Polícia de ciclo completo: uma necessidade

14/10/2015 às 11:46
Leia nesta página:

O presente artigo busca debater a necessidade de implantação do ciclo completo de polícia pelas Corporações listadas no artigo 144 da Constituição Federal, particularmente, dedicando a atribuição as Polícias Militares do Brasil.

A Constituição Brasileira assegura que a segurança pública é responsabilidade de todos e dever do Estado, tendo listado os órgãos policiais (Militar, Civil, Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal) e definido a atribuição de cada um deles, mas deixou de tratar como se daria a atividade policial frente à dinâmica da violência e da criminalidade, e sabemos que um modelo ultrapassado de atividade policial não consegue atender as demandas cotidianas, tampouco a persecução penal.

Nesse sentido, o jusfilósofo alemão Winfried Hassemer, na obra Direito Penal Libertário, ressalta que “vivemos em uma época na qual a segurança tornou-se um grande tema. Também fora das disputas eleitorais não existe no momento quase uma bandeira sob a qual tantas pessoas se decidiram reunir lutar contra a criminalidade. Esse fenômeno se aproxima da polícia e a coloca simultaneamente sob pressão; ele lhe proporciona um peso crescente e aumenta as expectativas em face da polícia”, dessa maneira, observa-se que a polícia é um ator importante em um cenário de busca pela paz pública, quer seja na missão de prevenção e manutenção da ordem pública, quer seja na repressão aos crimes cometidos.

A ideia de Polícia é bem apresentada por Klaus Tiedemann – “A polícia tem duas competências claramente delimitáveis entre si: primeiramente, deve repelir perigos que ameacem a segurança ou a ordem pública, nesse sentido, sua atividade tem caráter profilático (preventivo), segundo, deve participar da persecução penal, nessa qualidade, é um órgão competente para investigação e a elucidação de crimes, com função repressiva”, dessa forma, a ideia do autor atende ao que preconiza a doutrina que coloca o direito penal como ultima ratio, onde a polícia deve ser, antes de tudo, uma mediadora de conflitos e não apenas um órgão repressor.

A polícia atua na área de tensão entre a garantia dos direitos fundamentais e a limitação destes direitos, e sendo assim, é um órgão garantidor da cidadania.

Ampliando o debate, entende-se que o direito à segurança pública é um direito difuso, transindividual e indivisível, do qual são titulares um grupo de pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato, ou seja, o direito difuso é aquele que pertence a um grupo indeterminado de pessoas, titulares de um objeto indivisível e que estão ligados por um vínculo fático.

Santin, o explica – “O serviço é gratuito, universal e indivisível, pois não há cobrança individual, destina-se a toda a coletividade e não pode ser dividido em frações de fruição, com a incumbência estatal de disseminar a sua presença e atuação em todos os lugares. O serviço de segurança pública deve ser prestado de forma integral, não parcialmente”.

Observa-se que existem dois principais modelos de polícia no mundo, um calcado na experiência da Metropolitan Police of London (Polícia Metropolitana de Londres), a Scotland Yard é apenas um departamento dessa polícia, ou modelo insular e o modelo continental exteriorizado pela Gendarmerie ou modelo militar de polícia, do qual são parâmetros – a Gendarmerie francesa, os Carabinieri di Italia, Carabineros del Chile e outros.

Por outro lado, mas não menos importante é discutir o ciclo de polícia que cada modelo realiza, ambos modelos fazem a polícia de ciclo completo, até mesmo nos países que operam o modelo insular de polícia, e ressalta-se que atualmente não existe um modelo puro. Na Inglaterra, por exemplo, onde a tradição é calcada nos princípios de Robert Peel, o policiamento desarmado vem dando lugar, progressivamente, ao uso de armas pela polícia. O modelo continental da gendarmerie francesa impõe ao policial um pertencimento à região que realiza o policiamento, exigindo-se que o seu policial resida na região onde trabalha, ou seja, vinculando-o àquela comunidade, assim, mesmo havendo diferenças na composição dos modelos policiais, em uma coisa são iguais, eles proporcionam às polícias, o chamado ciclo completo.

Dessa maneira, o que distingue os gendarmes, nome que é dado aos seus componentes, é seu caráter polivalente, porque podem ser levados, no decorrer de um dia de serviço, a fazer tanto o trabalho de policiamento ostensivo quanto o de polícia judiciária, cumprindo assim as tarefas do ciclo completo de polícia.

O ciclo completo de polícia ou polícia de ciclo completo é a atribuição a uma mesma corporação das atividades repressivas de polícia judiciária e de prevenção de delitos e manutenção da ordem pública de polícia ostensiva.

Em nosso país temos duas meias polícias, uma que realiza o policiamento ostensivo e preventivo e outra que realiza a investigação policial e a formalização das prisões realizadas pela polícia ostensiva. Atualmente, apenas três países não realizam o ciclo completo de polícia: Brasil, Guiné-Bissau e Cabo Verde; a Turquia, que também fazia parte do grupo, para integrar a comunidade europeia teve que aderir ao ciclo completo de polícia.

Ressalte-se que o modelo policial brasileiro idealizado, onde uma polícia realiza a prevenção e outra a repressão, não é nem pode ser entendido como uma corrida de revezamento, onde cada atleta tem uma função previamente definida, corre seus cem metros e passa o bastão para o companheiro, assim sucessivamente até o final da prova.

Ao contrário, no modelo de polícia idealizado no Brasil, o policial militar que realiza o policiamento preventivo ao realizar a prisão do infrator deve conduzi-lo a delegacia de polícia para que sejam adotadas as medidas insculpidas no código de processo penal e não é uma simples entrega.

O policial militar é um partícipe efetivo, até porque, melhor do que ninguém pode relatar os detalhes que o levaram a cercear a liberdade do agressor, contudo, invariavelmente essa ação, toma-lhe tempo e o retira de sua atividade precípua que é a prevenção.

Em países como EUA e Japão, para citar dois bons exemplos, as polícias fazem o ciclo completo, ou seja, a polícia que realiza a prisão é a mesma que faz a autuação. E no caso dos EUA o exemplo é ainda melhor, pois lá existem diversas agências policiais, e segundo Richard Vogler existe algo entre 20.000 a 40.000, atuando simultaneamente nas esferas federal, estadual e municipal, onde cada uma respeita a atribuição da outra, mas todas fazendo o ciclo completo.

Assim, temos agências federais – FBI, DEA, NSA, etc.; agências estaduais – Massachusetts State Police, Pennsylvania State Police, New York State Police, California State Police e outras; agências municipais – New York Police Department (NYPD), Los Angeles Police Department (LAPD), Chicago Police Department (CPD) e outros, sem contar os xerifes dos condados.

A definição de ciclo completo de polícia variará de país a país, delimitando-se a atuação completa a partir do nível de gravidade que o crime apresente, assim, as infrações menos graves são atribuição do nível municipal, infrações de nível médio e grave são atribuição do nível estadual e a macro criminalidade ficaria a cargo do nível federal, entretanto, em que pese essa divisão, não há impedimento para que todas as agências realizem a missão policial, desde que não conflite com a agência principal.

No Brasil, entende-se que os crimes de menor potencial ofensivo ou pequeno potencial ofensivo são aqueles, dentro de um conceito jurídico, que possuam uma menor relevância para o ordenamento jurídico, considerando-se como crimes de menor potencial ofensivo aqueles com pena máxima de até dois anos e todas as contravenções penais.

Na contramão da melhor prestação do serviço policial ao cidadão encontramos posições conservadoras que acreditam que a Lei nº 9.099/1995 proibiu a confecção do TCO pela Polícia Militar, quando é o contrário que a Lei prevê quando prima pelo princípio da celebridade e da economicidade. Ficam as perguntas: a quem serve a Polícia? A interesses classistas ou ao cidadão? O que é mais importante, dar celeridade a prestação do serviço público de Polícia ou a cartorização dos procedimentos? E ainda, é possível a convivência harmônica - como tem havido nas ações de integração das polícias - entre as Corporações quando a Polícia Militar lavra o TCO e a Polícia Judiciária a investigação dos crimes mais graves?

Nessa toada, vê-se que algumas questões colocadas como bandeiras de classe nada mais são do que, já é feito nos dias atuais pelos policiais militares, quer seja em observância a lei, quer seja em atendimento as orientações do Ministério Público por meio de suas recomendatórias, como por exemplo a observância da Recomendatória de número 5 do Ministério Público estadual.

A confecção de manuais ou cartilhas tentando intimidar a ação de policiais militares com ameaças a direitos fundamentais dos militares estaduais e do cidadão, soa mais como receio de perder seu status quo do que realmente prestar um bom serviço público e comprometimento, mas claro que acreditamos que a maioria dos policiais trabalham conjuntamente com os representantes do Ministério Público para a melhor persecução penal.

Ao contrário do que pregam alguns alarmistas, a polícia de ciclo completo não retira poder de nenhuma das Corporações, pelo contrário, a polícia de ciclo completo aperfeiçoa um serviço público em prol do cidadão, tal fato se confirma com o sucesso da implantação do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) no estado de Santa Catarina.

Os Juizados Especiais Criminais (JECRIM) são orientados pelos critérios da oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual e da celeridade, conforme previsto no artigo 62 da Lei Federal nº 9.099/1995.

Assim, a Lei nº 9.099/1995 trouxe grandes alterações no cotidiano brasileiro, particularmente, no cotidiano policial, pois definiu e conceituou as infrações penais de menor potencial ofensivo como sendo aquelas que envolvam todas as contravenções penais, independentemente de rito especial, e os crimes cuja pena máxima não seja superior a dois anos, cumulada ou não com a pena de multa.

A Lei, também, inseriu algumas medidas despenalizadoras, tais como a transação penal e a composição civil, mitigando-se, inclusive, a indisponibilidade da ação penal pública pelo Ministério Público, mas o primordial para o nosso estudo e atuação policial foi a criação do Termo Circunstanciado de Ocorrência, o qual a doutrina e a jurisprudência tratam como um boletim simplificado ou relatório simplificado dos fatos, tendo como escopo a maior celeridade na persecução judicial, haja vista que não se realiza investigação policial no TCO, mas apenas relato dos fatos e qualificação dos envolvidos (autor e ofendido), além das testemunhas, bem como outras provas pertinentes, o que se demandar uma investigação policial perde todo o sentido de celeridade, conforme, inclusive prevê o artigo 77 da Lei nº 9.099/1995.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A análise desse modelo, no viés da celeridade, deve ser feita sob o prisma da comodidade gerada para o cidadão, que não precisará se deslocar até uma delegacia de polícia e nem ser estigmatizado ao ser conduzido numa viatura policial. E ainda, por não ter os transtornos para o retorno ao seu domicílio, já que não é atribuição da polícia fazer o traslado do cidadão.

Observa-se que se evitam eventuais riscos que podem ser gerados para cidadãos e policiais, tais como acidentes nas estradas, o que geraria para o Estado uma responsabilização extracontratual, pois consta que em Minas Gerais uma guarnição ao transportar as partes envolvidas numa ocorrência policial de pequeno potencial ofensivo envolveu-se num sinistro em rodovia federal levando a óbito – os policiais que compunham a guarnição, a vítima, a testemunha e o preso.

Pelo princípio da economicidade, o Estado evitará gastos desnecessários (desgaste de pneus, aumento no consumo de combustíveis, depreciação das viaturas) com grandes deslocamentos de viaturas que acabam prejudicando o policiamento na sua região de origem, já que os policiais têm que se deslocar para entregar a ocorrência na delegacia mais próxima, o que implica num deslocamento, em alguns casos, de até 240 km (ida e volta) e ainda permanecessem por várias horas aguardando atendimento na delegacia de polícia.

A confecção do Termo Circunstanciado de Ocorrência possibilita que a viatura permaneça em sua área de policiamento, pois a ocorrência é feita no local do atendimento, maximizando a prestação do serviço policial; segundo Azor Lopes da Silva Júnior – “Em síntese, ‘o ciclo completo’ dá autonomia às polícias militares; abre um canal direto, sem atravessadores, entre o policial de rua e o Juiz que aplica a lei e, mais que isso, no plano institucional, faz de ambas polícias órgãos independentes entre si. A partir dessa independência, pode-se abrir espaço para uma nova relação de integração das agências”.

Na implementação do ciclo de polícia completo pela Polícia Militar, mesmo que de forma mitigada, reitera-se que a polícia judiciária seria desonerada da simples incumbência de recebimento de ocorrência policial para desempenhar seu mister na investigação dos crimes de médio e grave potencial ofensivo, ou seja, otimizaria o trabalho da Polícia Civil.

A confecção do TCO pela PM garante benefícios para a atividade policial, quer seja ela preventiva e/ou ostensiva, pois além de liberar a polícia judiciária para investigação, gerará menos gastos para os cofres públicos, melhor atendimento para o cidadão e uma maior integração entre a Polícia e a Comunidade, além da Polícia Militar atuar em maior consonância com os protocolos da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os princípios do código de conduta para os aplicadores da lei.

A polícia de ciclo completo proporcionará as Polícias estaduais (militar e civil) a serem legalmente competente para atuar na prevenção e na repressão aos crimes e remetendo o caso ao Poder Judiciário sem qualquer intermediação, e nesse sentido que os doutrinadores e os pesquisadores concluem.

A economicidade, a complexidade social e a revisão das dimensões do mandato policial são questões que estão intrinsicamente ligadas a adoção do modelo de polícias de ciclo completo, o que não ocorreu ainda por “razões de vaidades e disjunções classistas”, por todos Santos Júnior.

Por isso é importante superar as vaidades e disjunções classistas para a melhor prestação do serviço público ao cidadão capixaba precipuamente na busca de uma maior sensação de segurança, na pacificação social e na segurança jurídica e nesta a certeza do cidadão de que o infrator será responsabilizado adequadamente pelo Estado; sem isso continuaremos com nossas dificuldades cotidianas por mais boa vontade que exista.

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos