdade, mas este estaria limitado pelos direitos do próximo, de tal forma que ninguém teria legitimidade para tirar a vida do outro, visto que, como já foi dito, toda pessoa têm direito à vida e esta é um bem indisponível e inviolável. Sendo assim, o princípio da dignidade humana e o direito à vida é um freio ao direito de liberdade, na medida em que são obstáculos para escolhas que comprometem a dignidade e a vida de um indivíduo.

Os membros de uma sociedade, como semelhantes por serem humanos, são possuidores de igual dignidade, logo possuem os mesmos direitos e necessidades vitais, devendo um respeito ao outro, comprometendo-se em não prejudicar ninguém em sua saúde, corpo ou em sua própria vida.

Mas quando uma pessoa resolve interferir no destino de outro ser humano, antecipando-lhe sua morte, o meio utilizado deveria ser o mais indolor e rápido possível para que aquele que esteja encerrando o ciclo da vida consiga ter uma morte mais humanizada possível, sem o prolongamento de uma agonia.

Desta forma, vamos falar em tópico próprio a respeito de homicídios qualificados, ou seja, aqueles mais repugnantes devido aos meios e formas cruéis, corvardes e tortuosos, ou pelos motivos torpes e fúteis. Geralmente este tipo de homicídio causa comoção, visto que não são respeitados os direitos fundamentais e essenciais do ser humano, sendo atos considerados intoleráveis dentro de uma sociedade em progresso.

Apesar da inviolabilidade do direito à vida e a vedação da pena de morte como regra, há uma exceção no ordenamento jurídico que permite o ceifamento da vida pelo Estado. O que se discute é se há a possibilidade de morrer dignamente tendo sua data marcada sem poder exercer seus direitos como a liberdade de escolha e autonomia.

Ainda assim, o meio de execução previsto no Código Penal Militar Brasileiro é o fuzilamento, uma punição brutal e cruel, que é capaz de chocar a quem assiste, desrespeitando os valores humanitários de toda a sociedade. Assim sendo, é imprescindível que abordemos tal assunto mais a frente.

A morte é uma consequência da vida, mas o que seria esta? Viver é fruir de tudo que é possível; é exercer plenamente seus direitos existenciais. O homem precisa satisfazer suas necessidades básicas de moradia, alimentação e lazer; precisa sonhar, ser livre e consciente para escolher e acima de tudo, ter autonomia e independência para realizar seus projetos de vida.

Não basta só existir, a qualidade de vida deve estar presente até no momento derradeiro da finitude da vida, dando àquele indivíduo uma morte digna. E daí então surge outro assunto bastante discutido, não só em âmbito bioético, como também no jurídico: a questão da eutanásia, distanásia e ortotanásia. Assunto que causa grandes divergências, pois hoje é vedado a um paciente com doença grave e em estado terminal sofrível o direito de morrer, porém temos garantias constitucionais como a de liberdade, autonomia e de inviolabilidade à dignidade humana. Neste caso não seria uma incoerência e uma despropocionalidade o direito à vida prevalecer diante de todas as outras garantias?

 De fato, com o avanço da medicina, é possível propiciar ao doente uma máxima qualidade de vida possível enquanto aguarda sua morte inevitável, mas levando em consideração todas as necessidades básicas de um ser humano, passar o restante da sua vida em cima de uma cama sendo submetido a um tratamento penoso e morrendo aos poucos, sem mobilidade e totalmente dependente, é algo que podemos chamar de morrer com dignidade? Neste caso, a morte antecipada por ação de terceiro pode ser considerado um ato de misericórdia e compaixão que causa um alívio imediato ao contrário de um definhamento lento e contínuo.

Destarte, entendemos que todo o indivíduo tem o direito a morrer de forma digna, seja pelo ciclo natural, com a antecipação da morte para evitar sofrimentos exacerbados ou evitando meios cruéis para executá-las. O intento é que todos os direitos básicos sejam respeitados até o último suspiro do indivíduo, sendo assim, a partir de agora vamos discorrer mais a respeito das questões suscitadas neste tópico.

2.3 A pena de morte como uma pena intrinsicamente cruel

A pena de morte no Brasil é uma exceção, sendo prevista constitucionalmente em um único caso: guerra declarada pelo Presidente da República (art. 84, XIX). Esta pena deve observar as leis específicas previstas nos Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar brasileiros.

Em divergência com o CPM, o Código Penal comum não prevê a pena de morte como uma das possíveis sanções, causando até certa controvérsia acerca da sua aplicabilidade, visto que, segundo alguns autores, seria uma “permissão constitucional”, mas inconstitucional na própria essência, visto que violaria direitos e garantias fundamentais.

Isso porque a pena de morte por si própria já causa medo, dor, sofrimento e humilhação, aviltando a dignidade humana, ainda mais sendo executada por meio de fuzilamento, que é o previsto no Brasil, em crimes como de traição (art. 355), de favorecimento do inimigo (artigo 356), da cobardia (art. 364), de espionagem (art. 366) e mais cerca de 30 crimes, todos do Código Penal Militar de 1969.

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Como já dito, na morte não se sente nada, logo não seria uma maneira de punir, visto que as punições devem ser sentidas para que surtam efeitos. Além de que as penas têm função ressocializadora do indivíduo, logo não teria cabimento a pena de morte no nosso ordenamento jurídico, pois perderia seu caráter.

Além disso, a pena capital é vista como cruel, desumana e degradante, pois viola a integridade psíquica e física do condenado, trazendo àquele um temor indescritível, além de ferir a vida, que é o maior bem do ser humano. Segundo Cezar Roberto Bittencourt, "o princípio da humanidade do Direito Penal é o maior entrave para a adoção da pena capital e da prisão perpétua. Esse princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados".

Segundo a Royal Commission on Capital Punishment, a execução da pena de morte exige três requisitos: humanidade, certeza e decência. A humanidade se refere à técnica adotada na execução da pena, que deve matar o condenado sem aflição e sem dor. Entende-se certeza como a necessidade de que o meio escolhido para a execução venha a ceifar a vida do condenado de forma imediata, sem interrupções ou problemas operacionais. Por fim, decência significa dignidade, ou seja, deve-se evitar o excesso de brutalidade, a mutilação e a deformação do corpo do cidadão.

Visto que o Brasil adota o fuzilamento para a execução, temos a possibilidade de que o condenado receba vários disparos que não venham a atingir região letal. Logo, fere-se o requisito da certeza e consequentemente da humanidade. Alguns ordenamentos, como o da Indonésia, para resolver esse “problema”, adotam um tiro de misericórdia, desferido pelo líder do pelotão contra o crânio do réu. Não parece sequer necessário mencionar que um tiro à queima roupa contra a cabeça do condenado tem o condão de lhe desfigurar por completo a face. Assim, acaba por se infringir o critério da decência.

Desta maneira, falando-se em pena, tal termo tem origem na palavra “poena”, advindo do latim, com derivação do grego “poine”, significando sofrimento, castigo, dor e punição. A pena é uma instituição antiga e inicialmente era aplicada como vingança, com o intuito de fazer com que as pessoas que cometessem crimes sofressem, sendo muito comum que estas pagassem com suas próprias vidas.

A pena de morte, chamada também de pena capital, tem sua aparição desde os primeiros registros das mais remotas sociedades. Os egípcios, por exemplo, a admitiam para todos os crimes. Os hebreus e babilônios também faziam uso dessa medida em larga escala. Em 2000 a.C., quando vigia o Código de Hamurabi, um dos mais antigos do mundo, já se encontrava a morte como pena para diversos crimes.

Com o decorrer do tempo e o aumento da população pelo mundo, surgiam diversas sociedades que executavam criminosos, opositores políticos e até inimigos da Igreja. A Idade Média registra o auge da crueldade na repressão: penas capitais acompanhadas de tortura. Além de aparelhos mais sofisticados e de alto custo, utilizava-se também instrumentos simples como barras de ferro quentes, tesouras e alicates que destroçavam seios, mutilavam órgãos genitais, amputavam e dilaceravam partes corporais.

Na Idade Moderna, ainda há resquícios de crueldade nas mortes predeterminadas pelo Estado. As penas capitais eram aplicadas de forma pública como verdadeiros espetáculos, assim como narra FOUCAULT (1999, p. 9-10):

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: “Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me”. Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente. [O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida. [...] Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante das atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse coitado em pedaços. [...] Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar, mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha.

Em meados do século XVIII, com a difusão das ideias iluministas, surgiram as primeiras mudanças na postura e pensamento da sociedade em relação ao sistema punitivo, daí se inicia o denominado “Período Humanitário do Direito Penal”, movimento que pregou a reforma das leis e da administração da justiça penal, inaugurado pela obra de Cesare Beccaria, “Dos delitos e das penas”, publicada em 1764. Segundo BECCARIA, “a efetividade das penas está no combate à impunidade e na garantia da punição do responsável e não na sua taxa de crueldade”.

No Brasil, os índios já aplicavam a pena de morte juntamente com penas corporais, não deixando de ser diferente durante a colonização. Nesta época, ocorriam sepultamentos e esquartejamentos de pessoas vivas, utilização de forca, espada e fogueira. Mesmo após a Proclamação da Independência, a pena capital continuou prevista para determinados crimes, sendo executada por forca, posteriormente à ritual público em que o acusado era conduzido pelas ruas a fim de que todos vissem que a punição era severa e violenta.

De 1891 até 1937 não houve pena de morte no Brasil, voltando a ser instituída no governo de Getúlio Vargas para determinados crimes como aqueles contra a segurança do Estado. Diferente não foi durante o regime militar, que previa a pena de morte para atos de guerra psicológica adversa ou revolucionária subversiva, sendo muito utilizada técnicas de tortura como choques elétricos, paus-de-arara, empalamentos e estupros.

Com a redemocratização e a publicação da Constituição Federal de 1988, a pena de morte foi expressamente proibida, exceto em caso de guerra declarada como foi dito, garantindo aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida. Além disso, conforme a própria CF/88, a República Federativa do Brasil tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, um princípio universal previsto também na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica).

Além disso, a Carta Magna veda a tortura e tratamento desumano ou degradante, explicitando que, além de não haver pena de morte, não haverá penas cruéis, sendo estas, como direitos e garantias individuais, cláusulas pétreas. Desta forma, qualquer emenda constitucional ou lei proposta com o fim de instituir pena de morte e/ou penas cruéis no Brasil não deve sequer ser levada à votação, pois é inconstitucional.

Ainda a pena de morte é uma sanção cruel, sem dúvidas, que está em descompasso com o nosso ordenamento jurídico e afronta o Estado Democrático de Direito, conforme Juarez Cirino dos Santos:

A pena de morte é a última modalidade de pena cruel, desumana e degradante da história do direito penal: cruel, pelo sofrimento físico e mental do condenado, sua família e amigos; desumana, pela ruptura de sentimentos mínimos de piedade e de solidariedade entre os homens; e degradante, pelo envilecimento moral e social de seus aplicadores e executores.

Neste mesmo sentido, a pena de morte é um assassinato oficial, tratando-se de uma morte premeditada pelo Estado, uma contradição em sua missão de preservação da vida, com data e hora para acontecer; durante toda a espera para a execução o acusado sofre com a tortura psicológica. Conforme Oswaldo Henrique Duek Marques,

a crueldade maior consiste na expectativa da morte infligida ao condenado, que pode durar meses ou anos. [...] O isolamento no corredor da morte, às vezes longo tempo antes da execução, causa a morte da personalidade, com a perda do sentido da realidade, acompanhada de uma degradação física e mental.

Esta é uma pena com requintes bárbaros, pois um cidadão viver com a angústia de saber o dia em que sua vida será ceifada, com toda certeza ele terá sua integridade psicológica totalmente afetada, o que se torna algo que vai totalmente de encontro com a dignidade da pessoa humana e o princípio da humanidade.

Para Paulo Queiroz, o Estado que mata, que tortura, que humilha o cidadão, “não só perde qualquer legitimidade como contradiz a sua própria razão de ser, que é servir à tutela dos direitos fundamentais do homem, colocando-se no mesmo nível dos delinquentes”.

Além disso, conforme Dalmo de Abreu Dallari, “a vida é um valor moral, que o Estado é incapaz de criar e não deve ter o direito de suprimir. Na realidade, a vida é um Dom misterioso concedido aos seres humanos e que se relaciona intimamente com sua natureza espiritual”.

Na verdade, a pena capital vai de encontro ao curso natural da vida, devendo esta ser indisponível para o Estado. Ter sua morte com data marcada já é indigno e desumano, por si só, sendo agravada pelos meios executivos, que muitas vezes podem causar dores e sofrimentos físicos terríveis ao acusado, desta forma, é incompatível com o nosso ordenamento jurídico e com a nossa sociedade que respeita a dignidade da pessoa humana, inclusive na hora da morte.

Como foi visto, não há a possibilidade de qualquer forma de execução de pena de morte que pode ser considerada constitucional. Segundo Maria Fernanda Bernardo, “regressar a métodos como o fuzilamento representaria, pura e simplesmente, a ostentação de um retrocesso civilizacional pelo que significaria de capacidade de convívio a olhos nus com a brutalidade da crueldade”.

2.4 O homicídio qualificado pelo meio de execução como travo ao direito de morrer dignamente.

Como dito alhures, o direito à vida é preceito constitucional que somente poderá ser abolido pela criação de um novo Estado de Direito, através da promulgação de uma nova Constituição da República. Essa vedação máxima ocorre considerando que o direito à vida é Cláusula Pétrea e, por isso, não poderá ser suprimida. É cediço que a norma suprema do ordenamento jurídico objetiva, dentre outros preceitos, a proteção do particular em relação à arbitrariedade estatal e consiste como instrumento da ordenação da vida em sociedade.

O Direito Penal é o ramo do Direito que representa a espécie mais impetuosa de intervenção estatal. Formado por um conjunto de regras e princípios que definem as infrações de natureza penal e suas consequências jurídicas, é reputado um meio de controle social formal precisamente por ter sido instituído com esta finalidade: o controle, que visa a tutela de bens jurídicos.

Na hierarquia do Código Penal brasileiro o direito à vida é um dos bens jurídicos que mereceu maior proteção do legislador, considerando a rigorosidade da pena aplicada. Neste sentido já havia se pronunciado o exímio Cesare Beccaria, em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, que os meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público. O homicídio, que está conjecturado em seu art. 121, prediz que a pena para este crime varia de seis a vinte anos. O crime em sua forma qualificada, que está disposto no § 2º do artigo anteriormente referido, objeto deste estudo, preceitua a pena de doze a trinta anos. Ademais, este último foi enquadrado no rol dos crimes hediondos, onde constam os crimes considerados de maior reprovação social e, por isso, insuscetíveis de anistia, graça e indulto, que nos dizeres de Rogério Sanches são de espécies de renúncia estatal ao direito de punir do Estado, além de necessidade de maior tempo de cumprimento de pena para a progressão de regime.

A reprovabilidade da conduta que viola o preceito constitucional do direito à vida pelos particulares, imputando a estes penas mais severas advém de uma concepção lógica; se o próprio Estado, soberano dentre os particulares, não tem o condão de punir aquele que se comporta de encontro ao que preceitua o Estado de Direito constituído, através da pena de morte, conforme já explanado em tópico próprio, o particular, que está em patamar de igualdade com o outro, que pode vir a ser aquele que tem o seu bem jurídico violado, diafanamente deve se amoldar ao mesmo preceito, sendo-lhe vedada qualquer prática que ponha fim à vida de seu semelhante. A repudia é ainda maior se esta prática for realizada através de meios que prolonguem o sofrimento do ofendido, o que além de violar o direito constitucional à vida, ainda subtrai da vítima o direito de morrer dignamente.

Neste sentido o Código Penal elenca as hipóteses de crimes qualificados pelos meios, senão veja-se:

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

(...)

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

(...)

Pena - reclusão, de doze a trinta anos. ”

É mister ratificar as condutas rechaçadas pelo legislador, identificando-as e diferenciando-as com o objetivo de elucidar o motivo pelo qual são consideradas com estes conceitos pela norma pátria.

O envenenamento é uma das hipóteses do crime de homicídio, e também pode ser denominada de venefício. Este meio de homicídio era temido principalmente no passado, considerando que seu alcance extraordinário de utilização atingiu popularidade na Grécia e na Roma. Tanto que o direito romano punia mais rigorosamente o homicídio cometido por veneno, do que o praticado por arma. Importante destacar que para qualificar o crime por meio de veneno é necessário que este tenha sido ofertado à vítima de maneira insidiosa, oculta (clam et oculte), de forma subreptícia, de sortilégio, sem o conhecimento daquele que o ingere. Sem dúvida alguma, o homicídio realizado por meio de envenenamento é cruel, causa sofrimento desnecessário à vítima, além de dificultar a sua defesa, o que culmina uma afronta à dignidade da pessoa humana e, consequentemente do direito de morrer dignamente daquele que sofre com a conduta praticada.

O emprego do fogo foi muito utilizado como forma de aplicação de pena na época da Santa Inquisição, nos Tribunais do Santo Ofício, uma vez que as vítimas sentenciadas eram levadas ainda com vida à fogueira. É conduta mais rigorosamente apenada pelo Código Penal considerando que há um severo sofrimento, já que a morte da vítima no homicídio por fogo não se dá instantaneamente, mas sim após arder em chamas por algum período. Mais uma vez estamos diante de uma forma que produz um padecimento mais grave do que o necessário e suficiente para a consumação do homicídio, de modo que o direito de morrer dignamente é nesta esfera, também diretamente afrontado.

Mais uma forma abarcada como gravosa pelo Código é a asfixia, que tem sua origem etimológica no latim e quer dizer “falta de pulso”. É um meio cruel de ceifar a vida da vítima, já que esta busca, a todo custo, os meios possíveis de inflar ar aos pulmões, debatendo-se até a morte. É uma forma sádica, sórdida de praticar o crime, onde a vítima se encontra normalmente conectada diretamente com o executor, o que demonstra tamanho grau de frieza do assassino. Antonio Jose da Costa e Silva considera que esta modalidade revela, por parte do agente, elevado grau de perversidade. Não há qualquer incerteza de que este meio segue a mesma linha dos anteriormente citados, de modo que fere a dignidade de morrer da pessoa humana.

Por fim, há ainda a tortura, que é o meio cruel por excelência, revelando culpabilidade extrema. Sobre este meio de qualificadora já aduzia Francesco Carrara que o assassinato mediante tortura é aquele que se usa de uma maior quantidade de dor física do que o necessário para matar. É considerado um homicídio ilimitado, de modo que o agente disporá de uma infinidade de processos para afligir a vítima, alongando o sofrimento desta por um tempo indeterminado. A tortura produz padecimento físico inútil para a consumação do homicídio. É manifesto que se trata de meio bárbaro, martirizante, e que denota por parte do agente a ausência de elementar sentimento de piedade.

Recorrendo à norma supra e a todo aparato explicativo, é possível constatar que os meios que qualificam o homicídio são os que envolvem dissimulação, crueldade ou perigo de maior dano. É vítreo que os meios contemplados na tipicidade da conduta adentram na seara de sofrimento exacerbado do indivíduo, de modo que o seu direito de morrer dignamente é diretamente atingido, considerando que extrapola as fronteiras da moralidade, dos valores e da honra do ofendido. Ora, se o próprio Estado, soberano perante os particulares, não pode adentrar na seara de crueldade na imposição de penas para as condutas tipificadas como crime, não é o particular que poderá agir de tal forma, ceifando o direito daquele que já está condenado à morte, de tê-la de maneira digna.

2.5 Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia

Muitas pessoas acreditam que uma morte digna é uma morte natural, ou seja, sem interferências, mas muito se discute até quando se deve prolongar uma vida de sofrimento físico e existencial como acontece com pessoas que têm doenças incuráveis e irreversíveis.

Neste sentido, não há como deixar de abordar acerca da eutanásia e ortotanásia, modalidades de disposição da vida, solicitadas por aqueles que reivindicam a própria morte, bem como da distanásia que constitui uma modalidade inversa da eutanásia.

Derivada da palavra grega euthánatos, em que eu significa bom e thánatos significa morte, ou seja, “boa morte”, a eutanásia define-se como sendo a conduta do médico que coloca fim ao sofrimento e à dor de um paciente portador de enfermidade incurável e em estado terminal, através da morte.

Esta conduta justifica-se pela compaixão ou piedade com relação ao ser humano que se encontra em um estado de forte e constante sofrimento, sem quaisquer chances de recuperação, no sentido de acabar com tal padecimento, antecipando a morte certa.

Fica claro que tal prática coloca a dignidade da pessoa humana, mais especificamente o direito de uma morte digna, à frente do mero direito de viver. Isto porque em uma vida onde o sofrimento impera e não se vislumbra qualquer esperança de cura, dignidade alguma existe e, se não há dignidade, poder-se-ia inferir que o direito à vida em seu sentido amplo e completo já estaria violado, restando, portanto, assegurar que pelo menos o momento que antecede a morte seja digno, uma morte digna.

Todavia, não cabe a um ser humano decidir o momento exato que o outro deve morrer, ainda que movido pela compaixão para com o sofrimento alheio, não é lhe dado o direito de retirar a vida de seu semelhante, sob pena de afrontar o direito maior tutelado pela constituição pátria, que é o direito à vida. Assim sendo, o ideal seria buscar meios de tentar aliviar o sofrimento daquele que já se encontra em estado terminal, amoldando-se, portanto, ao princípio da dignidade humana, sem violar o direito à vida, para que, então, o moribundo tenha uma morte natural e digna.

Ao redor do mundo, como na Holanda, por exemplo, há 14 anos existe lei regulando a eutanásia e desde a sua promulgação em 1º de abril de 2002, o texto da lei não sofreu alteração. Trilhando os mesmos passos da Holanda, a Bélgica, também aprovou em 28 de maio de 2002 a lei regulamentadora da eutanásia. 

No Brasil, não temos lei que regulamente tal prática, sendo, inclusive, considerada como crime de homicídio privilegiado pelo Código Penal Brasileiro. Além disso, a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1931/2009, em seu artigo 41 veda ao médico: “[...] Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”.

De outra banda, prática inversa, quando se fala em abreviação da vida daquele que encontra-se acometido por moléstia incurável, em fase terminal e sob constante e intenso sofrimento, é a distanásia. 

Derivada do grego dysthánatos, em que dys significa ato defeituoso e thánatos significa morte, ou seja, morte por ato defeituoso, a distanásia constitui conduta médica pela qual se prolonga a vida do paciente terminal, através de meios artificiais e desproporcionais.

Assim, ao contrário da eutanásia que tem por objetivo interromper o sofrimento do paciente fadado à morte, antecipando esta, a distanásia prolonga esse sofrimento em razão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia.

Segundo Aluísio Santos de Oliveira (2012), a distanásia configura-se em um “tratamento inútil, pois, nesta conduta, não se encomprida a vida propriamente dita, mas o processo de morrer”.

Tal conduta confronta diretamente o princípio da dignidade e por consequência o direito de morrer dignamente, uma vez que, o tratamento constitui-se como um fim em si mesmo, sendo o ser humano simplesmente ignorado quando a autonomia do paciente é desconsiderada, assim como a sua qualidade de vida.

Em oposição à distanásia e configurando-se como uma espécie de eutanásia que melhor se amolda ao princípio da dignidade humana e ao direito à vida em seu sentido amplo, surge o conceito de ortotanásia que, etimologicamente significa “morte correta” e define-se como sendo o não prolongamento da vida daquele paciente acometido por doença incurável e em estado terminal, pelos meios terapêuticos e artificiais, oferecendo apenas meros suportes de cuidados paliativos e terapias antálgicas para aliviar o sofrimento, permitindo ao moribundo uma morte natural e digna.

Na ortotanásia o doente já se encontra em processo de morte, recebendo do médico contribuição no sentido de deixar que esse estado se desenvolva em seu curso natural.

De acordo com Maria de Fátima Freire de Sá,

Entende-se que a eutanásia passiva, ou ortotanásia, pode ser traduzida como mero exercício regular da medicina e, por isso mesmo, entendendo o médico que a morte é iminente, o que poderá ser diagnosticado pela própria evolução da doença, ao profissional seria facultado, a pedido do paciente, suspender a medicação utilizada para não mais valer-se de recursos heróicos, que só têm o condão de prolongar sofrimentos (distanásia) (SÁ, 2005, p. 134). 

Portanto, diferente da eutanásia em que o médico tem uma conduta ativa, interrompendo a vida do paciente com o objetivo de fazer cessar o sofrimento e lhe conferir uma morte digna, na ortotanásia o médico tem uma conduta omissiva, uma vez que suspende o tratamento que retarda, injustificadamente, o processo natural da morte, assegurando, no entanto, todas as condições necessária para aliviar o sofrimento do paciente até que se dê a morte natural e inevitável. Percebe-se com isso, uma ponderação entre o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, configurando-se a ortotanásia modalidade de disposição da vida, solicitada por aqueles que reivindicam a própria morte, que mais se adequa às normas e princípios constitucionais brasileiros.

Todavia, no Brasil, diversamente de outros países, não tem lei que regulamente a ortotanásia, contudo, há a vigência da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1805/2006, a qual dispõe o seguinte:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. (grifo nosso)

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.       

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. (grifo nosso)

Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

Assim, utiliza-se subsidiariamente a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1805/2006, como excludente de ilicitude para a conduta do médico que pratica a ortotanásia no Brasil.

3 Conclusão

Diante de todo o exposto, fica claro que o direito à vida, atrelado ao princípio da dignidade, é o bem maior do ser humano, sendo, por isso, tutelado pela Constituição Federal do Brasil, a qual assegura sua inviolabilidade.

O respeito à vida e aos demais direitos correlatos decorrem de um dever absoluto, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer.

No entanto, conforme já abordado, o direito à vida não se configura como um direito absoluto, sendo trazida pela própria legislação pátria exceções à regra.

Ora, quando se fala em vida, condição de existência do ser humano, deve-se lembrar da morte que constitui fase integrante desta. Faz parte da condição humana a mortalidade, é o fim do processo de viver e, portanto, inevitável. A questão é: É dado ao outro o direito de retirar, arbitrariamente, a vida de seu semelhante?

Todos os direitos ou princípios, positivados ou não no texto constitucional, podem ser limitados por outros direitos ou princípios com os quais entrem em colisão, exigindo-se, portanto, que sejam submetidos a regras de ponderação e ao princípio da proporcionalidade.

Neste sentido, para os casos que excepcionam o direito à vida, deve-se pensar na garantia de uma morte digna como forma de buscar, justamente, uma proporcionalidade e ponderação a tais condutas, proibindo-se, por óbvio, aquelas que extrapolam os limites da razoabilidade e que perpassam o absurdo, como os casos em que o particular retira a vida de seu semelhante de forma arbitrária e utilizando-se de meios insidiosos, cruéis e torturantes.

Portanto, se todo e qualquer ser humano tem o direito a uma vida digna, por lógica, tem o direito de morrer dignamente, uma vez que, a morte é consequência natural da vida, consubstanciando-se em sua fase última e assim, integrando o conceito próprio da vida. Tal morte digna seria, então, aquela advinda do curso natural da vida, livre de qualquer intervenção arbitrária por parte do particular ou mesmo do Estado, ou, aquela livre de qualquer sofrimento. Sendo assim, ao Estado é dado o dever de assegurar ao cidadão uma morte digna, seja através de todo um aparato de direitos fundamentais que garantam uma vida digna e longa, e por consequência uma morte digna, seja através de medidas que visem de alguma forma interromper o sofrimento daquele cidadão moribundo e sem qualquer chance de cura.

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Sobre os autores
Cristiano Souza de Alencar

Bacharelando em Direito pela Faculdade de Ilhéus - CESUPI.

Jéssika Cristhiny Moraes Frizo

Bacharelanda em Direito do 7º semestre da Faculdade de Ilhéus- CESUPI

Fernanda de Mello Mansur

Bacharelanda em Direito do 7º semestre da Faculdade de Ilhéus- CESUPI.

Raonni Barreto Fonseca

Bacharelando em Direito do 7º semestre da Faculdade de Ilhéus- CESUPI.

Stephane Matheus Lins

Bacharelanda em Direito do 7º semestre da Faculdade de Ilhéus- CESUPI.

Taiana Levinne Carneiro Cordeiro

Advogada criminalista, professora de penal e processo penal da faculdade de Ilhéus/BA, professora de cursinho preparatório para concurso, especialista em processo penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado com o fim de obter nota parcial na disciplina Direito Processual Penal I, da Faculdade de Ilhéus - CESUPI.

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