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A usucapião de bens imóveis que compõem a herança jacente

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2 HERANÇA JACENTE

2.1 Conceito

O Código Civil de 2002 assim prevê:

Art. 1.819. Falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância.

Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 133) define herança jacente nos seguintes termos: Quando se abre a sucessão sem que o de cujus tenha deixado testamento, e não há conhecimento da existência de algum herdeiro, diz-se que a herança é jacente (CC, art. 1.819).

E continua o ilustre doutrinador: Ainda que haja herdeiro sucessível a herança pode ser jacente, enquanto a sua existência permanecer ignorada.

Por seu turno, Silvio de Salvo Venosa (2011, p. 73), com a percuciência que lhe é comum, assim leciona: Existe jacência, pois, quando, em síntese, não se sabe de herdeiros: ou porque não existem, ou porque não se sabe de sua existência, ou porque os herdeiros eventualmente conhecidos renunciaram à herança.

Ainda reproduzindo os dizeres de Venosa (2011. p. 74):

“Há outros casos de jacência, como a do nascituro, enquanto não ocorre o nascimento, não havendo outro sucessor, e da pessoa jurídica em formação por força de uma deixa testamentária, também não havendo outros sucessores. A situação é a mesma no caso de herdeiro sob condição suspensiva, enquanto não ocorrer o implemento da condição”.

Em brilhante lição, Fábio Ulhoa (2010, p.268) resume com maestria o que importa destacar sobre o conceito e o procedimento da jacência. Vejamos:

“Quando não se apresentam sucessores, legítimos ou testamentários, o patrimônio do falecido é considerado jacente. Quer dizer, ficará sob a guarda e administração de um curador nomeado pelo juiz, à espera de sucessores. No processo de inventário, expedem-se editais, chamando-os. Decorrido um ano sem que apareçam titulares de direito sucessório, declara-se a herança jacente. Também se declara, desde logo, a vacância se todos os herdeiros chamados a suceder renunciarem à herança (CC, arts. 1.819, 1.820 e 1.823)”.

Em resumo, conforme entendimento doutrinário unânime, a herança é considerada jacente quando não há herdeiro certo ou determinado, ou então não se sabe de sua existência, ou ainda quando a herança é repudiada por todos os herdeiros. Trata-se, então, de uma fase do processo que antecede a vacância. Isso ocorre para que o Estado proteja esses bens até que apareça o herdeiro, e, caso não haja herdeiro, esses bens serão incorporados aos bens públicos, nos termos do art. 1.822 do CC/02.

Mister se faz, ainda, diferenciar a herança jacente da herança vacante, sendo aquela tão somente uma fase transitória que conduz a essa última.

Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 133) ensina que:

“A jacência não se confunde com a vacância, é apenas uma fase do processo que antecede esta. A herança jaz enquanto não se apresentam herdeiros do de cujus para reclamá-la, não se sabendo se tais herdeiros existem ou não. O Estado, no intuito de impedir o perecimento da riqueza representada por aquele espólio, ordena sua arrecadação, para o fim de entregá-lo aos herdeiros que aparecerem e demonstrarem tal condição. Somente quando, após as diligências legais, não aparecerem herdeiros, é que a herança, até agora jacente, é declarada vacante, para o fim de incorporação ao patrimônio do Poder Público”.

Por fim, podemos dizer que a herança vacante é aquela devolvida ao Estado por não terem sido localizados nem se habilitado herdeiros no período da jacência, após a realização de todas as diligências legais, obedecido o prazo estabelecido no art. 1.820 ou caso ocorra a circunstância prevista no art. 1.823, ambos do CC/01.

Quanto ao procedimento referente à herança jacente, esse está previsto nos arts. 1.142 a 1.158 do CPC e, podemos dizer, está, basicamente, dividido em três fases: arrecadação dos bens, publicação de editais e entrega dos bens aos herdeiros ou, com a declaração de vacância, ao poder público.

As atribuições do curador são, via de regra, as mesmas de qualquer pessoa que administra bens de outrem, conforme vemos no art. 1.144 do CPC.

2.2 Natureza Jurídica

Para melhor esclarecer o tema, reproduzimos a abalizada lição do ilustre Itabaiana de Oliveira, citado por Carlos Alberto Gonçalves em sua obra intitulada “Direito Civil Brasileiro”:

“O conceito moderno de herança difere do direito romano; este considerava a herança, embora não adida, pessoa jurídica, que representava a pessoa do defunto e, como tal, era capaz de adquirir direitos e contrair obrigações; modernamente, porém, não há herança jacente neste sentido, porque, de acordo com os novos sistemas jurídicos, o domínio e a posse do de cujus transmitem-se, desde logo, aos herdeiros. Assim, por direito pátrio, a herança é: a) jacente_ quando não há herdeiro certo e determinado, ou quando se não sabe da existência dele, ou, ainda, quando é renunciada; b) vacante_ quando é devolvida à fazenda pública por se ter verificado não haver herdeiros que se habilitassem no período de jacência”. (2012, p. 134).

Nos dizeres do próprio Carlos Roberto Gonçalves:

“A herança jacente não tem personalidade jurídica nem é patrimônio autônomo sem sujeito, dada a força retro-operante que se insere à eventual aceitação da herança. Consiste, em verdade, num acervo de bens, administrado por um curador, sob a fiscalização de autoridade judiciária, até que se habilitem os herdeiros, incertos ou desconhecidos, ou se delcare por sentença a respectiva vacância.

Reconhece-se-lhe, entretanto, legitimação ativa e passiva para comparecer em juízo”. (2012, p.134).

Para Flávio Tartuce:

“Sobre a natureza jurídica da herança jacente e da herança vacante, não se pode afirmar que se tratam de pessoas jurídicas, pois não têm personalidade jurídica. Há, apenas, um conjunto de bens arrecadados. Por isso é que se afirma tratar-se de entes despersonalizados”. (2011, p. 107).

Podemos, então, afirmar, com bastante segurança, que a herança jacente não tem personalidade jurídica, porém lhe é reconhecida a legitimidade ativa e passiva para estar em juízo, quando se fizer necessário, representada por seu curador, sendo considerada como ente despersonalizado ou como pessoa formal. Esse é o entendimento ratificado pela jurisprudência pátria e por doutrinadores de grande quilate.


3 Usucapião de bens imóveis do acervo hereditário jacente - Entendimento jurisprudencial

Acerca da possibilidade ou não de usucapião de bens que compõem a herança jacente, Tartuce esclarece:

“Também aqui duas são as correntes que se formam, como resume de maneira clara Flávio Monteiro de Barros “para uns é possível usucapião de herança jacente se o usucapiente completar o prazo de usucapião antes da sentença de vacância. Argumenta-se que essa sentença de vacância é constitutiva, funcionando como o fato gerador da transmissão da propriedade ao Município (...). Os adeptos desse ponto de vista acrescentam, ainda, que o princípio da saisine não é aplicável ao Município na medida em que este não é herdeiro, mas mero destinatário da herança. Outros sustentam a tese da inadmissibilidade da usucapião. Argumentam que o Município, por força do princípio da saisine, adquire a propriedade da herança desde o momento da abertura da sucessão””. (2011, p. 119).

Ocorre que, há muito tempo, mesmo antes do advento do CC/02, o Superior Tribunal de Justiça já vinha adotando o entendimento, hoje pacífico em nossos tribunais, de que é possível, sim, usucapir bens imóveis que compõem o acervo hereditário jacente, deixando claro a opção pela teoria da natureza constitutiva da sentença que declara a vacância.

É o que deduzimos da leitura dos arestos jurisprudências abaixo colacionados.

CIVIL. USUCAPIÃO. HERANÇA JACENTE. O Estado não adquire a propriedade dos bens que integram a herança jacente, até que seja declarada a vacância, de modo que, nesse interregno, estão sujeitos à usucapião. Recurso especial não conhecido. (STJ - REsp: 36959 SP 1993/0019991-9, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Julgamento: 24/04/2001, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 11/06/2001 p. 196 LEXSTJ vol. 146 p. 85)

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. HERANÇA JACENTE. USUCAPIÃO. FALTA DE ARGUMENTOS NOVOS, MANTIDA A DECISÃO ANTERIOR. MATÉRIA JÁ PACIFICADA NESTA CORTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83. I - Não tendo a parte apresentado argumentos novos capazes de alterar o julgamento anterior, deve-se manter a decisão recorrida. II - O bem integrante de herança jacente só é devolvido ao Estado com a sentença de declaração da vacância, podendo, até ali, ser possuído ad usucapionem. Incidência da Súmula 83/STJ. Agravo improvido. (STJ - AgRg no Ag: 1212745 RJ 2009/0188164-0, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 19/10/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2010)

DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. POSSE DEVIDAMENTE COMPROVADA DURANTE O LAPSO DE CINCO ANOS. A HERANÇA, ENQUANTO JACENTE, NÃO INTEGRA O PATRIMÔNIO PÚBLICO, PASSANDO A ESTE APENAS QUANDO DO ATO DE ARRECADAÇÃO E DECLARAÇÃO DE VACÂNCIA. DESPROVIMENTO. 1. Recurso do Município do Rio de Janeiro contra sentença de procedência em ação de usucapião especial urbana, no qual sustenta que o imóvel objeto compõe acervo jacente, portanto, bem público insuscetível de ser usucapido, ainda que na ausência de declaração de vacância. 2. Hipótese que se restringe à demonstração da posse durante o lapso de cinco anos, no período compreendido entre a morte do titular do domínio e a arrecadação do imóvel pelo Município, momento a partir do qual o bem passaria ao domínio público. 3. Apelada que já residia com o titular do domínio quando da morte deste, havida em 1990, permanecendo no imóvel até a arrecadação e declaração de vacância, fato que se deu em 2000, portanto, por demais satisfeito o requisito temporal exigido pela CR. 4. A herança, enquanto jacente, não integra o patrimônio público, passando a este apenas quando do ato de arrecadação e declaração de vacância. 5. Apelo improvido. (TJ-RJ - APL: 653346620068190001 RJ 0065334-66.2006.8.19.0001, Relator: DES. ADOLPHO ANDRADE MELLO, Data de Julgamento: 13/06/2012, DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 01/08/2012)

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Analisando esses e outras dezenas de julgados, vemos que não é possível falar em controvérsia sobre a matéria. A jurisprudência é unânime e pacífica.

Desses julgados, podemos inferir, pois, que os bens que compõem a herança jacente só passam para o domínio público após a declaração de vacância desses bens e que, para usucapir, o usucapiente deve comprovar que o prazo da prescrição aquisitiva se completou em seu favor antes da declaração, por sentença, da vacância dos bens. Mesmo sob a égide do Código Civil de 1916, era esse o entendimento.

Dessa forma, não há que se falar em usucapião de bens públicos quando o prazo para aquisição do bem através de ação de usucapião já estiver completo quando da jacência da herança, já que esses bens só passam para o domínio público com a declaração de vacância, sem prejuízo do direito dos herdeiros legítimos.


Considerações Conclusivas

Por fim, podemos concluir que ainda que haja uma lacuna tanto no direito sucessório quanto no direito das coisas no que toca à usucapião de bens jacentes, nossos tribunais, guiados pela jurisprudência pacífica do STJ, vêm trilhando um caminho de respeito aos princípios, direitos e garantias fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia e a função social da propriedade.

Ao reconhecerem o direito à usucapião dos bens da herança jacente, ainda que essa já tenha sido declarada vacante, quando o prazo da prescrição aquisitiva já havia se completado, nossos tribunais garantem aos possuidores desses bens o acesso e gozo de garantias fundamentais inerentes à condição de ser humano, insculpidas em nossa Constituição Federal e reafirmadas nos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, bem como a segurança jurídica de que os bens que construíram, mantiveram e melhoraram, onde estabeleceram, de boa-fé, suas residências e trabalhos, não lhe serão tomados da noite para o dia.


REFERÊNCIAS

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, volume 4: direito das coisas. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

_______. Curso de direito civil, volume 5: família; sucessões. 3ª. ed. ver e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 6º volume: direito das sucessões. 22ª. ed. ver.,atual e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de Lei n. 276/2007. São Paulo: Saraiva, 2008.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

_______. Direito civil brasileiro, volume 7: direito das sucessões. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

TARTUCE, Flávio. A usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal. Disponível:<http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos/201108010921370.Tartuce_novausucapiao.doc> Acessado em 29/06/2013.

SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito civil volume 6: direito das sucessões. 4ª. ed. rev. atual. amp. Rio de Janeiro: Forense ; São Paulo: Método, 2011.

V Jornada de Direito Civil / Organização Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. – Brasília : CJF, 2012. Disponível em http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/v-jornada-direito-civil/VJornadadireitocivil2012.pdf/view. Acessado em 28/06/2013.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 11ª. ed. São Paulo: Atlas, 2011.


ABSTRACT: This paper has as main objective to trace a brief study on the legal institutions of the estate in abeyance and prescription. Objective, in addition, to elucidate the possibility of usucapir assets comprising collections abeyance, ensuring legal protection and legal certainty for the owner who saw completed in its favor the term adverse possession before the delivery of the judgment declaring the vacancy, demonstrating that the acquis abeyance is only transferred to the public domain with the delivery of that judgment.

KEYWORDS: Inheritance abeyance. Unclaimed inheritances. Prescription. Property.

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Sobre o autor
Raony Rennan Feitosa de Menezes Gonçalves

Bacharel em Direito pela Faculdade do Vale do Ipojuca – Favip, pós-graduado em Direito e Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia Professor Ruy da Costa Antunes – ESA/PE, pós-graduando em Direito Público com ênfase em gestão pública pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Advogado regularmente inscrito na OAB/PE, Procurador Jurídico na Procuradoria Geral do Município de Belém de Maria - PE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Raony Rennan Feitosa Menezes. A usucapião de bens imóveis que compõem a herança jacente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3690, 8 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25134. Acesso em: 13 mai. 2024.

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